Minha cabeça doía conforme eu abria os meus olhos, as cortinas impediam a claridade de adentrar o espaço e a cada segundo a confusão se apossava de mim. Apoiei minhas mãos na beirada da cama, esticando as pernas em seguida para que meus pés tocassem o chão gélido e me levassem até a janela. A força em vão ao tentar separar os panos provocou em meu corpo um arrepio tão conhecido e me fez realizar que lá estava eu, mais uma vez, presa em um cenário tão perfeitamente imperfeito.

  - Presa em mais um sonho. -  resmunguei, sentando novamente no colchão forrado com um lençol branco.

  Reparei que o anel não se encontrava em meu anelar, e instintivamente caminhei até a porta, girando a maçaneta que estava destrancada mais cedo do que o normal. Cocei meu nariz por culpa do cheiro forte que vinha da cozinha, invadindo todo o corredor que era recheado de fotografias manipuladas pela situação. Por mais que eu não quisesse, a escapatória só vinha após reviver a mesma cena, com as repetitivas mentiras e uma versão minha sendo agredida verbalmente até se contentar com o que era oferecido. Fechei os olhos com força e respirei fundo, logo observando atenciosamente as imagens grudadas em quadros, como se fosse uma linha do tempo doentia que ele criara para me relembrar de todo o sofrimento que passei em suas mãos. Para adentrar o outro cômodo era necessário olhá-las uma por uma, sendo um tipo de nível que desbloquearia a maior parte do jogo.

  O dia que nos conhecemos, para variar.

  Posto de gasolina, noite chuvosa e uma fila de carros para abastecer no meio do nada. A viagem longa que meus amigos tinham inventado em um final de semana em meio aos preparativos para o Natal havia acabado, e com ela enfrentamos um dos piores engarrafamentos de nossas vidas. Os dias de férias foram divertidos e revigorantes, fazendo com que quatro pessoas se sentissem invencíveis até demais ao concordarem em pegar a estrada mais demorada. Após trinta minutos aguardando nossa vez, descemos do carro e fique encarregada de abastecer enquanto os outros iam na loja comprarem alguns salgadinhos e bebidas para aturarmos mais três horas de viagem.

  - Sav, você não sabe quem eu encontrei no caixa! Se lembra do Joseph. meu amigo da faculdade que vivo falando? - Assenti – Ele está indo para o centro, teria algum problema em darmos carona? O ônibus dele quebrou e até mandarem o resgate, será tarde.

  - Tudo bem, portanto que o seu amigo inteire no valor e não fique me perturbando igual um certo alguém.

  - Ei, eu sou um anjo! Vamos lá, Joseph, pode ir na frente pois pretendo dormir pouco.

  - Obrigado pela carona, Savannah, você literalmente salvou a minha vida.

  Uma das frases mais irônicas que me assombraram por muito tempo.

  Naquele dia, só nos dois ficamos acordados durante o tempo de volta, então começamos a conversar sobre assuntos aleatórios e achamos vários detalhes em comum, além de que o interesse surgiu em poucos minutos. Marcamos um encontro, e na outra semana mais um, até que três meses haviam ido e o nosso namoro vindo, mais tarde, o quase noivado chegara também.

  - E pensar que toda vez que eu tentava te ajudar, você só ficava mais bravo. “Pegue um homem quebrado em suas mãos e o arrume”, eles disseram.

  A próxima era, de longe, a que mais representava Joseph: carros, bebidas, drogas e mulheres. A garrafa erguida continuava sendo o seu sinônimo favorito de felicidade, como se todo o vazio que carregava consigo fosse preenchido ao comprar um carro novo. Nessa, o relacionamento estava por um fio, a descoberta que tive foi que nem uma avalanche, veio tudo de uma só vez. Não senti raiva, talvez estivesse um pouco triste por toda a situação que caí de cabeça sem nenhum aviso.

  E arrependida, claro.

  As paredes traziam inúmeras memórias que eu não faço questão de falar sobre, o real intuito aqui é atingir o meu psicológico ao ponto de ver uma Savanna sendo obrigada a repetir o ciclo novamente para que ele consiga ter controle sob ela.

  Mas, hoje não.

  Havia um porta-retratos vazio. Diferente dos outros, esse estava solto da parede, sendo mantido apenas pelo pequeno prego. Cocei meu nariz, sentindo o cheiro bem mais forte e a minha atenção foi voltada para o cômodo ao meu lado, onde pude vê-lo sentado na mesa de jantar com uma taça de vinho em sua mão, esperando que eu me juntasse ao mesmo.

  - Sente-se, meu amor. Quero aproveitar a sua companhia enquanto jantamos o meu prato favorito.

  Meu corpo não se moveu, muito menos esbocei alguma reação. Tudo se encontrava igual, a ordem dos fatores estavam sendo seguidas a risca, entretanto, faltava a outra Savanna. Joseph ansiava minha ação com o seu olhar, e a sua impaciência começaria a transparecer brevemente.

  Não quebrei o contato visual e o vi arqueando a sobrancelha, em sinal de desentendimento. Antes, meu papel era ficar de fora me assistindo; Agora, eu possuía o controle.

  - Tenho algumas coisas para dizer, depois eu vou seguir o meu caminho e, de preferência, sem interrupções suas. Não sei por qual razão sempre acabo no mesmo cenário, mas, não tenho raiva. Bom, pelo menos hoje. Arrependimento? Sim. Eu não tive um aviso sobre quem você é, teria me facilitado... Mas, quero que escute muito bem as minhas palavras: você não é metade do homem que pensa que é. - Caminhei perto da mesa, indo calmamente até ele. Sua feição se mantinha neutra, porém seu corpo o entregava – Alguém precisava te falar isso, o seu vazio aumenta a cada minuto e a forma que você o preenche diz o bastante ao seu respeito. A única coisa que eu sou grata é por nunca ter tido um filho com você, você só ama algo se te beneficia. E nem pense nisso, Joseph. Você nunca mais vai me tocar ou ter algum tipo de controle doentio, guarde suas lágrimas, estou cansada delas. - Lhe dei as costas, quase saindo da cozinha - Você deveria estar triste, Joseph.

  Me afastei enquanto o observava ainda imóvel, entretanto, um tanto inquieto e com certeza, enfurecido. Se fosse como nos episódios passados, eu teria corrido para o quarto com uma urgência de escapar desse sonho, todavia, precisava dar uma olhada naquele quadro. Parei em sua frente, me surpreendendo ao ver a antiga Savanna em uma foto com um dos sorrisos mais bonitos e sinceros já dados, com a luz do sol invadindo o nosso quarto.

  Foi nesse momento que escutei um estalo e acordei, sentando na cama forrada com um lençol branco. Apoiei minhas mãos na beirada da cama, esticando as pernas em seguida para que meus pés tocassem o chão gélido e me levassem até a janela. A cortina foi aberta com a leveza do meu toque, e a claridade pôde inundar todo o espaço, me fazendo sorrir como nunca antes.

  - Nunca mais serei tocada por você, Joseph. É, você deveria estar triste.