
Restless Harmony
Escrito por Nyx | Revisado por Lelen
Peça 00: A Melodia do Silêncio
O som do piano ecoava pelos corredores vazios do Conservatório Saint-Helena, envolvendo o ambiente com uma melodia que oscilava entre a leveza e a intensidade. Lá fora, a chuva batia suave nas janelas, como se tentasse acompanhar o ritmo da música. No palco central, um piano de cauda reluzia sob a luz discreta do salão, enquanto o violino aguardava em silêncio, repousado sobre uma cadeira ao lado.
No fundo da sala, um par de figuras distintas se destacavam na penumbra. Os dois não falavam, mas trocavam olhares que diziam mais do que palavras poderiam expressar. A música começava a preencher o espaço entre eles, como se fosse uma terceira voz, moldando o que parecia ser um diálogo invisível.
Aqueles que passavam pelo conservatório diziam que esse lugar tinha o poder de revelar não apenas talentos, mas também as verdades que cada um escondia de si mesmo. E naquela noite, os sons entrelaçados do piano e do violino carregavam histórias ainda não contadas, sonhos ainda não realizados e uma promessa que nenhum deles ousava colocar em palavras.
Dois músicos, cada qual buscando uma forma de se libertar — um legado, uma sombra, expectativas. No coração da música, encontraram algo que parecia mais profundo do que qualquer composição. Mas o que o destino lhes reservava ainda era um mistério, uma sinfonia inacabada esperando ser escrita.
E assim, com as últimas notas pairando no ar, a história deles começava.
Peça 01: O Encontro
— Você está atrasada, ! — A voz de Ingrid ecoou pelo quarto pela terceira vez naquela manhã, cheia de impaciência. murmurou algo inaudível, se virando preguiçosamente na cama.
— Eu já estou indo… — disse, a voz abafada pelo travesseiro, claramente sem intenção de se mover.
— Não vou te chamar de novo! Se você perder o café da manhã, não me culpe. — Ingrid cruzou os braços à porta, exalando determinação. — Eu não vou me atrasar por sua causa.
Essas palavras foram o suficiente para arregalar os olhos e se levantar num pulo. Um relance no relógio confirmou: ela realmente estava atrasada. Com movimentos apressados, começou a se arrumar enquanto Ingrid saía do quarto sem olhar para trás, o som de seus passos firmes ecoando pelo corredor.
suspirou, sua mente ainda nublada pela exaustão. Na noite anterior, havia ficado acordada até 1h15 da manhã, praticando obsessivamente a peça Rapsódias, Op. 79 de Brahms. Seu corpo sentia o cansaço, mas ela sabia que precisava se apressar. Perder o café da manhã era impensável — era o único momento em que sentia que as energias se renovavam, especialmente após longas noites dedicadas ao violino.
cresceu em uma pequena cidade cercada por colinas verdejantes e o som de uma casa sempre cheia. A música entrou em sua vida antes mesmo de ela entender o que significava. Sua mãe, uma ex-pianista que desistira da carreira para criar as filhas, transformou a sala de estar em um espaço musical. As manhãs eram marcadas pelo som do piano, enquanto as noites traziam histórias sobre grandes compositores. Desde pequena, era ensinada que a música não era apenas uma arte, mas um legado — uma responsabilidade.
Sua adolescência foi um misto de dedicação e insegurança. Isis, sua irmã mais velha, era o prodígio da família, alguém que parecia nascer para brilhar nos palcos. Enquanto isso, se esforçava para acompanhar, sempre com a sensação de estar à sombra de Isis. A pressão familiar pesava, mas havia momentos de pura alegria quando ela tocava sozinha, sem ninguém para julgar. Nessas horas, a música era um refúgio, um espaço onde ela podia ser apenas .
Ao ser aceita no Conservatório Saint-Helena, sentiu que talvez tivesse uma chance de se redescobrir. A vida no conservatório era desafiadora, mas também libertadora. Pela primeira vez, ela estava cercada de pessoas que compartilhavam sua paixão pela música. No entanto, o peso das comparações com a irmã ainda a seguia. Suas apresentações eram tecnicamente impecáveis, mas sempre faltava algo — uma emoção genuína que ela tinha medo de explorar.
Chegou ao refeitório a tempo para o café da manhã, graças a Deus. Sentou-se apressada e devorou sua refeição em questão de minutos. Sentia o coração acelerado, não só pela pressa, mas também pelo nervosismo crescente. Checou o celular, viu que estava atrasada — dois minutos. Para a aula que teria, aquilo era praticamente um crime.
O horário era de Música de Câmara, compartilhado com os pianistas, e o professor John tinha a reputação de ser implacável com a pontualidade. correu pelos corredores, com o som dos próprios passos ecoando, e entrou na sala como um furacão, tentando passar despercebida.
A sala de aula era ampla, com uma acústica precisa e paredes cobertas de partituras e instrumentos. No centro havia um grande piano de cauda e, ao redor, cadeiras dispostas para os alunos. O ambiente exalava uma atmosfera de exigência e disciplina, mas também uma sensação de intimidade criada pela música que preenchia o espaço.
— De novo atrasada, senhorita . — A voz firme do professor fez a garota congelar por um instante. Ela engoliu em seco e esboçou uma careta tímida, detestando ser o centro das atenções.
— Me desculpe. Isso não vai se repetir — sussurrou apressadamente, enquanto se dirigia ao único assento vago da sala.
O professor não perdeu tempo, retomando sua postura severa enquanto se dirigia à turma:
— Muito bem. Pelo visto, todos se acomodaram naturalmente: um violinista ao lado de um pianista. Excelente. Vocês serão as duplas da aula de hoje. — Ele começou a distribuir partituras para os alunos. — Quero que trabalhem juntos na Sonata Primavera de Beethoven.
sentiu o coração quase parar ao olhar para o lado. O pianista ao seu lado era ninguém menos que , o prodígio do conservatório. Reconhecido por sua técnica impecável e presença marcante, ele era uma lenda viva entre os estudantes.
Ela se engasgou, tentando disfarçar a expressão de puro pânico. Impecável demais, pensou, enquanto ajustava nervosamente a postura. não sabia se estava mais assustada com a perspectiva de tocar ao lado dele ou com a certeza de que seria julgada por alguém tão excepcional.
Como se as coisas não pudessem piorar, a voz do professor ecoou novamente:
— Já que estão na ponta, vamos começar com vocês dois.
sentiu o rosto esquentar. Definitivamente, hoje não era seu dia de sorte. , por outro lado, parecia completamente calmo, o que só aumentava sua sensação de estar ferrada.
A garota ajeitou o violino nos ombros, tentando ignorar o olhar atento de ao seu lado. Ele já havia aberto a partitura, os olhos passando rapidamente pelas notas como se estivesse analisando algo complicado. Enquanto isso, ela lutava para controlar as mãos trêmulas, ajustando o arco e respirando fundo.
— Prontos? — perguntou o professor, de braços cruzados enquanto observava.
— Sim, professor John — respondeu , sua voz calma, mas baixa, quase como se preferisse não chamar atenção. apenas acenou com a cabeça, evitando qualquer contato visual.
começou a tocar primeiro, as notas fluindo do piano com precisão impressionante, mas também com uma certa frieza técnica. se juntou logo em seguida, hesitando no início, mas rapidamente sendo levada pela harmonia que ele criava. O som do violino começou a ganhar força, como se o instrumento respondesse à energia contida de .
O professor caminhou ao redor deles, avaliando cada detalhe.
— Interessante… — murmurou para si mesmo, mas ouviu e imediatamente pensou que algo estava errado.
Após alguns minutos de prática, o professor pediu que parassem.
— , você é mais expressiva, quase instintiva. , você é técnico, controlado. Normalmente, eu diria que isso poderia ser um problema, mas aqui… funciona. O contraste entre vocês cria algo inesperado.
arriscou um olhar para . Ele não a encarou de volta, mas permaneceu olhando para a partitura, os dedos ajustando um botão invisível na beirada do teclado, claramente desconfortável com a atenção.
— Continuem. Trabalhem mais a dinâmica. Quero sentir mais a conversa entre o piano e o violino. Vocês dois têm potencial juntos, mas precisam ouvir um ao outro.
Eles começaram novamente. Desta vez, tentou se concentrar mais no que estava tocando, ajustando seu arco para complementar os movimentos dele. Aos poucos, ela percebeu que não precisava competir; era uma parceria.
Quando terminaram, o professor bateu palmas brevemente.
— Bom. Muito bom, claro que tivemos muitos tropeços, mas foram muito bem. , confie mais em si mesma. , deixe-se levar um pouco mais.
recolheu as partituras em silêncio, sem olhar diretamente para . Ainda assim, ela sentiu a necessidade de agradecer.
— Você toca muito bem — ela disse, com um sorriso tímido.
Ele hesitou por um momento, os olhos fixos nas partituras, antes de responder em um tom quase murmurado:
— Obrigado. Você também.
se afastou de , voltando para sua cadeira com um suspiro leve, enquanto ele fazia o mesmo. Os dois sentaram em silêncio, acompanhando o resto da aula sem trocar uma palavra. olhou para frente, mas a mente ainda estava com o som do piano de , sua precisão e sua contenção. Havia algo nele que parecia com ela, uma espécie de retração, de querer se esconder atrás da música sem se expor demais.
O resto da aula passou sem incidentes, ambos focados em suas próprias reflexões. não conseguia parar de pensar na última frase do professor, que soara mais como uma avaliação do que uma simples sugestão. O contraste entre ela e , a ideia de como ambos poderiam se complementar, mexia com ela de uma maneira nova, e ela sentia um desejo quase estranho de explorar mais isso, mais ele.
Quando o professor finalmente terminou a aula e se aproximou da dupla, olhou para , que parecia imerso em seus próprios pensamentos, com os olhos fixos no piano. foi a primeira a falar, respondendo por ambos quando o professor os chamou:
— Claro, professor — disse ela, com a voz firme, tentando esconder a leve ansiedade que começava a crescer dentro dela. , não disse nada, apenas assentiu com a cabeça, mantendo o olhar distante.
— Nos vemos então, 17h30. — O professor saiu, deixando para trás duas figuras pensativas, ambas tentando entender o que aquela convocação poderia significar.
não conseguiu evitar a sensação de que algo estava prestes a mudar. Algo dentro de , ou talvez dentro dela mesma. Ela olhou para ele, mas ele parecia imerso em seus próprios pensamentos. E, pela primeira vez, não se incomodou com o silêncio entre eles. Em vez disso, ela sentiu uma curiosa expectativa.
🎻🎹
andava apressada pelos corredores do Conservatório, o som de seus passos apressados ecoando nas paredes. A conversa com o professor John e estava prestes a começar, e ela sabia que já estava atrasada. Mais uma vez. Sempre que se tratava do professor, ela sentia que estava sempre dando uma impressão errada. Nervosa, pegou o copo de café que tinha em mãos, mas antes de entrar na sala de música, jogou-o rapidamente no lixo, como era proibido beber na sala. Os nervos estavam à flor da pele, e a sensação de ter algo errado no ar só aumentava.
— Atrasada novamente, senhorita ! — A voz do professor John soou dura ao vê-la entrar. deu um suspiro nervoso, sentindo a pressão aumentar. Seu estômago revirava enquanto ela tentava manter a calma.
— Eu já não sei mais como me desculpar, professor John. A última aula me atrasou. — Ela mordeu o lábio, tentando não demonstrar o desconforto que sentia. O professor a olhou com um sorriso irônico, mas não respondeu imediatamente. percebeu que ele estava se divertindo com a situação, mas não havia nada engraçado para ela naquele momento. , por outro lado, estava calado, sua postura mais rígida e impassível, o que só aumentava a tensão no ambiente.
— Enfim — o professor continuou —, chamei vocês dois aqui hoje, pois tenho uma proposta, e não aceitarei “não” como resposta. — Ele fez uma pausa, como se esperasse uma reação. , de olhos arregalados, sentiu a ansiedade crescer, enquanto permaneceu inexpressivo. — Vocês dois têm estilos diferentes, mas juntos podem criar algo realmente único. E é por isso que os convoco para a apresentação de final de semestre da nossa academia.
ficou paralisada por um momento, seus pensamentos girando em torno da proposta do professor. Ela mal podia acreditar no que ouvia. Não sabia se estava mais surpresa ou ansiosa. O professor olhou para eles, aguardando a reação. Ela tentou processar as palavras, mas tudo que ela sentia era um nó no estômago. , por outro lado, parecia completamente calmo, como sempre. Ele não demonstrava emoções facilmente, o que tornava a situação ainda mais desconcertante para .
— A música que gostaria que tocassem juntos é a Sonata para Piano e Violino em Sol Maior, D. 384 de Schubert. — Ele entregou uma partitura, e olhou para ela, o rosto contraindo-se em apreensão, aquela sonata era muito difícil! Sua mente estava uma confusão, mas a ansiedade tomou conta de tudo. Ela mal conseguia segurar o violino, os dedos tremendo ligeiramente. Como poderia tocar com , um pianista tão talentoso, alguém que ela mal conhecia, sem saber como ele reagiria a qualquer coisa que ela tocasse?
— Professor, eu… — começou a falar, mas o professor a interrompeu com um gesto.
— Esta sonata é uma jornada de descoberta, não apenas da música, mas de vocês mesmos como músicos e pessoas. — Ele sorriu ligeiramente, como se já soubesse o que estava por vir. — Tocar em conjunto não é apenas sobre técnica, é sobre encontrar um novo espaço, onde o som de um se une ao outro, criando algo que nunca existiu antes.
olhou para , esperando encontrar algum tipo de apoio, mas ele apenas olhou para a partitura, imerso nela, seu rosto ainda impassível. Ele parecia calmo, mas sentia-se como se estivesse prestes a morrer tamanha sua ansiedade. Suas mãos estavam geladas e seus dedos começaram a tremer ainda mais.
— Eu não acho que vou conseguir acompanhar… — sussurrou , a insegurança transparecendo em sua voz. , sem olhar para ela, respondeu de forma direta:
— Vai conseguir. Só precisa ouvir.
As palavras de , ditas com a tranquilidade de quem não se importava com falhas, atingiram como um pequeno choque. Ela engoliu em seco, sentindo a tensão aumentar. Sua insegurança estava crescendo, mas parecia tão distante, tão absorvido na música e no desafio à frente, que se sentiu ainda mais pequena, ainda mais distante dele. Ela se sentia tão inadequada, tão insegura, especialmente em comparação com o talento de , tão bem reconhecido por todos no Conservatório.
— Vamos, tentem. Com ensaio, tudo é possível — o professor os encorajou, enquanto finalmente respondeu à pergunta dele:
— Por mim tudo bem. Me sinto honrado com o desafio, professor. — abriu um sorriso fechado, mas que não chegou a alcançar seus olhos. se sentiu um pouco desconfortável, mas sem outra escolha, ela pegou o violino.
A música começou, e os primeiros acordes fluíram, mas algo estava errado. O som parecia forçado, sem harmonia. tentava se ajustar ao ritmo de , mas a diferença em seus estilos de tocar era gritante. , com sua precisão e técnica, tocava com frieza, como se estivesse tocando sozinho, enquanto se esforçava para alcançar a perfeição que ele parecia exigir de si mesmo. As falhas começaram a se acumular, e com elas, a frustração de .
— Desculpa, me atrapalhei — sussurrou , tentando se desculpar enquanto as notas erradas ecoavam pela sala. , no entanto, não parecia nem um pouco perturbado, seu olhar fixo na partitura enquanto continuava a tocar sem perceber a angústia de .
O tempo passava, e a sensação de desconexão entre os dois crescia. se sentia cada vez mais insegura, como se fosse uma espectadora da música, ao invés de uma participante ativa. Mas, aos poucos, algo começou a mudar. , ao perceber que a harmonia não viria apenas da sua técnica, começou a suavizar seu toque, diminuindo a intensidade das teclas, quase dando espaço para . A tensão entre eles, embora ainda presente, começou a diminuir, e , surpreendentemente, se encontrou mais relaxada. Ela seguiu o ritmo dele, mas agora estava ouvindo mais, não apenas tentando acompanhar.
Na terceira tentativa, algo mágico aconteceu. finalmente encontrou o ritmo, o arco do violino mais firme, os dedos mais soltos. Ela começou a ouvir, realmente ouvir a música como uma conversa entre ela e . , percebendo a mudança, ajustou seu toque mais uma vez, criando um espaço onde ambos poderiam se encontrar.
Quando a música terminou, a sala estava cheia de um silêncio profundo, mas cheio de algo mais. olhou para , e pela primeira vez, sentiu que não estava apenas tentando acompanhá-lo, mas compartilhando algo com ele.
— Você ouviu — disse , o tom mais suave, quase surpreso.
— Eu ouvi — respondeu , agora com uma confiança tímida, mas verdadeira.
O professor ficou em silêncio, satisfeito. Ele sabia que, apesar de ser só o começo, algo importante estava acontecendo ali.
🎻🎹
— E então, , o que o professor queria com você? — perguntou Ingrid assim que entrou no dormitório, tirando a mochila com um suspiro cansado. se jogou na cama, como se todo o peso do mundo estivesse em seus ombros.
— Que eu toque na apresentação final do semestre. — A resposta veio rápida, mas não conseguiu esconder a insegurança em sua voz.
Ingrid arregalou os olhos, surpresa e, ao mesmo tempo, feliz por ela. Não era para menos. Aquela era uma oportunidade rara e importante.
— , isso é incrível, meus parabéns! — exclamou Ingrid, imediatamente indo até ela e a abraçando com força. — Mas… por que parece que você não está feliz?
suspirou fundo, afundando ainda mais no travesseiro, a sensação de cansaço e apreensão tomando conta dela.
— Você sabe, Ingrid, eu não me sinto pronta para uma apresentação dessa grandeza. E também… — hesitou por um momento, suas palavras presas na garganta.
Ingrid, sempre perspicaz, balançou a cabeça negativamente, como se dissesse que já sabia onde a amiga queria chegar.
— , você é grandiosa! Não entendo essa insegurança toda até hoje — insistiu Ingrid, sentando-se ao lado dela na cama, segurando suas mãos com firmeza. sabia que sua amiga queria ajudá-la, mas a insegurança ainda era um peso difícil de dissipar. — E também o quê? — perguntou Ingrid, atenta, esperando que continuasse.
virou a cabeça para encarar Ingrid, o olhar cheio de uma mistura de nervosismo e um certo desconforto.
— Eu vou tocar junto com o . — As palavras saíram baixas, mas Ingrid, que sabia o quanto aquilo significava para , ficou sem palavras por um momento.
Ela arregalou os olhos, a surpresa evidente no rosto. era uma lenda viva no conservatório, um prodígio que poucos ousavam desafiar.
— Ah, meu Deus! Agora posso te compreender, querida — disse Ingrid, mais para si mesma do que para , já imaginando a complexidade da situação. fechou os olhos, pressionando o travesseiro contra o rosto, sentindo um misto de frustração e medo.
— Ei, calma. Você, mais do que ninguém, pode tocar com ele. Vai ser magnífico! — Ingrid tentou aliviar, seu tom cheio de confiança, embora não pudesse se livrar da sensação de que estava prestes a fracassar.
— Eu amo como você acredita em mim, Ingrid. — esboçou um sorriso fraco, mas, por dentro, a ansiedade não a deixava em paz. — Hoje tocamos pela primeira vez juntos e… eu penei muito para conseguir entrar no ritmo dele. O jeito como ele toca é… é de uma frieza absurda!
Ingrid riu baixinho, mas logo se controlou, percebendo a seriedade da situação.
— Não é à toa que o apelido dele é “príncipe de gelo”. Nunca o ouvi falar com ninguém, apenas com os professores. Parece que nenhum aluno está à altura dele — comentou Ingrid, um pouco mais amuada, sentindo a tensão que envolvia o nome de .
ficou pensativa, olhando para o teto, a mente repleta de dúvidas. era brilhante, indiscutivelmente talentoso, mas também tão distante. Ela sabia que precisava se conectar com ele de algum modo, mas a ideia de fazer isso sem saber se ele sequer queria se conectar com ela a deixava ainda mais insegura. Ela não sabia o que esperar da experiência, mas sabia que, de alguma forma, essa parceria era inevitável.
Ela se levantou da cama e foi até a janela, olhando para o pátio do conservatório, onde alguns alunos ensaiavam ao ar livre. Sua mente estava confusa, cheia de incertezas. Ela sabia que esse momento representava uma grande oportunidade, mas também sentia como se estivesse em um terreno desconhecido, onde cada passo seria um risco.
— Eu só não sei se consigo fazer isso sozinha — sussurrou para si mesma, mas Ingrid, com sua energia habitual, se levantou e foi até ela.
— Não é sozinha. — Ingrid sorriu, colocando a mão no ombro da amiga. — E não se esqueça de que você tem um talento único. Não importa o que seja ou como ele seja. O importante é que você tem o que é necessário para brilhar, .
a olhou, grata, mas ainda sentindo a enorme pressão sobre seus ombros. Ela sabia que a jornada não seria fácil, mas talvez, apenas talvez, tivesse a chance de descobrir algo novo sobre si mesma, e talvez até sobre . O que ela ainda não sabia era o quanto essa parceria inesperada mudaria a forma como ela veria a música, e a vida, dali em diante.
Peça 02: Desafios
A sala de música de câmara tinha uma beleza austera, quase intimidadora: as paredes revestidas de madeira pareciam amplificar cada som, como se a acústica perfeita tornasse cada nota mais intensa. O piano de cauda estava impecavelmente posicionado sob a luz suave, refletindo a reverência que todos na sala tinham pela música. já estava sentado diante do piano, suas mãos delicadamente posicionadas nas teclas como se o instrumento fosse uma extensão natural dele. entrou devagar, o violino firme entre as mãos, sentindo o peso do momento pesar em seus ombros.
O ar parecia denso entre os dois. Enquanto irradiava confiança, com sua postura rígida e certa superioridade, sentia-se como uma intrusa. A garota ajustou o arco e alinhou as partituras no estante, mas seus dedos tremiam levemente, mostrando seu nervosismo. Hoje era o primeiro ensaio sem a presença do professor, e o ambiente parecia carregado de expectativas.
— Oi — tentou quebrar o silêncio. apenas acenou com a cabeça, os olhos ainda fixos nas teclas do piano.
— Está pronta? — perguntou ele, sua voz baixa, quase impessoal.
— Estou. — ajustou o violino no ombro, tentando forçar uma confiança que não sentia.
iniciou as primeiras notas da peça, e a música começou a tomar forma, mas logo a desconexão entre os dois tornou-se evidente. lutava para seguir o ritmo metódico e implacável de , suas notas soando hesitantes e incertas. Enquanto isso, o piano fluía com a precisão que ele sempre mantinha, como se nada mais importasse.
— Você está atrasada. De novo! — parou abruptamente, lhe lançando um olhar irritado. — Parece que voltamos à estaca zero.
respirou fundo, tentando não ceder à frustração.
— Eu sei! Mas você não facilita. Você acelera sem aviso! — Ela sentiu a pressão aumentar, mas tentou manter a calma.
— A música não espera por ninguém, . Ou você acompanha ou fica para trás. — arqueou uma sobrancelha, como se fosse óbvio.
— E talvez se você não fosse tão… tão perfeccionista, seria mais fácil tocar junto! — soltou o arco, exasperada, a raiva subindo enquanto sentia o peso da situação.
inclinou a cabeça ligeiramente, seus olhos estreitando com a tensão, mas, em vez de responder de imediato, ele se voltou para o piano. Ele tocou as primeiras notas da peça novamente, mas agora com um tom mais suave, quase melancólico, como se quisesse transmitir algo além da frieza técnica.
— A perfeição não é o objetivo, mas a harmonia sim. E você só vai encontrá-la se escutar — falou sem olhar para ela, sua voz tranquila, mas cheia de autoridade.
ficou parada por um momento, o violino apertado contra o peito. Sua frustração ainda estava lá, mas algo na suavidade da música, na maneira como tocava agora, a fez hesitar. Ele parecia mais vulnerável, menos distante, como se a música fosse o único meio de comunicação que ele tivesse. Ela olhou para ele, procurando algo mais, e algo dentro dela mudou.
— Tudo bem. Vamos tentar. — Relutante, ajustou o violino novamente, sua respiração mais calma, mas ainda ansiosa.
Eles recomeçaram. As primeiras tentativas foram desajeitadas, com notas erradas e hesitações, mas não parou. , agora mais atenta, ajustou seu arco, tentando se concentrar, deixando a música guiá-la. Aos poucos, ela foi encontrando o ritmo dele, e o som do violino foi se alinhando ao piano, como se, finalmente, as peças começassem a se encaixar.
Quando chegaram ao clímax da peça, a transformação foi palpável. A música já não era apenas uma sequência de notas, mas uma conversa, um entendimento silencioso. olhou para pela primeira vez durante a execução, e, naquele olhar, percebeu que ele, finalmente, estava gostando. O peso da tensão entre eles parecia ter diminuído, substituído por algo mais fluido, mais leve.
Quando a última nota ecoou pela sala, abaixou o violino lentamente, respirando fundo, como se tivesse acabado de sair de um longo mergulho.
— Foi… melhor, eu acho — disse , a voz baixa, ainda incerta.
— Foi. Mas ainda tem muito para melhorar. — olhou para as teclas, o semblante sério, mas com um tom mais suave.
baixou a cabeça, um pequeno sorriso escapando. Ela sabia que ele sempre acharia algo para melhorar, mas havia algo na maneira como ele falara, algo menos rígido. Era um começo, ao menos.
— Claro que você acha isso — murmurou , ainda sorrindo, mas com um toque de ironia.
deu um meio sorriso, quase imperceptível, mas percebeu. Ele relaxou os ombros e começou a guardar suas partituras, a tensão finalmente se dissipando.
— Você tem potencial, . Mas precisa parar de deixar o medo te dominar. A música é tão boa quanto a confiança que você tem nela — disse , quebrando o silêncio que os envolvia, sua voz agora mais calma, mais direta.
, tocada pelas palavras dele, sentiu uma sensação desconfortável e, ao mesmo tempo, reveladora.
— E você precisa parar de agir como se a música fosse só sua. Isso é um dueto, lembra? — As palavras saltaram da boca dela antes que pudesse impedir, sua frustração transbordando.
não respondeu de imediato. Ele apenas assentiu, como se tivesse finalmente entendido algo que ela tentava expressar. O silêncio que se seguiu era diferente agora. Não havia mais tensão, apenas uma leve sensação de que algo importante havia mudado. pegou sua bolsa e caminhou em direção à porta, seu passo mais firme.
Antes de sair, ela se virou para ele, um tom mais leve na voz.
— Até o próximo ensaio… parceiro.
olhou para ela, e, por um instante, o que parecia ser um sorriso genuíno surgiu em seu rosto.
— Até lá.
saiu da sala, mas, ao fechar a porta, ela sentiu que algo novo estava começando. , olhando para o piano, passou os dedos pelas teclas sem tocá-las, pensativo. Ele sabia que o próximo ensaio seria desafiador, mas agora, pela primeira vez, parecia que poderia valer a pena.
🎻🎹
saiu da academia, absorvendo a leve brisa que tocava seu rosto enquanto se dirigia ao carro de seus pais. O motorista Nev o aguardava pacientemente, e, sem uma palavra, entrou no veículo. Seu destino estava traçado: a gravadora da família, onde seria realizada mais uma reunião sobre o futuro de sua carreira. Ele não conseguia afastar a sensação de que aquele encontro seria mais um passo em uma direção que ele não queria seguir.
Enquanto o carro cortava a cidade, as ruas passavam diante de seus olhos, mas sua mente estava distante, perdida em seus próprios pensamentos. Ele estava cansado da constante pressão para se encaixar em um molde que nunca foi seu. A música, que deveria ser sua expressão mais íntima, havia se tornado uma obrigação imposta pelas expectativas de sua família. Seu avô fundara a prestigiada “ Records”, e seu pai, Arnold, havia feito disso um império. Desde a infância, fora treinado para ser o herdeiro, o sucessor. Começou a aprender piano antes mesmo de saber ler, e cada apresentação sua era um evento. O talento era indiscutível, mas a paixão estava se diluindo em meio a obrigações.
Na adolescência, começara a questionar a música que tocava. As reuniões intermináveis na gravadora, as peças clássicas escolhidas por seu pai, as exigências para provar seu valor a cada acorde… Ele se via sufocado. Sua verdadeira paixão não estava em seguir o caminho da família, mas em explorar a música como uma forma genuína de expressão. Ele compunha em segredo, criando melodias que diziam o que ele não conseguia verbalizar.
Quando optou por entrar no Conservatório Saint-Helena, a resistência foi feroz. Seu pai achava que aquilo era uma perda de tempo, uma escolha errada para alguém destinado a comandar a herança musical da família. Mas para , o conservatório representava a chance de se descobrir, longe das amarras familiares. Mesmo lá, ele ainda carregava o peso da linhagem . Tentava equilibrar sua vontade de criar algo autêntico com a pressão de ser o sucessor de um império. Mas, por mais que tentasse, havia algo dentro dele que se recusava a se dobrar totalmente. A música que ele compunha nas sombras era a prova de que ele não estava disposto a abdicar de sua essência, mesmo que isso significasse confrontar os próprios medos.
Quando o carro parou em frente ao imponente edifício da gravadora, desceu sem pressa. O ambiente era frio, meticulosamente projetado para impressionar. O prédio de vidro e concreto parecia mais um palco, onde se tomavam decisões estratégicas que nada tinham a ver com a arte. Ao entrar na sala de reuniões, o cheiro de luxo e formalidade invadiu seus sentidos. Sua mãe, Janne, estava ali, com um sorriso que tentava, em vão, suavizar a tensão. Seu pai, Arnold, se sentava atrás de sua mesa de presidente, com uma postura rígida que exalava autoridade. Ao lado de sua mãe, estava Enrico Gomes, o diretor de Novos Projetos — a figura que mais desprezava.
O ambiente estava carregado, uma tensão palpável pairando no ar. Todos se cumprimentaram brevemente de forma educada. observava os papéis sobre a mesa, as partituras que pareciam mais um artifício corporativo do que a expressão de algo artístico.
— Bom, estamos aqui para discutir o futuro brilhante de , não é? — Enrico sorriu de forma controlada, tentando quebrar o gelo.
não desviou o olhar da mesa de vidro, o corpo tenso, os braços cruzados como uma muralha. Ele sabia o que viria.
— Chega de rodeios, Gomes. Qual é a proposta dessa vez? — falou ele com um tom ríspido, sem esconder o desdém.
Enrico não se abalou. Com calma, abriu a pasta diante de si, revelando uma série de documentos.
— A gravadora está ansiosa para lançar algo novo. Sabemos que você é um dos pianistas mais talentosos da sua geração, . Mas para que seu talento seja plenamente aproveitado, precisamos conversar sobre estratégias. — Ele fez uma pausa, observando os pais de , que estavam mais atentos do que nunca. — A proposta é simples. Queremos algo que conecte o clássico ao popular. Pensamos em uma reinterpretação mais acessível de Chopin, se é que me entende. Seriam apenas quatro faixas, um EP.
— Acessível? — levantou uma sobrancelha, claramente desconfortável com a ideia.
— Sim. Uma versão moderna de Chopin, misturando elementos clássicos com algo mais contemporâneo. — Enrico parecia quase entusiástico.
soltou uma risada curta, amarga, e olhou para ele com um olhar frio.
— E eu seria quem? O cara que estraga Chopin? Isso é um insulto. Chopin é Chopin, não é uma mercadoria para ser diluída. — Ele se virou para os pais, sua frustração transbordando. — E vocês sabem que música clássica não é mais meu nicho central, eu tenho expandido meus gostos musicais.
Enrico não perdeu o ritmo, seus olhos afiando-se, como se tivesse se preparado para esse momento. Ele recostou-se na cadeira e suavizou a voz, assumindo uma postura mais estratégica.
— , eu entendo sua resistência. Mas acredite, não se trata de perder a essência. É sobre se adaptar a um novo contexto. A música clássica precisa evoluir.
— Evoluir? Isso não tem nada a ver com evoluir. Não quero ser o responsável por transformar as sonatas de Chopin em algo superficial. A música clássica sempre teve seu lugar, e é justamente isso que a torna única — falou com firmeza, mas de forma ponderada, sua voz tranquila, ainda revelando uma resistência. — Eu preciso de algo que realmente me desafie.
Janne tentou intervir, sua voz suave, mas com uma pitada de urgência.
— , querido, talvez isso seja uma oportunidade para mostrar sua versatilidade, alcançar um público maior. O mundo está mudando, e você precisa estar à frente dessa mudança.
— Versatilidade? Isso é só uma palavra bonita para “vender”. — olhou para sua mãe com um olhar carregado de frustração. Arnold, que havia ficado em silêncio até então, explodiu:
— Você precisa entender que não se trata apenas de você. Sua carreira reflete em toda a nossa família! Já basta você ter feito o que quis ao entrar nesse conservatório. Eu aceitei, mas impus condições! E você não está cumprindo nenhuma delas! — A raiva do pai transbordava, e ele deixou claro o quanto isso o afetava.
— Condição? Você quis que eu fosse uma marionete sua. Nunca aceitei isso. — riu com amargor.
— , chega! — Arnold estava prestes a perder a paciência, mas não se intimidou.
— Eu não vou ser o que você quer. Eu já estou seguindo meu próprio caminho, no meu próprio ritmo. E se isso significa perder contratos, então que assim seja! — Ele estava tremendo de raiva, mas sua voz estava firme, sem hesitações.
A sala ficou em silêncio. O ar parecia pesar, e o som da respiração de se misturava com a tensão que se espalhava pelo ambiente.
— Você está cometendo um erro colossal, . A indústria não perdoa esse tipo de atitude, você será deixado para trás e vai se arrepender no futuro. — Enrico tentou recuperar a compostura, mas suas palavras saíram com um tom de ameaça velada.
olhou diretamente para ele, sem um pingo de arrependimento.
— Talvez seja melhor assim. — Com um suspiro final, ele se levantou e, sem olhar para trás, saiu da sala. Cada passo parecia carregar o peso de sua decisão.
Os pais de ficaram ali, imóveis. O silêncio os envolveu como uma sombra, e eles sabiam que algo irreversível havia acontecido. No corredor, o som dos passos de se afastando ecoava como um aviso.
— Ele não pode simplesmente recusar isso. Isso envolve uma fortuna! — Arnold estava furioso, mas uma solução já se formava em sua mente. Ele olhou para Enrico, decidido. — Quanto tempo temos? — Enrico hesitou.
— Oito dias. Se não, esse projeto terá que ser entregue a outro artista — falou ele com urgência.
— Oito dias… é o suficiente. Eu garanto que ele vai aceitar. — Arnold se recostou na cadeira, mas havia uma decisão fria em seus olhos. A batalha estava longe de terminar.
saiu do prédio com passos firmes, o som de seus sapatos ressoando no corredor vazio, como se sua postura decidida ainda ecoasse ali. Quando a porta de vidro se fechou atrás dele, uma onda de alívio tomou seu peito, mas também algo mais — um nó apertado na garganta. Olhou para o céu, agora tingido de um laranja suave, reflexo do entardecer, mas o mundo à sua volta parecia turvo, como se ainda estivesse absorvendo o peso da decisão que acabara de tomar.
A cada passo que dava em direção à rua, sentia que deixava para trás não apenas o escritório de seu pai, mas uma parte de si mesmo, uma parte de sua identidade que, por tanto tempo, se viu comprimida, forçada a se ajustar às expectativas que os outros impuseram. Embora aquele desconforto ainda o acompanhasse, à medida que se afastava do prédio, algo dentro dele começou a se soltar, como se o ar que respirava fosse mais puro, mais leve.
Não queria mais se perder nas expectativas de um mercado que se alimentava de fórmulas sem alma. Ele desejava a liberdade de tocar o que quisesse, a honestidade de se expressar sem ser moldado por uma indústria ávida por sucesso e popularidade. A música, que sempre foi seu refúgio, agora se tornava sua verdadeira liberdade. Não era mais uma ferramenta para ganhar aprovação ou uma moeda de troca. não precisaria mais esconder quem era, se moldar para agradar a ninguém. Ele finalmente estava se permitindo ser o que sempre foi: um artista.
Enquanto caminhava pelas ruas movimentadas, ao som da cidade e do farfalhar das folhas ao vento, uma calma se instalou dentro dele, algo que ele não sentia há muito tempo. A pressão que pesava sobre seus ombros, as expectativas de todos, parecia começar a se dissolver. Agora entendia que o sucesso não devia ser medido pela aceitação dos outros, mas pela conexão que fosse capaz de criar consigo mesmo através de sua arte. E isso, mais do que qualquer contrato ou produção de grandes números, era o que realmente importava.
Nota da autora: Neste capítulo deu para conhecer um pouco mais da personalidade do Gabriel, não é?
Espero que estejam gostando. As atualizações não vão demorar, pois a história já está finalizada. Beijoss!
Peça 03: Estreitando relações
O jardim estava silencioso, com o som suave do vento agitando as folhas das árvores e o murmúrio distante de água corrente em um pequeno lago. O sol começava a se pôr, tingindo o céu de tons suaves de laranja e rosa. O ar fresco preenchia o ambiente, trazendo uma tranquilidade que contrastava com a tensão ainda presente no ar, após o ensaio difícil que haviam compartilhado pouco antes.
, com o violino em mãos, se aproximou lentamente de , que estava sentado em um banco de madeira, com os olhos fixos no horizonte. Ele parecia distante, perdido em seus próprios pensamentos. Ela hesitou por um momento, mas decidiu se sentar ao lado dele. O silêncio entre os dois era pesado, mas a paisagem ao redor transmitia uma sensação de calma que suavizava a situação.
— Você toca como se estivesse tentando fugir de alguma coisa — disse , quase em um sussurro, quebrando o silêncio com a suavidade de suas palavras.
não respondeu imediatamente. Manteve os olhos no pôr do sol, mas a expressão em seu rosto se suavizou, uma sombra de reconhecimento surgindo em seu olhar. Talvez estivesse vendo mais do que ele gostaria de revelar.
Flashback - Ontem
entrou em seu dormitório e se assustou ao ver seu pai ali. Não estava esperando aquela visita. Seus olhos se fixaram na pasta que o pai segurava, e ele apertou os olhos com força, compreendendo imediatamente o que aquilo significava.
— , você tem noção da oportunidade que está em suas mãos? Este projeto é um marco, e você não pode deixar isso escapar. — A voz autoritária do pai ecoava pelo quarto, enquanto ele nem ao menos levantava os olhos para o filho.
— Eu não quero fazer isso. Não quero mais seguir esse caminho. A música que vocês querem de mim não é a minha música! — falou com firmeza, sua expressão tensa.
— Você sabe o que é a sua música, ? O que você chama de "sua música" não paga as contas de casa, não atrai público. Nós vemos algo em você que vai além da sua técnica, além das suas preferências pessoais. Nós vemos um artista, alguém que pode ser grande, e você está jogando tudo isso fora por medo. — O pai tinha um olhar impassível.
— Eu não estou com medo. Eu só não quero ser mais um produto! Não quero ser manipulado, tocando o que não é verdadeiro só porque alguém vai comprar. — abriu os braços, frustrado.
— Você acha que pode controlar a música assim? Acha que pode dizer não a tudo? A música, meu filho, é uma carreira. E como qualquer carreira, você precisa saber onde se colocar. Se você não fizer isso, outro vai fazer no seu lugar, e você vai ser deixado para trás. — Arnold se levantou da cama, sua postura firme e imponente, seu olhar tão cortante quanto suas palavras.
— Eu não sou só mais uma peça no jogo! Não vou continuar nessa vida, tocando para agradar aos outros! A música precisa ser mais do que isso. Eu quero encontrar a minha verdade nela. — sentiu a pressão aumentar, sua voz se elevando.
— Você está sendo ingênuo, filho. Este projeto não é só sobre você. Não é só a sua carreira que está em jogo, é a nossa reputação como família. A partir do momento que você recusa algo assim, joga sua carreira fora, e o que nós fazemos? Ou você acha que isso não nos afeta?
— Pai, você não...
— Eu ainda não terminei de falar, cale-se! — Arnold interrompeu, sua voz baixa, mas firme. — Você tem uma responsabilidade com todos nós. Eu te eduquei, te banquei e ainda pago seus estudos nessa escolinha, e é isso que você quer fazer?
suspirou, o peso do que o pai estava dizendo apertando em seu peito. Arnold foi até ele, colocando uma mão firme no seu ombro.
— Não quero ser parte disso, pai. Não quero seguir o que planejarem para mim. — se afastou levemente, o olhar agora mais determinado, mas com dor visível.
— Você acha que pode dizer não? O que você quer é um luxo que não pode se dar. E mais, você não tem escolha. São apenas quatro músicas, . Isso vai acontecer, e você vai gravar. Não importa o quanto você resista. Vai acontecer. — Arnold olhou-o com olhos frios, suas palavras sendo uma sentença.
— E se eu não fizer, pai? O que acontece então? — tentou controlar sua raiva, as mãos cerradas em punhos.
— Você não será mais músico. Vai ser queimado em qualquer gravadora, e eu vou garantir isso. — O tom do pai foi tão definitivo que ficou sem palavras, incrédulo com o que acabara de ouvir.
A raiva e a frustração se acumulando dentro dele, até que uma última afirmação saiu de seus lábios, com amargor:
— Eu não sei se consigo me olhar no espelho depois disso.
— Você vai conseguir. Porque isso é o que você deve fazer. E você vai fazer. No final, todos nós temos que fazer o que é necessário. — Arnold o olhou com dureza, como se aquele fosse o único caminho possível.
Fim do Flashback
suspirou, lembrando-se daquela discussão dura com o pai, do peso da culpa que sentia, de como se via como um joguete, um produto. As palavras de estavam mais certas do que ele gostaria de admitir.
— E você toca como se tivesse medo de ser ouvida — finalmente quebrou o silêncio, ainda olhando para o horizonte.
sentiu o peso de suas palavras e baixou o olhar, o violino quase caindo de suas mãos. Sentiu-se exposta, como se tivesse tocado uma parte de sua alma que ela ainda não queria enfrentar.
— É porque tenho — sussurrou ela, quase inaudível, mas conseguiu ouvir.
O silêncio voltou a envolver os dois. virou o rosto levemente, agora olhando para . Seus olhos estavam mais suaves, mas ainda carregavam intensidade. Ele via a fragilidade nela, uma vulnerabilidade que a impedia de ser verdadeiramente livre ao tocar. , de alguma forma, refletia muito dele.
— Do que você tem medo? — perguntou , curioso, mas com uma gentileza que não esperava de si mesmo.
hesitou, os olhos perdendo-se no chão à sua frente, como se buscar as palavras fosse mais difícil do que imaginava. Respirou fundo, tentando organizar os pensamentos.
— De nunca ser suficiente... para mim, para a minha família, para os outros. — Sua voz estava carregada de insegurança.
a observou em silêncio, e por um momento, a distância entre eles pareceu diminuir. Ele entendia mais do que ela imaginava, porque, no fundo, ele carregava medos semelhantes.
— Se a música for só para os outros, ela nunca será sua — falou com um olhar distante, mas profundo, como se fosse uma verdade universal.
ficou em silêncio, refletindo sobre as palavras dele. Elas ressoaram em sua mente, desafiando a forma como sempre se relacionou com a música. Ela tinha se perdido nas expectativas dos outros, sem perceber que precisava se encontrar primeiro.
— Eu só não sei como deixar a música ser minha... eu sempre senti que ela era uma forma de tentar preencher algo... algo que falta — finalmente disse, sua voz agora mais baixa, vulnerável.
olhou para ela, seus olhos cheios de empatia silenciosa. Ele sentiu aquela dor, uma dor que também carregou por muito tempo, refletida nas escolhas que fez ao longo da vida.
— Eu também demorei para entender isso. Às vezes, a gente tenta tanto agradar aos outros que se perde no caminho. A música é um reflexo da gente. Não adianta tocar para os outros se a gente mesmo não se encontrar nela — falou com um sorriso tímido, quase como uma lembrança de si mesmo.
O silêncio se instalou de novo, mas agora era mais suave, mais tranquilo. estava pensativa, absorvendo as palavras de . Ela nunca imaginou que ele pudesse ser tão aberto, tão genuíno. A distância entre eles agora parecia menor, como se a música começasse a criar uma ponte entre os dois.
— Eu gravei algo... se quiser ouvir. — , com um gesto lento, pegou o celular da mochila, junto com o fone e os entregou a ela, sem esperar uma resposta imediata.
, com um olhar curioso, aceitou o fone de ouvido. A música começou a tocar — suave, melancólica, mas cheia de emoção. O piano delicado preenchia o silêncio do jardim, e fechou os olhos por um momento, permitindo que a melodia a envolvesse. Ela sentiu a melancolia, mas também uma paz que nunca imaginou encontrar.
A música de carregava algo que ela não esperava: uma tristeza silenciosa, mas também uma esperança sutil. Ela finalmente entendeu que sua música não era uma fuga, mas uma forma de se encontrar.
— É… bonita — falou com sinceridade, assim que a música terminou.
a olhou, e seu olhar estava um pouco mais suave. Pela primeira vez, ela sentiu que ele estava compartilhando algo real, algo que vinha de dentro dele.
O sol já estava quase se pondo, e a luz suave que ainda iluminava o jardim parecia agora trazer uma nova perspectiva para os dois jovens músicos. Eles, tão diferentes, agora compartilhavam algo profundo: a compreensão de que a música precisava ser mais do que uma performance. Precisava ser, antes de tudo, um reflexo sincero de quem eles eram. E, de alguma forma, isso os aproximava mais do que qualquer palavra já poderia.
🎻🎹
estava quase saindo da sala quando o som do celular a fez parar. Olhou para a tela e, ao ver quem estava ligando, seu coração apertou. Era a mãe. Ela suspirou profundamente, sentindo o peso de mais uma conversa que não desejava ter. Por um momento, hesitou, os dedos inquietos sobre o aparelho. Mas, com um movimento lento, atendeu.
— Oi, mãe. — A voz de saiu mais cansada do que gostaria, como se cada palavra fosse um fardo.
— Oi, , finalmente! Eu tentei falar com você o dia todo. Como estão os ensaios? Espero que esteja se esforçando.
— Estou, mãe — respondeu com um tom breve, desejando apenas que a conversa chegasse ao fim.
— Espero mesmo. Você sabe, a Isis sempre se preparava com muita dedicação. Ela nunca deixava nada para a última hora.
— Eu sei, mãe. Você já me disse isso mil vezes. — revirou os olhos, uma mistura de frustração e cansaço tomando conta de seu corpo.
— E vou repetir outras mil se for necessário. A Isis tinha um foco que você ainda não encontrou, .
sentiu uma pontada no peito, o peso da comparação apertando sua garganta.
— Mãe, você sabe que comparar a gente não ajuda, não é? — Ela tentou manter a calma, mas as palavras estavam saindo mais amargas do que pretendia.
— Não estou comparando, só apontando o que você pode aprender. Não é errado querer que você aproveite o seu potencial ao máximo. — O tom de Jessica ficou mais defensivo. — Eu só quero o melhor para você.
— Não, mãe. Você sempre compara. Desde que entrei nessa porra de escola, todo mundo espera que eu seja a Isis. Mas eu não sou ela! — sentiu a raiva ferver, quebrando a fachada que ela tentava manter.
— Olha a boca, ! Tenha respeito comigo! Eu ainda sou sua mãe! — Jessica elevou a voz, mas , já fora de si, passou a mão no rosto, sentindo o calor da raiva se espalhar. — Talvez se você parasse de se esconder atrás de desculpas e realmente se dedicasse, as pessoas veriam o seu valor.
— Você acha que eu não me esforço? Que não estou tentando? Você não tem a menor ideia do que é viver na sombra de alguém o tempo todo, ouvindo sempre que não sou o suficiente! — se forçou a manter a voz firme, mas as palavras saíram cortantes, revelando a dor que ela tanto tentava esconder.
— Isso não tem a ver com ser suficiente, . É sobre alcançar o que você é capaz de alcançar. Eu só quero que você tenha o mesmo sucesso que a Isis, mas você age como se isso fosse um peso.
— Porque é um peso, mãe! Não importa o que eu faça, nunca vai ser bom o bastante. Porque eu nunca vou ser a Isis. E o que é pior: parece que você nem quer que eu seja eu mesma! — A última frase soou como um grito abafado, a mágoa transbordando.
— Se ser você mesma significa não alcançar o que eu sei que você pode, então talvez seja hora de refletir sobre o que realmente quer. Porque talento sem esforço não significa nada, . — A voz de Jessica ficou cortante, a frieza se infiltrando.
sentiu uma dor aguda no peito, como se suas palavras tivessem se transformado em lâminas. Ela fechou os olhos, tentando segurar as lágrimas.
— Talvez o problema não seja o meu esforço, mas o fato de você nunca enxergar o que eu faço como suficiente. Você quer que eu seja alguém que não sou. E sabe de uma coisa? Eu estou cansada disso! — A primeira lágrima escorreu pelo seu rosto, quente e pesada.
— Se cansar vai te fazer desistir, então talvez eu tenha razão em me preocupar. — A resposta de Jessica foi fria, implacável.
sentiu uma raiva crescente, algo dentro de si quebrando.
— Chega! Eu não aguento mais isso. Talvez seja melhor você não esperar nada de mim. Assim, ninguém vai se decepcionar.
Com um movimento brusco, ela desligou o telefone, a raiva e a tristeza se misturando em seu peito. fechou os olhos, tentando respirar fundo, mas não conseguia controlar o turbilhão de emoções que tomava conta de seu corpo. Sem conseguir mais segurar as lágrimas, ela entrou no banheiro, trancou-se na cabine e, ali, deixou o choro sair, sem pudor. O som de seu desespero ecoou nas paredes, e ela se permitiu, pela primeira vez em muito tempo, chorar sem reservas. Estava exausta daquilo tudo.
Nota da autora: Tivemos uma aproximação singela entre eles, né? Finalmente as coisas parecem estar caminhando. E dessa vez pudemos ver um pouco mais da angústia da , que carrega um fardo imenso.
Me digam o que estão achando, viu? Betiza e Lelen, obrigada pelos comentários nas últimas atualizações! Beijos <3
Peça 4: A Confrontação com a Irmã
A luz suave do final de tarde invadiu a casa de , refletindo-se nas paredes antigas e nos móveis simples, mas aconchegantes. O clima quente e familiar contrastava com a tensão palpável no ar, uma tensão que sentia profundamente. Sua irmã mais velha, Isis, havia voltado para casa após um longo período afastada dos palcos e do mundo da música, algo sempre delicado entre elas. Isis havia a chamado para ir até lá, e não sabia o que esperar daquele encontro.
A casa estava silenciosa, preenchida apenas pelo som distante do vento nas janelas e os passos leves de pelo corredor. Ela passara horas ensaiando, tentando controlar a peça que parecia fugir de seus dedos a cada tentativa. Isis estava sentada no sofá, com a xícara de chá já fria em suas mãos. Seu olhar fixo na lareira denunciava um pensamento distante, mas sabia que sua presença ali não era acidental.
Jessica não estava em casa, pois precisou viajar devido a problemas com sua irmã mais velha, Doroth. Por isso, naquela tarde, eram apenas as duas na casa. entrou hesitante na sala. Cada troca de palavras com Isis sempre se transformava em algo mais profundo, algo que tocava em partes de si mesma que ela preferia evitar.
— Pude escutar você tocando hoje à tarde, . Você evoluiu muito, mas... — começou Isis, mas a interrompeu com um sorriso forçado.
— Mas sempre há um "mas", não é? — A tensão era visível no rosto dela, apesar da tentativa de suavizar.
— Sim, . Sempre há. Você soa bem, mas não é só sobre técnica ou beleza. Faltam emoções na sua música. É como... como se você estivesse lendo um discurso que não acredita. — Isis desviou o olhar, buscando as palavras certas.
— E o que te faz pensar que pode julgar o que eu sinto? Ou o que toco? Você mal me conhece, Isis. — A raiva começou a crescer em , e ela se levantou do sofá, os braços cruzados.
— Eu sei mais do que você imagina. Sei o que é carregar expectativas esmagadoras. Sei o que é tocar para ser ouvida, para provar algo a todos... menos a você mesma. E sei o quanto isso dói. — Isis se manteve calma, mas sua voz carregava firmeza, como a de uma irmã mais velha que acreditava saber o que é melhor.
— Você não sabe nada sobre mim! Só porque você desistiu, não significa que pode aparecer aqui e me dizer o que estou fazendo errado. Você se afastou, Isis. Me deixou aqui, sozinha, lidando com tudo isso! — sentiu a raiva ferver, sua voz embargada.
— Eu não desisti, . Eu sobrevivi. E sobreviver significava me afastar. Não havia mais nada de mim na música que eu tocava. Eu perdi o controle da minha vida, deixando que os outros decidissem quem eu deveria ser. E agora, vejo você fazendo o mesmo. — A dor passou pelo rosto de Isis, mas logo se disfarçou.
Isis largou a música porque ela havia se transformado de paixão para uma obrigação sufocante. Desde jovem, foi celebrada como prodígio, mas com a fama vieram expectativas implacáveis. Todos, incluindo sua mãe e professores, queriam que ela fosse uma coisa que ela não podia ser. Ela cedeu, e a música deixou de ser uma forma de expressão, tornando-se uma prisão.
Com 22 anos, mesma idade de , Isis já acumulava incontáveis premiações. Aos 31, porém, havia se afastado, sentindo-se vazia por dentro. A música, que antes era sua paixão, havia perdido todo o sentido. A pressão constante apagou sua chama, e foi só após deixar os palcos que ela percebeu o quanto estava perdida. Abandonar a música foi doloroso, mas necessário para sua sobrevivência. Agora, ela temia que sua irmã seguisse o mesmo caminho.
— Talvez eu esteja tentando. Talvez eu não queira ser como você, Isis. Talvez eu não queira carregar esse peso que você carrega — falou com os olhos marejados, o tom desafiador.
— Você acha que é fácil para mim te ver passar por isso? Acha que quero que você carregue esse peso? Eu só quero que você perceba, antes que seja tarde demais, que a música precisa ser sua, . Não nossa, não dos professores, nem dos críticos. Sua. Ou você vai acabar como eu. — A expressão de Isis suavizou, ela se levantou e se aproximou de com um olhar vulnerável.
— Você se perdeu, não foi? — perguntou , a voz baixa.
— Sim. E é a pior sensação do mundo. Porque quando você percebe, já construiu uma vida que não te pertence mais. Tudo parece vazio. E eu não quero isso para você. — A resposta de Isis veio cheia de melancolia.
— Você acha que ainda há tempo para mim? — finalmente olhou para sua irmã, sentindo o peso das palavras dela.
— Sempre há tempo, . Mas você precisa decidir o que quer. Não o que esperam de você. O que você quer ser, quem você quer ser. E essa, minha irmã, é a parte mais difícil. — Isis sorriu levemente, com tristeza, mas também com uma ponta de esperança.
— Eu... não sei. Não sei quem eu quero ser. — soltou um suspiro profundo, como se algo se aliviasse de seu peito.
— Então comece por aí. Descubra. E, enquanto isso, toque. Toque porque você ama, não porque precisa. — Isis tocou o ombro da irmã com um gesto carinhoso.
O silêncio se estendeu entre elas, mas era confortável. Ambas entendiam que lidavam com feridas semelhantes, mas que cada uma precisaria encontrar seu próprio caminho para a cura.
— Você já pensou em voltar a tocar? — perguntou , com os olhos fixos nas expressões de Isis.
— Já... algumas vezes. Mas não sei se tenho coragem de enfrentar tudo de novo. — A resposta de Isis foi lenta, como se tivesse sido pega de surpresa.
— Não sente falta? De estar no palco, de sentir a música fluindo?
— Sinto falta da música. Mas o palco... não. Às vezes é difícil separar uma coisa da outra. — Isis abriu um sorriso melancólico.
— Eu consigo te compreender. — segurou a mão da irmã, oferecendo conforto.
O silêncio confortável voltou a se instalar, e refletia profundamente sobre tudo o que sua irmã havia lhe dito. A casa, antes apertada e carregada de tensão, agora parecia um pouco mais acolhedora.
🎻🎹
Após mais um ensaio intenso, e saíram da sala de música, ainda absortos nas complexidades da peça de Schubert. , como sempre, mantinha a expressão impassível, mas havia algo em seu comportamento naquele dia que parecia mais suave. , por sua vez, estava visivelmente cansada, mas um pouco mais relaxada do que de costume, talvez por finalmente conseguir acompanhar em alguns momentos da música.
Ao final do corredor, onde os dois normalmente se separariam para seguir caminhos diferentes, algo se alterou. tinha a intenção de fazer diferente naquele dia.
— , você gostaria de tomar um café comigo? — perguntou ele. colocou as mãos sobre a boca, surpresa.
— Eu? — Ele assentiu.
, surpreendida, apenas acenou com a cabeça, incapaz de formular uma frase naquele momento. Juntos, caminharam até o Coffee Melody, um pequeno café próximo ao Conservatório Saint-Helena. Sentaram-se na mesa mais afastada, em silêncio, como se estivessem ainda digerindo o que havia acontecido durante o ensaio e, agora, o convite inesperado de .
O Coffee Melody era acolhedor, com uma luz suave filtrada pelas janelas de vidro. As mesas, de madeira escura, criavam uma atmosfera tranquila e quase isolada do mundo exterior. A música ambiente era suave, oferecendo um refúgio longe da rigidez da academia e das pressões do dia a dia. Pela janela, as árvores se moviam suavemente com a brisa, suas folhas dançando ao ritmo do vento.
observava o menu à sua frente, mas seus olhos estavam distantes, como se hesitasse em processar o que sentia. Quando finalmente quebrou o silêncio, sua voz era suave, carregada de uma vulnerabilidade rara.
— Por que decidiu me convidar? — perguntou ela. deu de ombros, ainda com os olhos fixos no menu.
— Acho que depois de quase um mês te vendo todos os dias, não seria estranho te convidar para um café, não? — respondeu ele, e então olhou para ela. — Por quê? Não estou cumprindo meu papel de príncipe do gelo?
— , como você... — riu baixo, surpresa por vê-lo rir pela primeira vez.
— As pessoas não são discretas. Não me importo com o apelido. Acho que, no fundo, há um pouco de verdade nele.
não sabia o que dizer, mas sua risada baixinha se misturou com a de . A tensão na mesa, antes palpável, começou a dissipar. Ele estava a surpreendendo positivamente.
— Você me causa curiosidade, . Gostaria de te perguntar algo.
— Eu? Nossa… bom, pode perguntar. — chamou a garçonete e fez os pedidos para ambos, antes de continuar.
— Pode me dizer por que é tão insegura? — perguntou ele, com uma leveza no tom. ficou atônita, sem palavras.
Ela abriu e fechou a boca, tentando encontrar uma resposta. Por fim, falou, hesitante.
— Minha irmã é um prodígio, assim como você. Ela tocava aqui antes de mim. Todos esperam que eu seja como ela, e isso me deixa insegura, por não conseguir corresponder às expectativas que colocam sobre mim.
Ela suspirou, como se cada palavra fosse um peso. Seu olhar se desviou, perdida em seus pensamentos. A comparação estava sempre ali, em cada olhar, cada comentário dos alunos, dos professores, ou de sua família.
— E o que você espera de si mesma? — perguntou , com uma sensibilidade que a surpreendeu.
A pergunta, simples, mas profunda, parecia ecoar em sua mente, como se fosse algo que ela mesma tivesse medo de responder. ficou em silêncio, o som ambiente do café desaparecendo enquanto ela ponderava sobre a questão.
A garçonete os despertou naquele momento, entregando as bebidas: um Mocaccino para e um Cappuccino para .
— Eu ainda não sei — disse , a voz baixa, quase um suspiro. Ela olhou para o copo e, pela primeira vez, levantou os olhos para .
— Eu também não sei por que continuo tocando. Às vezes, parece que a música não é mais minha — falou com uma leveza na voz, embora seu olhar fosse sério. Ele suspirou. — Não sei se você sabe, mas sou neto do proprietário da gravadora . As pessoas pensam que minha vida é fácil, que já tenho uma carreira consolidada aos 22 anos. Mas, na verdade, sou só um produto nas mãos da gravadora.
ficou quieta, sentindo a dor que ele tentava esconder.
— Eu não imaginava que você passava por tudo isso, . Agora entendo por que você toca de forma tão mecânica. Eu sinto muito, de verdade. — segurou as mãos dele, sem pensar. a encarou e, sem hesitar, segurou as mãos dela de volta. Elas estavam quentes, e isso, de alguma forma, acalentava seu coração.
Por um momento, as palavras pareciam desnecessárias. A troca de olhares entre eles era silenciosa, mas carregada de significado. Ambos estavam vulneráveis, compartilhando um peso emocional comum. percebeu que não era o príncipe de gelo que ela imaginava. Ele, assim como ela, carregava uma pressão constante de atender a expectativas que não eram suas.
sorriu, timidamente, mas com sinceridade. Não era um sorriso de felicidade plena, mas de alívio, como se tivesse encontrado um espelho em . Ele retribuiu com um sorriso pequeno, também sincero, algo que raramente surgia em seu rosto.
— Acho que essa foi a primeira vez que você sorriu de verdade desde que te conheci. — disse , brincando, mas com um tom suave.
— Você está exagerando. — Ele arqueou a sobrancelha, tentando manter a seriedade.
— Talvez. Mas é bom saber que você não é uma máquina. — riu brevemente.
— Aparentemente, não sou tão intimidador quanto você pensava, certo? — Ele deu de ombros.
— Ah, intimidador você ainda é. Mas agora sei que existe uma pessoa aí, príncipe de gelo. — gargalhou.
— Touché. — riu, olhando para o seu Cappuccino. — E você? Achei que fosse a garota que sempre hesita, mas agora vejo que tem mais força do que parece.
o encarou, pensativa.
— Força? Talvez. Ou só teimosia. É difícil desistir quando tudo o que você conhece é tentar.
— Eu entendo. Às vezes, tentar é tudo o que resta. Mas tentar não significa que precisamos fazer tudo sozinhos. — O tom de era reflexivo.
— Você realmente acredita nisso? Porque, até agora, você parece o tipo de pessoa que prefere enfrentar o mundo sozinho — comentou , surpresa.
Ele sorriu, mas o olhar ainda era sério.
— Não sei se acredito, mas talvez seja hora de tentar. Você é a primeira pessoa que me fez pensar sobre isso.
— Bom, acho que somos dois. Nunca imaginei que poderia aprender algo com alguém tão… distante. — Ela sorriu de forma hesitante, mas sincera.
— Distante? É assim que me descreve? — arqueou a sobrancelha, fingindo indignação.
— Completamente. Mas agora vejo que é só uma fachada. Talvez você não seja tão distante quanto quer parecer.
— Talvez você esteja certa. Mas você também tem uma fachada, sabia? Essa ideia de que precisa ser perfeita para todos... é exaustiva só de olhar. — Ele a encarou com um leve suspiro.
— É. Mas acho que... talvez eu não precise mais carregar tudo sozinha. Não, se você estiver disposto a dividir um pouco do peso. — desarmou-se, com as bochechas quentes, tocada pela honestidade dele.
— Se você conseguir me aguentar, acho que posso tentar — respondeu com um tom mais tranquilo.
Eles trocaram um olhar longo e significativo, onde as palavras se tornaram desnecessárias. Havia algo mais profundo entre eles agora, uma promessa silenciosa de apoio mútuo.
— Acho que conseguimos sobreviver a mais um ensaio juntos, não é? — terminou seu Mocaccino e se levantou com um sorriso encorajador. fez o mesmo.
— Por enquanto. Vamos ver se a peça de Schubert sobrevive a nós dois. — Eles riram juntos.
— Se não sobreviver, pelo menos podemos dizer que tentamos. — começou a caminhar em direção ao caixa. Ela pegou a carteira, mas segurou suas mãos.
— Eu convidei, eu pago. — Ele passou à frente e fez o pagamento. sorriu.
Depois de pagar, e saíram juntos do café, lado a lado. O peso de suas inseguranças parecia mais leve agora, e, pela primeira vez, ambos sentiram que talvez não estivessem tão sozinhos quanto imaginavam.
Nota da autora: Essa conversa entre as irmãs foi muito profunda, né? Agora as coisas vão melhorar entre eles? Vamos acompanhar <3
Peça 05: Explorando a Verdadeira Música
A sala estava envolta em sombras, iluminada apenas pela luz suave da lua que vazava pelas janelas. entrou hesitante, carregando seu violino e um caderno repleto de partituras. Ela olhou ao redor, certificando-se de que ninguém estava por perto. Era a primeira vez em muito tempo que se sentia livre para tocar apenas para si mesma, sem a pressão dos ensaios ou das apresentações.
— O que eu gosto de tocar...? — sussurrou para si mesma, como se buscasse uma resposta.
Ela se acomodou no banquinho do piano, deixando o violino de lado, e seus dedos deslizaram pelas teclas, testando melodias simples que ecoaram suavemente pelo ambiente. Depois de alguns minutos, pegou o violino e começou a tocar. Não era Schubert, nem as peças exigidas pelos professores. Era algo diferente, algo que brotava de dentro dela.
Fechou os olhos e deixou o arco deslizar pelas cordas. A melodia que surgiu foi hesitante, mas cheia de emoção. Era uma mistura de fragmentos de peças que ela gostava, pequenos improvisos e notas que pareciam surgir espontaneamente. Pela primeira vez, não estava tentando impressionar ninguém. Não se preocupava em ser perfeita. Ela estava apenas tocando.
À medida que a música fluía, memórias surgiam em sua mente — os momentos em que ouviu sua irmã tocar, os aplausos que sempre pareceram inatingíveis, e os sussurros de dúvida que a acompanhavam por tanto tempo. Mas, entre todas essas lembranças, sentiu algo novo: um vislumbre de alívio.
— Talvez seja isso… — parou por um momento, olhando para o violino com um pequeno sorriso.
Ela continuou a tocar, agora com mais confiança, misturando o clássico com melodias que surgiam na hora. Cada nota parecia um passo em direção a algo mais genuíno. A música não era palco para a aprovação de alguém. Era dela.
A porta da sala rangeu ao ser aberta lentamente, interrompendo aquele momento. se virou, surpresa, e viu parado na entrada, com os braços cruzados e um olhar curioso.
— Parece que você finalmente encontrou algo. — abriu um pequeno sorriso de canto.
— Eu só estava... tentando descobrir o que gosto. — segurava o violino um pouco envergonhada.
— Continue. Não pare por minha causa. Quero ouvir o que você realmente tem a dizer. — deu um passo em direção a ela, sentando-se ao seu lado.
hesitou por um momento, mas voltou a tocar, agora com como ouvinte. A sala parecia mais viva, preenchida por uma música que finalmente era só dela. Enquanto tocava, percebeu que estava começando a encontrar, não só sua voz na música, mas também a si mesma, longe das sombras de sua irmã e das expectativas do conservatório.
manteve-se em silêncio, observando cada movimento dela. Seu olhar era atento, mas diferente do crítico perfeccionista que ela conhecia durante os ensaios. Ele parecia absorver cada nota, cada nuance emocional que imprimia na música. Quando ela terminou, ficou quieto por alguns segundos, como se estivesse processando o que acabara de ouvir.
— Isso... é você — falou com uma voz calma, mas carregada de significados.
— O que você quer dizer? — o olhou, confusa.
— Essa música... não era sobre técnica, nem sobre seguir regras. Era honesta. Pela primeira vez, parecia que você estava tocando para você mesma e não para os outros. — a encarou, sério, mas com um leve sorriso.
— Mas era simples, quase imperfeita... — comentou, ainda incerta.
— E é exatamente por isso que foi tão boa. Perfeição não é o que toca as pessoas, . O que realmente importa é a verdade. E essa foi a primeira vez que ouvi a sua verdade — a interrompeu com firmeza.
Ele recostou-se na cadeira, cruzando os braços, mas sem tirar os olhos dela.
— Se você tocar assim, ninguém vai conseguir ignorar o que você tem a dizer. Nem mesmo você. — sorriu, um sorriso genuíno que tocou fundo em . Ela deveria sorrir assim mais vezes.
As palavras de ecoaram dentro de , deixando-a ao mesmo tempo vulnerável e empoderada. Pela primeira vez, ela sentiu que havia algo único em sua música, algo que só ela poderia trazer ao mundo. havia visto isso, e, embora fosse reservado e crítico, aquele momento provou que ele acreditava nela mais do que ela mesma.
permaneceu ali, observando-a com atenção. Algo na forma como tocava o violino havia mexido com ele. Era como se a música estivesse pedindo para ser moldada, para ganhar vida, mas ele sabia que precisava de algo mais para dar forma ao que estava sentindo. Ele se inclinou para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos.
— Você já pensou em tentar algo novo? — perguntou , sua voz calma, mas com um toque de incentivo. olhou para ele, curiosa.
— O que exatamente? — Ela se sentia insegura, ainda confusa sobre o que estava tentando criar.
— Que tal pegar o que você tocou e transformá-lo em algo maior? — sugeriu , seus olhos brilhando com uma ideia. — Você já tem uma base. Que tal pegar essa melodia que surgiu e expandir para algo que fale mais de você? Algo mais pessoal, mais... seu.
pensou por um momento, o violino ainda em suas mãos. Ela estava acostumada a seguir partituras, a se prender às regras. Mas agora, com ao seu lado, algo parecia diferente. Talvez fosse a primeira vez que ela sentia que podia realmente criar algo por conta própria. Ela assentiu, então, com uma leve hesitação.
— Como você sugere fazer isso? — perguntou ela, o medo de falhar misturado com a empolgação.
deu um sorriso encorajador, mais um dos raros sorrisos genuínos que ela já começava a apreciar. Ele se inclinou um pouco mais perto dela.
— Vamos começar com uma ideia simples. Comece tocando novamente aquela melodia, mas desta vez, tente deixá-la respirar. Sinta o ritmo, sem pressa. Quando você sentir que a música está ganhando vida, adicione algo novo, uma variação, uma mudança de tom. Não se preocupe com a perfeição. Deixe a música se desenvolver, como uma conversa entre você e o violino.
respirou fundo e fechou os olhos. Ela pegou o arco e tocou a primeira nota, mais lentamente do que antes. A melodia foi fluindo, mais livre, mais solta. ficou em silêncio, observando atentamente, e sentiu que, desta vez, estava fazendo algo genuíno. Não estava mais tentando cumprir uma expectativa, mas apenas ser fiel àquilo que sentia. Quando ela terminou a sequência, olhou para , surpresa.
— Eu nunca pensei em fazer isso antes. Está... diferente. — Ela sorriu, ainda um pouco atônita com a experiência.
— Está muito bom. Agora, adicione uma mudança de ritmo no meio, como um giro, algo inesperado. Deixe a música refletir quem você é, sem pressa, sem medo de errar. Lembre-se, é sua história que você está contando.
Ela assentiu novamente, e com o incentivo de , continuou a tocar, mais livremente agora, experimentando com as notas e com as emoções. Era como se ela estivesse finalmente encontrando sua própria voz na música, sem medo de se perder.
Os dois perderam completamente a noção do tempo enquanto trabalhavam juntos na música de . Cada acorde ajustado, cada nuance adicionada parecia aproximá-los ainda mais, não apenas como músicos, mas como almas em sintonia. A sala, antes silenciosa, tornou-se um espaço vibrante, preenchido por melodias que carregavam fragmentos de quem era e da cumplicidade crescente entre os dois.
Quando perceberam, os primeiros raios de sol já invadiam a sala, banhando os instrumentos e as partituras espalhadas com uma luz dourada. Apesar do cansaço evidente em seus olhos, ambos se sentiam leves, quase revigorados, como se tivessem alcançado algo mais profundo do que a criação de uma simples música. Era uma conexão que transcendia as palavras, construída na troca de olhares, risos baixos e a harmonia compartilhada.
— Acho que nunca passei a noite assim... — comentou , com uma risada suave, enquanto repousava o violino ao seu lado. — Mas valeu a pena.
— Valeu mesmo — respondeu , sua voz rouca pela madrugada. Ele olhou para ela, e por um instante o silêncio falou mais do que qualquer palavra. — Essa música não é só sua, . É um pedaço de você que ninguém pode tirar. — Ela assentiu, emocionada.
Eles se levantaram devagar, ainda imersos naquele estado de paz criativa, e caminharam lado a lado para fora da sala. Apesar do cansaço, havia um brilho em seus olhares que dizia mais do que poderiam expressar: estavam criando algo juntos, e, nesse processo, também se descobrindo. O dia amanheceu, mas para eles parecia o início de algo ainda mais significativo.
🎻🎹
O estúdio de gravação da gravadora era um templo de perfeição tecnológica, cuidadosamente projetado para impressionar. As paredes, revestidas com painéis acolchoados em tons neutros, absorviam todo som externo, mas também pareciam abafar qualquer traço de calor humano. O chão de madeira polida refletia as luzes embutidas no teto, criando um brilho frio e artificial. Cada detalhe exalava sofisticação, mas também uma desconcertante ausência de vida.
No centro, o piano de cauda preto brilhava como um artefato sagrado, cercado por microfones de última geração e cabos cuidadosamente dispostos. Do outro lado do imenso painel de vidro, a sala de controle fervilhava com técnicos ajustando parâmetros e luzes piscando freneticamente no console. O produtor, Joss, com seu terno impecável e olhar calculista, observava como um general supervisionando suas tropas, emitindo ordens pontuais com um tom que não deixava espaço para réplica.
estava sentado ao piano, os dedos pairando sobre as teclas sem realmente tocá-las. Sentia-se deslocado, como uma peça fora de lugar em uma engrenagem imensa. Quando Joss falou pelo microfone, sua voz ecoou pelo estúdio, carregada de expectativa.
— Vamos começar com a faixa principal, . Preciso de intensidade, mas sem perder o apelo comercial. Você sabe o que fazer.
respirou fundo e começou a tocar. A melodia era tecnicamente perfeita, como se estivesse cumprindo um dever. Mas, a cada nota, sentia um vazio crescendo dentro de si, como se cada tecla pressionada estivesse drenando um pouco mais da sua essência. Quando chegou ao meio da peça, ele parou abruptamente, as mãos repousando no colo. O silêncio que se seguiu foi tão denso quanto o ambiente.
Do outro lado do vidro, Joss franziu o cenho.
— Problemas? — perguntou com impaciência evidente.
levantou o olhar, seu rosto carregando uma expressão de exaustão e algo mais profundo — uma batalha interna.
— Só preciso de um momento. — Sua voz era baixa, quase um sussurro, mas suficiente para ser ouvida.
Os técnicos trocaram olhares e Joss suspirou, sinalizando para uma pausa. ficou sozinho na sala, o peso das expectativas de todos à sua volta era quase insuportável. Ele fechou os olhos e, como um reflexo, começou a tocar algo diferente. Uma melodia antiga, composta anos atrás, antes de tudo ser tão complicado. Era uma música simples, mas carregada de emoção. Cada nota parecia um lamento, um reflexo de sua alma presa.
A melodia chamou a atenção de Joss, que se inclinou para frente, irritado.
— Isso não está no programa, . Concentre-se no material certo. Não temos tempo para improvisos.
parou de tocar, mas, desta vez, não abaixou a cabeça. Ele olhou diretamente para o painel de vidro, e sua voz saiu firme, ainda que carregada de emoção.
— O problema é exatamente esse, Joss. O material não está certo... não para mim.
O produtor abriu a boca para retrucar, mas não esperou. Levantou-se do banco do piano e caminhou em direção à porta. Cada passo parecia uma declaração, um rompimento definitivo com a estrutura que o aprisionava.
Ao sair do prédio, o ar fresco da noite o envolveu. Apesar do cansaço e da incerteza, havia algo novo ali — uma sensação de liberdade incipiente, um lampejo de coragem. Ele sabia que sua decisão traria consequências, mas pela primeira vez, estava disposto a enfrentá-las. A música era sua, e ele não permitiria mais que ela fosse moldada por mãos alheias.
Com o coração pesado, mas determinado, começou a planejar seu próximo passo. Ele não apenas sairia da sombra das expectativas; criaria um novo caminho, um onde pudesse finalmente se reencontrar com a verdadeira essência da música — e consigo mesmo. E nem o próprio pai seria capaz de detê-lo, mesmo que, no meio do caminho, o rompimento fosse inevitável.
Nota da autora: Estamos chegando no meio da história! O e criando uma música juntos com certeza foi o ponto alto desse! Tão lindinhoos <3
Peça 06: Ensaio Sob a Luz Suave
ajustava o violino, os dedos ligeiramente trêmulos enquanto tentava focar nas partituras à sua frente. , sentado ao piano, deslizava os dedos pelas teclas com uma serenidade quase irritante — a calma que ela sempre admirou nele, mas que agora só aumentava sua ansiedade. O ensaio era para a peça de Schubert, mas a atmosfera na sala parecia carregada de algo que ia além da música. Era como se aquela melodia não fosse apenas uma obrigação técnica, mas uma descoberta compartilhada.
— Pronta? — perguntou , lhe lançando um sorriso leve, porém encorajador.
assentiu silenciosamente, esforçando-se para manter o foco. Quando começaram, a introdução suave da peça encheu o ambiente. As primeiras notas do piano pareciam abrir caminho para o violino, que timidamente começava a dançar em harmonia. ainda sentia o nervosismo a princípio, mas a forma como tocava — precisa, porém acolhedora — tinha um efeito tranquilizador. Era como se cada acorde dele dissesse que ela não estava sozinha.
Conforme a música avançava, começou a se soltar, perdendo-se nas nuances da melodia. , por sua vez, parecia não apenas tocar ao lado dela, mas tocar com ela. Cada movimento das mãos dele no piano sugeria uma direção, uma intenção, e , instintivamente, respondia. Quando ele ajustou a dinâmica, tornando a peça mais suave e íntima, ela o acompanhou, sentindo a tensão entre os dois ser substituída por uma conexão fluida e inexplicável.
Na pausa entre as frases, ergueu o olhar. Seus olhos encontraram os de por um instante breve, mas intenso. Não era apenas um olhar — era uma troca, como se algo não dito estivesse passando entre eles. manteve o contato, os olhos calmos mas carregados de algo mais profundo, algo que fez o coração dela acelerar.
— Você tem talento, , eu sempre disse isso. Mas é quando você para de pensar tanto... quando você sente... é aí que a música realmente acontece. — A voz de era baixa, mas carregada de significado.
abriu um sorriso hesitante, sentindo o calor subir até o rosto. Algo no tom dele parecia diferente, mais próximo, mais pessoal. Ela desviou o olhar para o violino, tentando recuperar o controle de si mesma, mas não conseguiu afastar a sensação de que ele enxergava muito mais do que ela queria mostrar.
Quando retomaram a peça, a música fluía de forma quase mágica. não estava mais apenas seguindo ; estava se entregando completamente à melodia. Cada nota que tocava parecia envolver os acordes do piano, como se eles estivessem em perfeita sincronia, numa dança silenciosa que transcendia palavras.
Quando a última nota ecoou e o silêncio tomou conta da sala, sentiu que havia algo diferente no ar. Não era apenas o fim de um ensaio; era o começo de algo que ela não conseguia nomear.
— Eu... não esperava que fosse tão... intenso — disse com um sorriso nervoso, tentando disfarçar a vulnerabilidade que sentia.
— A música é assim. Quando você se permite sentir, é aí que ela realmente acontece — respondeu com um sorriso mais aberto, um lampejo de algo que não estava pronta para interpretar.
Ela respirou fundo, tentando controlar as emoções. Mas havia algo na maneira como ele a olhava, na energia que pairava entre eles também.
— Talvez seja isso... — disse em um tom quase sussurrado. — Talvez eu tenha medo de sentir.
não respondeu de imediato. Apenas a observou, como se esperasse que ela descobrisse sozinha o que ele já sabia. A música tinha feito mais do que conectar seus instrumentos; havia entrelaçado suas almas. , mesmo hesitante, sentia que algo dentro dela havia mudado, algo que não poderia ser ignorado.
a observava em silêncio, o olhar carregado de uma intensidade que ela não conseguia decifrar. Ele então abaixou a cabeça, cobrindo as teclas do piano com um pano antes de fechar a tampa suavemente. , por sua vez, foi guardar o violino, mas no momento em que o instrumento se desequilibrou, ela tentou pegá-lo apressadamente. fez o mesmo, e suas mãos se encontraram.
O toque foi breve, quase acidental, mas cheio de significado. sentiu um arrepio subir por seus braços, como se aquela conexão tivesse carregado muito mais do que o simples contato físico. Seus olhares se encontraram, intensos, profundos, como se naquele instante nenhuma palavra fosse necessária. O mundo ao redor pareceu parar, deixando apenas os dois naquele momento suspenso no tempo.
podia sentir o coração acelerado, cada batida ecoando em seus ouvidos. também não recuou imediatamente, o que era diferente do que ela esperava. Ele permaneceu próximo, seus olhos parecendo buscar os dela por algo mais, algo que talvez nem ele conseguisse nomear. Havia uma tensão palpável entre os dois, mas não desconfortável. Era uma tensão que parecia um prelúdio, como o silêncio antes de uma grande sinfonia.
Ela tentou organizar os pensamentos, mas sua mente estava tão confusa quanto seu coração. “O que está acontecendo comigo?”, questionou-se, olhando para as mãos ainda próximas das dele. Sentia-se vulnerável, como se estivesse à beira de algo arriscado, mas irresistível. inclinou-se levemente para frente, seus olhos carregando um misto de surpresa e um sentimento que não conseguia decifrar, mas que a atraía inevitavelmente.
O silêncio foi quebrado por um pequeno suspiro de . Ele afastou a mão, relutante, mas a intensidade do momento ainda pairava no ar. Parecia que algo havia sido deixado inacabado, como uma melodia interrompida antes da última nota.
— Nossa... quase que... — começou , mas as palavras pareciam fugir dele.
— Sim... — respondeu , sem saber ao certo o que estava concordando. O coração ainda batia descompassado.
pegou sua mochila apressadamente, desviando o olhar.
— Eu... preciso ir. Já é tarde.
apenas assentiu, sem conseguir encontrar palavras. Ele saiu rapidamente, deixando o espaço carregado com a energia do que acabara de acontecer.
Assim que a porta se fechou, se jogou no chão de forma teatral, respirando fundo e tentando acalmar o coração que ainda martelava no peito. Colocou a mão sobre ele, como se quisesse silenciar os próprios sentimentos. “O que está acontecendo entre nós?”, pensou, olhando para o violino no estojo. Ela sabia que algo havia mudado, mas não sabia como lidar com o que estava por vir.
🎻🎹
e Ingrid estavam sentadas em uma mesa discreta no canto da cafeteria Coffee Melody, onde o aroma de café recém-passado se misturava com o som suave de um piano ao fundo. A luz dourada do final da tarde banhava a mesa.
— … tem algo no ar entre você e o , não tem? — perguntou Ingrid, um sorriso curioso brincando nos lábios enquanto mexia distraidamente no café.
desviou o olhar, focando na espuma que girava em seu cappuccino.
— Não tem nada, Ingrid. É sério.
— Nada? , por favor. Eu vi vocês no último ensaio. O jeito como vocês se olhavam... Aquilo não era só sobre música. — Ingrid arqueou as sobrancelhas, um sorriso convencido no rosto.
— Ingrid! — riu, embora suas bochechas traíssem o nervosismo, tingindo-se de um leve tom rosado. — Eu juro que não sei o que está acontecendo. É… complicado.
— Complicado? — Ingrid inclinou-se ligeiramente para frente, os olhos cheios de expectativa. — Porque vocês são muito diferentes?
suspirou, seus dedos traçando círculos na borda da xícara.
— É mais do que isso. Ele tem essa... maneira de ser. Sempre tão seguro, tão fechado, e eu? Eu me sinto insegura só de estar perto dele. No início, tudo o que eu queria era focar na música, mas com ele... tudo fica mais intenso. Mais confuso.
— A intensidade nem sempre é algo ruim, sabia? — Ingrid sorriu, um brilho sábio nos olhos. — Às vezes, é exatamente o que a gente precisa para se descobrir de verdade.
— Descobrir? — soltou uma risada incrédula, balançando a cabeça. — Eu sinto que estou me perdendo. Nunca me senti assim antes. Quando ele me olha... — ela fez uma pausa, mordendo os lábios. — É como se o chão desaparecesse.
Ingrid manteve o sorriso, mas seus olhos agora tinham um toque de seriedade.
— Talvez você esteja começando a perceber algo que sempre esteve ali. , vocês não tocam juntos. Vocês… conversam através da música. É quase como se houvesse algo mais acontecendo entre vocês, algo além das notas.
ficou em silêncio por um momento, absorvendo as palavras da amiga.
— Eu sinto isso, mas é tão confuso. Ele é tão fechado. Às vezes, parece que ele está me testando, como se quisesse me empurrar para longe. E eu… eu tenho medo de não ser boa o suficiente. Não só na música, mas como pessoa.
Ingrid balançou a cabeça, estendendo a mão para tocar a de .
— Você não precisa ser boa o suficiente para ele. Não é sobre isso. não está buscando perfeição, . Ele está buscando você. Não tenta agradar ou impressionar. Apenas… seja você mesma. Às vezes, o que realmente importa está entre as notas, nos espaços em branco.
— Entre as notas… — repetiu em voz baixa, olhando para Ingrid com uma expressão pensativa. — Nunca pensei nisso dessa forma.
Ingrid sorriu, divertida.
— Eu sei que você tenta fugir, mas não pode negar o óbvio. Eu vi como ele olha para você. Não é só sobre a música, .
desviou o olhar, mordendo o lábio com timidez.
— Talvez você esteja certa. Mas o que eu faço com isso?
— Seja sincera. Abra seu coração para ele.
arregalou os olhos, quase derrubando o cappuccino.
— Ingrid! E se eu tomar um fora? Não sei como lidar com isso. Imagina ter que ensaiar com ele todos os dias depois de uma rejeição... seria insuportável!
Ingrid deu de ombros, relaxando na cadeira.
— E ficar nesse vai-e-vem não é pior? Pensa bem, .
suspirou, passando as mãos pelo rosto.
— É… talvez você tenha razão. Mas eu preciso de tempo. Não quero estragar tudo.
Ingrid assentiu com um sorriso tranquilizador.
— Tudo bem. Mas não demora muito, ok? Às vezes, a música que mais vale a pena é aquela que a gente arrisca tocar, mesmo sem ter certeza de como será o final.
A conversa seguiu com risadas e confidências, mas algo em havia mudado. As palavras de Ingrid reverberavam em sua mente, e pela primeira vez, sentiu que, talvez, o que estava acontecendo entre ela e não fosse algo para temer, mas algo que ela precisava aceitar.
🎻🎹
Como esperado, não se surpreendeu ao encontrar seu pai sentado na beira da cama em seu dormitório. A visita era quase uma inevitabilidade, tão previsível quanto a chuva em um dia nublado. Ele suspirou, fechando a porta com cuidado, antes de cruzar o quarto e se sentar ao lado do homem que moldara tantos aspectos de sua vida.
— Oi, pai. — Sua voz era calma, quase indiferente, mas ele sabia que o cumprimento seria ignorado.
Arnold o encarou, os olhos carregados de reprovação.
— , você abandonou o estúdio de gravação no meio de uma sessão. Deixou o EP inacabado, desrespeitou toda a equipe, e me expôs a uma humilhação pública. E tudo isso por quê? Porque você está “artisticamente perdido”? — O homem balançou a cabeça, a voz carregada de desprezo. — Isso é infantilidade pura!
ergueu o olhar, desafiador, mas controlado.
— Não é infantilidade. É a única coisa verdadeira que eu fiz até agora.
Arnold bufou, levantando-se bruscamente da cama. Ele começou a andar de um lado para o outro, o som dos sapatos ecoando no pequeno quarto.
— Verdade? Você chama isso de verdade? Você estava a um passo do sucesso! A um passo de honrar o legado que construímos. , isso não é só sobre você. É sobre a nossa família, o que significa ser um . Você tem responsabilidades, um nome a zelar!
também se levantou, com os punhos cerrados ao lado do corpo. Sua voz saiu baixa, mas carregada de intensidade.
— Eu nunca pedi para ser o sucessor do legado do meu avô. Nunca pedi para carregar esse peso. E definitivamente nunca pedi para ser tratado como uma extensão dos seus sonhos.
Arnold virou-se para ele, os olhos brilhando de fúria.
— Você acha que é tão simples assim? Que você pode simplesmente virar as costas para tudo que sua mãe e eu construímos? Para o respeito que conquistamos? Você não percebe o quanto está sendo egoísta? Essa sua rebeldia... ela é uma afronta ao que somos.
deu um passo à frente, sua postura inabalável.
— Egoísta? Eu me perdi tentando ser o que você queria. Fiz tudo o que me pediu, segui cada ordem, cada plano, mesmo quando isso destruía quem eu era. E agora, quando finalmente decido fazer algo por mim, eu sou o egoísta?
Arnold avançou, seu rosto agora a centímetros do de .
— Você está jogando tudo fora, garoto. Tudo! Por uma ideia ridícula de “liberdade artística”. Isso não existe, . A música é um negócio, um império, e eu fiz tudo isso por você!
riu, mas não havia humor no som.
— Você fez isso por você, pai. Nunca por mim. Você quer que eu viva seus sonhos inacabados. Quer que eu seja o que você nunca foi. Mas eu não vou mais me sacrificar para satisfazer suas expectativas.
— Você vai se arrepender disso. Vai perceber que a música não é suficiente para sustentar essa ideia ingênua de liberdade. O mundo real não funciona assim, . — Arnold apontou um dedo para ele, sua voz carregada de um tom cortante.
— Talvez eu me arrependa. Talvez eu falhe. Mas pelo menos vai ser por causa das minhas escolhas, não das suas. — respirou fundo, mas sua voz permaneceu firme. — Eu prefiro enfrentar as consequências da minha própria liberdade do que viver a segurança da sua prisão.
Arnold ficou em silêncio por um momento, mas sua expressão dizia mais do que palavras poderiam. Havia raiva, sim, mas por trás dela, havia algo mais profundo: um senso de traição, uma ferida aberta pela recusa do filho em se dobrar à sua vontade.
— Você acha que pode sobreviver sozinho? Que pode fazer tudo isso sem mim? Tudo bem, . Siga seu caminho. Mas não espere que eu esteja lá para te amparar quando tudo der errado. Você está por conta própria. — Arnold deu um passo para trás, cruzando os braços em um gesto frio e definitivo.
não recuou. Ele manteve o olhar firme, mas agora havia algo mais em sua expressão: uma serenidade perigosa, quase desafiadora.
— Eu sei, pai. E estou preparado para isso. Prefiro fracassar sendo eu mesmo do que viver uma mentira para agradar você.
Sem esperar resposta, deu meia-volta e caminhou em direção à porta. Ele a abriu com um movimento firme, parando por um momento antes de sair.
— Adeus, pai.
Ele saiu, fechando a porta atrás de si com um som que pareceu ecoar mais alto do que deveria. O quarto mergulhou em silêncio, e Arnold ficou parado, encarando o espaço vazio onde o filho estivera. Por mais que quisesse acreditar que havia vencido, algo no fundo de seu peito lhe dizia que perdera muito mais do que uma discussão.
Do outro lado da porta, caminhava pelo corredor, os ombros tensos, mas a mente finalmente clara. Pela primeira vez, sentiu-se leve, como se as correntes que o prendiam há anos tivessem sido quebradas. A dor estava ali, mas junto com ela vinha a certeza de que havia feito o que precisava.
CONTINUA...
Nota da autora: O toque de mãos, tão bonitinhos os dois, né? Fico apaixonada por eles nesses pequenos detalhes. Agora o rompeu de vez com o pai, hein? Vamos ver como as coisas serão a partir de agora.