White Devil

Escrito por Soldada | Revisado por Lelen

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Parte 01 - A Detetive

Capítulo 01

       | AGORA
Manchester, Inglaterra.

  Ela acorda como sempre: vomitando e tremendo.
  Leva cerca de vinte minutos para ela compreender onde ela estava e o que estava acontecendo. O zumbido intenso em seus ouvidos emudece tudo ao seu redor, sua pulsação se confunde com a memória traumática dos disparos. O coração dela ainda está acelerado, martelando de maneira nauseante contra sua caixa torácica, os instintos ainda em alto alerta, sensíveis e à espera do golpe iminente. A respiração pesada, irregular e rarefeita. A tosse que se segue é mais nervosa do que qualquer outra coisa, enquanto sua mente só registra, meio à parte, a falta de ar. Tudo está girando. Ela tenta respirar, mas quanto mais o faz, mais parece que falta ar.
   rola para o lado, sem perceber que acabou de enfiar sua mão na própria poça de vômito, tentando se colocar sentada, instintivamente buscando uma arma, qualquer coisa que pudesse usar para se defender enquanto o grito pelo nome de Beatriz morre em sua boca ao encarar diretamente a televisão ligada no que parecia ser um canal de segunda mão, ecoando o jornal matinal. A estática da televisão de tubo faz não apenas com que a imagem fique instável, como igualmente aumenta a sensação de desconforto do emudecimento de seus ouvidos.
   franze o cenho, tremendo, hiperventilando, inicialmente confusa por não estar compreendendo nada do que é dito, sentindo como se algo estivesse completamente errado, mas então ela percebe. Inglês. Porra! Manchester. Certo, certo! Ela havia se esquecido disso. Inglaterra, porra, ela estava na Inglaterra, ótimo, porra, fantástico. Puta merda, fecha os olhos com força, ignorando o gosto horrível amargo de bile em sua boca enquanto se deixa sentar para trás esbarrando em sua mesa, e quase caindo para trás se não fosse a perna de sua cadeira deitada no chão, de onde ela deveria ter caído na noite anterior após apagar completamente.
  Ainda hiperventilando, ela faz uma careta para si mesma ao observar os indícios do próprio vômito em sua mão, praguejando baixo em português e buscando algo para limpar. Qualquer pano que ela encontra no meio do caminho serve como auxílio para que ela a limpe, cuspindo no chão antes de usar o antebraço para afastar as mechas revoltas de seu cabelo para longe de seus olhos e testa. Está encharcada de suor, e apesar de ter a sensação de sua pele estar febril, o suor é frio e a sensação ainda pior. Quer dizer, ela já havia caído dentro de um lago congelado antes, ela sabia como era a sensação de quase morrer congelada, e ainda assim, havia algo de completamente não natural em suar frio que a incomodava. tinha poucos medos, e certamente a morte não era um deles, mas isso não significava que ela gostava de sentir desconforto. Ela era maluca, não sádica. Não com ela mesma, pelo menos.
  Puta merda, sua cabeça estava para explodir e ela ainda estava naquela maldita névoa desorientadora de puro medo e instinto. Ela pragueja outra vez, atingindo o próprio rosto com alguns tapas fortes, tentando aumentar sua adrenalina o suficiente para ela se concentrar em outra coisa. Havia aprendido que a dor era uma boa maneira de limpar sua mente, ao lhe oferecer algo prático para se concentrar. Não era a melhor solução, ela sabia, mas funcionava, então, foda-se.
  Os olhos dela disparam de um lado para o outro, as pupilas se contraindo enquanto se fixam na televisão ligada à sua frente. exala por entre os lábios, tentando se focar em ouvir algo. Uma das piores partes daquela merda não era a desorientação ou a sensação de que estava prestes a morrer, com as solas dos pés e as mãos formigando sem parar, e muito menos a sensação de descontrole de seu próprio corpo, como uma desconexão de seu corpo com sua mente, mas o ruído em seu ouvido, abafando tudo ao redor, enquanto ela só consegue hiperventilar. Quanto mais tenta respirar, mais falta de ar lhe causava. Ela tenta se concentrar na televisão, parecendo estar submersa debaixo d’água inicialmente, antes de lentamente conseguir focar nos sons que o aparelho velho, decrépito e caindo aos pedaços, estava fazendo.
  — ... de acordo com o Parlamento Canadense, a ação foi necessária para manter a integridade do sistema de justiça. O Primeiro Ministro Canadense, David , informou esta manhã sobre as investigações ao escândalo de corrupção na bancada republicana no Parlamento. Em seu discurso durante a abertura de um dos novos hospitais para crianças de baixa renda com doenças raras ou tratamento intensivo experimental, o Primeiro Ministro fez questão de frisar que… — A imagem muda de uma loira elegante envolta por roupas profissionais de âncora de jornal para um homem engravatado de rosto sério, concentrado, mas que estranhamente aparentava uma gentileza capaz de fazer o estômago de revirar. Tem olhos , cabelos grisalhos nas laterais, embora perfeitamente alinhados e loiros no topo, pendendo por seu rosto de galã hollywoodiano, barba perfeitamente aparada, fazendo-o parecer mais novo, e roupas impecáveis.
   não consegue conter um sorriso de desgosto e nojo que se espalha instintivamente por seus lábios, sabendo perfeitamente que as pessoas que têm mãos tentam esconder-se por trás de um véu de perfeição, são as que mais tem algo a esconder. Ou talvez ela fosse apenas cínica demais, sequer presta atenção no discurso que o tal David faz.
  Os olhos dela se encontram com os amendoados de Beatriz. Os olhos de Beatriz sempre haviam sido mais castanhos do que esverdeados, como mel, e sempre haviam sido mais doces que os dela. Olhos arregalados, braços cruzados à frente de seu corpo, mas os pulsos e as mãos estão faltando, os ossos expostos, a cabeça dela pende para o lado, pendurado em seu tronco, de onde a espinha vertebral dela se projeta. E o sangue para todo lado.
   pisca os olhos rapidamente, encarando as próprias mãos enquanto sua respiração se torna insuportavelmente irregular. A notícia do tal Primeiro Ministro Canadense muda bruscamente para alguma coisa relacionada a algum conflito no Oriente Médio. Os gritos, o som da bomba explodindo, é demais para ela. tateia desesperadamente pelo controle da televisão, cegamente, sem se levantar de onde está, os músculos ainda travados, o corpo ainda tremendo.
  Ela pragueja baixo ao perceber que terá que se levantar, e então, com uma mistura de preguiça e pura incapacidade de mover-se com segurança e a certeza de que não iria cair sobre seu próprio peso cedendo a suas pernas, ela apenas joga o que acha ao seu lado na direção da televisão. Um chinelo, uma pedra, um pote com canetas esferográficas com cheiro de morango e outras frutas, com glitter, porque ela havia comprado por algum motivo quando estava bêbada demais para se lembrar do porquê.
  — Porra. — cospe outra vez, tacando sua cópia velha e rasgada de Memórias do Subsolo na direção de sua televisão, propositalmente para desligá-la da forma que dava. Quer dizer, o aparelho estava quebrado há meses, funcionava por intervenção sobrenatural ou divina, acredite no que quiser, embora estivesse mais inclinada a apenas acreditar que o aparelho funcionava por vontade própria. E a única forma de desligar era dando um tapa ou chute, ou arrancar o cabo da tomada, mas se ela arrancasse a merda do cabo da tomada, o apartamento inteiro ficaria sem luz, porque sua vida era simplesmente incrível, não é?
   fecha os olhos novamente, apoiando a cabeça contra uma das pernas da cadeira derrubada, encarando o teto por um longo tempo, completamente envolvida em silêncio. Não era que ela gostava de silêncio, na verdade, sentia repulsa, a imprevisibilidade e a paranoia a enviando para um estado de alerta pior e mais profundo na maioria das vezes, esperando de onde viria o próximo ataque ou quem iria agarrar seus cabelos dessa vez e arrastá-la para algum canto escuro. Igualmente não era como se ela quisesse ouvir os dois filhos da puta gemendo em alto e bom tom do outro lado de sua parede. Ao menos, era melhor do que ouvir os gritos de Beatriz, de novo e de novo e de novo, como acontecia todos os dias.
  A cabeceira da cama bate ritmadamente contra a parede à esquerda de sua sala, estupidamente fina para o próprio gosto dela – afinal, pelo menos no Brasil as paredes eram feitas de grossas camadas de tijolos, e isso ao menos abafava um pouco os ruídos. Sem a televisão para abafar o som, ela conseguiu ouvir os grunhidos e gritos agudos dos dois pervertidos que pareciam ter tempo para aquilo logo de manhã.
   não havia se dado ao trabalho de investigar muito sobre a vizinhança naquele maldito pardieiro, tudo o que havia tido como garantido era que ninguém faria perguntas ou era bisbilhoteiro o suficiente para querer saber quem ela era. Algo sobre gangues menores que eram subjugadas aos Blinders ainda. O que quer que aquela merda significasse para eles. O que não gostava, e definitivamente não esperava, era acabar sendo vizinha de dois idiotas filhas da puta ninfomaníacos. Além disso, tinha quase certeza que o exibicionismo era apenas uma tentativa de validação pessoal para confirmar que “sim, realmente, casal muito apaixonado” quando não havia substância alguma além do sexo. Típico. encara o vazio à sua frente, se questionando pela primeira vez no dia, queporra ela havia feito com a própria vida.
  — Puta que pariu, só pode ser brincadeira. — aperta a ponte de seu nariz tentando conter os tremores restantes de seu corpo, ou, ao menos, mantê-los sob controle antes de obrigar-se a levantar, meio cambaleando, meio rosnando consigo mesma ao esbarrar pelos móveis no meio do caminho.
   balança a cabeça de maneira negativa, genuinamente irritada, enquanto tenta afastar a sensação de torpor que a envolve, unindo as sobrancelhas no máximo de determinação que ela possuía – o que por si só era mínimo – e então, agarrando um pé de cabra no canto de seu corredor, ela propositalmente acerta violentamente a parede. Mas os gemidos continuam. Então, xingando em alto bom tom, ela acerta a parede novamente, e de novo, e de novo, até fincar o pé de cabra, atravessando-o do outro lado. Um grito feminino em pânico e uma sequência de palavrões pouco criativos a faz sorrir como o próprio diabo. Se era briga que o machão idiota procurava, então estava completamente aberta para enterrar a cabeça de merda dele no chão com os próprios punhos.
  — CALA BORA PORRA! — ela grita, chutando a parede em um aviso, por pura raiva, antes de assoprar as mechas de seu cabelo para longe de sua boca, irritada, apoiando as suas duas mãos em seus quadris.
  Ela gira o pescoço, tentando aliviar a tensão em seu corpo enquanto inspira com força, intensamente. O ar gélido queima suas narinas, ou talvez seja apenas o pó que a esteja incomodando, mas a alta da adrenalina e a raiva lhe dão ao menos um foco que não esteja voltado para Beatriz, e isso já lhe vale muito.
  Pelo menos o ataque de pânico havia diminuído.
  Ela podia sentir as mãos tremendo ainda, mas enquanto ela convencesse a si mesma que não estava sentindo nada, então ela firmemente não iria sentir nada. Era um jogo perigoso e puramente estúpido que ela fazia consigo mesma, mas o problema de seus ataques de pânicos era que eles não ocorriam de súbito. Eles ocorrem gradualmente, até um ponto de explosão. Ela podia sentir na maneira irregular que seu coração martelava contra sua caixa torácica, ou a maneira com que sua mente parecia presa em um manto esquisito de falsa estabilidade, sentindo a familiaridade do espaço, mas notando algo que não estava ali – algo que ela não estava vendo. Iria ficar pior, ela sabia, mas no momento? Bem, estava sob controle, e ela manteria assim. Por desprezo – a si mesma.
   usa o antebraço para limpar a própria boca, ignorando os xingamentos e gritos do outro lado da parede. Ela puxa com força o pé de cabra da parede, observando o buraco que se abre no espaço, antes de abrir um sorriso torto, desgostoso e dando-lhe o dedo do meio ao ver alguém tentar espiar pelo buraco aberto.
   joga o pé de cabra sobre sua mesa próxima à janela, sem se importar com o fato de que ela erra feio e acerta o vidro da janela, criando uma bagunça de cacos no chão. caminha até seu banheiro minúsculo e apertado, fedendo a água sanitária e limão. Puta merda, um dia ela ainda se mataria naquela merda por misturar produtos químicos que misturava sem a preocupação de verificar se era adequado ou não o fazer. Um grunhido escapa por entre os lábios dela quando ela calcula mal o espaçamento do degrau e tropeça para dentro, batendo o ombro na quina da bancada do gabinete do banheiro, e quase acertando a cabeça no box de vidro.
   fecha os olhos por um segundo, pensando em desistir de tudo e simplesmente ficar ali pelo resto do dia, questionando novamente o que diabos havia feito com sua própria vida. Mas os espasmos suaves em suas mãos, cedendo lugar aos tremores anteriores, evidenciam o começo da abstinência. abre os olhos, obrigando-se a levantar-se e então apoia as duas mãos na pia, franzindo o rosto com a claridade que invade o banheiro.
  Ela odiava as manhãs.
  A água gelada a acertar como um soco certeiro, livrando-a de qualquer resquício de ressaca que ela poderia ter no momento, e um suspiro de alívio escapa por entre os lábios dela quando ela cospe a água de sua boca após a lavar. O gosto de menta ainda está em sua língua quando os olhos se encontram com seu reflexo. Olheiras abaixo dos olhos, a pele mais pálida que o normal, meio doentia, os lábios com alguns machucados das peles que ela costumava arrancar inconscientemente na noite anterior enquanto se afogava na bebida sozinha.
   solta um chiado entre dentes desviando os olhos quase imediatamente, incapaz de se olhar no espelho, como se sua imagem a queimasse, e então abre a porta do armário em busca dos frascos dos remédios. Tateia meio cegamente derrubando um dos frascos dentro da pia, mas para sua surpresa, todos estavam vazios.
   prende a respiração. Merda!
  Não, não, não, não!! Isso não poderia estar acontecendo! Não agora! Não hoje! Mas que caralho?! Então tudo cai no fundo de sua mente enquanto ela abre as gavetas do gabinete de seu banheiro, procurando na bagunça por mais um frasco. Ela não poderia estar sem aquela merda de remédio. Se estivesse, então… fecha os olhos com força, tentando silenciar o medo que começa a atingir e espalhar-se por seu peito como veneno, praguejando entre dentes. Ela não podia enfrentar Beatriz. Não agora. Nunca.
  Os dedos longos dela, meio tortos, buscam rapidamente por sua bagunça ali, jogando no chão alguns sabonetes, lenços umedecidos, absorventes internos, esmaltes velhos, sem se importar com o caos que estava construindo em seu banheiro. Sem se importar com nada que não fossem aquelas malditas pílulas. Ela exala de maneira afiada, por entre dentes, fechando os olhos com força, acertando um tapa por pura frustração na quina do gabinete antes de enterrar o rosto em suas mãos. Que porra! Era só o que ela precisava! Era cuidadosa e costumava pegar mais doses do que deveria para garantir que não faltaria. Porra, porra, porra! Como ela havia deixado aquilo acontecer?! Puta que pariu! inspira uma única vez, negando com a cabeça, disparando na direção de seu quarto.
  Ela se troca rapidamente com a primeira roupa limpa que encontra pelo caminho. Veste com uma careta a jaqueta de couro, seguido do boné esfarrapado escuro, prendendo-o em sua cabeça de maneira firme antes de puxar o gorro de sua jaqueta com um movimento rápido.
  O vento gélido queima o rosto dela, fazendo seu nariz arder e sua respiração se tornar uma fumaça suave, esbranquiçada, ao escapar por entre seus lábios, ao passo que ela desce rapidamente as escadas decrépitas do pardieiro que ela vive em Manchester, empurrando com um grunhido o portão de ferro antes de preparar-se para andar, apenas para receber um golpe violento em sua cabeça. tosse, engasgando-se com a própria saliva, desorientada por um segundo, enquanto desaba no chão. Os olhos dela se arregalaram levemente enquanto encontram o rosto genuinamente irritado e desesperado de um homem levemente truculento, com uma calvície bem evidenciada e uma expressão de filha da puta que havia acabado de ser pego em flagrante e não estava conseguindo dormir por conta disso, tentando segurar os braços dela.
  O instinto volta como uma memória muscular cravada em sua mente, e não percebe que reagiu até ter quebrado o nariz do idiota, e o tê-lo preso contra a parede à sua frente, torcendo o braço dele nas costas, imobilizando-o enquanto a mão esquerda dela segura os cabelos do homem com força, puxando a cabeça para trás para ver o rosto de seu quase agressor. O impulso gritando mais alto, ecoando para que ela acertasse repetidas vezes a cabeça do idiota contra os tijolos irregulares do prédio em que ela vivia.
   exala lentamente fazendo uma careta antes de empurrar o filho da puta para a frente, soltando os cabelos dele e chutando-o no meio das pernas apenas para descontar sua frustração. Os olhos percorrem momentaneamente o restante das pessoas que caminham pela calçada, unindo as sobrancelhas grossas e bem marcadas em uma expressão de poucos amigos ao perceber tardiamente que ela está chamando mais atenção do que deveria. Ela exala novamente, a fumaça esbranquiçada de seu hálito projetando-se à frente de seus olhos, enquanto volta a encarar o maldito homem.
  Senhor Andrews desabado em seus próprios joelhos, segurando a virilha com dor, enquanto xinga até a última geração de . Talvez ela estivesse finalmente enlouquecendo. Talvez, fosse pura frustração. Ou, talvez, fosse simplesmente incredulidade, mas ela solta um riso nasalado, incrédula, cambaleando um pouco para trás enquanto apoia as duas mãos nos quadris, furiosa. Justo naquele dia, puta que pariu! Se algo mais desse errado, ela genuinamente iria considerar saltar da primeira ponte que encontrasse em seu caminho…
  O senhor Andrews era um filho da puta na casa dos quarenta anos. Até poderia ser considerado alguém bonito quando jovem, mas agora era uma desculpa medíocre de um homem branco e velho entrando na meia idade que, por algum motivo, estava desesperado para ter uma validação masculina em sua vida ao agir como se tivesse quinze anos novamente. Não apenas isso, dormia com garotas de quinze anos também. estava na cola dele não fazia sequer duas semanas quando a Senhora Andrews, ou apenas Genevieve, como ela havia pedido para que a chamasse, havia entrado em contato com ela e pedido para que o investigasse a fim de descobrir se ele a estava traindo ou não. A verdade previsível? É claro que sim. O problema era que esse maldito professor do ensino médio, a estava traindo com as alunas dele. E fale de ameaça à sociedade.
  — Ah puta que pariu, pau no cu do caralho,  para de falar, minha cabeça tá explodindo e você só tá piorando essa porra — corta com pura impaciência, confundindo-se com os idiomas e começando a falar em português, sua língua materna, antes de perceber o que estava fazendo e se corrigir para falar um inglês meio quebrado, devido sua irritação.
   contém o impulso de chutá-lo outra vez, colocando-se de cócoras para observar o homem gemendo de dor com o golpe que havia recebido, encarando-o com desprezo. Ela apoia os cotovelos nos joelhos dobrados, ajeitando o boné em sua cabeça novamente, antes de encará-lo com atenção. Andrews está vermelho, o rosto em uma mistura de vergonha, raiva e frustração, e tem claramente alguns arranhões frescos em seu rosto. bufa consigo mesma, um sorriso torto surgindo por seus lábios, quase discretamente demais para ser percebido, enquanto ela supõe que, ao menos, Genevieve havia conseguido acertá-lo onde o doía mais: sua aparência. Bom para ela.
  — O que você quer, seu merda?
  — Vadia!
   sorri, erguendo uma sobrancelha.
  — Ótima habilidade de observação, mas redundante ——— aponta com escárnio, divertindo-se sombriamente com a tentativa de ofensa daquele homem miserável. Não porque tivesse algo contra ele, apenas o fazia por passatempo. Palavras eram apenas palavras quando você não se importava. E … bem, fazia muitos anos que ela havia se importado com algo. — Vou assumir que toda essa tentativa de intimidação é por causa das fotos? Sabe, se vai trair a sua mulher com uma garota de 16 anos que tem idade para ser amiga da sua filha, pelo menos, e ênfase no pelo menos, tenta ser discreto sobre, sabe? Fecha as janelas, cronometra entradas e saídas, evite câmeras e, não sei, encontre alguém que esteja na idade legal para ter sexo com você, não uma criança. — oferece um sorriso repleto de escárnio, encarando com uma ponta de diversão o homem ficar ainda mais vermelho que antes e gaguejar para tentar se defender.
  Em outro momento ela teria se divertido muito em ver ele lutar para encontrar justificativas plausíveis, apenas pelo prazer de vê-lo escorregar em seus argumentos e recusar-se a admitir o que todos sabiam: ele era medíocre. Uma desculpa patética de covardia que sequer merecia o nome que carregava. Mas porra, ela só queria se livrar dele o quanto antes e continuar seu caminho até o porto. Não conseguiria começar seu dia se não estivesse com as merdas da pílulas a seu alcance, e, certamente, não iria conseguir dormir.
  — Corta a baboseira, parceiro, vai direto ao ponto.
  — Eu ordeno que me dê as fotos, sua puta! É o mínimo que você pode fazer por destruir meu casamento e minha carreira! — rosna Andrews tentando parecer corajoso. Mas conhecia monstros piores e muito mais assustadores que ele. Porra, ela era um monstro pior e mais assustador que a merda de um idiota que não conseguia manter seu pau dentro da calça quando via crianças.
   estreita os olhos, inclinando a cabeça suavemente para a direita, de maneira quase felina, enquanto os olhos se fixam firmemente no rosto de Andrews, analisando-o com cuidado, perigosamente inexpressiva, sem revelar uma emoção além do desprezo característico que ela tratava a tudo e a todos.
  — E eu faria isso porque…? — questiona, erguendo uma sobrancelha ao observá-lo com mais atenção ainda. Estava blefando, e isso não era sequer um questionamento, mas de repente considera as possibilidades por um segundo, imaginando que havia uma quantidade de dinheiro considerável que ela poderia usar para extorquir do maldito patético homem antes de se livrar dele. Além disso, querendo ou não, Andrews estava fodido, e nem havia percebido. não se considera uma justiceira, muito menos está inclinada a fazer algo de graça apenas pela bondade e bom moralismo. Não. Foda-se aquela merda, mas bem, ela tem as fotos, e é claro para qualquer um que o juiz não demoraria muito para começar uma investigação criminal, já que seria pressionado, e estavam em época de eleição. Andrews havia atirado na própria cabeça, ela só estava entregando a arma.
  — Porque… porque… porque… porque é uso indevido de imagem! — ele cospe, desesperado.
   franze o cenho com uma ponta de desprezo. Mais do que a hipocrisia, ela detestava a fraqueza que exibiam. Pessoas que não levavam suas posturas de merda até o fim. Chame-a do que quiser, mas é uma fã assídua de consistência. Se você era um filho da puta, então que fosse até o fim, sem arrependimentos, ou julgamentos.
  Ela contém a vontade de rir, apertando os lábios em uma linha, enquanto estreita os olhos, observando a oportunidade que se abria à sua frente. Andrews, agora, está chorando. coloca-se de pé com um movimento econômico e elegante. Se ela tivesse ao menos um coração…
  — ! Escuta! Escuta! Eu faço qualquer coisa, qualquer coisa! Se Gen... se Genevieve apresentar essas fotos para o júri eu não vou só perder tudo, minha carreira, meus filhos, eles… eles vão me mandar para a cadeia! Sabe o que acontece com alguém indiciado por esse tipo de coisa… eles vão… eles vão… só me diz o que você quer e eu faço! Eu prometo! Qualquer coisa!
  — Implora.
   alarga seu sorriso quando o vê se postar de joelhos à sua frente, realmente implorando, mas ela segura a risada. Por Deus, ele é mais patético do que ela havia imaginado que ele fosse capaz de ser. E agora havia pessoas que presenciavam o desespero dele. Uma confissão. Para todos os efeitos, não havia como ele negar se ele estava desesperado daquela forma. Como sempre, havia apenas entregado a arma para Andrews, ele quem havia puxado o gatilho. Idiota de merda.
  Os olhos de repousam por um breve momento nas câmeras que permeiam a rua antes de voltar sua atenção para Andrews, desesperadamente tentando segurar os pulsos dela, como se fosse capaz de a fazer compadecer-se. Mas bem, ele mesmo havia dito. Ela era só uma vadia.
  — Por favor,
  — Não — diz calmamente ajeitando a lapela de sua jaqueta de couro antes de, distraidamente, examinar suas unhas com uma expressão contemplativa.
  Ela simplesmente odeia quando esmalte descasca simplesmente porque tinha algo dentro de si mesma que a impedia de retocar o espaço descascado, ao em vez disso, ela iria descascá-lo até que ficasse com a unha limpa novamente. Ela revira os olhos, arrancando um pouco do esmalte distraidamente com o canto da unha de seu polegar, antes de dar de ombros com desdém para Andrews, patético, ajoelhado e chocado com a recusa dela. Pessoas se sentiam tanto no direito de serem ajudadas após dizerem por favor. Como se ela fosse ajudar alguém.
  — Se quer as fotos originais, Sr. Andrews, seja esperto, me ofereça a quantia certa, e serão todas suas. Simples assim. Se não tem o dinheiro, não se incomode em vir atrás de mim — resmunga com desinteresse, indicando com o queixo na direção dele, antes de fazer menção de voltar a andar. Mas então, ela para. Estreitando os olhos e assumindo uma postura mais firme, perigosamente alerta. — Tenta de novo essa merda comigo e vai acabar morto. E isso não é uma ameaça, é um aviso. Mantenha isso em mente, garotão.

•••

  Na 6 St Anns Square ficava a antiga igreja St Ann’s. Um prédio consideravelmente grande com dois andares e uma torre com um relógio ao lado da entrada da igreja. As paredes de tijolos evidenciavam a passagem de tempo, deixando os tijolos escurecidos, criando padrões irregulares de tijolos desbotados, escurecidos e avermelhados recém trocados. Musgo espalhava-se nos cantos do gesso que decoravam as paredes. A porta dupla de madeira estava fechada, mas conseguia ouvir o barulho suave do canto gregoriano enquanto empurrava-a para frente para abri-la. O cheiro de mirra e incenso atinge o rosto dela, fazendo seu nariz arder enquanto os olhos dela percorrem o ambiente interno, observando os vitrais coloridos e elegantes, com imagem de santos que ela não conseguia acreditar e um deus que, se fosse real mesmo, estava longe de ser a concepção de uma criatura gentil, misericordiosa e amorosa. Quer dizer, chame-a do que quiser, mas se existia um deus a quem contavam ser: onisciente e onipresente, e via toda a desgraça e sofrimento que envolvia o mundo e não fazia nada, ou este não era onisciente, ou onipresente, ou, simplesmente não se importava. E se não se importava, significava que era apenas um desgraçado cruel como qualquer outro. Para que temer o inferno quando o paraíso parecia igualmente uma punição?
  Mas não está ali para orações, tampouco para buscar perdão – aquele navio já havia saído do porto há muito, muito tempo para ela. Não, longe disso. Está ali por uma pessoa, e apenas isso. Ela aperta os lábios em uma linha tensa enquanto os olhos dela percorrem pelas fileiras de bancos de madeira escura, pilares brancos se projetam nas laterais, levando ao segundo andar da igreja, e imagens de santos de pelo menos um metro de altura de momentos sacros, como a crucificação, a morte de Crist e outros momentos que genuinamente não tinha interesse algum de observar.
   exala por entre os dentes trincados, caminhando em direção a um púlpito largo próximo de um dos pilares brancos arredondados da igreja, observando a fileira de velas acesas. Ela solta um riso baixo, desdenhoso e desagradado. Não são velas de verdade, mas simulavam velas acesas, e para acendê-las, era necessário colocar algumas moedas. revira os olhos, retirando algumas moedas do bolso de sua jaqueta de couro, e então coloca uma por uma na pequena fenda no canto, a fim de ascender ao menos uma vela.
  Mesmo que ela não acreditasse naquele tipo de merda, isso não significava que ela não poderia deixar de aproveitar aquilo à sua vantagem. Está comprando tempo, tentando encontrar a melhor linha de ação para a situação em mãos. Anos nas Forças Especiais ao menos teriam que lhe servir algo. Mas estava falando de Ziyad Karam.
  Os olhos dela repousam nas costas do homem grisalho, calmamente lendo um livro pequeno enquanto a mão direita permanecia enrolada em um terço. Para todos os efeitos, Karam é um homem comum. Evidentemente elegante e com uma postura impecável, que parecia evidenciar privilégios de uma vida que está além da compreensão de . Quer dizer, ela lembrava-se de ter crescido em uma favela, e então… bem, então havia sido apenas um puro e desesperador pesadelo do qual ela tentava, a qualquer custo, esquecer.
  Ziyad Karam usa as roupas nos melhores cortes, das maiores grifes, não porque desejava ostentar seu dinheiro, mas simplesmente porque o dinheiro que possui lhe comprava a autonomia de vestir-se discretamente, em ternos requintados que evidenciavam seu poder, mas que eram simples. Passavam a mensagem que desejava: efetividade. Os cabelos crespos agora já estavam todos brancos, mas apesar disso e de algumas linhas de expressão em seu rosto, Ziyad Karam permanecia impecavelmente mais jovem do que deveria.
  Os óculos estão presos na ponta de seu nariz enquanto ele entoa a oração, concentrado. Ele deveria ser mulçumano, mas era católico romano. Ele deveria ser letal, mas era um avô dedicado e presente. Ele deveria ser apenas mais um merda fanático que buscava justificativas divinas para a bunda desamparada de sua recusa a aceitar sua própria insignificância – porque todos eram insignificantes, apenas sacos de carne e água, à espera de uma falha para virar uma pilha de vermes –, e, no entanto, era Doc, a porra do dono daquele país. Líder não apenas de uma gangue, mas uma máfia inteira. O melhor no que fazia, é claro, porque se havia algo que Ziyad Karam não aceitava, era mediocridade.
   hesita por um segundo, voltando a encarar as velas à sua frente, com uma sensação de desapego emocional crescente. É como se ela estivesse amortecida demais para sentir qualquer coisa que não fosse apenas um puro vazio. Uma indiferença profunda que se projetava como veneno por sua mente, mas que, a essa altura, era só um local familiar para ela. Ainda assim, naquela breve fração estúpida de segundos, ela sente-se tentada a fazer uma prece. Uma prece para Beatriz. Tentada a ver se talvez estivesse errada, talvez, onde quer que a irmã gêmea estivesse, se era possível que… se Beatriz era capaz de… umedece os lábios secos, balançando a cabeça discretamente de maneira negativa, praguejando consigo mesma. Está sendo idiota, e perdendo tempo. Por anos, quando era pequena, havia esperado encontrar um maldito herói, e tudo o que havia recebido em suas mãos em troca de suas súplicas, era apenas sangue, terror e uma constante contagem. Nada mais. Nenhum herói veio, e tampouco viria agora.
  A verdade nua e crua? O mundo era uma merda e as pessoas, piores ainda.
  — Considerando que não é sequer uma devota e muito menos alguém capaz de arrependimentos, , teria mais sucesso jogando moedas em uma fonte, do que aqui. — A voz de Karam ecoa pelos ouvidos de de maneira baixa, concentrada e pomposa. O sotaque britânico pesado de alguém que vivia no Chelsea, em Londres, e não em Manchester, e tampouco fazia parte de uma máfia. Mas as aparências nunca são realmente o que apresentam, são?
  Os estalos do sapato de Karam contra o assoalho de madeira da igreja antiga param um pouco mais atrás dela, e une as sobrancelhas bem marcadas, em uma expressão defensiva, apesar de tudo.
  — Pensei que havia sido claro a você que não desejava mais ver o seu rosto outra vez, e, no entanto, aqui está você, parecendo uma merda, mas ainda respirando. Eu quero saber o porquê?
  , dá um passo para trás, afastando-se do púlpito largo com as velas de mentira, e então volta-se para encarar Karam no fundo de seus olhos. Ela enfia as duas mãos dentro dos bolsos de sua jaqueta de couro, inclinando a cabeça para o lado enquanto o avalia por um longo momento. Karam não se dá ao trabalho de sequer encará-la, ele sabe que ela não irá lhe fazer nada, estava em seu, teoricamente, contrato para ficar ali, mas ainda assim, por um segundo, ela considera as possibilidades. Quebrá-lo seria fácil até demais. Para alguém da idade dele, bastavam dois golpes bem colocados na altura do abdômen e um golpe na cabeça, e ele provavelmente teria algum ferimento irreversível no cérebro e estaria morto. Mas, igualmente, matá-lo seria a coisa mais idiota que ela poderia fazer, então trinca os dentes com força, assente para si mesma, tentando lembrar-se das regras que Edgar a havia ensinado desde que ela tinha oito anos.
  Não cague onde você não tem a porra de um pano para se limpar.
  — Meu remédio acabou. Preciso de mais. Cortez é o único fornecedor nessa merda de cidade, mas ele responde a você diz de maneira tensa, escolhendo as palavras com cuidado, enquanto faz uma careta consigo mesma ao dizer remédio, mas sem outra alternativa senão usar a palavra, ao menos ali.
  Ela revira os olhos quando Doc solta um chiado por entre os dentes, em advertência ao palavrão que ela diz. não se importa, mas igualmente não deseja chamar atenção para si mesma. Então, dá mais um passo para trás, dando espaço para que Karam possa se aproximar do púlpito com as velas, observando-o como um gato, atenta e tensa. Há uma ponta de desprezo nos lábios de Karam, e não pode deixar de sentir uma pontada direta em seu ego. O golpe é certeiro, e a faz sentir raiva imediatamente. Não por Karam ou pelo desprezo dele, mas por encontrar na expressão do homem o espelhamento do que ela pensava sobre si mesma. E puta merda, como odiava a sensação. O fracasso. A falha. O reconhecimento de que era desprezível e deplorável. Tão patética quanto. Mas obriga-se a engolir a frustração e a raiva porque, mais do que um ego ferido e orgulho de merda, ela precisava das pílulas.
  — Por favor, você não precisa escolher suas palavras comigo. Sua metanfetamina acabou, e como qualquer outra viciada você está desesperada por mais, mas suas ações a colocaram em uma posição desvantajosa comigo — Karam diz calmamente com sua indiferença característica, e luta consigo mesma para não ceder à parte ruim de sua personalidade e estragar ainda mais as coisas.
   umedece os lábios, engolindo em seco, mas não responde ao comentário de Karam. Ela para à frente do púlpito largo com as velas falsas e por um breve momento parece se esquecer de tudo que não seja sua prece. o observa com uma careta, desdenhosa, quando o homem leva as duas mãos em direção ao próprio rosto, unidas, fazendo uma oração baixa demais para se importar em tentar ouvir, ela admira a hipocrisia.
  O terço enroscado na mão dele, as contas de madeira contrastando com o prateado do metal das correntinhas que as prendiam no lugar, a cruz, igualmente prateada, oscilando para frente e para trás em quase uma zombaria. Então ele faz o sinal da cruz, tocando a testa, a barriga, e então os dois ombros, antes de retirar algumas moedas e acender ao menos quatro vê-las. Uma para sua filha, Catherine, e três para seus netos. Um menino, duas meninas.
   poderia ser muitas coisas, mas era uma boa investigadora. Os olhos dela não se desviam de Karam nem por um segundo. Ela o observa ajeitar a lapela de seu terno de grife em um corte excepcionalmente adequado e perfeccionista, antes dos olhos dele voltarem a fixarem-se nos seus. Ela não deixa se intimidar, mesmo que se tensione, ela permanece firme, sua expressão cuidadosamente estoica.
  — Agora, você veio até aqui a fim de descobrir se eu teria um trabalho para você tentar se redimir. Minha pergunta, querida, é a seguinte: por que diabos eu precisaria de você?
  — Porque eu ainda sou a melhor que você tem à disposição, Doc diz com um tom de voz baixo, cauteloso.
  Não é que ela gostava de ser arrogante, a verdade é que isto, no fim das contas, acabava como uma falha fatal para ela mesma, mas em determinados momentos, quando estava desesperada e não tinha mais escolha, ela precisava apelar, e isso significava lembrar a todos por que a chamavam de Butcher no exército.
   cruza os braços por sobre os seios, trincando a mandíbula com força, sem perceber que estava prendendo a respiração instintivamente. Os olhos dela acompanham os mínimos movimentos de Karam, à espera de uma reação mais perigosa, uma reação explosiva, mas esta não vem. Ziyad Karam apenas a encara em silêncio por alguns segundos antes de deixar uma risada alta, intrigado, escapar por seus lábios. exala por entre seus dentes cerrados.
  — Agora, isso é desespero.
   não nega. Ele tem um ponto. E por mais que ela desprezasse a ideia de ter que rebaixar-se a alguém como Karam, ou pior, ver-se prisioneira das vontades de outro idiota maluco com problemas de ego, pouco ela poderia fazer quando a pessoa que era responsável pela distribuição dos remédios que ela costumava tomar para dormir e a metanfetamina vinha justamente dele.
   morde o interior de suas bochechas, observando por um momento, distraída, alguns idosos que se espalhavam pela igreja. É consideravelmente curioso que, quando de cara com a própria mortalidade, todos encontravam algum tipo de fé. Neste aspecto, supôs que estivesse quebrada, porque havia ficado diante da morte muitas vezes, e em nenhuma vez encontrou algum tipo de espiritualidade, pelo contrário. Havia apenas raiva. Uma revolta profunda e enlouquecedora que a sufocava em momentos de vulnerabilidade.  Ela queria colocar fogo no mundo inteiro, ela queria morrer e lutar com o próprio demônio se isso lhe garantisse a possibilidade de ser vingada por tudo o que havia passado, mas no fim, isso sequer importava? Era uma causa perdida desde o começo, e à essa altura, ela está cansada demais para sequer considerar fazer algo além de sobreviver.
  — Qual é o trabalho? — é tudo o que ela pergunta e, pela primeira vez durante a conversa toda, quando Karam a encara novamente, há um mínimo sorriso preso em seus lábios, satisfeito. odeia o que .


  NOTA DA AUTORA: eu sei que a trope mais comum em Dark Romance, normalmente é a PP toda soft e delicada, e o PP bruto e psicopata, mas a PP aqui não vai seguir esse padrão. Ela não é soft, ou inocente, muito menos delicada. Apesar de ela ser brasileira, ela fez parte das Forças Especiais britânicas (SAS) e isso será abordado mais para frente, não se preocupe, mas o ponto é: ela DEFINITIVAMENTE não é pequena em questão de altura, ela tem músculos e não será indefesa. Isso não significa que é um ataque ou que eu menosprezo protagonistas com essas características, ou que as acho ruins, apenas que, para que essa história funcione de maneira equilibrada, a PP precisa ter autonomia (se não, a gente não tá lendo sobre romance, só um amontoado de agressões e abusos e normalizando isso como se fosse natural; Não. É. Tomem cuidado com o que leem, ok? De verdade), e ela precisará ser durona. E, honestamente? Uma má pessoa também. Então, novamente, se você não se sente confortável em ler este tipo de coisa, POR FAVOR, NÃO LEIA. E se você tem 13 anos e veio parar aqui, eu sei que VOCÊ ACHA que é madura o suficiente para ler esse tipo de coisa, MAS NÃO É. Então, não, eu não me responsabilizo pelo que você está lendo, e MUITO MENOS quero sua presença aqui.
  Como já disse, a PP é brasileira. Os DOIS PPs são mentalmente instáveis e autodestrutivos, então JAMAIS use essa história como parâmetro para relacionamentos. Ela é criada para entreter e explorar até onde alguém pode ir atrás de vingança, só isso. Eu genuinamente não gosto de Dark Romance, não li um ainda que eu pensasse “porra, que livro bom”, e talvez seja apenas porque meus gostos não estão alinhados com esse tipo de história, só isso. Não julgo, nem condeno ou critico quem gosta, se este é a tua? Vai fundo, você tem todo o meu apoio. O fato de eu discordar não significa, necessariamente, que somos inimigos, só que temos opiniões diferentes. É isso aí. Tamo junto, meu nobre, e a gente se vê na próxima ATT.
  Esta fic é escrita de madrugada, quando estou sobrecarregada com estímulos externos e preciso de uma forma de me regular, portanto perdão antecipado por incoerências, erros gramaticais e algumas confusões, meu e-mail está sempre aberto para discussões e opiniões

Capítulo 02

       | AGORA
Manchester, Inglaterra.

  Sua cabeça estava explodido, e não havia nada que ela pudesse fazer para evitar.
  Talvez fosse o ritmo insuportável, alto e marcado do techno eletrônico que ecoava pelo espaço, o bass tão marcado que conseguia sentir as vibrações pelo corpo inteiro, reverberando pelos dentes trincados e pelo crânio dela. A sensação de estar sendo sufocada, piorando em escalada ao observar pessoas dançando no meio da pista com luzes estroboscópicas, esfregando-se umas nas outras como se estivessem em algum tipo de transe. Strippers retirando sutiãs ou demonstrando suas habilidades com tassels vibrantes presos em seus mamilos, ou jogando os cabelos de um lado para o outro. Alguns idiotas em uma mesa cheirando cocaína, ou apenas bebendo até esquecerem seus nomes. Ou se era a merda da fadiga causada pela abstinência começando a afetá-la com mais intensidade. Sua boca estava amarga, os lábios secos, suas mãos tremendo enquanto ela segurava com mais força o copo de cristal com a gin tônica. Este era o problema de precisar daquela merda de remédio: os fantasmas que a seguiam se ela não o fizesse.
  Os olhos se estreitam enquanto registram o fluxo contínuo de pessoas de um lado para o outro na boate, Boca do Inferno. Há uma sensação vertiginosa de desprezo dentro do peito de que não consegue impedir de ao menos soltar um resmungo inteligível de desprezo quando alguém tenta aproximar-se dela. Não estava interessada em uma noite sem compromisso, especialmente porque não tinha paciência para lidar com outra pessoa que não fosse ela mesma, mas era mais do que isso, estava a trabalho ali. Não poderia foder as coisas à toa. Não desta vez. leva o copo em direção aos lábios, virando de uma vez, sentindo o álcool aquecer sua garganta enquanto suspirava pesado, exasperada consigo mesma.
  Cortez— disse Karam simplesmente, pegando um folheto do púlpito com um interesse desdenhoso, enquanto apalpava distraidamente o bolso interno de seu casaco, em busca de seus óculos, analisou com cuidado a expressão do negro, as sobrancelhas se unindo enquanto ela registrava o que ele havia dito.
  Puta que pariu, se alguém lhe dissesse uma semana atrás que conseguir os remédios que ela precisava para continuar ao menos desligando a parte do cérebro dela que a matava todos os dias contaria com matar a pessoa que ela mais detestava, teria mandado você se foder e teria rido sozinha por horas. Não era apenas o universo rindo de sua cara, era Karam agindo estranhamente com um propósito que ela ainda não havia conseguido descobrir, e isso, bem, isso era perigoso.
   umedeceu os lábios com a língua, sem conseguir conter um pequeno sorriso que surgia por seus lábios, petulante, e ao mesmo tempo, incrédula com o que ela escutou.
  — Não me olhe assim, querida, ingenuidade não lhe cai bem.
  — Pode me culpar? Quer dizer, é uma reviravolta no mínimo interessante — disse com um tom de voz divertido e ao mesmo tempo cético. Era difícil comprar o que Karam estava falando quando sabia em primeira mão, que, talvez, Cortez, o cafetão e dono de uma das divisões de Karam na cidade, responsável por redistribuir a cocaína e outras drogas nos quarteis mais leal de Karam, poderia ter feito alguma merda para irritar o Rei do Crime da Inglaterra.
   cutucou o canto de sua boca com a língua, assentindo lentamente enquanto seu cérebro, acelerado pela tensão, adrenalina e fadiga da abstinência, tentava compreender o que diabos estava acontecendo e por que Karam queria que ela matasse Cortez. cruzou os braços por sobre os seios, trocando o peso de perna enquanto inclinava um pouco a cabeça para o lado, os olhos estreitados, atentos. Era uma armadilha. Não para Cortez, mas para .
  — O que ele fez? — questiona estrategicamente fingindo-se de curiosa, mas ciente de que Karam não iria comprar seu falso interesse em algo que não lhe dizia respeito. Ainda assim, ela estava familiarizada com o prospecto daquele jogo, com as palavras doceis que se deveria dizer para conseguir extrair a informação necessária.
   deu de ombros singelamente deixando-se recostar em um dos pilares da igreja, observando atentamente Karam, tentando encontrar a abertura em sua postura impecável que lhe revelasse alguma coisa. Qualquer coisa...
  — Qual é, Karam? Se quer que eu o mate, pelo menos pode me dizer o motivo para o fazer.
  — Como a putinha dos militares, eu presumi que você, de todos, não precisava de um motivo para matar alguém, , apenas seguir a ordem que lhe foi dada. Eu me equivoquei desta vez? — responde Karam de maneira cortante.
   obriga-se a morder a língua para controlar sua raiva que imediatamente espalhou-se por seu corpo como uma onda quente e sufocante de fogo por suas veias. O gosto de seu próprio sangue era pungente por sua boca. precisava admitir, o filho da puta sempre tinha uma boa resposta para tudo, e aquela, igualmente, não mostrava apenas controle sobre ela, mas igualmente um certo conhecimento que aterrorizava . Seu passado precisava ficar enterrado.
   tencionou a mandíbula com força, sustentando o olhar de Karam enquanto algo nele parecia procurar alguma coisa em seu rosto. Ela se obrigou a manter-se estoica. Obrigou-se a reforçar aquela parede que a separava dos outros, que a prendia e a isolava de todos os outros, ciente do que significaria expor vulnerabilidade naquela merda de mundo que ela vivia. E, todavia, ela não conseguia impedir-se de afundar naquela maldita memória. Instintiva como o ato de respirar.
   lembrou-se do maldito porão. Das paredes escuras e opressoras a sua mente, obscurecidas pelo mofo e manchas de sangue seco. Do cheiro pungente de merda, urina, sangue e carne putrefata de dias, sufocando-a lentamente. Acima de tudo, do silêncio gritante que ela simplesmente não conseguia fugir, não conseguia abafar por mais que tentasse, a tensão que pairava no ar enquanto ela se encolhia a qualquer ruído que pudesse ser ouvido do outro lado da porta. O desespero para conseguir alcançar a mão de Beatriz apenas para encontrá-la rígida, fria, imóvel...
  — Veja como um teste. Você estará provando para mim até onde a sua lealdadevai, se é que algum dia você foi capaz de compreender o significado dessa palavra.
  — Agora me ofendeu.
  — E me ofende você agir como se você não soubesseque eu a conheço, — Karam cortou bruscamente. Ela não se moveu, mas observar Karam deliberadamente caminhar em direção dela, a coloca imediatamente em um estado de alerta gritante. Ela se obrigou a permanecer parada, mesmo que seu corpo inteiro gritasse para que ela corresse para o mais longe que ela conseguisse. inspirou fundo, prendendo a respiração quando Karam parou frente a frente a ela. — Você é uma vadia egoísta que não se importa com ninguém além de si mesma, e, tirando por sua óbvia covardia natural para lidar com situações complexas, vocêé boa em resolver o problema.
   estreitou os olhos ao tentar absorver a expressão impassível de Karam, mas então, o velho deixou um sorriso discreto, quase imperceptível de ser compreendido, surgir por seus lábios. nunca sabia o que era pior naquelas situações: quando Karam a ameaçava ou quando ele sorria.
  — É por isso que eu gostode você, . E é por issoque você irá fazer o que estou pedindo sem mais questionamentos e hesitações. Estamos claros?
   inclinou a cabeça suavemente para a esquerda, considerando o que iria responder para Karam. Uma palavra em falso poderia colocar a cabeça dela a prêmio, e, honestamente, aquilo era a última coisa que ela desejava no momento. Ela engoliu em seco, movendo sua mandíbula enquanto colocava suas duas mãos atrás de suas costas, em uma postura militar de sentido. A postura, a essa altura, não passava de um eco instintivo, padronizado em sua memória sempre que aquela parte de si mesma, a parte que havia aprendido a servir e agir como soldado primeiro e depois questionar,despertava.
  — Entendido?
  — Sim, senhor.
   repousa o copo dela novamente sobre a bancada, inspirando fundo uma única vez, como se estivesse tentando se preparar mentalmente para o que vinha antes de se endireitar, estalando o pescoço. Porra, ela estava travada para cacete o dia inteiro.
  Merda. Ela odiava assassinatos.
  Não porque ela tivesse algum tipo de moralidade de quinta em que matar era errado ou algum tipo de pecado – sejamos honestos, se houvesse uma maneira de gabaritar pecados, a essa altura, já estaria no final da lista – ou algo que não deveria fazer, longe disso. Era o trabalho que dava para matar. O trabalho que dava para localizar a vítima, então acertar um ponto vital sem fazer muita bagunça quando o sangue começasse a se esvair, porque você faria bagunça se não tivesse completamente certeza de onde acertou. inclina sua cabeça para trás, em um martírio pessoal antes de preparar-se. Prontos ou não, lá vou eu, heh, como se eu tivesse a porra de uma escolha, ela pensa.
   desvia dos corpos dançantes perceptivelmente alucinados, puxando o capuz de sua jaqueta para cobrir sua cabeça e rosto, permitindo-se ser guiada apenas pelo movimento de terceiros enquanto os olhos dela percorrem por todo o espaço. O cheiro pungente de açúcar queimado, plástico, álcool, suor e fluídos corporais pungente o suficiente para fazer o nariz dela arder, ou o ar estava apenas seco mesmo.
   desce algumas escadas, virando à esquerda onde a boate e bar se transformava em uma sequência de corredores apertados com inúmeras portas. Algumas estão completamente abertas com pelo menos oito corpos se movendo em sincronia uns contra os outros, em um frenesi em busca de gozar o quanto antes; outras, estão completamente fechadas. Uma pequena explosão de um homem amordaçado se projeta para fora da porta à esquerda dela, com a máscara de um coelho suja e sem mais roupa nenhuma, com marcas nas costas de algum tipo de chicote e sua ereção na mão, antes de passar por , empurrando-a para fora de seu caminho enquanto corria quase por sua vida. Seguindo-o, um pouco atrás, algum filho da puta com calça de couro apertada de cós baixo, com ombros largos e máscara de lobo presa em seu rosto ocultando completamente a visão que poderia se ter de seu rosto, caminhava calmamente na direção do coelho em algum tipo de roleplay de caça, o que até seria apelativo, se não fosse esquisito para porra. Quer dizer, quem era ela para julgar fetiches, certo? Ah sim, a filha da puta que havia visto, então, ela meio que se sentia no direito de julgar de qualquer forma.
   revira os olhos, de tudo o que provavelmente estava acontecendo ali, caça não era exatamente o mais diferente ou surpreendente. Ainda assim, não são os corpos nus que chamam a atenção dela, e tampouco os rostos desconhecidos, apesar de parecerem ser o tipo de rostos que frequentavam lugares caros e não as favelas e bares horríveis no sul da cidade, tampouco algumas prostitutas ainda dançando ou se esfregando em algum cliente em uma sala separada, e muito menos a música que martelava em sua cabeça de maneira pulsante e incômoda. Não, não, longe disso, o que havia chamado a atenção de era o cheiro.
  Sândalo, pimenta, cigarros e couro.
  Familiar. Familiar demais, puta que pariu... une as sobrancelhas, inclinando a cabeça suavemente para o lado, e então lança um olhar desconfiado na direção da única outra alma viva que caminhava na direção contrária a qual ela estava seguindo no corredor, voltando de onde ela estava prestes a chegar. Suas roupas eram caras e elegantes, usava peças de grife apesar de não terem marcas, calça de alfaiataria, sapatos italianos, anéis de ouro branco e prata espalhados pelos dedos longos e grossos, o relógio caro no pulso direito parecendo custar pelo menos a vida inteira de naquela maldita cidade, usava uma blusa de manga longa, arregaçada nos antebraços fortes e firmes, exibindo algumas tatuagens que cobriam centímetros e mais centímetros de pele visível, a gola alta ocultava quaisquer visões que pudesse ter do pescoço ou mandíbula dele, mas ela podia ver com facilidade os cabelos dele, longos, loiros pálidos, estranhamente familiar. Ela já havia visto aqueles cabelos antes, a maneira com que caíam por sobre as orelhas, um pequeno brinco de argola preso na orelha esquerda. Havia algo de errado ali, muito errado.
  O desconhecido usava uma máscara de Onni, vermelha escura, a bocarra larga com duas presas curvadas para cima, de uma tonalidade marrom clara, enquanto a parte inferior da bocarra exibia apenas dois dentes menores. Os chifres, dois, um de cada lado, partindo das têmporas, se curvava para cima com pelo menos cinco centímetros de altura, tingidos de preto. Não eram as mesmas máscaras que os outros usavam naquela merda de lugar, esta não era simples.
   estreita os olhos tencionando a mandíbula com força, enquanto ela passava pelo mesmo, os ombros esbarrando levemente com o movimento, mas não chegando a se tocarem. Há algo nele que a deixa não apenas desconfiada, mas insegura. A maneira com que os olhos dele, intensos, parecem familiares sob a iluminação precária do corredor estreito, fixando-se no rosto dela como se pudessem ler sua alma com facilidade, a maneira com que se estreitam e a cabeça se inclina um pouco para o lado, acompanhando fixamente os mínimos movimentos de , fixos, quase vidrados, enquanto ela passa por ele.
  E o maldito cheiro... de onde ela o conhecia?
  Merda...
  Só havia uma resposta para aquilo, e era simples: ela estava alucinando outra vez.
  Puta que pariu, sorte do caralho, merda, vai tomar no cu essa desgraça dos infernos! Ela precisava da porra do remédio logo! balança a cabeça como se quisesse tentar clarear seus próprios pensamentos antes de descer mais algumas escadas. Talvez fosse seu cinismo o calcanhar de Aquiles aqui, talvez fosse as próprias alucinações causadas pela abstinência, pouco poderia saber ou compreenderia no momento, mas se ela tivesse verificado por uma segunda vez seu ombro direito, teria percebido que o homem em questão havia parado de andar no segundo em que ela havia passado por ele, acompanhando-a com os olhos desaparecer sala a dentro. Os punhos do mesmo se fechando com força, os nós dos dedos ficando pálidos. Perigo.
   se depara com um grande salão aberto. Duas paredes e o teto eram feitos de piscinas com fundos transparentes, refletindo as mulheres e homens nus que nadavam por entre a água tingida de vermelho. engole em seco, sentindo os músculos de seu corpo se tencionarem, enquanto sua garganta ficava subitamente seca. Merda, ela odiava como aquilo parecia mais sangue do que água, maldito Cortez! tenta imediatamente ignorar a sensação de desconforto crescente, ao notar o reflexo da água vermelha espiralando ao redor, mas não consegue desligar a parte de sua mente que desperta ao fundo a memória enterrada a camadas e mais camadas de tentativas de esquecer a verdade.
  Os restantes das paredes são feitas de espelhos. Luzes neon se espalham pelo chão, igualmente vermelhas, estranhamente mais claras do que deveriam ter sido a intenção, mas não mudava o fato que estavam ali para acentuar um pouco mais o ambiente. Merda, havia até gelo seco espiralando pelo espaço como se fosse necessário oferecer ambientações também para uma orgia. Algumas camas se espalham pelo espaço com mais ou menos entre 3 a 5 pessoas se movendo em sincronia. Duas strippers dançam ao ritmo marcado da música, agora mais lenta e sensual, deslizando e girando em bastões de ferro, igualmente mascaradas de pombinhas ou coelhos. Outros mascarados de cervos, patos, porcos, bois, macacos, mesmo pandas, permaneciam em gaiolas suspensas no chão, enquanto um pouco mais ao fundo, no centro de tudo...
  Cortez.
  E lá estava o grande filha da puta, huh?
  Sentado na porra de uma cadeira como se fosse um trono pessoal, enquanto assistia a cena com uma fascinação idiota presa no rosto. As calças amontoavam-se nos calcanhares dele, enquanto a mão acariciava para cima e para baixo sua ereção enquanto assistia as cenas ao redor. Maldito voyeur. Mas quem era para julgar o fetiche alheio? Bem, a idiota que estava presenciando, certo? Então, nesse caso, ela se sentia sim no direito de julgar.
   bufa consigo mesma, um sorriso amargo surgindo por seus lábios, enquanto ela volta sua atenção para uma garrafa de vodca abandonada sobre uma das mesas de apoio do espaço, cheirando instintivamente por um breve momento, tentando identificar se havia algum tipo de droga ali, já que manchas de pó branco se espalhavam pela mesa que ela havia encontrado a garrafa, mas não havia nada. Com uma careta, irritada consigo mesma, ela a vira, sentindo o álcool queimar por sua garganta e aquecer seu corpo inteiro. Não é o suficiente, mas bem, uma ótima maneira de começar a funcionar.
  — Não se cansa de ser patética, gatinha? — Beatriz sussurra no ouvido direito de , perigosamente real dessa vez. Ecoa como um ronronar, e, ao mesmo tempo, o ruído de unhas contra uma lousa. Arrepia os pelos da nuca dela e envia uma onda de intensa adrenalina por sua corrente sanguínea, gélida, como se lascas de gelo se desprendessem do fundo de sua alma e se movessem por seu sangue. Sua boca fica seca e ela tem a sensação vertiginosa de que irá vomitar. aperta com força o gargalo da garrada de vodca, os nós de seus dedos ficando pálidos com a força que ela imprime no gesto, mas não responde. Não é real. Beatriz não está de fato ali. É uma fantasia, ela sabe, mas não menos dolorosa. Uma ilusão causada por sua própria abstinência.
   inspira fundo, tentando desligar aquela parte de sua mente, mas a risada de Beatriz, estranhamente desconexa e distante, envia mais uma onda de arrepios pelo corpo inteiro de , a fazendo engolir em seco, tentando desesperadamente encontrar uma maneira de a silenciar. Pelo canto do olho, pode ver o fantasma de Beatriz sentado em uma das camas, pernas cruzadas, um sorriso afiado enquanto a cabeça dela pendia para a esquerda, em um ângulo não natural. O osso projetando-se para cima, embora, desta vez, Beatriz tivesse a mesma idade que . Os olhos castanhos doces de Beatriz, um completo oposto aos de . Ela prende a respiração, encarando fixamente o espelho.
  — Você sabe que Karam te mandou aqui apenas para que você morra, certo? Ele não está querendo seus serviços, gatinha, ele só quer te matar. Você é um problema, para todo mundo, que diabos você achou que conseguiria aqui?
   não responde. Ela sabe que Beatriz tem um ponto, e fazia muito mais sentido Karam a ter enviado para sua própria morte naquele maldito inferno do que, de fato, porque ele havia encontrado um resquício de misericórdia e havia oferecido a a chance de ao menos conseguir um pouco mais do remédio que ela precisava. Doc não tinha misericórdia.
   fecha os olhos com força, ela sabia que era uma armadilha desde o início, mas bem, há ainda uma parte de sua mente que tem a esperança de que fosse apenas uma possibilidade. Bem, é o que é, e pouco poderia fazer algo agora senão executar a ordem que lhe foi dada. Morta ou viva, o trabalho iria fazer, isso você poder ter certeza.
  — Own, e pensar que este é o seu melhor? Que perda de tempo você é, gatinha.
   prende a respiração, ignorando as provocações de Beatriz, enquanto marcha na direção de Cortez. O cheiro pungente de sexo, suor e algo estranhamente artificial, incomodando o nariz dela, ao puxar para fora de seu caminho um dos homens mascarados de coelho, observando-o inexpressiva, quando ela acerta com o fundo da garrafa de vodca a cabeça do mesmo, observando-o desabar no chão, inconsciente. faz uma careta, os olhos dela erguem-se para encontrar os olhos de Cortez, que evidenciam uma surpresa por vê-la ali.
  Claro, o cenário não era exatamente apelativo para – havia algo de repulsivo em ver o pau de Cortez tão de perto. força um sorriso verdadeiramente falso para Cortez – sem se importar em prestar um papel na frente de todos de cordialidade e educação, já que o outro igualmente não era lá seu maior fã –, inclinando a cabeça suavemente para o lado enquanto dava de ombros desdenhosamente, com uma ponta de tédio. solta o restante da garrafa no chão, estrategicamente chutando-a para trás, enquanto ergue as duas mãos para cima, para convir uma inocência a qual ela tampouco possuía.
  — Impressionante. Quando eu penso que você não pode ficar pior, você sempre consegue me surpreender, Cortez.
  Miguel solta um gemido baixo, meio uma risada, meio visível desconforto apesar de permanecer cinicamente agindo como se ela não estivesse ali ao recostar-se contra a cadeira que lhe servia quase como um trono pessoal enquanto assistia a orgia, languidamente movendo sua mão para cima e para baixo de seu pau em longas e lentas carícias – se por exibicionismo ou apenas para irritar , era difícil compreender, e tampouco ela poderia dizer que se importava muito com isso. o observa inclinar a cabeça para o lado, observando-a com uma expressão desdenhosa, apesar do sorriso preguiçoso preso aos lábios.
  — Puta merda, o que cê quer aqui, hein? Achei que da última vez que a gente conversou eu tivesse sido claro contigo, se não me desse o que eu queria, não precisava vir aqui.
   estreita os olhos, erguendo o queixo levemente em um desafio silencioso enquanto os cantos dos lábios dela quase se curvavam em um meio sorriso desacreditado. Porra, ela odiava assassinatos pelo trabalho, mas o prospecto de finalmente dar a surra que Cortez merecia era muito, muito tentador. Ainda assim, ela precisava pelo menos descobrir quais eram as intenções de Karam ao manda-la para a morte, e por que de repente Cortez e Karam estavam em lados opostos. Algo não estava certo ali, e não era nem idiota de não descobrir. Não porque faria alguma coisa, na verdade ela só queria saber para conseguir se mandar do meio daquela confusão o quanto antes. Quase três anos escondendo-se naquela maldita cidade, cuidadosamente mantendo-se fora dos radares e agindo pelas sombras, ela havia se esforçado bastante para foder com tudo simplesmente porque dois idiotas estavam brigando de galo. Ou o que quer que isso significasse, meio que não se importava.
  — Eu não vou dar para você, Miguel. Cê não é o meu tipo.
  — Vá se foder, . Eu sou o tipo de todo mundo. Além disso, não é sobre comer você ou não, é sobre lealdade. Sobre submissão — Cortez resmunga, o sotaque mexicano levemente mais pesado do que o normal, denotando sua impaciência, fosse por simplesmente vê-la ali, ou por ter que lidar com ela.
   faz uma careta, com nojo. As merdas que ela tinha que ouvir às vezes... salubridade deveria ser um critério de se estar vivo a essa altura, huh? Cortez inclina a cabeça para trás, estreitando os olhos, ao observá-la.
  — Cê tá querendo mais do meu remédio, né não? Porra, mas aí... ah, , nem mesmo você consegue ajudar a si mesma — Miguel solta uma gargalhada que atinge em cheio a alma de como lâminas em brasas. Sua alma não, pior, seu orgulho.
   abaixa lentamente as mãos, prendendo a respiração enquanto lança um olhar ao redor das outras pessoas, tirando um breve tempo para analisa-las com cuidado. Três seguranças camuflados, presos nas jaulas, mas estão atentos. Há mais dois na cama à esquerda, mas assumindo que um penetra o outro enquanto o segundo tem seu pau chupado por uma das strippers que outrora dançava, era difícil que fossem perceber as intenções de até que ela já as tivesse executados. Altos, musculosos, mas não exatamente fortes. Eram mais aparência do que habilidade, e isso era estupido, senão imprudente. A cara de Cortez, huh? Bom. Bom, ela poderia trabalhar com isso.
   dá de ombros, tentando manter sob controle suas próprias emoções. Não fode com isso, ela pensa consigo mesma, exasperada. Ela queria arrebentar Miguel na porrada? Com certeza, nem por isso ela era estúpida para fazer algo sem pensar ou calcular direito todas as possibilidades. engole em seco, dando instintivamente um passo para trás quando Miguel se coloca de pé. Um movimento discreto, quase imperceptível do pulso direito de e a mão dela repousa na pistola automática enterrada no cós de sua calça jeans, atrás de suas costas. Miguel por um segundo permite seu olhar percorrer pelo corpo inteiro de , que se coça para acertá-lo de uma vez. Não, ainda não...
  — Olha, eu tô me considerando muito bondoso hoje, então vou te dar uma chance de conseguir o remédio que você precisa. Viu? Eu sou um cara muito legal, então vamos fazer o seguinte: Você fica de joelhos agora, e usa essa boquinha adorável para....
  A cabeça de Miguel explode.
   arregala os olhos, congelando no lugar enquanto leva cerca de um minuto para que ela perceba o que diabos está acontecendo. Um disparo limpo, vindo da sua esquerda, certeiro, bem em sua testa, abrindo um buraco considerável. Sangue se choca contra o rosto de , respingando com alguns pedaços contra a pele dela, quente, pegajoso, e quase teria vomitado se não tivesse um problema maior. Puta merda. Fodeu. Fodeu para um caralho! O corpo de Miguel desaba com um baque molhado contra o chão, e é somente aí que os gritos começam. arregala os olhos, lançando-se na direção do chão, instintivamente rolando por sobre seu ombro esquerdo, a fim de desviar de quaisquer ataques vindo de suas costas, arrancando a pistola automática de sua calça e então a empunhando no segundo que ela se volta para trás.
  O tempo parece desacelerar ao redor dela.
  Sua respiração estava pesada, irregular, e seus ouvidos estavam zunindo. A sensação de adrenalina percorrendo sua corrente sanguínea parecia uma mistura de veneno e gelo, sufocante, acelerando seus batimentos cardíacos ao ponto que ela conseguia ouvir apenas sua pulsação. O tremor que atinge seu corpo é duramente suprido por ela enquanto ela empunhava a arma na direção do maldito homem com máscara de Onni. se tenciona no segundo que a arma se inclina levemente para a direita, agora, mirada na cabeça de , sua respiração se perdendo enquanto ela tentava buscar em sua mente de onde que o conhecia. Não, não, não, porra! De onde que ele era familiar?! De onde ela havia o visto anteriormente?! Ela começa a se questionar mas então a realização a atinge como uma onda gelada e assustadoramente sufocante. Merda!
  Não... não podia ser... mas ele...
  E no entanto, lá estava. Os olhos queimando o rosto dela. A mistura de raiva e algo mais sombrio espiralando pelas íris familiares enquanto as pupilas se dilatavam. A postura impecavelmente errada e arrogante, segurando a arma apenas com a mão esquerda, como se o empuxo da arma não fosse nada para ele, os músculos firmes movendo-se por baixo de sua pele, marcadas com as inúmeras tatuagens, os cabelos ... merda, merda, MERDA! Como ela poderia ter sido tão idiota de não ter percebido aquilo antes. Ela havia achado que era apenas uma alucinação, mas ali, bem em frente dela, a última pessoa que queria encontrar naquele momento, o filho da puta descarado, maldito e infernal que ela havia jurado nunca mais ver outra vez em toda sua vida, parado a poucos passos de distância dela, com a arma em mãos, apontando, agora, diretamente para . A merda do homem que havia fodido com a vida dela – de certa forma –, depois de tantos anos. Porra, ...
  Ele dispara.
   solta um grunhido alto, lançando-se para a esquerda, a fim de escapar da linha de tiro de , mas não consegue porque a bala acerta de raspão o ombro direito dela. A arma de escapa de suas mãos. , rosna baixo, tentando conter sua própria raiva e frustração, disparando não na direção de , mas propositalmente na direção das paredes de vidro que compunham as piscinas eróticas e tingidas de vermelha de Cortez. Gritos ecoam pelo espaço, mas nem mesmo presta atenção nisso. Os seguranças se livram da névoa de seus próprios prazeres ou realidade paralelas, e avançam na direção dos dois, e trinca os dentes com força, porque agora as coisas iriam ficar feias.
  A intenção era matar Cortez de maneira limpa e se mandar antes que os seguranças percebessem o que havia acontecido. Isso geraria menos suspeita ao ocorrido, e mais suspeita dentro da própria instituição. Afinal, não importava quem havia matado Cortez quando era praticamente uma concepção pessoal e bem presente que competições sob o comando da parte narcótica das operações de Doc eram rotativas e disputadas. Sempre haviam alguém disposto a assumir o lugar do predecessor. Era a cobertura perfeita. entrava, matava Cortez, saía, provava um ponto para Karam e então desapareceria novamente – talvez fosse para a Bahia de novo, sua terra natal, talvez fosse para São Petersburgo sem olhar para trás, não importava. Mas não. É claro que não! Porra não! precisava aparecer, não é?! Filho da puta desgraçado! E como sempre precisava fodê-la. Com a atenção dos seguranças agora nos dois, aquilo iria virar uma bagunça generalizada, e quaisquer chances que tinha de conseguir o remédio que ela precisavam, agora, estavam completamente descartadas.
  Porra, !
   avança no primeiro segurança dos cinco, agarrando-o pela mão e mordendo-o com força, os dentes fincando na carne e arrancando sangue, enquanto ela usa a mão esquerda para tencionar o pulso do segurança, quebrando-o, antes de o atingir com violência no meio das pernas, e então apoiando o braço direito sobre o pescoço do mesmo, usa toda a força que ela tem para empurrar a cabeça do segurança contra o encosto da cadeira, empurrando o segurança um pouco para trás, o suficiente para conseguir atingir o pescoço do mesmo, ainda prendendo com a mão esquerda o braço do homem, antes de passar o braço por cima da cabeça dela, fazendo-o curvar-se para a frente e roubar a arma no coldre do segurança. Antes que mais alguém possa reagir, imediatamente dispara nos outros dois seguranças. Acerta consecutivamente: perna do segundo segurança, o peito do terceiro segurança, e então a cabeça do segundo segurança.
   solta um grito baixo, girando o primeiro segurança em seus braços para usá-lo como escudo quando mais disparos quase a atingem de relance. arregala os olhos, agora genuinamente irritada. Ela ia matar aquele filha da puta desgraçado! Maldito dos infernos! empurra o corpo do primeiro segurança no chão, no momento em que os olhos dela se encontram com onde está, do outro lado da sala, despachando o último segurança de Cortez com um disparo preciso na cabeça e chutando-o com o desdém de sempre para fora de seu caminho.
  Então, tudo fica em completo silêncio.
  Tirando pela respiração irregular dos dois, e o eco abafado da música bem marcada pelas paredes, não há mais barulho de nada. trinca os dentes com força sentindo a raiva atingir sua corrente sanguínea como veneno enquanto voltava a empunhar sua arma roubada. Os olhos cintilam como os de um felino enquanto ela sente a raiva, impaciência, frustração e acima de tudo o desejo de vingança percorrer por seu corpo, como chamas, a consumindo lentamente, mas de maneira avassaladora enquanto ela jogava para o inferno a própria cautela e mirava na cabeça de . tenciona a mandíbula com força, observando-o com olhos fixos, intensos, sem deixar escapar nem mesmo os mínimos detalhes de sua postura.
  Ela vê tudo.
  Como o peito dele sobe e desce pela respiração pesada e irregular, evidenciando uma ponta de exaustão que não deveria estar o afetando tanto assim – quase sorri com desgosto com a visão, olha só, se o grande diabo não estava ficando velho a essa altura. Como ele estala o próprio pescoço com um grunhido baixo antes de endireitar os ombros largos, a maneira com que leva a mão direita em direção ao próprio rosto e arranca a máscara de sua face sem muita cerimônia, jogando-a aos pés de , enquanto seus olhos finalmente encontram-se com os dela.
   engole em seco, sem perceber que sua respiração se perde em algum lugar de sua garganta por uma fração de segundos, mas imediatamente culpa o fato de ela estar com raiva e desesperada para acabar com a vida do desgraçado, os dedos de se curvam tentadoramente ao redor do gatilho enquanto ela mantém o antebraço firme, segurando-se de não mover nem mesmo um milímetro sequer que a fizesse perder aquela merda de tiro. Não. Desta vez, estava na porra da mira dela, e a vida dele seria dela.
  Era dela. Ele devia a ela, porra!
  — Eu vou matar você. — A voz de não é mais alta que um sussurro enquanto ela cospe as palavras como se queimassem em sua boca; como se fossem puro veneno. Não é uma ameaça. nunca fazia ameaças, era pura e simplesmente um aviso. Ela iria matá-lo. Sua respiração está acelerada, e irregular, ela sente os músculos de seus ombros e braços tensos, sentindo o tremor traiçoeiro aumentar gradativamente enquanto ela segurava com mais e mais força a arma. Foda-se que ela estivesse tremendo, suas mãos não estariam.
  Os olhos de nunca estiveram mais quanto naquele momento. A cor profunda parecia se destacar ainda mais com a iluminação avermelhada daquela maldita sala de Cortez, fazia com que notas de tons calorosos surgirem pelos olhos dele, mas não havia nada de quente em seu olhar. Não, longe disso. Sequer poderia dizer-se que havia uma alma por trás daqueles olhos – como se pudesse dizer o que tinha ou não uma alma. As pupilas dele se contraem antes de se dilatarem, enquanto algo sombrio percorre o rosto dele. odeia o que vê, porque percorre o corpo dela como chamas, seu coração dispara e ela pode sentir a adrenalina deixando-a mais atenta e sensível a tudo ao seu redor. E a pior parte? Ela não consegue desviar os olhos dos dele. Como se tudo estivesse desaparecendo ao seu redor, recolhendo-se a sua insignificância e desmanchando no plano de fundo. E então, há somente à sua frente, e a fúria enlouquecedora em seu peito. E não diz nada, por um longo momento, apenas a encara em completo silêncio. As sobrancelhas grossas dele se unem em uma expressão que parecia espelhar a raiva que sentia, mas havia algo a mais naquele olhar. Algo sombrio. Perigoso. Ameaçador. Como se ele estivesse a acusando de algo. Filho da puta. Se havia um mentiroso ali era ele, não ela. Se sequer tivesse medo dele...
  Ele havia envelhecido. Os cabelos agora eram maiores do que antes, na altura de suas maçãs do rosto, altas e elegantes, adornando a face dele, ainda loiros pálidos. A mandíbula bem pronunciada, quadrada e cortante, agora era coberta por uma camada de barba bem aparada, porém mais grossa do que no passado, e talvez fosse a iluminação, ou talvez seja simplesmente porque era boa em memorizar pequenos detalhes, mas, em meio ao tom levemente mais escuros de seus pelos faciais, ela podia ver alguns fios grisalhos já. Não muito, mas o suficiente para ter feito quase rir com desdém da passagem do tempo, se o olhar de não estivesse fixo nela daquela maldita forma.
   a observa de cima a baixo, como se não desejasse escapar nenhum maldito detalhe, antes de parecer trincar sua mandíbula com um pequeno estalo, um músculo saltando no canto da mandíbula bem marcada e cortante como uma navalha dele, a raiva perceptível na maneira com que ele analisa, primeiro a arma que agora empunha, e então, o rosto dela. engole em seco, esperando que ele aponte novamente a arma dele para ela, mirando na merda de sua cabeça outra vez. Ele havia atirado da primeira vez, certo? Então que fizesse de novo! Ela espera que ele dê a ela a desculpa que ela desesperadamente tentava encontrar! Que ele lhe oferecesse a merda da justificativa que ela precisava para executá-lo ali e agora. Ele iniciou. Ele começou toda aquela merda. Não ela. Ele. Mas é claro que ele não faria isso, não é?! Era a porra de afinal! Ele nunca faria nada que fosse para facilitar a vida de . Não porque ele se importava com ela, porque há muito tempo os dois já haviam estabelecido que não havia nada além de mutuo desprezo e ódio entre eles, mas porque havia algo de sádico dentro dele que gostava de observá-la se contorcer. Que gostava de tortura-la até a beira da loucura. E puta merda, se ele não se usaria de tudo, se não se aproveitaria de tudo para conseguir aquilo.
   o odiava.
  — Tá esperando o que então, mon Coeur? Vá em frente, mate o seu marido diz lentamente, o sotaque Cajun se sobrepondo em sua fala, fazendo com que as palavras soassem levemente mais ásperas, mais arrastadas e com o vago ritmo francês. Como um perigoso ronronar, estranhamente atraente, e, ao mesmo tempo, assustadoramente baixo e gutural para a fazer ter certeza que, seja lá quais eram as intenções dele, não eram boas.
   sente nojo pela maneira com que o corpo dela responde ao tom de voz dele. A familiaridade. O arrepio traiçoeiro. retira a munição de sua arma, jogando-a no chão, e com um sorriso torto, desprovidos de quaisquer traços de humor que não fosse apenas uma raiva cuidadosamente contida, afiado, ele estende os braços, abertos em paralelo, enquanto o olhar dele queima o rosto de em um desafio silencioso. O queixo levemente erguido, a expressão cínica evidenciando uma ponta de zombaria a .
  Ele não acredita que ela vá atirar.
  Está debochando de , a provocando silenciosamente, seja pela maneira com que a olha, ou como exibe sua linguagem corporal a ela. não consegue conter um riso baixo, nasalado, desprovido de quaisquer traços de humor em sua voz, se não puro desprezo. Os olhos de acompanham até mesmo o mínimo movimento dele, buscando a pegadinha, buscando a armadilha que certamente a espera, sem perder absolutamente nada. Nunca mais. Oh, se o filho da puta não havia de fato a subestimado dessa vez.
   não hesita. Ela atira.

•••

   | ANOS ANTES
Nova Orleans, EUA.

  — Tango na mira. Aguardando ordens.
   desliga a linha geral de comunicação de seu rádio com um pequeno chiado, enquanto levava em direção aos lábios o chiclete que o Sargento Graham havia oferecido mais cedo antes da operação em questão se iniciar. Coisa ruim, a pior que tinha, o gosto de melão era repulsivo, e comumente a fazia ter ânsia lembrando a algo quente quando doces deveriam ter a impressão de serem gelados para , mas ainda assim, servia para conter sua própria ansiedade enquanto aguardava as suas ordens, então, para alguma coisa servia afinal. Não era muito, mas era o que precisava, e se tivesse que aturar um pouco do sabor de melão, pelo menos ela poderia se conformar posteriormente em poder limpá-lo de sua boca com alguma bebida alcoólica quando estivesse se retirando de volta para a base. exala lentamente, baixinho, voltando a inclinar a sua cabeça para a esquerda, a fim de apoiar melhor sua sniper em seu ombro direito, enquanto mantinha o braço direito completamente estável, firme, quase com uma precisão cirúrgica. não poderia errar.
  Puta merda, ela odiava o gosto de melão.
  Os olhos dela acompanham atentamente os movimentos de seu alvo. Ziyad Karam. Homem difícil de encontrar se quer saber, mas bem, fazia parte da missão, e ela deveria cumpri-la, custasse o que custasse. aperta os lábios em uma linha, inspirando fundo enquanto observava o negro sorrir educadamente e cumprimentar um Capitão do exército afastado com uma ponta de desinteresse. A questão toda ali não era nem mesmo a corrupção óbvia em toda aquela situação, mas sim o vazamento de informações. Capitão Abbott havia sido destituído de sua posição fazia alguns meses, após ser flagrado em uma situação no mínimo comprometedora com um dos recrutas nos chuveiros. Não que aquilo não acontecesse com frequência, o problema foi Abbott ser pego. Isso e a sucessão de missões falhas dele deram a desculpa perfeita para que o Coronel Murray desse a Abbott a chance de se retirar silenciosamente de sua posição e manter um low profile em alguma outra base distante da de Londres. O idiota havia encontrado uma excelente oportunidade nos Estados Unidos, afinal, Abbott ainda era um soldado de elite, como , então não teria problemas em trabalhar em nome de outras pessoas se isso fosse pagá-lo bem. Mas quando Murray demitiu Abbott, Abbott saiu com os arquivos deles. E agora essa merda de arquivos estava nas mãos do pior criminoso de Nova Orleans.
  Doc.
  Mas a motivação de não era apenas o dever, e tampouco recuperar as informações dos outros soldados. Não, longe disso. tinha um único propósito e nada mais: fazer os arquivos dela sumirem de vez. A última coisa que precisava era que os militares finalmente começassem a conectar os pontos e descobrissem quem ela era de fato, e por que sua excepcionalidade com armas e combate não provinha de pura genialidade natural, e não treinamento intensivo de anos confinada a uma luta por sua própria sobrevivência sob a tutela de um completo maluco. Não. morreria primeiro antes de deixar que mais alguém descobrisse quem ela era de fato.
  — Oi, Butcher. Há quatro horas de você. Fique esperta.
   revira os olhos com a voz de Graham pelo rádio, mas não responde nada mais do que apenas um resmungo em concordância inteligível. move a mira de sua sniper na direção de onde Graham havia avisado para que ela ficasse vigiando, e observa o grupo de quatro homens de Doc caminhando rapidamente em direção a entrada do hotel temático e turístico de Nova Orleans, tencionando a mandíbula dela.
  — Os tenho na mira, senhor.
  Um chiado, e então, Tenente Logan diz:
  — Verde, Butcher.
  E não precisa ouvir mais nada. Os músculos dos ombros dela se tencionam, assim como o de seu antebraço direito, preparando-se para amortecer o repuxo da arma enquanto o indicador dela enrosca-se firmemente no gatilho. Ela é rápida e precisa, encontrando os momentos no meio das ações para executar os soldados de Doc, esperando-os se afastarem, ou então, virarem de costas para atingir com precisão a nuca ou a têmpora. Os corpos caem no chão com baques molhados e surdos, que ela não escuta, mas não precisa se preocupar por muito tempo, quando, através da mira, observa Graham e Harris dispararem pelas escadarias, retirando os corpos do caminho enquanto alguns civis, confusos e curiosos são orientados para se retirarem dali por um exasperado Walker.
  — Boa, Butcher.
   sente um pequeno sorriso se formar pelo canto dos lábios dela, mas ela não responde, voltando a mira de sua arma novamente para onde Doc e Capitão Abbott estavam. inspira novamente, ajeitando a arma em seu ombro direito novamente, enquanto unia as sobrancelhas concentrada. Ela tinha Abbott em sua mira. Posição perfeita, bastava apenas Tenente Logan autorizá-la e a ameaça seria completamente eliminada. Mas Logan só o faz três segundos tardiamente.
  Quando a voz de Logan ecoa autorizando a executar o antigo Capitão das Forças Especiais, está congelada no chão, porque, naquele pequeno espaço de tempo, ela sente o peso de algo contra suas costas, pressionando-a contra o concreto do telhado em que ela estava escondida. O peso de uma pessoa, sobre si. Uma mão agarra os cabelos dela por sua nuca, um golpe brusco que praticamente puxa sua cabeça para trás, e um grunhido inconsciente escapa por entre os dentes cerrados de , enquanto a respiração cálida se choca contra a parte de trás de sua orelha direita, mandíbula e lateral do pescoço. Cheira a sândalo, pimenta e cigarros. A respiração é cálida contra sua pele, mas regular, controlada, e consegue sentir o cano frio de alguma coisa repousando na lateral do pescoço dela. contém um praguejar baixo, ao perceber que deveria se tratar de uma arma. Porra! Ela foi pega!
  — Se você se mexer, eu vou explodir a sua cabeça, cher, então, seja uma boa garota e fique parada. — A voz, carregada pelo sotaque cajun, é baixa e gutural, como um ronronado e, ao mesmo tempo parece vibrar pelos ossos de de uma maneira inconveniente. Não é ruim de ouvir, mas não há nenhuma ameaça na maneira com que ele fala, apenas um aviso do que ele irá fazer. pode sentir os lábios dele pressionados contra a orelha dela, enquanto comanda-a a avisar seu time que ela havia perdido o alvo, mesmo que Abbott ainda estivesse na mira. A arma pressionada na lateral do pescoço dela é empurrada um pouco mais, o suficiente para machucar e lembrar do que estava em jogo.
  Porra... agora ela estava fodida.


  Nota da Autora: novamente dizendo, essa fic não deve ser levada como parâmetro para relacionamento! Quando eu disse Enemies to Lovers, eu quis dizer Enemies, aqui a gente não aponta a faquinha no pescoço do outro não, a gente tenta explodir a cabeça do outro na competição quem morre primeiro. Eu sei o que eu to fazendo? Não. Eu tenho um processo, e eles VÃO chegar ao ponto de ebulição de LOVERS, sim, qual é? Confia no processo, dá um voto de confiança em mim. SE VOCÊ É DE SÃO PAULO, por favor, cuidado com os trens! Enfim, é isso aí, a gente se vê na próxima att, e Lelen, amiga, tu merece salubridade por betar as minhas fics. Sério.
  Esta fic é escrita de madrugada, quando estou sobrecarregada com estímulos externos e preciso de uma forma de me regular, portanto, perdão antecipado por incoerências, erros gramaticais e algumas confusões no texto, meu e-mail está sempre aberto para discussões e opiniões.

Capítulo 03

| ANOS ANTES
  Nova Orleans, EUA.

  Ele sabia que ela iria quebrar.
  Estava sozinha, escorada pesadamente no balcão do bar melancolicamente observando o próprio copo em um vestido vermelho carmim de vingança, apertado na cintura, curto nas coxas com uma fenda na lateral esquerda, ressaltando a bunda, os cabelos loiros pendendo pelo ombro esquerdo em algum tipo de penteado desalinhado propositalmente para parecer sensual, mas eram os olhos dela que revelavam a história. Olhares languidos na direção do idiota dançando com a morena na pista de dança, a maneira com que as lágrimas se acumulavam ao redor de seus olhos enquanto ela pateticamente acompanhava como a mão do idiota do namorado dela deslizava das costas da morena para a parte baixa das costas da morena que supostamente era apenas a amiga dele – embora fosse perceptível para qualquer um que não era este o caso.
  O nome da loira era Ava Casey. O idiota era Noah Walker. E estava apenas por Noah, mas uma vez no inferno, por que não diabos roubar o trono do diabo e colocar fogo em todos os ciclos, não? De especial Noah não tinha nada senão o sobrenome certo e o fato de que era o primogênito de um empresário grande, logo, em alguns meses iria assumir a presidência de uma companhia que o pai havia “construído” do zero, e manter a imagem de “jovem bem-sucedido sozinho” na internet porque, bem, aquele discurso sempre vendia mais. É claro que aquilo tudo era apenas um estratagema do pai de Noah; uma tentativa de manter uma marionete na cadeira da presidência enquanto o pai dele tornava-se investidor e influenciava os outros stakeholders e investidores para aumentar seu controle sobre a empresa e não o contrário. Ninguém iria querer um idiota que só se importava com seguidores na internet, objetos luxuosos e tinha uma vida boêmia no topo de uma empresa se este não fosse ser apenas um “garoto propaganda”.
   ajeita a lapela de seu casaco de trincheira novamente, aproximando-se de onde Ava Casey estava, os olhos dele permitindo-se analisa-la no conforto de sua própria insignificância onde ela não perceberia que estava fazendo, tentando ter pequenos vislumbres da personalidade dela e de suas fissuras. Não leva muito tempo para que os identifique: no fim dos dias todomundo queria ser apreciado. Todo mundo desejava receber atenção e ser visto por alguém. Todo mundo queria ouvir que era especial e que alguém os amava. E migalhas tornavam-se banquetes se você soubesse dizer as palavras certas para alguém desesperado e faminto por tanto tempo. E na posição de vulnerabilidade que Ava estava, ver alguém que se dizia amar rejeitando-a publicamente enquanto o desespero para convencer-se de que aquilo não era verdade – o desespero para acreditar que as palavras de carinho, os afetos e demonstrações haviam tido significado, que alguém que havia dito que a amava nãopoderia machucá-la se ela não merecesse – a deixava exposta e aberta para qualquer verme se aproximar.
  Se não era, então, a sorte de .
  — Sabe, uma mulher como você chorar por um idiota como aquele parece apenas desperdício — resmunga dando de ombros com desinteresse enquanto se escorava preguiçosamente no balcão ao lado da loira.
   inclina a cabeça para o lado, observando-a em silêncio, a maneira com que a maquiagem era visivelmente mais suave do que a rival morena na pista de dança, roupas femininas que definitivamente não lhe eram interessantes, mas uma forma de agradar Noah. alça a margarita de Ava com um interesse fingido, um sorriso torto surgindo por seus lábios ao retirar o guarda-chuvinha de enfeite da bebida intocada, arrancando-o sem muita cerimônia, e então colocando sobre sua orelha esquerda, os olhos estreitando-se por um momento, analisando-a com curiosidade antes de virar o copo de uma vez, tomando toda a bebida.
   então encara Ava novamente, apenas observando-a como ela reagiria a ele. Ele pode ver uma ponta de surpresa por sua atitude, desconfiança, curiosidade e, acima de tudo, interesse velado. era o exato oposto de Noah e tinha feito questão de manter sua atenção completa na loira que deveria estar se sentindo péssima durante a noite inteira. Era quase mais fácil do que deveria. oferece um sorriso charmoso a Ava, os olhos cintilando como os de um gato enquanto ele a observa, e a vê, à contragosto, sorrir em retorno.
  — Olha, eu tive que tomar a sua bebida, que é horrível a propósito, de que outra forma eu poderia encontrar a desculpa perfeita para te pagar uma?
  Ava solta um riso sincero e até se sentiria culpado se realmente se importasse com ela, mas ela era, infelizmente, um meio para os fins que desejava, então, é fácil para continuar com aquele jogo sem se importar muito com como iria acabar do outro lado.
  — E isso já funcionou com alguém antes? — questiona Ava, lançando um olhar curioso na direção de que dá de ombros eloquentemente, com um sorriso torto.
  — Funcionou com você agora?
  Ava aperta os lábios tentando ocultar seu sorriso, mas pode ver os cantos dos lábios dela se curvando enquanto Ava nega com a cabeça lentamente, e ele o retribui, quase sincero dessa vez, rindo baixo.
  — Não, então não funcionou com ninguém, ainda — responde com bom humor, o sotaque cajun dele soando um pouco mais pronunciado em sua voz, e ele pragueja mentalmente por isso porque não deveria deixar pistas fáceis de serem identificadas, então ele toma o cuidado para manter o sotaque falso de Nova York presente, deixando sua voz mais arrastada e demorando um pouco para formar suas palavras, tentando apagar a parte com os erres e Os ficavam mais acentuados. — Mesmo assim, eu tomei sua bebida, amor, me deixa te comprar outra, pelo menos só para repor o que eu bebi — oferece propositalmente chamando-a de amor, mas não para encantar a loira, e sim para conseguir a atenção de Noah.
  Os olhos de deixam o rosto da loira por um breve momento e encontram-se momentaneamente com o olhar da morena nos braços de Noah, observando-a erguer uma sobrancelha em uma pergunta silenciosa para enquanto ela movia os quadris em ritmo com os de Noah, mas a ignora completamente, o olhar dele deslizando silenciosamente para repousar no idiota atrás da morena. Bom, a atenção de Noah agora estava presa a ele, exatamente o que queria.
  Propositalmente, se aproxima um pouco mais de Ava, gentilmente colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha dela, observando meio à parte, não como ela cora sob seu toque, como as pupilas dela se dilatam e como a respiração dela se perde em sua garganta, não, ele observa os diamantes presos na estrutura delicada em formato de cortina do brinco. No mínimo dez mil aquela merda. sente raiva, mas se contém com uma carícia mais suave do que ele faria normalmente, ao deixar as pontas dos dedos dele deslizar pela lateral da mandíbula de Ava. Um tremor percorre o corpo da loira – bom, muito bom. Ele se inclina na direção dela, os lábios roçando, cálidos, contra a orelha dela, apenas perguntando a loira qual era a bebida que ela queria, tentando convencê-la a tomar algo mais forte – seria mais fácil se ela estivesse completamente bêbada. Ela cheirava a algo entre morango e alguma coisa mais doce, como algodão doce, puro açúcar, um perfume gostoso até, mas muito doce para , forte demais para não se prender ao casaco de , mas isso fazia parte do jogo. Os olhos de dele, todavia, não haviam se desviado em nenhum momento de Noah, e puta que pariu, se o idiota não estava começando a ficar enfurecido. O sorriso torto de aumenta um pouco apenas, agora, direcionado somente para Noah. Provocando-o. Desafiando-o.
  Não importava que estivesse apenas oferecendo sugestões de bebidas para Ava e mantendo a conversa, apesar do claro flerte, nítido a qualquer um que os ouvisse, até mesmo inocente – como se fosse um. O que realmente importava era a aparência que dava à cena toda. O que ele manipulava para parecer que ele queria que parecesse: que iria foder aquela loira até que ela implorasse por uma pausa para recuperar sua respiração, e Ava iria perceber o quão bem ela poderia estar sendo fodida que, destavez, não iria hesitar em abandonar um cara medíocre como Noah, por algo melhor – algo que era exatamente o que Noah queriafingir que era.
  Puta que pariu, se aquilo não era uma brincadeira de criança. Se eles, como homens, não tinham uma coisa chamada ego para doerem-se genuinamente com algo. Não importava se eles amavam uma mulher ou não, isso era apenas uma característica adicional ao longo do caminho, não, não, o que realmente importava era simples: o quão afagado ou dolorido o ego, a sensação de território e possessão, seria atingida. E mesmo que Noah estivesse fazendo de tudo para humilhar Ava publicamente e testar quais eram os limites do que ela aceitava ou não – o quanto ela incondicionalmente “amava” Noah –, Noah não iria deixar que nenhum outro homem se aproximasse de Ava com alguma intenção, porque Ava era o brinquedinho de Noah e mais ninguém. Era quase fácil demais.
  Veja bem, não fazia as regras do jogo, ele apenas jogava-os à sua maneira. Era o que era. Simples assim. Um meio para que ele conseguisse o que ele queria.
  Ele não estava ali para ser o herói.
  Ainda com o sorriso debochado preso nos lábios direcionado somente para Noah, permite-se prender sua atenção e olhar, agora, a loira ao seu lado. Não oculta a maneira com que até mesmo a objetifica, desavergonhadamente admirando o decote dela, ou a maneira com que ela joga a cabeça para trás em uma risada genuína a alguma piada que ele faz, ou como aos poucos – na verdade mais rápido do que deveria – Ava começa a genuinamente aceitar os flertes e os retribuir. Ela está no segundo copo de whisky quando Noah finalmente perde a paciência e se aproxima de onde Ava e estão. Se não precisasse manter a seriedade para convir veracidade na situação, ele teria rido alto, mas os olhos de estão cintilando como os de um gato, intensos e sem ocultar o divertimento sombrio que pairava por seu olhar.
  Um riso silencioso desprovido de quaisquer traços de humor escapa pela garganta de , baixa e controlada, quando Noah, em um grande momento de machão, agarra a lapela de seu casaco de trincheira e o puxa bruscamente para longe de Ava. Como se isso fosse o impedir de algo, é tão estupido que tem vontade de rir – como se um empurrão fosse mudar algumacoisa, genial. Então Noah imediatamente avança na direção de , que sequer faz questão de desviar do soco torto e desbalanceado de Noah. A dor explode pelo lado esquerdo do rosto de , o gosto pungente de seu próprio sangue atinge a ponta de sua língua, e por um breve segundo, seu ouvido esquerdo fica amortecido com um zumbido insuportável ecoando ali. ergue as mãos para cima, sem conter o riso baixo pela maneira com que Noah agarra a lapela de seu casaco de trincheira, e se aproxima o suficiente de para que ele possa sentir o hálito azedo de whisky e alguma coisa nojenta que deveria ter sido o jantar que ele havia levado Ava e a morena para aproveitar.
  — Woah! Woah! Segura a mão aí, mon ami — diz com um tom de voz divertido e, apesar de tudo, relaxado, os olhos , incandescentes enquanto Noah pisca, parecendo surpreso pela reação de , mas é claro que ele não irá abaixar a guarda, muito menos deixar de lado o ato de machão, quando havia agora muitos olhares voltados para ambos. Mas o tinha exatamente a onde ele queria. — Qual foi? Eu não estava fazendo nada! Sua namorada e você pareciam entretidos na pista de dança, e achei um absurdo deixar uma garota doce como ela — indica com o queixo na direção e Ava, antes de voltar sua atenção para Noah de novo, sorrindo como o próprio demônio. Os dentes tingidos de vermelho pelo sangue, escorrendo um pouco pelo canto da boca dele e manchando a lateral de sua mandíbula bem marcada e afiada como uma lâmina — sozinha em um bar como esse. Nada errado, d’accord oui?
   sabia que havia atingido exatamente onde doía. O ego de Noah. Porque a própria estupidez do desgraçado ocultava uma verdade simples sobre toda a situação: enquanto ele estava na pista de dança se exibindo com a morena, Ava estava sozinha, e sem a companhia de ninguém, logo, era jogo livre. Bancar o namorado ciumento depois de ter mostrado a todos na pista de dança quem ele preferia, não era apenas uma falha tentativa de provar o quão “homem” ele era, mas só uma mancha para a postura e caráter dele. Mesmo que alguns homens fossem aplaudir por seu ato, não mudava o fato de que, agora, era claro a escória que Noah realmente era. ri baixo, observando Noah tomar uma decisão diferente e então, inspirando fundo, ele estende a mão na direção de em uma apresentação formal. segura a mão de Noah em um cumprimento firme, sustentando o olhar de Noah com uma ponta de desprezo.
  — Acho que você se confundiu, parceiro. Ela — Noah indica com a cabeça na direção de Ava, e estreita os olhos, analisando-a com cuidado. Observando os bolsos, tanto internos de seu terno, quanto os externos, buscando com o olhar rapidamente onde o cartão de entrada de seu quarto estava — é minha namorada. E eu posso ter me distraído um pouco, mas agora estou aqui, então, se for esperto, vai sair daqui imediatamente.
   inclina a cabeça para trás com uma sobrancelha erguida, observando Noah como a cobra que ele era. Não era apenas observar a previsibilidade dos atos que costumava entreter , ah, não, longe disso, era justamente as emoções, as expressões e alterações no comportamento que deixava entretido. Era como observar um experimento, e a intenção de falha ou sucesso não existia de fato, apenas a maneira com que a informação seria absorvida e poderia ser extraída.
  — Saio apenas se ela me disser para sair, parceiro.
  Noah se vira furioso na direção de Ava, e por uma fração de segundos os olhos de se encontram com a morena que Noah estava dançando na pista de dança. Uma comunicação silenciosa ali, mas ignora completamente, aproveitando a distração de Noah, que está discutindo com Ava e chamando-a de quase todos os nomes degradantes possíveis, enquanto Ava faz um esforço grande para não chorar e finalmente aponta na cara de Noah sobre o caso que Noah claramente estava tendo com a morena.
   é rápido, alçando a carteira de Noah com um movimento rápido, e guardando-a dentro de seu bolso antes de erguer as duas mãos para cima, sorrindo com desprezo velado para Noah e acenando desdenhosamente quando o outro agarra a cintura da morena e a arrasta para fora da boate. acena com a cabeça quando os seguranças se aproximam para entender a confusão que estava acontecendo ali, e calmamente se aproxima de Ava, a fim de oferecer um ombro amigo e embebedá-la até que ela não estivesse conseguindo ficar mais consciente, o que, para ser sincero, não demora muito.
  Ava não é pesada, pelo contrário, é estranhamente leve para uma adulta “saudável”, então  carrega-la até o hotel em que ela e Noah estavam hospedados não é exatamente um problema, apenas um incômodo passageiro. usa todo o seu charme com a atendente, se cobrindo no papel de cavaleiro branco à disposição de uma jovem em apuros, pedindo para que a atendente ligasse para o pai de Ava ou algum responsável para avisar que ela estava no quarto de hotel, e oferece para que um membro do staff o acompanhasse até o quarto dela, a fim de não gerar suspeitas ou maior perigo à loira. até mesmo se propõe a entreter a atendente que o acompanha até o quarto de Ava, ouvindo-a contar sobre sua vida, os dois filhos pequenos, como era forte, e tinha um físico atraente, e usa seu charme para dar a entender que seja lá qual fosse o flerte que a atendente estava tentando usar com ele, estava funcionando. Porque mulheres não conseguiam resistir a homens que faziam o mínimo, não é? E se fosse atraente e tivesse músculos, estavam dispostas a lutarem por um baitapartidão. coloca Ava gentilmente sobre sua cama, puxando com cuidado os cabelos do rosto da loira, e então a cobre com o cobertor, antes de verificar se todas as portas e janelas estavam devidamente trancadas, e colocar uma armadilha próxima da porta para que, se fosse bruscamente aberta, o barulho das coisas caindo acordasse Ava.
   força um sorriso charmoso para a atendente dizendo a ela que precisava ir ao banheiro primeiro, apenas para conseguir se livrar da mulher. Girando em seus calcanhares, faz o mesmo caminho, mas na direção do quarto em que Noah deveria estar com a morena, puxando o capuz de sua jaqueta por baixo de seu casaco de trincheira pesado e mantendo a cabeça abaixada, não tentando aproveitar-se dos pontos cegos das câmeras de segurança, mas com o único propósito de que fosse deixar um rastro – e seja realista, ele iria acabar deixando um rastro para trás –, então o faria com o único propósito de aproveitar-se para estender a provocação para quem ele realmente queria atingir.
  O homem que iria eventualmente encontrar aquelas câmeras e que iria desejar nunca ter ficado em seu caminho. Então sorri para a câmera de segurança, um sorriso debochado e sugestivo, antes de retirar a carteira de Noah, e desbloquear a tranca do quarto em que ele deveria estar com a morena com o cartão do hotel, estreitando os olhos ao observar as luzes apagadas.
  A princípio, não há nada. Apenas a visão de um quarto presidencial, realmente luxuoso, deixado no escuro. Sobre uma das mesas redondas da entrada encontra-se um balde de metal com uma garrafa de champanhe e duas taças: uma pela metade e uma completamente vazia. As roupas estão espalhadas pelo chão de carpete bege, a maioria as roupas do idiota, incluindo a gravata nojenta listrada, azul e vermelha em uma das cômodas. para por um breve momento, apenas para alçar a taça vazia de champanhe, levando-o em direção ao nariz apenas para sentir o cheiro, reconhecendo o sonífero ali, antes de jogar a taça de cristal no chão com desdém, atravessando o portal da entrada do quarto e observando, inexpressivo, a morena sentada sobre um Noah completamente desacordado, terminando de algemar os pulsos do homem contra a cabeceira da cama.
  — Porra, ! — A voz da morena ecoa com um pequeno guincho baixo enquanto fecha a porta do quarto atrás de si. — Você não podia ir mais devagar, podia? — Os olhos na direção da mulher, com uma sobrancelha erguida, silenciosamente desafiando a mulher reclamar mais.
  Beatriz havia descartado o vestido que estava usando na boate, e agora só exibia a lingerie rosa escura de renda e com alguns pontos de transparência estratégicos adornando seu corpo. A tatuagem de dragão vermelho envolvendo a lateral da cintura de , assim como enroscava-se no pulso esquerdo de . Para sua sorte, ou talvez fosse somente o senso comum de Beatriz, a morena se cala abruptamente, lançando um olhar hesitante na direção de .
  — Desculpa, eu não quis...
  — Por quanto tempo ele irá ficar apagado? — ignora o que quer que Beatriz queira dizer a ele, aproximando-se de Noah e agarrando o rosto dele, movendo de um lado para o outro enquanto analisava os sinais vitais do idiota antes de larga-lo com desgosto.
  — Doze horas. Como falou para fazer — diz Beatriz apressadamente e a expressão de falso charme de finalmente pode desabar para a neutra, desprovida de quaisquer sinais de interesse que não fosse pelo maldito notebook de Noah, escondido em algum canto daquele quarto.
  — Então se mexe, Beatriz! Eu não pago você para ficar parada! — retorquiu , irritadiço, porque ele conhecia Beatriz e sabia perfeitamente que o fato de ela não ter se importado em vestir o vestido novamente não era porque ela não tinha tido tempo, mas sim porque, depois de tudo, ela ainda estava tentando conquistá-lo. Beatriz se encolhe, visivelmente ofendida e incomodada pela maneira fria com que a trata, mas a ignora completamente buscando pelo quarto o maldito notebook, passando pela morena sem oferecer-lhe outro olhar novamente.
   não era idiota e muito menos cego, ele sabia que Beatriz estava magoada. Ele sabia que Beatriz deveria estar repassando em sua mente o que havia de diferente entre ela e Ava – porque uma completa desconhecida havia recebido mais gentileza da parte de do que qualquer outra pessoa que ele havia convivido em anos a fio. Ele sabia que ela deveria estar sentindo ciúmes e ressentindo-se da cena que havia causado na boate. Mas, bem, não era culpa de tudo isso, era? Não, não, longe disso, a culpa era inteiramente de Beatriz. As fantasias que ela havia criado para si mesma, os desejos e projeções sobre ações que não havia feito questão alguma de alimentar, e mesmo assim, ela havia encontrado uma maneira de alimentar isso. A busca nos gestos simples para maiores significados que, no fim, não passavam apenas de uma gentileza social que não desejava fingir ter se não fosse necessário obrigar-se a ter. As justificativas desnecessárias para atos que só se traduziam simplesmente para: falta de interesse e nada mais. Bem, isso tudo havia sido feito, criado e projetado por Beatriz e Beatriz sozinha. não tinha nenhum interesse na morena que não fosse apenas no que ela podia lhe oferecer – e uma foda casual não era seu propósito ali.
  Beatriz era facilmente submissa. Não questionava. Fazia o que precisava ser feito sem dizer nada. Não era a arma perfeita para , mas suficiente para que conseguisse o que desejava. E melhor, Beatriz não escondia de ninguém que era apaixonada por ele, logo, faria o que pedisse sem hesitar apenas pela possibilidade de ter seus sentimentos correspondidos. Era matemática básica, no fim das contas. As pessoas enxergavam o que desejavam, sempre, apenas aproveitava-se para apresentar a pintura que fosse lhefavorecer. Nada de errado em apenas apoiar a mentira que se contava para si mesmos. Se Beatriz conhecia , então, era estúpida por alimentar tais sentimentos quando o homem já havia deixado muito claro quais eram as intenções dele, e a única coisa que importava a ele.
   encontra o notebook de Noah enfiando no meio de um amontoado de pastas com os nomes de empresas: Percepta, Sterling Financial Advisors, Vanguard HR, Oasis Health & Wellness, que deveria pertencer ao pai de Noah. Empresa principal e as filiais que eles usavam para ocultar o dinheiro quando necessário, pequeno negócios que tinham a proposta de serem “familiares” e em ascensão que cediam apenas o nome e nada mais, nas notas fiscais.
   cerra a mandíbula com força, um músculo pequeno movendo-se sob a pele enquanto os olhos passavam rapidamente pelas informações ali. Algumas informações chamam imediatamente sua atenção: pagamentos para uma instituição de caridade que era apenas a porra de uma fachada e diversas transações para Toronto sob o nome desconhecido de Amélia, no Canadá. Uma ponta de satisfação obscura se mistura com a fúria enquanto ele lança um olhar breve na direção de onde Noah está, acessando o notebook do idiota e em busca das contas bancárias.
  Leva quase meia hora para que consiga limpar todas as contas. Você sempre poderia contar com a arrogância de um idiota para deixar suas senhas a fácil acesso e gravadas no mesmo aparelhos de uso diário. Cinco minutos é o que leva para que o celular de Noah comece a ser bombardeado pelo pai. está prestes a fechar o notebook quando ele finalmente encontra o que estava procurando naquela maldita confusão de contas, senhas e informações relacionadas à empresa. A instituição de caridade que havia sido nomeada a Amélia. apaga todo o rastro que ele havia deixado para trás no notebook, retirando o pendrive de dentro de seu bolso e conectando-o ao notebook com o único propósito de instalar o vírus ali para que fosse identificado como uma falha pessoal de Noah e não uma invasão, antes de guardar o notebook de volta no lugar e levantar-se de maneira abrupta.
  — Cinco minutos. Anda, a gente tem que sair daqui.
  Beatriz solta um pequeno guincho baixo pela maneira com que agarra o braço dela, com mais força do que o necessário, e praticamente a puxa junto consigo, determinado a sair daquele maldito hotel o quanto antes conseguisse. conscientemente desliga a parte de sua mente que deveria estar ouvindo Beatriz, seu coração está martelando contra seu peito, e há algo de satisfatório e terrivelmente viciante percorrendo sua corrente sanguínea enquanto sua mente, rapidamente, começa a acessar as possíveis respostas a este ato.
  É claro que não ficaria barato. É claro que viriam atrás dele. É claro que estava sendo arrogante e brincando com fogo. Mas puta que pariu, ele queria que queimasse. Que tudo queimasse completamente. Os olhos dele repousam momentaneamente nas chaves do carro de Noah, e desta vez, ele não hesita em roubá-las para si, mandando uma mensagem imediatamente para Johnny, avisando sobre a nova carga que havia conseguido, enquanto Beatriz cambaleia tentando acompanhar os passos de , entrando no carro o mais rápido que ela consegue.
  Beatriz era uma problemática para .
  Normalmente ele gostava de agir sozinho, mas Beatriz tinha exatamente o que precisava para tirar o olhar de si. Era de um conhecimento geral que, quando determinado a roubar a carteira de um idiota, você finge que irá pegar o relógio; a atenção do idiota focada apenas em proteger o relógio, deixa a carteira vulnerável. Mas puta que pariu, se ele não desejava uma maneira de se livrar da morena. Não porque tinha algo contra ela, mas porque era simplesmente irritante a maneira com que ela o olhava. Como se esperasse algo.
  Quando finalmente a policia é notificada, o Bentley Continental está estacionado dentro da garagem de Johnny Price enquanto Johnny grita visivelmente irritado pelo descuido de ao trazer um carro caro como aquele direto para a oficina dele. Mas descarta quaisquer que fossem o choro de Johnny, observando a tela de seu celular finalmente se acender. recebe apenas uma ligação. Não mais do que dois toques, é claro, rápida, e indiferente. Apenas uma notificação que sabia perfeitamente o significado. Estou de olho em você.
  Satisfação percorre a corrente sanguínea de enquanto algo mais sombrio, que ele havia trancado ao fundo de sua mente há muito, muito tempo espirala por sua cabeça, nublando seus pensamentos. O monstro cujas garras arranha os limites de sua racionalidade com uma ponta sombria de prazer. Bom, muito bom. O celular apaga então novamente, levando consigo a ligação perdida e a notificação com o nome: David .
  O pai dele.

•••

| AGORA
  Manchester, Inglaterra.

   atira, mas o tiro nunca chega.
  Raiva queima pelas veias de como veneno. Quente, sufocante e eletrizante. Ele pode sentir a tensão envolver os músculos de seu corpo como uma corrente elétrica, os pelos de sua nuca eriçando-se, enquanto sua garganta estava estranhamente mais seca do que deveria. A respiração controlada, estava mais rápida, mesmo que ele estivesse tentando controla-la. Os olhos dele se arregalaram brevemente em uma mistura de surpresa, choque e pura frustração, mas no fundo, bem no fundo, a algo mais... algo sombrio, intenso e que ele tampouco fazia questão de controlar. Primitivo e instintivo: se ele queria devorá-la ou destruí-la eram duas coisas completamente opostas das quais ele nunca havia imaginado que iria experienciar juntas e, todavia, lá estava ele. Preso, novamente, naquela maldita dança com ela. E porra se ele não queria sair dali. Sabia que deveria. Sabia que o mais esperto seria quebrar o pescoço dela e sair antes que fosse localizado por Dor ou alguns dos homens de Doc. Le Diable Blanc não tinha tempo para aquele tipo de merda! Mas como em todas as vezes, antes mesmo que ele sequer pudesse usar de sua racionalidade para sair daquele maldito inferno, percebe, tardiamente, que já havia jogado tudo para o alto sem se importar. Seu coração martelando de maneira irritante contra sua caixa torácica, um indicativo da antecipação eletrizante que os envolvia, e a estática insuportável que pairava no ar, fazendo tudo ao seu redor desaparecer e só restar os dois naquele maldita sala, era o suficiente para convencê-lo de que não importava mais nada.
  Os outros poderiam espera-los. , não.
  Os olhos de deslizam do rosto retorcido por pura fúria de , para focalizar na maneira com que os músculos da garganta dela se contraem e se pronunciam conforme ela respira fundo e prende a sua respiração, revelando que ela não estava assim tão no controle de si mesma quanto estava tentando mostrar. Era por isso que ele gostava dela – e odiava, ao mesmo tempo –, a maldita falta de controle que ela parecia tentar recusar-se a assumir não importava o que fosse feito.
  Os olhos dele registram como a clavícula dela fica bem marcada abaixo da jaqueta de couro e a regata preta de aparência desgastada e velha, parecendo estar determinada a não soltar nenhum ruído de dor, quando a arma que ela havia pegado de um dos seguranças mortos emperra ao apertar o gatilho; o disparo que deveria tê-lo, no mínimo, matado. O tiro que nunca o atinge porque a arma emperra. Uma péssima qualidade de material de trabalho ali, mas, bem, estavam falando de Miguel Cortez naquele momento, até parece que Cortez teria o cuidado de gastar o dinheiro dele de maneira correta para proteger seu negócio, e não em algum tipo de sala especial para orgias, apenas pelo fato de que ele poderia fazer algo com estética questionável? Bem, a burrice o havia levado à morte, é claro, como faria com todos, mas demorar-se em Miguel e suas questionáveis ações era a última coisa que desejava fazer no momento. Agora, tudo o que importava para ele, era apenas . Burrice levaria todos à morte, e isso incluía, sem sombra de dúvidas, também. faria questão de se certificar de que, dessa vez, ela realmente estivesse morta e não fosse apenas uma mentira contada a ele por um filho da puta maldito que o queria fora de seu caminho. Ah, não, e quando ele se encontrasse com Doc, os dois iriam acertar aquele pequeno impasse. Mas isso, bem, isso seria para um outro momento.
   era dele e dele.
  E não se importava com o que precisava fazer para lembrá-la disso, e puta que pariu, se ele não iria lembra-la de uma vez.
  — Que engraçado, sabe? Eu destruí a porra do seu epitáfio e tive que pagar, mas nem mesmo você está na vala, então, eu paguei o quê? Depredação de um túmulo vazio? Eu deveria saber que era mais uma das suas mentiras — quebra o silêncio com uma ponta de cautela, mas os dentes trincados não ocultam a raiva, o sentimento de traição pela desgraçada filha da puta que ele havia acreditado erroneamente que havia sido morta em algum momento três anos e meio atrás. A raiva pela óbvia mentira que ele não havia conseguido enxergar até que fosse tarde demais. A traição, de certa forma, que havia cometido contra ele.
  Ele cerra com mais força sua mandíbula, sentindo uma pequena pontada de dor em sua têmpora, mas não se importa. Uma parte mais sombria de si está muito mais interessada no que a dor pode lhe oferecer no momento do que misericórdia. Nah, se ela queria a porra do caos, então colocaria aos pés dela o infernointeiro. Ela era dele. Quisesse ela ou não, esse fato nunca iria mudar.
  E por um longo momento, os dois apenas se encaram.
  Há inúmeras coisas que ele gostaria de gritar para . Há inúmeras acusações, e puta merda, se ele pudesse, ele já teria avançando no pescoço dela e finalizado o trabalho de uma vez. Foda-se que aquilo custasse o que quer que tivesse sobrado da alma que ele duvidava ter. Foda-se que ela tivesse se tornado a merda de um dos fantasmas constantes que o assombravam nos últimos três anos e meio. Porra, ele havia colocado o rabo dele na reta para proteger ela. Porra, ele havia feitomuito pior para conseguir que ela escapasse da merda de vida que ela levava. E daí que havia custado Beatriz?! havia feito por ela! Por ! E era assim que ela lhe pagava? Com a porra de uma faca nas costas, a falsa certeza de que havia perdido a desgraçada apenas para, alguns anos depois encontrá-la viva?! Oh-ho-ho ela iria ter que implorar...
   está tremendo, os olhos dela estão cintilando, viscerais, fixos no rosto de sem desviar por um segundo. E mesmo que ele lute contra a maldita parte traidora de seu corpo e sua mente, ele falha miseravelmente. Porque ele não consegue evitar admirá-la, ainda que a contragosto, e contra toda a racionalidade de sua mente. Como os cabelos dela pendiam por seu rosto, desalinhados, visivelmente mal cortados, as mechas grudadas onde o suor envolvia sua pele, fazendo com que uma mecha rebelde de seu cabelo se movesse para frente e para trás, conforme ela expira por entre os lábios. Como a pele dela estava mais pálida do que deveria ser, como a merda das olheiras se formavam um pouco abaixo dos olhos dela, marcando visivelmente que ela deveria estar tendo uma grande merda de semana, talvez meses. Como os lábios estavam ressecados, com um pequeno corte no canto. Ela deveria estar parecendo horrível, mas porra se não se sentia ainda atraído por aquela desgraçada.
  Esse era o problema de com ele. o tinha em suas mãos. Um controle sobre que ia muito além do que poderia sequer tentar compreender, ou queria entender. Um domínio que nunca, nunca mais a deixaria sequer ter consciência que possuía sobre ele outra vez. Não, essa história já havia sido enterrada a sete pés e iria permanecer assim. Ela queria manter-se morta, não é? Que o fosse. Agora tudo o que importava a era retribuição. E pro inferno se ela achava que tinha direito de decidir alguma coisa ali. iria pagar, disposta ou não.
  — O quê? Não pensou em ligar ou mandar uma mensagem? Porra, nem mesmo uma carta? Ouch, cher... — provoca com um tom de voz afiado, as mãos dele se abrem e se fecham, tentando aliviar a frustração que o envolve como um manto sufocante, mas sem conseguir de fato.
  Ele dá alguns passos na direção de , inclinando a cabeça para o lado, observando-a tencionar-se ainda mais, andando para o lado contrário que ele seguia, como se fosse um animal selvagem, ferido, à espera do mínimo deslize para atacar e fugir. Ele sabe que ela irá agir primeiro, ele sabe que ela irá atacá-lo, então, ele não a impede quando a vê avançar em sua direção, mesmo que a água que escapa do buraco do disparo de um dos seguranças, agora mortos, estivesse começando a formar uma poça considerável no chão, e deixando-o suficientemente escorregadio ao ponto de ser um problema em potencial.
   acerta um chute brusco na altura do abdômen de , que imediatamente sente sua respiração ser cortada abruptamente, enquanto ele cambaleia um pouco para trás. A dor toma um banco reserva ao fundo de sua mente, a adrenalina, pulsando por sua corrente sanguínea como veneno, amortece e inibe quaisquer pensamentos que ele possa ter que não seja somente o alerta e o instinto de sobrevivência.
   parecia estar na beira do precipício, caindo aos pedaços, e ainda assim era dona de uma força impressionante. O suficiente para que pudesse ter certeza que o golpe que ela havia deferido nele iria acabar como uma mancha roxa apesar das tatuagens que ele tinha por seu corpo inteiro.
  Um grunhido escapou do fundo da garganta de , enquanto ele recebe um golpe preciso de novamente em seu abdômen, mas usa o momento para agarrar a frente da jaqueta de , usando o joelho esquerdo dobrado para atingir a lateral da cintura de , mas é mais rápida que ele – sempre havia sido.
  O joelho de cede a seu peso, mas ela usa o impulso para passar por baixo do braço de que agarra a frente da jaqueta dela, torcendo o braço dele com o movimento, o suficiente para conseguir imobilizá-lo com um crack sonoro, e então, usando a posição para violentamente empurrá-lo contra a parede de vidro da piscina, ouvindo-a quebrando mais e mais, mas sem se romper permanentemente ainda.
  Algo quente escorre pela lateral da têmpora de . É encorpado, pegajoso, cheirando a ferrugem por baixo de todos os outros odores daquela maldita sala, mas ele não tem muito tempo para registrar a dor ou a sensação cálida escorrendo pela lateral de seu rosto, porque o empurra para trás tentando usar o joelho para chutar outra vez o abdômen de . Desta vez, todavia, ele encontra uma abertura na postura dela, e antes que ela o faça, mantendo ainda o aperto firme como ferro no ombro de , com a mão esquerda, agarra o pescoço da mulher, empurrando a cabeça dela para trás, as unhas fincando-se na pele macia enquanto as unhas de arranhavam o rosto dele, e fincavam-se profundamente no pulso de com força o suficiente para conseguir arrancar sangue.
   empurra com força contra a parede mais próxima, ouvindo-a soltar um grito estrangulado, baixo, o choque do corpo dela contra o espelho reverberando não apenas pelo corpo dela, mas pelo braço dele também. está perfeitamente ciente da maneira com que o vidro do espelho se parte, como cortar a pele dela, e como o sangue dela escorre pela lateral direita do rosto, acumulando-se na luva de couro que ele sempre usava. Quente, pegajoso e espesso. usa a desorientação de para empurrá-la no chão, prendendo-a ali.
  — Se rende — rosna entre dentes.
  Os olhos dele fixos no rosto dela, revelam uma impaciência e frustração gritante, mas por baixo de toda essa camada, havia uma nota de desespero. Mesmo que ele não quisesse que ela visse aquilo, ela o , e isso parece apenas alimentar ainda mais a fúria de . A parte racional de sua mente quer acabar com tudo aquilo de uma vez. Ele não tem tempo para aquela merda! Quanto mais tempo eles têm até que os malditos seguranças de Cortez entrem ali? E, ao mesmo tempo, lá estava ele, rosnando para que usasse a porra do senso comum dela e desistisse de tentar matá-lo, porque não iria parar. Porque ele não queria matá-la; ele o faria se ela continuasse. Ele queria sim quebrá-la. A queria de joelhos e implorando. Que ela pelo menos pagasse pelo que havia feito com ele. Mas ele não a queria morta. Nunca morta. Não de novo...
  — Se rende, porra! — pressiona com mais intensidade, mas suas palavras saem quase inteligíveis, graças a maneira com que agarra o rosto dele, em um ato de sobrevivência ou desespero, ou ambos, empurrando a cabeça dele para trás com força, tentando quebrar o pescoço pelo impulso do movimento.
  Um grunhido de pura frustração escapa do fundo da garganta de , profundo e quase primal, reverberando em notas graves por sua garganta. As pupilas de seus olhos se dilatam um pouco mais, ao mesmo tempo em que a explosão de dor percorre seu rosto quando acerta um soco bem dado no nariz dele. A dor explode por sua mente, amortecendo-o, os olhos lacrimejando, enquanto ele sente o sangue escorrer pelos lábios e o queixo dele, pingando na frente de sua blusa e formando uma mancha que seria difícil de disfarçar. Puta merda, ele havia pagado caro naquela porra de blusa!
   não consegue bloquear a tempo quando , com um grunhido, acerta um cruzado meio torto, mas não menos desorientador, no rosto dele. Ele sente seu rosto ser lançando bruscamente para a esquerda, o fazendo se desequilibrar e desabar para trás, pontos de luzes espalhados por seus olhos, os cantos se obscurecendo levemente enquanto ele tosse, engasgando-se com seu próprio sangue. grunhe com dor e impaciência, enquanto ele tosse, engasgando-se com seu próprio sangue. grunhe com dor e impaciência, tentando livrar-se do torpor causado pela dor, enquanto avança na direção dele. E então, ela está sentada em cima dele. As pernas dela, presas, uma de cada lado do corpo dele, tentando mantê-lo preso no lugar, embora consiga livrar seu braço direito do aperto dela. Um rosnado escapa do fundo de sua garganta, agarra instintivamente a frente da roupa dela, enquanto as mãos de envolvem com força o pescoço de , tentando sufocá-lo.
  Às vezes era fácil se esquecer da força que realmente tinha.
  As unhas dela se fincam dolorosamente em seu pescoço, a pressão roubando o restante do fôlego dele, o tronco de se curvando enquanto ele tenta encontrar uma forma de tirá-la de cima de si, mas falha miseravelmente. Um riso dolorido escapa por entre os lábios dele, enquanto o sangue escorre pelos cantos dos lábios dele, porque, apesar de tudo, puta que pariu, se ele não havia sentido falta da visão de tê-la sentada sobre ele, tentando matá-lo – para variar. Pontos escuros começam a surgir nos cantos de seus olhos, enquanto sua cabeça está latejando com a pressão causada pela falta de ar, seu pulso martelando por seus ouvidos com um zumbido alto, enquanto ele se engasga com o próprio sangue.
  Ela vai matá-lo. Puta que pariu, ela vai realmente matá-lo. E ele está sorrindo como o próprio demônio. Ele havia sentido falta do fogo, da raiva, e daquela merda de olhar assassino que sempre tinha em seu olhar. Ele havia sentido falta da maneira com que ela apoiava todo o peso dela contra o tronco dele, e não em seus calcanhares usando o próprio peso para mantê-lo no lugar, como ela trincava os dentes com força e os exibia como se fosse algum tipo de animal selvagem determinado a finalizar o que havia começado, a maneira com que os olhos dela cintilavam com uma fúria que parecia queimar por seu corpo e despertava a parte inconsequente de sua mente. rosna, tentando se livrar do aperto de , sentindo sua consciência começar a escapar por entre seus dedos, a dor em seus pulmões queimando seu peito, enquanto sua cabeça parecia latejar com a pressão da falta de ar, a sensação de que ele iria desmaiar a qualquer segundo, enquanto seu corpo inteiro implorava por um pequeno resquício de oxigênio, tentando inspirar uma fração que fosse.
  Um tiro ecoa, e é violentamente jogada para a direita, desabando com um grito baixo, e imediatamente arqueia suas costas, tossindo e tremendo enquanto sua cabeça está girando. Sente-se como se estivesse bêbado, e, ao mesmo tempo, amortecido para sua própria dor. Os olhos embaçados têm dificuldade para focalizar em alguma coisa, mas ele está completamente consciente de que o tempo deles havia acabado. Os seguranças de Miguel finalmente os haviam alcançado.
   obriga-se a se levantar, cambaleando, sentindo suas pernas cederem ao seu próprio peso, graças a . Seu corpo instintivamente se virando para , preparando-se para se jogar contra a desgraçada e usar a si mesmo como escudo para protegê-la, quando os olhos dele se arregalam em uma mistura de raiva e frustração. Porque é claro que sempre tinha a porra de um plano por trás de cada merda de ação. E antes que ele possa gritar o nome dela, , com um buraco aberto no ombro e flanco esquerdo dela, agarra a maldita cadeira mais próxima de si, e arremessa com toda a força de seu corpo contra a parede de vidro, da piscina, terminando de romper a parede de vidro completamente.
  — Filha da put- — O grunhido de é engolido pela água.


  Nota da Autora: eu si divirto escrevendo sobre maluco com fetiche em apanhar de mulher gostosa e musculosa. To meio antissocial hoje, então não tenho muito para dizer. Obrigada por ter lido, comenta se quiser, ou se não quiser, tá tudo bem também. Bebam água, e sim, eu faço terapia ksksksksk. Esta fic é escrita de madrugada, quando estou sobrecarregada com estímulos externos e preciso de uma forma de me regular, portanto perdão antecipado por incoerências, erros gramaticais e algumas confusões, meu e-mail está sempre aberto para discussões e opiniões.

Capítulo 04

| AGORA
Manchester, Inglaterra.

  Fechando a porta de seu escritório, ignora completamente as ligações de Doc.
  Por um breve momento, ela apenas encara o aparelho, sem enxerga-lo. O número é privado, mas ela sabe que era algum maldito dos braços direitos de Doc querendo marcar algum encontro para saber como o trabalho havia ido, ou ao menos, se certificarem de que ela estava realmente morta. Era por isso que ele havia se dado todo aquele trabalho, não era? Porra! sente um riso desprovido de quaisquer traços de humor borbulhar no fundo de seu peito. A frustração escapando pelas rachaduras em sua armadura, a raiva queimando por sua corrente sanguínea enquanto ela sentia uma vontade gritante de simplesmente enlouquecer. Se permitir enlouquecer. agarra com tanta força o celular que os nós dos dedos de sua mão estão brancos, e a tela trinca com a força que ela faz. nega com a cabeça para si mesma, erguendo os olhos do aparelho e observando por um momento, profundamente presa no torpor de sua própria ira, seu escritório.
  As persianas fechadas criam um tom lúgubre ao local decadente, as sombras que se projetam ao redor da sala, acentuando a bagunça que ela havia deixado no meio do caminho. Garrafas de whisky, vodca e outras bebidas alcoólicas que ela havia propositalmente estocado na estante reluzindo a luz do sol começando a nascer com uma ponta de deboche e desprezo para si mesma — ou estava apenas autodepreciando-se mais um pouco. Os dizeres Ryder & CO Investigations, estampados na janela de maneira discreta e facilmente desaparecendo em meio a grande bandeira LGBTQIA+ que estava cuidadosamente disposta no canto do prédio que o escritório delas ficava, estava com a letra Y, H, e o TIONS descascados, mesmo que não tivesse ideia de como havia se desgastado assim tão rápido. Caixas e mais caixas de casos em espera, duas óbvias pastas grandes com a letra garranchada de Lorraine, ou simplesmente Lori, na nota de ME LEIA, PORRA, o que dava uma clara indicação a que a merda da advogada que levava o nome principal naquele negocio — e teoricamente sua sócia de trabalho — estava igualmente precisando de alguém para sujar suas mãos, como sempre. Paredes descascando, mofo erguendo-se nos cantos mais escuros e afastados do escritório onde o encanamento havia dado vazão para infiltração de água.
  A estrutura inteira do prédio era a clássica de paredes de tijolos vermelhos de antigas mansões e apartamentos vitorianos. Havia um ar de antiguidade pelas ruas de centro comercial famoso pelos bares LGBTQIA+ que permeavam os arredores. Um ponto turístico, com calçadas de tijolos e até mesmo uma universidade ali. Não à toa era comum que turistas e estudantes, jovens, percorressem as ruas todas as noites, cantando, brigando e gargalhando ou simplesmente aproveitando a maldita noite de Manchester enquanto se via presa naquele maldito lugar. Ou igualmente, não era surpresa que os homens de Doc estivessem em algum ponto ou em algum bar próximo dali, apenas aproveitando a noite. Não era uma gaiola diferente da que ela havia estado, a única diferença era que nesta pelo menos, não estava sozinha, categoricamente.
  E isso só inflamou ainda mais sua raiva.
  Seu coração está martelando por sua caixa torácica de maneira quase dolorosa. Não é que esteja rápido, não é que esteja irregular ou expondo algum tipo de arritmia, não: está queimando. E as lágrimas que se acumulam ao redor de seus olhos finalmente começam a cair, amargamente escorrendo contra sua pele febril, escorrendo lentamente como fogo. limpa bruscamente o rosto, prendendo a respiração, como se isso fosse o suficiente para evitar que ela continuasse a chorar, mas não funciona. É claro que não funciona. Ela não faz ideia do porquê, mas não consegue se conter desta vez. Puta que pariu! A última coisa que ela quer fazer no momento é chorar. Ela não irá chorar. E ao fundo de sua mente a gargalhada de Beatriz é enlouquecedora. Está ficando mais e mais alta, ao ponto que não consegue ignorá-la. Quando o celular de ecoa novamente com a chamada de Doc, ela não contém um grunhido meio grito de pura raiva e frustração ao arremessar o aparelho do outro lado da sala, fazendo-o se espatifar contra a parede e cair, aos pedaços, no chão.
  Finalmente, haveria silêncio, certo? Errado...
  — , , — cantarola Beatriz, e fecha os olhos com força, levando suas mãos em direção a seus ouvidos, fincando suas unhas em suas orelhas, como se pudesse arrancá-las ou ao menos tentar abafar com o máximo de força que tem em seus braços para usar a pressão e abafar o eco maldito da voz de Beatriz. Mas ela não consegue, não importa o quanto tente, de Beatriz ela não consegue fugir. Não importa o quanto ela tente, Beatriz está sempre ali. Porra— Oh, , estúpida, estúpida , você não cansa de fazer sempre a mesma merda? De novo. E de novo. E de novo… você já me matou, vai querer me matar de novo?
  — Cala a boca! — sussurra , quase desesperada para silenciar a voz de Beatriz em sua mente, mas é impossível. Não importa com quanta força ela tente silenciar ou pressionar as orelhas para abafar a voz de Beatriz, não importa com quanta força as unhas dela se cravem em suas orelhas, como se ela estivesse à beira de arrancá-las da maneira que pudesse, em um rompante ensandecida para silenciar a voz de Beatriz, ainda assim, a voz dela continua ecoando, cada vez mais e mais alta, cada vez mais e mais alta, cada vez mais e mais ríspida. Cada vez mais dolorosamente verdadeira.
  Se Beatriz mentisse, então poderia ignorá-la facilmente, mas não, a filha da puta precisava dizer a verdade, não é? Precisava esfregar na cara de como se fosse a dona da razão... sabe que Beatriz não está ali, ela sabe que Beatriz está morta e enterrada há um bom tempo. Ela sabe que é tudo culpa de ! Ele a roubou de si! Ele a havia condenado! Mas ainda assim, o fantasma de Beatriz apenas assombrava . Era uma piada cruel. Porra, era por isso que ela precisava daquele maldito remédio! Porra, era por isso que ela precisava daquela porra de droga! Era por isso que ela precisava de uma maneira para conseguir amortecer sua mente. Porque se ela não fizesse…
  — Deveria ter sido você, — diz Beatriz, enquanto cambaleia pelo escritório dela em busca de algo que pudesse usar para abafar sua mente. Mas o que diabos funcionaria? A droga já estava em uma dosagem alta o suficiente para que pudesse sentir os sinais da abstinência mais rápido do que deveria. Seu corpo está viciado, e pouca coisa poderia agir como substituto. Mesmo que ela bebesse até cair, a voz de Beatriz ainda ecoaria por sua mente. Era enlouquecedor e desesperador, e, por um breve momento, apenas grita.
  Se é por fúria ou dor, não saberia dizer. Mas cegamente, em desespero, avança pelo espaço, destruindo tudo o que encontra por seu caminho. Não por um surto, mas em desespero para fazer mais barulho. Para silenciar Beatriz, enquanto sente-se perdendo a cabeça completamente. empurra para longe as pastas, chuta as cadeiras e a mesa, determinada a quebrá-la, enquanto a voz de Beatriz continua ecoando, mais e mais alto. Por que não parava?! POR QUE NÃO PARAVA?!
  — Deveria ter sido você, !— grita para si mesma em meio ao escritório dela, completamente silencioso. Mas ela não escuta sua própria voz, não mais. Há muito tempo que ela não escutava mais sua própria voz naqueles momentos, sua mente a substitui com a de Beatriz, e como uma constante gota d’água atingindo uma superfície de metal, impossível de ser ignorada. Iria enlouquece-la. Puta que pariu, ela sente como se estivesse, desta vez, perdendo completamente a cabeça de maneira permanente.
   agarra o notebook e arremessa-o contra a parede estraçalhando o aparelho, que se espalha pelo assoalho de madeira em pequenas peças e fragmentos do que havia sido antes, arruinado, agora, mas ela não para por agora.
  Ela agarra as garrafas de bebida, arremessando-as pelo espaço com fúria. Sua respiração está irregular, ofegante, e a essa altura ela não percebe que está hiperventilando, apenas sente a falta de ar crescente. As unhas dela fincam-se em seu próprio pescoço enquanto os ferimentos abertos do disparo de continua a latejar, o sangue, cálido e pungente, fazendo com que o tecido grosso de sua roupa grudasse contra sua pele, movendo-se de maneira incômoda por sua pele, pesado, começa a arranhar seu pescoço, como se pudesse de alguma forma encontrar uma maneira de criar um buraco que a deixasse respirar, como se isso pudesse ajudá-la de alguma forma, embora não fosse.
  Seu coração martela contra sua caixa torácica, seu pulso ecoa por seus ouvidos, de maneira amortecedora e sufocante, abafando tudo ao redor para o desespero dela. É como se ela estivesse perdendo os sentidos lentamente, e isso apenas aumenta a ansiedade. retorna ao passado. Os olhos estão embaçados demais para que possa discernir alguma coisa em seu caminho então quando ela acaba tropeçando em uma perna da cadeira destruída, caindo em meio ao vidro quebrado das garrafas, seu primeiro instinto é agarrar um estilhaço de vidro com força, sequer sentindo quando as laterais afiadas do pedaço de vidro lhe cortam as falanges de seus dedos. A única coisa que ecoa em sua mente é o desespero para se preparar.
  Por que ele estava vindo. Ele a encontraria. Ele estava vindo. E quando ele a encontrasse ele a mataria. Ele iria espanca-la novamente. Ele iria tentar matá-la novamente. Ele estava vindo. Ele sempre vinha. Dele não conseguia escapar. Ele estava…
   fecha os olhos com força.
  — Abre os olhos, ordena Edgar com o familiar tom de voz firme e implacável. Ele agarra o rosto dela, as pontas de seus dedos enterrando bruscamente na pele do rosto dela, em um aperto firme e que deixaria marcas de meia lua arroxeadas onde as unhas dele haviam se fincado, enquanto o rosto dela era puxado na direção dele. Mas tudo o que consegue fazer é apenas tremer. Ela prende a respiração, ignorando o cheiro pungente de tabaco que o envolve, e que sempre fazia o estômago dela se revirar. Ela se obriga a engolir em seco, se obriga a tentar se acalmar, sabendo perfeitamente que a situação ficaria pior ainda se ela não fizesse o que ele estava comandando. Abra os olhos, agora.
  Quando ainda não abre os olhos, aterrorizada com a ideia de encará-lo outra vez, Edgar pragueja baixo por sua respiração, e, com um movimento rápido e preciso, ele quebra outro dedo dela. O grito se prende em sua garganta, enquanto tenta sufocar as lágrimas que escorrem por seu rosto, em uma evidência da dor que por um breve momento a cega quase que completamente. Ela quer se contorcer. Ela quer gritar. Pior, ela quer implorar para que ele pare, mas ela o conhecia, a essa altura, bem o suficiente para saber que ele não o faria. Era sempre assim com Edgar . Ele não se importava com nada senão o resultado em mão, e se ela falhasse, então seria pior apenas para ela.
  — Quer saber por que eu escolhi você e não a outra?questiona Edgar com um tom de voz baixo, frio e distante, mas pode perceber o tom de perigo em sua voz, uma ameaça velada. Esse era o problema de Edgar, ele nunca ameaçava, ele apenas avisava o que iria fazer, e então, fazia. controla o impulso de se debater contra ele, de tentar escapar do aperto dele e muito menos de sequer tentar reagir. Ela sabia bem o suficiente o que acontecia quando ela tentava reagir contra Edgar. Ela sufoca, com um esforço gritante, um soluço, sentindo o homem mais velho segurar o dedo médio dela. Os calos acentuados da mão áspera dele não são gentis, pelo contrário, arranham a pele dela estranhamente como espinhos. se prepara para a dor que irá se seguir, mas ela sabe que Edgar não irá agir quando ela estiver esperando. Não, ele nuca faz isso. Não desta forma. Eu vi o quanto você gostou de ver aquele banho de sangue. Vê? Não há nada de errado, querida. Algumas pessoas nascem neste mundo para serem simplesmente caça. Sua irmãzinha era isso. Apenas uma caça, tanto que este foi o destino dela, certo? Você se lembra, eu tenho certeza que o faz. Mas você...Edgar pausa brevemente, erguendo o queixo de , observando os olhos da garota semicerrados, enquanto ela tremia violentamente contra a cadeira. A respiração pesada e irregular evidenciando a hiperventilação que ela estava desesperada para ocultar dele. Ele aperta o rosto dela com mais força, e usa todas a sua força para abrir os olhos e encará-lo.
  É como se ela estivesse de volta a um pesadelo. É como se ao em vez do alívio de ter acordado após um tomento insuportável de pesadelos em sequência, na verdade, nunca tivesse acordado. Havia este estado meio irregular e perigoso de amortecimento, uma tentativa esquisita de desassociação, em que ela experimentaria as coisas quase como se estivesse fora de seu corpo, mas não durava muito. Edgar sabia o que estava fazendo, sabia os pontos fracos e onde apertar para mantê-la presa dentro de seu próprio corpo. Para impedi-la de escapar de si mesma, por mais que sua mente estivesse desesperada para o fazer.
  Edgar era uma figura imponente, sombria e intimidadora. Embora os olhos dele fossem de um tom castanho amendoado, meio esverdeado, meio castanho claros, em determinadas iluminações como naquele momento, os olhos dele ficavam bem mais escuros do que de fato eram. Quase de um verde oliva, estranhamente vazios. Talvez fosse a maneira com que ele olhava que a incomodasse tanto, o olhar era penetrante e assustadoramente vazios, ao mesmo tempo, impossível de serem lidos com certeza. Impossível de saber o que se passava pela mente dele. Tinha um rosto angular, bem definido, uma aparência robusta. Suas maçãs do rosto eram altas e proeminentes, acentuando o formato oval de seu rosto, as sobrancelhas eram espessas e arqueadas, igualmente grisalhas como os cabelos dele. O nariz reto, proporcional ao rosto, mas com uma cicatriz que o atravessava, não muito profunda para que se percebesse de longe, mas profunda o suficiente para fazer-se presente de perto, os lábios finos estavam sempre curvados para baixo em um desdém, talvez, não apenas reservado a , mas a tudo ao seu redor. Os cabelos apesar das consideráveis mechas grisalhas, ainda eram castanhos escuros em um corte bem feito, meticuloso, penteado de forma simples, para trás, de maneira elegante, como se ele tivesse se certificado de que nenhum fio estaria fora do lugar, muito menos desorganizado. Havia um perfeccionismo sufocante em toda a sua elegância e meticulosidade que o tornava ainda mais assustador.
   não diz nada, apenas sustenta o olhar dele, com a respiração irregular. Ela estava apavorada, encontrá-lo todos os dias naquela maldita cabana era um terror psicológico pior do que perceber-se de volta em casa ou simplesmente em um pesadelo, mas então, havia a parte de sua mente que queimava com fúria. Que queria retribuição por tudo o que ele estava fazendo, que queria o fazer pagar por simplesmente sequer ter a considerado seu brinquedo pessoal. Ela poderia fazer isso? Não, é claro que não. Enfrentar Edgar era como enfrentar a porra de um monstro, sendo você apenas uma formiga. Era impossível, e ele te esmagaria rapidamente, mas ao fundo de sua mente, deseja ao que quer que escutasse, se é que existia ainda alguma coisa lá, que ao menos oferecesse a ela uma chance de retribuição. Por menor que fosse. E a pior parte de tudo, era exatamente isso que ele desejava que ela expressasse.
  Não medo. Não terror. Nem mesmo raiva. Não. Ele queria enxergar nos olhos dela aquele fogo característico que havia chamado a atenção dele na primeira vez que a havia visto. Não era coragem. Era desejo por vingança. Uma selvageria pura e inerente que apenas se nascia com. Uma selvageria semelhante. Edgar quebra o dedo médio de , que grunhe alto, o rosto se crispando com a dor que silencia e abafa tudo ao redor. A cabeça dela pendendo para frente, enquanto ela tenta controlar a dor que se espalha por seu corpo, inspirando pesado e rápido demais para que a ajudasse, enquanto as unhas de Edgar se fincavam com mais força contra o rosto dela.
  — Você é uma caçadora, queridadiz Edgar com um tom de voz baixo e controlado, mas igualmente vazio. trinca os dentes com força, respirando por entre os dentes enquanto os olhos percorrem o rosto dele ansiosamente, tentando ao menos prever qual seria o próximo movimento dele. O que ele faria em seguida. Mas não há nada ali. Uma em milhões. E estarei condenado se não moldar você a perfeiçãoEdgar se endireita, dando alguns passos para trás; Edgar leva a mão direita para o bolso interno de seu terno de alfaiataria italiana, buscando por seu cigarro, antes de prendê-lo por entre os dentes e acendê-lo com seu isqueiro prata. Uma caveira gravada no metal com uma delicadeza e precisão que apenas um excelente e velho artesão seria capaz de fazer. Edgar lança um breve olhar para , parecendo calcular alguma coisa em sua mente, antes de o olhar dele tornar-se mais duro, ameaçador.
   o observa retirar a pistola automática da parte de trás de seu cinto, destravando o tambor com a munição e verificando quanta munição havia ali, estreitando os olhos enquanto as conta. quer levantar-se da maldita cadeira, mas sabe que se o fizer será pior, então ela inspira fundo e se prepara para o impacto. O tremor aumenta, e ela agarra com força os braços da cadeira, tentando não soluçar, a essa altura sequer sem sentir mais as lágrimas escorrendo por seu rosto, a dor é o suficiente para amortecer todo o resto. Edgar volta a travar o tambor de munição, destravando com um clic clacka pistola e então a estende na direção de . Os olhos do mais velho permanecem fixos no rosto de sem desviar-se nem mesmo por um momento, enquanto ele mira no peito dela.
  Uma parte de está apavorada com o que ele poderá fazer. Com a morte eminente que irá finalmente abatê-la de vez. Uma parte de sua mente está desesperada com o fato de que nunca mais poderá encontrar Beatriz, se essa ainda estiver viva, o que, para ser honesta, é provável que não. Beatriz estava morta há muito tempo, e precisa aceitar isso. Mas uma parte de si, no fundo de seu peito, recusava-se a abandonar a esperança de que sua irmã gêmea haveria conseguido aprender a sobreviver naquele mundo sombrio que as havia engolido. Beatriz precisava sobreviver. Se não fizesse então a culpa de por as ter arrastado para aquela realidade seria impossível de carregar. Iria enlouquece-la completamente. Já a outra partede sua mente, a parte sombria e desesperada, ansiavapor aquele disparo. Ansiava por ver o fim da linha que tanto fantasiava desde que Edgar havia colocado suas mãos nela. Então, mesmo que não queira, ela está desejandoque ele atire. Que acabe com toda aquela merda. Que utilidade ela teria a ele se estivesse morta? Talvez essa fosse sua melhor vingança contra o monstro que se satisfazia em tortura-la.
  Edgar aperta o gatilho, mas a arma não dispara.
  Outro dia. Ela ganhava mais um dia para viver, e esta não poderia ser maldição pior.
   abre os olhos com um grunhido baixo, o eco do disparo ainda presente em sua mente enquanto ela, instintivamente, se choca contra a parede, ofegante, seus sentidos em alto alerta enquanto os olhos dela se voltam imediatamente na direção da porta. espera encontrar Edgar ali, ela quase espera vê-lo atravessar o portal com cordas em mãos, cigarro pendendo pelo canto de sua boca, e o olhar afiado, impenetrável, revelando apenas a frieza característica que parecia penetrar por sua pele a qual ela havia se acostumado há muito tempo, a arma escondida na parte de trás de seu cinto, enquanto analisava os ferimentos dela, calculando qual seria a melhor maneira de puni-la por alguma falha que ela deveria ter cometido sem piorar os ferimentos já feitos.
  Edgar queria moldá-la, não a destruir, para isso precisava ter cuidado, havia sempre uma linha tênue entre criação e destruição que colocaria todo o trabalho a perder. O problema era que havia cruzado aquela linha por vontade própria, e agora observava a si mesma desfazer-se no que quer… bem, no que quer que tivesse restado dela a essa altura.
  Mas não é Edgar quem está ali, longe disso. Em vez do homem sombrio e monstruoso que a perseguia em seus pesadelos mais profundos, encontra Lorraine Ryder, a porra de sua… bem, sua sócia, certo? Seja lá o que isso significasse para ela naquele momento. pragueja baixo, fazendo uma careta, sentindo sua cabeça pulsando com a mistura desorientadora de emoções que envolvem não apenas sua mente, mas igualmente seu corpo. Merda. De todas as pessoas que ela queria ver naquele momento, a última era , mas Lorraine era a penúltima seguindo bem à risca junto com o maldito cajun.
  Lori é uma mulher insuportável. Algum tipo de piada pessoal do universo sobre perfeição porque ela era exatamente o que a palavra perfeito deveria se basear. É linda, para inicio de conversa, a pele pálida como porcelana e uniforme como creme; os cabelos escuros, tingidos de loiro dourado que lembravam quase a fios de ouro; os cantos dos olhos estreitos, em uma revelação discreta de sua provável ascendência oriental, ainda expressivos, enquanto os lábios cheios revelavam uma cicatriz que atravessava apenas o lábio superior. E ainda assim, mesmo com toda a delicadeza que os britânicos mais estúpidos pareciam buscar, Lorraine é tudo menos alguém que precisava ser “salva”, muito menos alguém que você devesse confiar plenamente. Talvez fosse por isso que se identificasse com a advogada. De certa forma, não muito, para ser bem clara. Mas era essa perfeição que a incomodava, Lorraine parecia sempre ser a melhor no que fazia, incluindo quando tentava bisbilhotar a vida de outra pessoa.
  Ótimo, agora teria que explicar o porquê havia destruído seu escritório inteiro. tenciona a mandíbula com força, apoiando os dois braços sobre seus joelhos, soltando um chiado entre dentes ao observar Lorraine lançar um olhar ao redor, parecendo absorver a bagunça que havia feito, antes de se agachar à frente da brasileira, mascando o maldito chiclete que sempre conseguia irritá-la.
  — Puta merda... — A voz de Lori traz de volta à realidade, e precisa conter um rosnado ao se deparar com o rosto da britânica tão próximo do seu. solta um rosnado, saltando para trás e chocando sua cabeça na parede atrás de si, se encolhendo instintivamente, mais pelo eco oco do baque do que pela dor em questão.
  — Tava apostando que cê tava morta. Que pena. — Lori dá de ombros, antes de voltar a linha de seu olhar para , cínica como sempre. Lori assopra o hálito com cheiro de melão, e se esforça para conter o instinto de avançar no pescoço da amiga. Não é que não tivesse amigos… bem, é, na verdade esse é o problema inteiro, é antissocial demais para se importar em se aproximar de alguém. E a última criatura com quem ela o faria, seria Lorraine. — Quem é Edgar, hein, gostosa?
  É como um clic.
   reage antes que possa conseguir restringir ou conter. O nome Edgar ecoa por sua mente como um botão, um pino acidentalmente retirado por Lorraine sem ter ideia das consequências que se seguiriam. vê vermelho. A fúria a cega por um momento, misturando-se e perdendo-se em um oceano permeado de medo e apreensão. O instinto de sobrevivência gritando mais alto que qualquer outro ponto de racionalidade que ela poderia ter restando em sua mente. A paranoia que havia há muito tempo corroído os resquícios do que Edgar não havia tocado, vindo à frente, antes que pudesse sequer pensar em impedir-se. Ela gira em sua mão o caco de vidro, enquanto sua outra mão agarra o colarinho da blusa de Lorraine. Apoiando a ponta afiada do caco de vidro exatamente na carótida da sócia, precisa usar de todo seu esforço para impedir-se de enterrar o caco na articulação de Lorraine.
  Não seria uma morte limpa, muito menos rápida, até onde sabia, Lorraine ficaria se contorcendo ao ritmo de sua pulsação até que 3 litros de sangue tivessem se esvaído dela. Seria agonizante, mas permanente. Mas mesmo naquele momento em que a parte da mente dela que era treinada para analisar a maneira mais rápida de matar alguém e limpar o espaço sem deixar vestígios, estava disposta a aceitar a bagunça se isso fosse o que ela precisasse fazer para que ninguém nunca mais dissesse aquele maldito nome outra vez.
  — Diga uma palavra sobre isso novamente e eu vou matar você.— Não uma ameaça, não um rosnado de violência, sequer uma promessa. Era um aviso. iria matar Lorraine se a loira ousasse tentar repetir aquele nome outra vez, e não se arrependeria de nada. Não importava que Lorraine tivesse sido a única filha da puta que havia lhe estendido a mão quando estava desesperada e não tinha mais para onde ir. Não importava que as duas tivessem um acordo que as beneficiava há uns bons três anos, e um do qual ela sabia que não iria encontrar nas mãos de mais ninguém. não se importava com nada daquilo. Apegos, retribuições, foda-se! Depois de tudo, de tantos anos, não seria agora que alguém descobriria a verdade sobre ela. Não seria agora que ela diria algo sobre Edgar. Foda-se as consequências! Ela iria matar Lorraine e o faria com a certeza que não deixaria vestígio algum para trás.
  Mas não se move.
  Seus pulsos rígidos, sua cabeça estourando com a dor constante, sua respiração presa ao invés de hiperventilando, havia congelado em seu lugar. Porra, ela queria sangue. Ela queria violência como um viciado esperava desesperadamente pela próxima dose. Ela queria pintar a cidade de vermelho e assistir tudo queimar se pudesse ter a certeza de que nada sairia daquelas malditas cinzas. Por anos o tentou fazer! E por anos, de novo, e de novo, e de novo, sempre havia alguém que rastejava de dentro dessas cinzas. Como parasitas! Não dessa vez. Não dessa vez!
  — Você é doente pra caralho, .
  Lori empurra para trás, que cambaleia um pouco, e precisa trincar os dentes com força para não grunhir com a dor de seus ferimentos abertos. Maldito . Maldito e sua pontaria de merda! faz uma careta, irritada, antes de apertar o ferimento em seu ombro esquerdo com outra careta.
  Parte de seu trabalho em ação nas Forças Armadas era saber quando deveria extrair ou abandonar um soldado. Às vezes não havia outra escolha. Às vezes para que dois sobrevivessem o terceiro deveria ser deixado para trás, para queimar. Não era justo, e não era quem fazia as chamadas, mas ainda assim, era o procedimento. Parte do jogo.
  Puta merda, sua cabeça estava latejando demais. Talvez o melhor que ela pudesse fazer fosse suturar aquele maldito ferimento e torcer para que ao menos a próxima semana fosse livre de febres ou infecções. Se ela sobrevivesse a isso, então iria tentar encontrar algum médico clandestino, devendo dinheiro a Doc ou coisa do tipo, e o ameaçar para arrancar o projetil de seu ombro. Era melhor do que nada.
  — Tá fazendo o que aqui? Achei que estaria com a fuinha francesa que você estava tão determinada a foder semana passada — cospe as palavras sem se preocupar com o tom depreciativo e desdenhoso que sua voz adquire. Estava desconfortável, e por causa disso faria todos ao seu redor se sentirem desconfortáveis também.
   retira a blusa, meio rasgando-a enquanto geme baixo. Ela odiava . Céus, se ela tivesse a chance de encontrá-lo novamente, se ele se distraísse por um segundo de novo, se ele baixasse a guarda só por um minuto… só por um minuto, porra…
  Mas não fecha os olhos dessa vez. Não consegue, mesmo se desejasse, pois ela sabe o que a espera do outro lado. busca com o olhar por algo que ela possa usar para se livrar da bala cravada em seu ombro, a lembrança muscular mais familiar do eu deveria mesmo depois de tanto tempo fora do exército. Algumas experiências nas Forças Armadas acabavam ficando gravadas na carne, como respirar ou instinto. Porra, ela precisava tanto de álcool agora…
  — Ah, pega um pau, enfia no cu e torce, . Diferente de você, meu trabalho é fixo. Aliás, tá com o aluguel atrasado, de novo — retorque Lorraine e ergue a cabeça para encará-la com uma sobrancelha curvada. Lorraine não tem medo de , se é por sua falta de fé ou cinismo, é difícil dizer, mas, igualmente, não poderia dizer muito que se importava com aquilo. Lori exala lentamente, passando as mãos por entre seus cabelos, afastando algumas mechas de seu cabelo para longe do rosto, enquanto caminhava em direção à uma das poucas cadeiras intactas de , alçando-a do chão, mesmo que estivesse faltando uma perna, e então, colocando-a de pé, antes de jogar as duas pastas pardas em sua mão no estofado. tenciona a mandíbula, bufando com um riso desdenhoso e desprovido de humor, enquanto deixava-se se recostar contra o que havia restado de sua mesa, apenas para calcular mal, e acabar caindo sentada no chão com um grunhido. Lori abre um sorriso arrogante, afiado, e nem um pouco amigável, encarando com exasperação. — Olha só pra você, tá parecendo que foi atropelada por um caminhão, que merda cê fez dessa vez, huh? Ah, não, espera, eu tô cagando pro que você tem feito, deixa isso só pra você mesma e quem se importe.
   contém um rosnado baixo, observando a britânica jogar os cabelos para trás de suas costas, tão lisos que pareciam com seda em determinados momentos. Os saltos de Lori estalam no chão, firmes e com um ruído seco, enquanto ela caminha calmamente pelo espaço, os estilhaços de vidro quebrando-se sob o peso dela. odeia que Lori não se afasta. Era como se deparar com a porra de um animal de rua, abandonado e desesperado por atenção. Você sente, pensa, até considera parar seu caminho, ou fazer um carinho na pele doente, cheia de pulgas e infectada, ou oferecer um pedaço de comida, mas o animal? O animal parece perceber sua atenção e então passa a segui-lo mesmo que você tenha descartado a ideia no lixo. E então estava lá, o tempo todo. E não importa o que você faça, não vai embora. Nunca. Vai. Embora. Porra!
  Os olhos de seguem até onde Lorraine para na frente da parede, franzindo o cenho, tencionando a mandíbula, ao observar Lorraine retirar o quadro ridículo de cavalos correndo pelo mar — um quadro estúpido e ridículo que se repetia pela estrutura do prédio inteiro porque o senso de arte de Lorraine era definido apenas a quantos cavalos haviam em uma pintura por algum motivo — expondo o que parecia ser um tipo de câmera pequena alocada no canto do quadro, e um cofre. nega com sua cabeça, dentes trincados, exalando com um ruído baixo, exasperada. É claro que havia alguma armadilha naquele espaço, porque Lorraine ofereceria um espaço para usar se não tivesse uma pegadinha ali? observa Lorraine abrir o cofre com uma sequência de números, e então revelar, não apenas diferentes maços de notas de dinheiro de outros países, como igualmente um kit médico militar. Ótimo, ótimo, era só o que ela precisava. Ainda assim não diz nada, ela apenas observa Lorraine com um olhar frustrado.
  Que todos ao seu redor sempre teriam segredos sabia e não se importava, mas era conveniente que acontecesse nos momentos mais inesperados ou sequer oportunos. É claro que qualquer um envolvido com Doc, por nota, tinha uma motivação para fazê-lo. Mesmo sendo frustrantemente a Perfeita Lorraine.
  — Não finge surpresa, eu sei que você já tinha notado isso antes, quer dizer, pelo menos considerado a possibilidade. Nem no inferno eu vou confiar em uma viciada. Sou uma alma caridosa, não otária — resmunga Lori com desdém e ergue uma sobrancelha encarando-a em silêncio. Lorraine tinha um bom ponto, ela precisava admitir.
  Lori chuta a perna de para fora de seu caminho e considera atingi-la novamente. Teria o feito, mas começava a sentir a fraqueza causada pela perda de sangue, então tudo o que faz é encarar fixamente Lorraine com uma expressão irritada e sombria. Por algum motivo, pela primeira vez desde o momento que havia conhecido Lorraine, a outra não diz nada enquanto se ajoelha ao seu lado. Porra, Lorraine sequer acerta por ter dito algo além dos limites como era algo comum acontecer. Sempre tapas que reverberavam ao fundo de sua cabeça, mas ainda assim, estupidamente fracos demais para que considerasse aquilo como algo além de uma perda de tempo.
  — Para de me encarar, .
  — Não.
  — Nossa, como você é legal, não surpreende ter tantos amigos! — diz Lorraine com um tom de voz sarcástico, encarando por um breve segundo antes de abrir a caixa de primeiros socorros e derramar o álcool estéril para desinfetar o ferimento de , sem o menor aviso. inspira fundo, fechando os olhos enquanto a ardência e a dor a desorientam por breves segundos, antes de trincar a mandíbula com força, voltando a obrigar-se a abrir os olhos, a mantê-los abertos, não importava o que acontecesse, enquanto controlava sua reação com a dor que percorre seu corpo. Ela havia enfrentado pior, aquilo não era nada. — O nome dela é Maryse, para sua informação, e a próxima vez que falar mal dela, eu te quebro, entendeu, ?
   trinca os dentes com força ao sentir Lorraine limpar o ferimento em seu ombro, ignorando a ameaça como alguém que havia acabado de ouvir um idiota dizer que o céu é roxo e o mundo estava acabando. Ela não podia dar mais a mínima para essa merda.
  — Que doce. Doc sabe disso? Sabe que a putinha dele encontrou uma para si? — diz com um tom de voz afiado de propósito. Os olhos cintilam com irritação, mas ela não se importa em ocultar aquilo. Doc era um denominador comum na vida das duas, não havia motivos para fingir que não era. Lorraine aperta o ferimento, enviando uma onda de dor pelo corpo de , e, pela primeira vez, isso tem ao menos o efeito de clarear sua própria mente. Era masoquista? Era estúpido? Talvez, mas não podia se dizer ineficaz, ao menos a voz de Beatriz havia se silenciado ao fundo de sua mente.
  — Não, e você não vai dizer porra nenhuma, entendeu, ? — diz Lorraine com um tom de voz baixo, urgente e morde sua língua com força. O gosto de sangue é pungente por sua boca e ela o engole com familiaridade, fazendo uma careta consigo mesma. Aí estava, a pior estupidez que você poderia fazer. Ao apegar-se a algo, você abria uma vulnerabilidade, e ao apresentar essa vulnerabilidade, não demoraria muito para você encontrar uma maneira de explorar essa abertura. Sua vulnerabilidade apresentava a maneira que você morreria, era escolha sua continuar com isso ou tomar um jeito e deixar essa merda para trás. Lorraine une as sobrancelhas, apertando o ferimento de com um pouco mais de força, enquanto a urgência começa a se revelar através de seus atos. — Não vai dizer nada a ninguém, !
   volta seu rosto lentamente na direção de Lorraine e então a encara em silêncio por um longo momento. Lorraine é bonita, vinha de uma família prestigiada, pais importantes e influentes, amáveis até. A desgraçada poderia fazer o que desejasse. A desgraçada poderia até mesmo abrir uma butique de roupas e se limitar a ser uma esposa troféu que teria sua vida garantida, Lorraine Ryder não precisava de nada daquela merda... e, no entanto, aqui estava. Ao menos Lorraine não havia feito um pacto com demônio, só com o gangster poderoso de Manchester, pensa consigo mesma, amarga.
  — Pelo preço certo, Ryder, eu até protejo vocês duas — diz com um tom de voz sarcástico e ela até teria se sentido mal pelo vislumbre breve de mágoa que surge no olhar de Lorraine, se ela se importasse com a outra. Mas não o fazia. não se importava com ninguém, apenas consigo mesma. Essa era sua maldição. desvia o olhar para suas próprias mãos, observando o sangue com indiferença, até mesmo nojo. — Relaxa, Ryder, tô com meus dias contados aqui, só preciso de uma ou duas semanas e tô fora. Nunca mais vai me ver ou ouvir falar de mim outra vez.
  Lori franze o cenho, ela para, por um breve momento, de tentar extrair o projetil no ombro de com a pinça de metal grande, cegamente, apenas buscando pelo projetil no que deveria ter sido algo que levaria mesmo às lágrimas, mas bem, quando não parecia anestesiada para a realidade?
  — A gente tem um contrato, , não é assim que as coisas funcionam.
  — Foda-se o contrato, Lorraine — rosna , tentando conter o impulso de acertá-la e simplesmente calá-la. Deus, sua cabeça estava explodindo. apoia seu braço bom sobre seu joelho, observando a mão trêmula com irritação. Não importava o quanto  ela tentasse controlar suas emoções, nunca funcionava de fato. — Já deu para mim. Quer continuar com essa merda de joguinhos com Doc, continua, seja minha convidada, mas eu tô fora.
  Lorraine bufa consigo mesma, e então, com um puxão mais brusco do que deveria, arranca o projetil de dentro do ombro de que, desta vez, não consegue conter o gemido de dor. Puta que pariu, Lorraine era perfeita em tudo, menos no cuidado. Desgraçada maldita.
   tenta não se encolher enquanto Lorraine passa a tentar suturar o ferimento, com um movimento deliberado que era: ou proposital para tortura-la e fazê-la pagar pelo comentário a Maryse, ou simplesmente hesitante demais para vir de alguém que tivera realmente experiência com suturar ferimentos de fato.
  — E então, cê vai pra onde? Acorda, , ninguém tá disposto a ajudar você em mais nenhum lugar, cê tá tão presa aqui quanto qualquer um de nós.
   trinca os dentes com força. Outro bom ponto. Era fodido ter que discutir com uma advogada quando esta era perspicaz o suficiente para se dar ao trabalho de lhe oferecer fatos e não projeções pessoais.
  — Doc tá na minha cola. Vai ter minha cabeça nesse fim de semana ou no próximo. Tô fora daqui antes que ele consiga pegar — resmunga com um tom de voz sarcástico, considerando brevemente se o caminho mais fácil não era sua melhor opção. Quer dizer, o cara já estava querendo matá-la de qualquer forma, por que simplesmente não o deixar fazer? Poupava ambos o trabalho.
  Lorraine não responde. Pelos próximos minutos a loira apenas silenciosamente termina de suturar o ferimento de e coloca os curativos no lugar, com força o suficiente para que ao menos não continuasse se desfazendo em sague. Os olhos de se estreiam enquanto ela volta sua atenção outra vez para o rosto de Lorraine. Ryder poderia ter muitas qualidades, porra poderia ser a pessoa mais perfeita que havia conhecido, mas ainda era uma mulher idiota, e seu rosto fácil de ser lido. Estava escondendo alguma coisa. O canto dos lábios repuxados para baixo, o olhar fixo na tarefa em mãos, e não no rosto de , o pequeno vinco se formando por entre a sobrancelhas dela, eram como um livro aberto.
  — Você não é o alvo dele, . Você é a isca — é tudo o que Lorraine diz, e sente uma ponta de confusão com o comentário. Uma isca para quem? ? O filha da puta sequer sabia que ela ainda estava viva, como poderia ser uma isca para atrair para algo? Que Doc e tinham seus problemas, sabia, e não se importava, mas assumir que poderia ser a isca perfeita para cair em qualquer que fosse o jogo de Doc, isso era estupidez. Nada que se tratava em relação aos dois era algo além de interesse momentâneo… tecnicamente. Quem Doc estava querendo atrair usando , senão…
  Uma nota gélida de arrepio percorre a espinha de a fazendo congelar no lugar.
  Não. Se não era , então era…
  — Peguei mais cedo, antes que os policiais pudessem vasculhar essa merda. Olha, honestamente, eu não faço ideia de qual é o seu problema com Cortez, mas se resolve. Eu não vou liberar esse espaço para você receber drogas à vontade. Se quer continuar recebendo essa merda, deixa catalogado no teu pardieiro, não meu escritório — acusa Lorraine com um tom de voz exasperado, mas contido enquanto arremessa, do bolso de trás de sua calça de alfaiataria, o frasco com seu remédio. Alívio atinge que não hesita em praticamente se jogar para pegar o frasco da mão da loira.
  Que Lorraine a chamasse de viciada ou o caralho a quatro, não se importava com nenhum dos comentários que eventualmente iria receber, apenas com o alívio que se espalha por sua mente enquanto observa a prescrição. Finalmente, porra. Finalmente. Ela abre o frasco, resmungando alguma coisa ininteligível para Lorraine, ignorando-a quando a britânica oferece a seu sofá, em seu apartamento no terceiro andar do prédio, para que ela pudesse pelo menos ter algumas breves horas de sono se assim desejasse. Tudo o que tem a atenção de naquele momento são os compridos.
   pega três de uma vez, ciente que poderia ser uma dose bem maior do que a recomendada, mas desesperada para o alívio que sempre se seguia após ingeri-lo, desejando que fosse mais rápido do que normalmente era. Engole os comprimidos com a própria saliva, sem paciência para encontrar água e, por um breve segundo, ela fecha os olhos.
  O remédio não faz efeito imediato, mas, aos poucos, consegue sentir seu coração diminuir em velocidade, as mãos pararem de tremer, e, acima de tudo, a voz de Beatriz some. solta um soluço baixo, levando as duas mãos em direção à sua própria cabeça, os dedos percorrendo os fios agora secos, emplastrado com o próprio sangue, enquanto ela esfregava as unhas em seu couro cabeludo ansiosamente. Ela exala fundo, sentindo seu corpo aos poucos relaxar. Porra...
  Um pequeno papel dentro do frasco chama a atenção de enquanto ela se levanta do chão de seu escritório, chutando um pedaço de vidro para fora de seu caminho, e parte para fora do espaço em direção ao apartamento de Ryder no terceiro andar. Seus músculos doloridos e pesados pela mistura de exaustão, mental e física, e a letargia trazida pelos comprimentos. Com uma letra elegante e curvilínea, o papel diz:
  “Uma oferta de paz para amigos que não precisam ser inimigos – Z. K.”
   solta um riso desacreditado, um soluço quase escapando de sua garganta outra vez — se de alívio, exaustão ou frustração, jamais saberia dizer com certeza — enquanto ela amassa o papel em sua mão com força. Não o alvo, a isca. Ah, ela iria mostrar quem era a porra da isca naquele jogo doentio.

•••

  ! ! Cadê você? Qual é, perdeu a graça já, para! — A voz de Beatriz ecoa por entre os corredores de tijolões e muros enquanto solta um risinho despreocupado consigo mesma, descascando a mexerica, com preguiça, que ela havia roubado da janela da vizinha Janette fazia nem muito tempo assim. Teria pegado a pera também, mas Sylvester Stallone, ou como as outras crianças chamavam, “assassino”, o cachorro vira-lata meio pitbull meio salsicha de Janette estava por perto, e a última coisa que queria era correr daquele cachorro de novo. Ela poderia ser petulante e traiçoeira, mas tinha medo daquele cachorro salsicha esquisito.
  O chinelo velho com o calcanhar gasto e com as marcas dos dedos da garotinha estavam precariamente pendurados por entre seus dedos, o prego atravessando a alça mantendo-a no lugar em uma tentativa improvisada de fazê-lo durar um pouco mais, enquanto ela se recostava contra o tronco da árvore, preguiçosamente. Inúmeros arranhões em seus braços, rosto e pernas evidenciavam a tentativa e falha constante de se equilibrar naquele maldito galho, mas bem, era teimosa, certo? Além disso, ela adorava pregar peças em Beatriz.
  Era um pouco idiota e insensível, e frequentemente se sentia culpada, mas havia uma ponta de divertimento em ver Beatriz, sua gêmea, exasperada enquanto a caçava pelas vielas da comunidade. Não que houvessem muitos lugares para que pudesse se esconder ali — e, acredite, ela havia procurado todos.
  Para com isso, ! Já tá chato! Eu vou contar pra mãe!— Beatriz funga, batendo o pé no chão, abaixo da árvore, olhando para todos os lados, menos o certo, enquanto revirava os olhos. Por que Beatriz sempre tinha que chorar para conseguir o que queria? suspira pesado, se deixando cair para trás, assoprando a nuca de Beatriz para assustar a gêmea enquanto ficava de ponta cabeça no galho da árvore. Beatriz solta um grito assustado, e salta no lugar, antes de se virar para encarar irritada que gargalha alto. Típica Beatriz, sempre medrosa.
  Oxi, a mãe não tá no Zé de novo? Tio Chico tava vindo de lá, faca e tudo, disse que ela tinha ido pra lá de novo antes de subir o morro— resmunga dando de ombros, e então abrindo a boca para mostrar a mexerica mastigada para Beatriz, sabendo que isso a faria sentir nojo. Beatriz solta um ruído de vômito e então fecha a boca, rindo baixinho. Um soco de Beatriz é o suficiente para a derrubar do tronco em que está se agarrando, e desabar no chão com um grito de dor e toda torta. sente as lágrimas se formarem em seus olhos, e ela começa a fungar, mas não vai chorar. — Por que fez isso, idiota! — Apesar de ser uma pergunta, soa como uma acusação.
  Você que é idiota!— responde Beatriz quase ao mesmo tempo, e então, antes que possa compreender o emaranhado de palavras e grunhidos de raiva, as duas garotinhas começam a se bater, brigando fisicamente como normalmente acontecia quase todos os dias, até que começasse a chorar, porque sempre começava as brigas, e sempre terminava chorando.
  Mas dessa vez, tem algo diferente. O que separa a briga não são os arranhões de Beatriz, ou o choro de frustração de , mas sim um ato externo, distante, mas se aproximando de maneira vagarosa, desconhecida, anormal e assustadora. Estranho o suficiente para fazer as duas garotinhas congelarem no lugar e se esquecerem da briga, abraçando uma a outra. O suficiente para que Beatriz, como sempre, se colocasse entre e o perigo, usando o corpinho para proteger a gêmea, enquanto o cheiro de tabaco permeava o espaço. Nauseante.
  Um assobio. Três notas.
   abre os olhos bruscamente, respirando fundo, enquanto sente-se atordoada. O efeito da droga deveria estar diminuindo um pouco, a sensação de letargia ainda presente, mas mais controlada, enquanto as pupilas dilatadas de se contraíam, antes de voltar a se dilatarem outra vez. exala lentamente, levando sua mão em direção à sua cabeça, fazendo uma careta. Podia sentir seu corpo estranhamente restringido, os músculos tensos e trêmulos, mas não havia dor pelo menos.
  Ela estava coberta de suor, os cabelos grudando em suas têmporas e nuca, enquanto gotas de suor igualmente escorriam pela lateral de seu pescoço e rosto. As palmas de suas mãos estavam gélidas, e sua respiração estava pesada. A letargia do sono ainda estava martelando em sua mente, quando lentamente a memória dos acontecimentos recentes a atinge, e ela pragueja em alto e bom tom.
  Merda…
  — Impressionante, você é o mais próximo de uma barata na hierarquia humana. Não importa o que tente te matar, você dá um jeito de sobreviver — resmunga Lori do outro lado da sala de estar do apartamento dela, e aperta os lábios lançando um olhar em forma de aviso para Lorraine. Ryder apenas dá de ombros, um sorrisinho desdenhoso preso aos lábios e então vira a página da pasta parda de seu próximo caso, repousada em seu colo, girando distraidamente uma caneta por entre seus dedos. inspira fundo, se sentando lentamente no sofá estupidamente macio e impecável de Lorraine, esfregando com impaciência seu rosto. — Como está se sentindo?
  — Como uma merda.
  — Perfeito. — Lorraine se levanta da poltrona, e não percebe que um riso amargo, camuflado com um bufar, escapa por entre os dentes cerrados dela. Os olhos de se encontram com os de Lorraine por um momento, e a pontada de culpa a atinge. Mas o momento some tão rápido quanto chega, a máscara de de volta ao lugar, impenetrável, rígida como sempre. Como havia sido treinada para ser. — Agora que você tá de volta ao estado drogada-semi-presente-mas-controlada, levanta essa bunda gorda do meu sofá. A gente tem trabalho para fazer e você, minha filha, tá fodida até o pescoço — resmunga Lori com um tom de voz exasperado, enfiando suas mãos nos bolsos de seu casaco, lançando um olhar sério na direção de . Mas, como sempre, não reage, apenas a encara fixamente. Por um longo momento, a observa, antes dos olhos da brasileira se estreitarem, a postura dela se endireitando, tensa, desconfiando de quais seriam as próximas palavras de Lorraine, mas ainda assim, esperando que a loira terminasse seu monólogo ou o que quer diabos fosse aquilo. Sua mente acelerando-se de 0 à 1.000 em questões de segundos enquanto calculava as possibilidades e potenciais problemas em seu caminho. , é claro que teria alguma relação com aquela merda. Ser enganado e aceitar com graça? Nah, era o idiota mais vingativo e rancoroso que já havia tido o desprazer de chutar pelo caminho. — Lembra do seu amigo? Senhor Andrews? O marido da nossa cliente? Pois é, gostosa, a polícia acabou de achar o corpo dele no seu apartamento. Lamento informar, mas você acaba de se tornar a principal suspeita.

Continua...

  NOTA DA AUTORA: finalmente a gente chegou no ponto que eu queria, cortei a continuação do flashback do capítulo 2 porque iria ficar muito grande nesse. Agora é fogo no parquinho. A partir de agora, começa a ficar bem mais pesado e sombrio, então, POR FAVOR, fique atenta aos gatilhos! Quero agradecer, a propósito, pelo 10 lugar nas Mais Lidas, de verdade, muito, muito obrigada; mesmo que essa fic não mereça, e tenha outras muito melhores por aí. Valeu demais! Todos os créditos para Lelen, que é torturada a cada mês com os meus capítulos longos, cheios de erros e personagens malucos, ❤ se essa fic tem uma alma, é por causa de ti, muito obrigada pelo teu trabalho e apoio! ❤ Esta fic é escrita de madrugada, quando estou sobrecarregada com estímulos externos e preciso de uma forma de me regular, portanto perdão antecipado por incoerências, erros gramaticais e algumas confusões, meu e-mail está sempre aberto para discussões e opiniões.



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