Watching Over You

Escrito por Fe Camilo | Revisado por Lelen

Tamanho da fonte: |


  Londres, 24 de Dezembro de 2017

  Tudo estava perfeito. A decoração de Natal, apesar de simples, me fazia sentir como se tivesse voltado para casa, onde minha mãe sempre decorava cada parte com atenção e alegria excepcional. Eu mal conseguia acreditar que havia desistido de ir visitá-los como de costume para passar os feriados com uma pessoa que conhecia há tão pouco tempo. Mas tinha algo na maneira como ele me entendia como ninguém e era tão parecido comigo que era especial demais para ser ignorado. 
  Ouvi a campainha tocando e corri para o quarto para olhar novamente no espelho, ajeitando o cabelo uma última vez antes de atender a porta. parecia um Deus grego com seu habitual sorriso tímido e roupas escuras que destacavam o tom da sua pele. Demorei um segundo analisando o quão perfeito ele parecia antes de me tocar que ele carregava uma bandeja enorme além de diversas sacolas penduradas nos braços.
  - Ops. Entra, entra. – O apressei, fechando a porta e me oferecendo para ajudá-lo a carregar as coisas, mas ele preferiu colocar o que só poderia ser o peru no centro da mesa antes de colocar as sacolas ao lado da árvore.
  E então, inesperadamente, seguiu em minha direção novamente, me puxando para perto e me beijando como se eu fosse a materialização dos seus sonhos. Talvez eu devesse adicionar isso à lista dos motivos pelo qual passar o final de ano com ele era a decisão certa: ele sempre me tratava como se eu fosse a pessoa mais especial do mundo e não havia nada tão gostoso quanto seus beijos e carícias. Assim que paramos o beijo, ele acariciou meu rosto e se distanciou olhando ao redor e apreciando a decoração.
  - Ficou perfeito – elogiou tocando na estrela ao topo da árvore.
  - Obrigada – agradeci caminhando até a bancada da cozinha e colocando vinho em duas taças, lhe oferecendo uma.
  - Ao primeiro Natal de muitos que virão – ele disse, me arrancando um sorriso involuntário.
  - Cheers!
  Nos sentamos no sofá praticamente grudados um no outro enquanto tomávamos nosso vinho e ele comentava sobre o peru que havia preparado, informando que era sua especialidade.
  - Já eu sinto informar que gastronomia definitivamente não está entre os meus talentos – assumi vergonhosamente.
  - Nada que você faz pode ser ruim. – Me defendeu com uma expressão ofendida antes de me dar um beijo. – Tenho certeza de que está tudo perfeito.
  - Eu tenho certeza de que vou precisar me redimir com o presente... e por falar nele, por que tantas sacolas? – questionei apontando para o amontoado ao lado da árvore.
  - Bom, eu sei que você tem uma família grande e que você receberia um monte de presentes se tivesse ido para a Colômbia esse ano. Porém, como você optou por me fazer companhia, achei que era justo lhe entregar a quantidade aproximada de presentes que você receberia se tivesse ido.
  Me desenrosquei do seu abraço em choque para poder analisar seu rosto e checar se ele realmente falava a verdade, notando imediatamente que ele não estava brincando.
  - Você simplesmente não existe – comentei pensando em me beliscar para ter certeza de que havia realmente tirado a sorte grande de conseguir um homem como ele.
  - Bom, se eu não existisse seria uma pena porque não poderia fazer isso – disse antes de dar um beijo no meu maxilar –, nem isso – uma mordida em meu lábio inferior levando as mãos à minha cintura – e muito menos todas as outras coisas que pretendo fazer com você essa noite.
  Não contive o sorriso largo em meus lábios antes de levar as mãos aos seus cabelos e puxá-lo para um beijo. Ele poderia até ser uma miragem ou fruto da minha imaginação, mas se fosse eu jamais gostaria de acordar.


  Londres, 03 de Fevereiro de 2018

  Acordei sentindo uma pequena cócega em meus ombros e antes mesmo de abrir os olhos percebi que era depositando beijos molhados pelo local. Em seguida seus braços me envolveram em um abraço e me aconcheguei mais em seu corpo, aproveitando seu calor e seu cheiro de loção pós-barba. Assim que percebeu que eu estava acordada me virou para depositar um beijo em minha bochecha.
  - Bom dia, bela adormecida.
  Olhei em seus olhos escuros, apreciando o brilho que ele tinha sempre que seu olhar estava direcionado a mim. Levei minha mão ao seu cabelo molhado o bagunçando um pouco, eu amava a maneira como ele se moldava ao seu rosto.
  - Bom dia, cariño – respondi com um sorriso largo.
  - Se você começar a falar comigo em espanhol a essa hora, ao invés de te alimentar eu é quem vou devorar você – disse dando uma mordida em meu lábio.
  - Tal vez esa sea exactamente mi intención – brinquei levantando a sobrancelha em desafio.
  Seus olhos se estreitaram aceitando o desafio e antes que eu pudesse dizer qualquer outra coisa sua boca atacava meu pescoço enquanto sua mão direita passeava por meu tronco seguindo em direção à parte inferior do meu pijama.
  - Okay, talvez essa seja minha intenção depois que eu estiver devidamente alimentada. – Me corrigi rindo, segurando a mão que já se encontrava em minha virilha antes que ele pudesse ir além.
  - Niña mala – disse com o sotaque carregadíssimo antes de se levantar da cama, ele estava tentando aprender espanhol há alguns meses desde que descobrira minha origem.
  Só então reparei que a bandeja com um café da manhã completo para duas pessoas já estava na mesa de cabeceira. a colocou cuidadosamente sobre a cama e passamos a comer calmamente enquanto discutíamos nossos planos para o dia. Ele precisava voltar para seu apartamento para organizar as coisas por lá enquanto eu precisava ir até a universidade onde daria aulas praticamente o dia todo.
  A melhor coisa de conviver com Benjamim, além dos mimos e atenção constante, era definitivamente a forma como tudo parecia simplesmente natural, fluindo com leveza e tranquilidade. Nos conhecíamos há quase cinco meses e desde que o conhecera não houve um momento de hesitação ou preocupação, cada ação sendo consequência da vontade de nossos corações por mais piegas que isso possa soar.
  Terminei as minhas torradas e tomei um gole do chocolate quente soltando um gemido involuntário no momento que o sabor atingiu meu paladar.
  - Esse tem de ser exatamente o mesmo chocolate que eles tomam no paraíso – comentei arrancando uma risada tímida de . – Você tem ideia do quão mal-acostumada você tem me deixado? Como eu vou acordar amanhã e beber qualquer coisa que não seja essa bebida dos deuses?
  Terminei de tomar o líquido quente e Benjamim retirou a bandeja do caminho antes de se aproximar um pouco mais, segurando meu rosto com delicadeza e iniciando um beijo intenso e demorado antes de responder.
  - Se você me permitir, eu posso fazer isso e muito mais por você todos os dias até o fim das nossas vidas. – A intensidade com que ele me olhava me deixou atordoada por alguns segundos.
  - Como assim? – questionei um tanto perdida naquelas órbitas escuras.
  - Eu... – ele parecia procurar pelas palavras certas para dizer, um nervosismo atípico tomando conta de sua expressão – Eu só queria poder passar mais tempo com você. Sempre que eu estou longe eu sinto sua falta, e se não morássemos tão longe eu poderia te ver todos os dias.
  - Awn, eu também sinto sua falta, cariño – respondi dando um beijo em sua bochecha. – Eu acordaria todos os dias com seus beijos e aceitaria de bom grado seu café da manhã perfeito.
  - E o que está nos impedindo, então? – O olhei confusa, aguardando por uma explicação. – Por que não moramos juntos e assim podemos aproveitar um ao outro todos os dias?
  Sabe quando sua mente parece parar de funcionar e você simplesmente não consegue produzir nenhum pensamento coerente? Foi assim que me senti naquele momento. Eu entendia a proposta de , mas não conseguia mensurar as implicações dela, pega de surpresa com uma ideia tão precoce. Ele pareceu notar minha hesitação e antes que eu pudesse responder estava sobre mim, confundindo ainda mais minha mente com seu rosto absurdamente lindo e seu cheiro inconfundível.
  - Eu estou falando sério, . Eu sei que não nos conhecemos há tanto tempo, mas se eu tenho certeza de algo nessa vida é o fato de que eu quero que você seja parte dela – confessou segurando meu rosto com delicadeza, direcionando meus olhos na direção dos dele. – Eu te amo tanto. Eu quero cuidar de você, te mimar, te amar todos os dias e passar cada dia da minha vida tentando fazer você feliz.
  A declaração tão intensa era um tanto inesperada, mas havia certa familiaridade em suas palavras. Eu sabia o quão verdadeiras elas eram, ele me demonstrava sempre que tinha oportunidade o quanto me amava e fazia de tudo para tornar cada momento especial. queria me fazer feliz e eu sabia que essa era sua especialidade. Mas ainda assim, não era uma decisão precipitada, feita no calor do momento? Senti seus lábios traçando um caminho de beijos por meu pescoço e jugular nos meus pontos favoritos, me arrancando suspiros e afastando as dúvidas que tentavam surgir em minha mente.
  - Você sabe o quanto vai ser bom, , nós dois sabemos que o que temos é especial. Eu vou te provar todos os dias que essa foi a melhor decisão da sua vida. – Seus lábios então se juntaram aos meus e um simples “sim” em concordância foi pronunciado antes que eu pudesse me permitir pensar.


  Londres, 15 de Maio de 2018
  - À e seu habeas corpus que a permitiu finalmente lembrar que tem amigas e se juntar à civilização! – Brincou Felicia oferecendo seu copo para um brinde.
  Todas rimos e brindamos alegremente, felizes por estarmos finalmente juntas depois de tanto tempo. Felicia e Bridget eram minhas melhores amigas desde que chegara em Londres há oito anos. A princípio dividimos um apartamento em nosso intercâmbio estudantil e desde então nos tornamos inseparáveis. Eu não as via desde janeiro, um tempo recorde para quem costumava se encontrar semanalmente.
  - Desculpa, meninas, prometo que não vai acontecer novamente – prometi com um sorriso culpado.
  - Você diz isso agora, mas desde que a piroca divina entrou na sua vida você simplesmente só sabe viver para ela. – Continuou Felicia em seu habitual tom sarcástico, nos fazendo rir novamente.
  - Não liga, , ela só está com inveja porque também quer uma e o mercado atual não está favorecendo. – Bridget amenizou os ataques brincalhões de Felicia.
  - Eu sei, Bri, mas também sei que não fui uma amiga tão presente nos últimos tempos. Toda a correria da mudança do e depois a organização da nova rotina acabou tomando toda minha atenção – me expliquei.
  - Afinal, quando vamos conhecer o alecrim dourado? – Felicia questionou colocando alguns amendoins na boca. – Porque eu realmente preciso ver com meus próprios olhos se ele é tão perfeito como você o faz parecer ser.
  - Logo, eu acho – respondi com um sorriso largo me lembrando das vezes que me gabei um pouco por quão incrível Benjamim era. – Vocês sabem que ele é um pouco tímido e reservado, não é muito fã de sair e conhecer pessoas novas.
  - , meu amor, eu não poderia me importar menos com o que ele gosta ou desgosta. Ele praticamente te sequestrou nos últimos meses, então o mínimo que tem de fazer é se apresentar como um bom gentleman para que tenhamos material para falar dele pelas costas.
  Todas rimos com a bobeira corriqueira de Felicia, eu não lembrava do quanto sentia falta de seu jeito doidinho e sem papas na língua. E naquele momento fiz uma promessa mental para não me afastar novamente delas por qualquer razão que fosse.
  - Mas e aí, como tem sido morar junto com ele? – Bridget perguntou com seu jeito doce.
  - Tem sido... interessante. – Assim que notei o olhar das garotas remendei. – De um jeito bom, é claro. Ele é extremamente atencioso e carinhoso, e faz basicamente de tudo para me agradar e para que eu esteja sempre contente.
  - Mas...? – Felícia questionou com os olhos cerrados em desconfiança.
  - Não tem um “mas” – respondi tomando um longo gole do meu daiquiri.
  - , nós te conhecemos há oito anos, criatura. Você acha mesmo que consegue nos enganar? – Suspirei um tanto desconfortável, calculando minhas próximas palavras.
  - Às vezes sinto falta de ficar um pouco sozinha, só isso – respondi honestamente. – Ele é bem presente, o que é fofo, mas às vezes sinto como se eu fosse o centro do seu universo, sabe? Queria que ele tivesse amigos e hobbies e fizesse outras coisas além de ficar só comigo o todo tempo.
  As duas me ouviram atentamente e permaneceram caladas depois do meu desabafo. Levantei a sobrancelha em questionamento, aguardando que elas dessem suas opiniões, mas Bridget desviou o olhar enquanto Felicia se concentrava absurdamente na própria bebida.
  - Isso é ruim, né? – perguntei mordendo o lábio.
  - Olha, do meu ponto de vista... – Felicia começou, mas foi interrompida por Bri que segurou em seu braço a fazendo se calar.
  - Acho que é normal, , você estava acostumada a viver sozinha por anos e é diferente ter alguém com você 24/7. Mas se você quer fazer coisas sozinhas e deseja que ele faça o mesmo, você deveria falar com ele.
  Felicia voltou a se ocupar com a bebida, mas assentiu como se concordasse com o que Bridget falara. Eu desviei o olhar para a frente do bar um tanto pensativa, vendo uma sombra estranha do outro lado da rua até reparar que se tratava de uma pessoa. Cerrei os olhos tentando distinguir a fisionomia familiar apesar da escuridão, quase certa de que se parecia muito com .
  - Agora chega de falar de macho. Eu tenho novidades! – Felícia exclamou de repente, dominando minha atenção. Bri bateu palmas empolgada para ouvir o que ela tinha a dizer e eu sorri distraída, voltando a olhar para a frente do bar com uma sensação estranha na boca do estômago, mas a “sombra” já havia desaparecido.


  Londres, 03 de Junho de 2018

  - E a Sra. Brown que parece ter aquela carranca congelada na cara? – José comentou enquanto entrávamos em mais um acesso de riso. – Sério, ela nunca sorri mesmo?
  - Olha, eu a conheço por cinco anos e até hoje nunca vi, então eu diria que não. – Concordei limpando a lágrima que escorria do meu olho.
  José Lopez era o novo professor contratado pela Universidade para dar aulas de Antropologia, e fazia anos que eu não me divertia tanto no trabalho como aquele dia. Além de compartilhar dos mesmos choques culturais que eu vivi quando cheguei na cidade, era divertido trocar experiências e ter sua companhia fazendo comentários engraçados a todo momento.
  - Bom, acho que é aqui que nos despedimos – ele disse assim que chegamos no portão de entrada. – A não ser que...
  - Hola mi vida. – Me sobressaltei ao ouvir o sotaque carregado de acompanhado dos seus braços envolvendo minha cintura.
  - Ah! Oi, cariño. O que você está fazendo por aqui? – Eu podia contar nos dedos de uma única mão as vezes em que o vira fora de casa.
  - Vim te buscar para voltarmos juntos – respondeu como se fosse a coisa mais comum do mundo, mas contive o franzido na testa quando notei o olhar desconfortável de José.
  - Hum... José, esse é meu namorado . , esse é José, o novo professor da Universidade.
  - É um prazer conhecê-lo. – José cumprimentou oferecendo a mão, retribuiu o aperto de mão, mas não disse nada. – Bom, acho que essa é a minha deixa. Te vejo amanhã, .
  - Hasta mañana – respondi com um aceno.
  Assim que José estava fora de vista olhei para , reparando no maxilar travado e uma irritação evidente em seu olhar.
  - Algum problema? – questionei confusa.
  - Quem é esse cara? – perguntou em contrapartida.
  - Eu já disse, o novo professor da Universidade.
  - E o que vocês estavam fazendo juntos? – Continuou como se eu tivesse cometido algum crime.
  - Conversando? Eu o ajudei a conhecer o campus – disse, dando de ombros. – Não estou entendendo por que você está tão irritado.
  Ele ficou em silêncio enquanto caminhávamos, respirando fundo para tentar se acalmar enquanto eu simplesmente não conseguia compreender a energia estranha que ele emanava. Não estávamos fazendo nada além de zoar o restante do corpo docente, e era estranho ver – sempre tão calmo e sereno – incomodado por algo tão simples. De repente ele parou e me puxou para um abraço, e me permiti afundar o rosto em seu peito sentindo seu perfume incrível.
  - Me desculpa – sussurrou contra o meu cabelo antes de depositar um beijo na minha testa e me olhar nos olhos, toda a irritação havia sumido de seu rosto. – Acho que fiquei com ciúmes, e confesso que não estou acostumado com o sentimento.
  Sorri em resposta, compreendendo sua insegurança ainda que não tivesse o menor motivo para preocupações.
  - Tudo bem, mas não precisa se preocupar, solo tengo ojos para ti.
  - Que bom. Porque eu só consigo pensar em uma vida com você e ninguém mais – confessou me puxando para um beijo terno. – Te quiero mucho.
  - Te quiero. – Retribuí ignorando a sensação estranha que me acometeu no momento que vira aquele brilho mordaz em seu olhar.


  Londres, 12 de Junho de 2018
  - Meu Deus! – Foi a primeira coisa que consegui expressar ao ler a mensagem do Professor Williams, um pavor acometendo meu corpo imediatamente. Em poucos segundos estava ao meu lado com um olhar preocupado.
  - O que houve, meu amor? Está tudo bem? – questionou confuso.
  Incapaz de abrir a boca para explicar o que acabara de descobrir, me sentei no sofá, tentando organizar meus pensamentos. Como era possível que algo assim tivesse acontecido? Entreguei meu celular para que visse a mensagem e entendesse o que me deixou tão atordoada e notei quando seu rosto empalideceu. Há apenas dois dias eu e José tomávamos um café enquanto discutíamos Arte Rupestre, e agora descobria que ele estava em coma em uma cama de hospital lutando pela própria vida.
  - Como isso é possível? – ele questionou retoricamente. De acordo com o Professor Williams, José aparentemente perdeu o equilíbrio e caiu da escada do oitavo andar rolando alguns lances abaixo. percebeu que eu estava abalada demais para responder e me deu um abraço, em seguida dando um beijo em minha bochecha e sussurrando: – Eu vou fazer um chá para acalmar os nervos.
  Em poucos minutos ele estava de volta com o líquido fumegante e eu permanecia na mesma posição, tentando entender se não estava em um pesadelo horrível. Tomei alguns goles da bebida, sentindo meu corpo se aquecer aos poucos e meu corpo relaxar.
  - Você quer ir visitá-lo? Eu posso ir com você – ele sugeriu enlaçando sua mão na minha. Deixei a caneca sobre a mesa de centro e repousei minha cabeça em seu ombro, me aconchegando em seu calor.
  - Acho melhor não. Eu nem o conheço há tanto tempo... é melhor que a família esteja com ele agora – respondi após pensar por alguns minutos.
  - O que você achar melhor. Estou aqui para o que precisar – me assegurou, envolvendo meu corpo em um abraço terno.
  Naquela noite tive dificuldade para dormir, atormentada por pesadelos horríveis, um deles permaneceu extremamente vívido em minha mente no momento que acordei: alguém me empurrava do topo de uma escada.


  Londres, 13 de Junho de 2018
  Passei as duas primeiras aulas matinais atordoada com as imagens que me atormentaram durante a noite, e tentando ignorar a energia estranha que dominava os ambientes, muitos dos alunos e professores preocupados com o estado de José.
  - ... e aparentemente a família só conseguirá chegar no fim de semana, o que quer dizer que pelos próximos dias o coitado ficará sozinho naquele lugar. – Ouvi Vivian – uma outra professora – comentando com o Professor Williams.
  - Você sabe onde ele está hospitalizado? – questionei assim que o pensamento me ocorreu. Os dois se viraram para mim confusos pelo fato de eu estar ouvindo sua conversa.
  - No Hospital St. Thomas – Vivian respondeu após alguns segundos de hesitação.
  Sorri em agradecimento e me afastei, pegando a minha bolsa no armário da sala dos professores e saindo apressada da Universidade. Havia alguma voz no fundo da minha consciência insistindo para que eu fosse até lá e o visse com meus próprios olhos para me certificar de que ele ficaria bem. Eu sabia que não o conhecia há tempo suficiente para estar tão investida na situação, mas ele já havia conquistado minha amizade e carinho gratuitos, e se houvesse qualquer coisa que pudesse fazer para ajudar, eu faria.
  Peguei um taxi que passava pela rua e cheguei no hospital em menos de meia hora, agradecendo à Santa Guadalupe pelo trânsito tranquilo. Foi menos difícil do que imaginei conseguir as informações sobre o local em que ele estava, e para minha surpresa pude visitá-lo mesmo não sendo parte da sua família. Assim que meus olhos caíram sobre o corpo esguio completamente enfaixado e fragilizado, não pude conter as lágrimas.
  - Namorada? – uma voz atrás de mim questionou, me sobressaltando. Rapidamente peguei um lenço na bolsa e tentei parecer mais apresentável antes de me virar para o enfermeiro que adentrada o quarto.
  - Não, colega de trabalho – respondi, logo em seguida questionando apreensiva. – Como ele está?
  - Bom, poderia estar melhor. Os médicos já fizeram tudo que podiam para tratá-lo, mas ele teve um traumatismo craniano devido ao impacto da queda. Agora só nos resta aguardar que ele acorde por conta própria.
  - Meu Deus – sussurrei tentando conter a nova leva de lágrimas que insistiam em cair. Observei enquanto o enfermeiro – Robert, de acordo com a etiqueta em seu uniforme – ajustava a medicação e trocava os cabos em seus braços.
  - Ele teve sorte até, apesar de tudo, então acredito que ainda não seja sua hora – ele comentou de forma casual.
  - Sorte? – questionei confusa.
  - Sim, não fosse o rapaz que o socorreu, ele poderia estar morto agora. Eu acredito que Deus o colocou em seu caminho para salvá-lo.
  - Um vizinho? – indaguei curiosa, parcialmente concordando que deveria ter sido alguma intervenção divina.
  - Aparentemente, não. Estava apenas visitando alguém no condomínio, por isso não pôde vir conosco para dar entrada no hospital. – O enfermeiro continuou. – Um rapaz muito gentil, por sinal, e parecia extremamente preocupado embora sequer o conhecesse. Tenho certeza de que se pudesse, teria ficado responsável pelo paciente.
  Contemplei suas palavras, absorvendo as informações com um pouco mais de lentidão do que o normal. Por mais que ele falasse tudo com naturalidade, havia algo na narrativa que parecia se sobressaltar em minha mente.
  - Como ele era? – perguntei antes que o meu cérebro filtrasse o pensamento intrusivo.
  - Alto, cabelos e olhos escuros, muito bem apessoado e educado – respondeu imediatamente.
  Fiquei mais alguns minutos em silêncio, observando enquanto ele cuidava do corpo inerte sobre a cama, e assim que a visão se tornara demais para mim me preparei para ir. Porém, alguma voz no fundo do meu cérebro me fez agir impulsivamente novamente, e logo estava com o celular em mãos, me aproximando do enfermeiro e mostrando a foto de .
  - Por acaso ele se parecia com esse rapaz?
  - Uau, você o conhece? É ele mesmo! Uma ótima pessoa, o parabenize pela atitude heroica quando o ver novamente.
  Mal registrei suas últimas palavras, chocada demais para pensar sobre qualquer outra coisa além da suspeita de que havia sido o responsável pela queda de José.

  Passei o restante do dia “fugindo” de . A princípio voltei para a Universidade e terminei de dar minhas aulas do dia, depois inventei uma reunião pedagógica que havia “esquecido” de lhe informar. Por volta de oito horas da noite suas mensagens já eram constantes, se preocupando com minha saúde e com o horário que eu voltaria para casa, mas me esquivei uma vez mais dizendo que sairia com as meninas.
  Desde aquele dia em que prometi a mim mesma nunca mais me afastar de minhas amigas, havia combinado alguns passeios e saideiras constantes com as garotas, então não era estranho para ele o fato de estar saindo com Bri e Felícia. A única parte realmente atípica era o fato de que tudo que eu fazia era extremamente planejado, portanto raramente decidia fazer algo de maneira tão espontânea e repentina, e foi por isso que ele me ligou assim que recebeu a mensagem.
  Confesso que pensei em não atender, ainda confusa demais para saber como ou o que falar com ele. Quanto mais pensava nas palavras do enfermeiro, mais tinha certeza de que ele estava envolvido na queda de José, talvez ele havia até mesmo sido o causador dela. E ainda assim, alguma parte do meu cérebro procurava por desculpas plausíveis para o que ocorrera. Se ele havia o salvado, então talvez ele estivesse de fato de passagem pelo local e tudo fora uma coincidência, mas por que manter segredo e fingir surpresa depois?
  Não tinha certeza se deveria confrontá-lo e fazê-lo dizer a verdade ou se o melhor seria ir à polícia e denunciá-lo mesmo sem qualquer prova. A única coisa que eu tinha certeza era de que não estava preparada para encará-lo, e por isso quando atendi a ligação tentei parecer o mais normal possível antes de mentir dizendo que Felícia precisava da minha ajuda com urgência por isso a mudança de planos repentina. Eu pude sentir sua hesitação no telefone, sabia que ele me conhecia bem o suficiente para perceber que havia algo de errado, mas não me questionou, apenas desejou que tudo se resolvesse antes de terminar a ligação.
  Eu permaneci na Universidade o quanto pude antes de sair sem rumo pela cidade. Eu não tinha fome, nem sede, e mesmo considerando a hipótese de que meu namorado era um assassino em potencial eu sequer conseguia chorar. Talvez minha atitude fosse o que as pessoas chamavam de “estar em choque”. Assim que me cansei de pensar, peguei um taxi e pedi que desse algumas voltas pelo bairro antes de me deixar em uma lanchonete 24 horas relativamente próxima de casa.
  Me sentei o mais longe possível da entrada, próxima de onde ficava a cozinha, e ali aguardei por algo que nem sabia nomear. Parece que fiquei ali por uma eternidade, encarando a xícara de café que havia pedido enquanto tentava refletir sobre meu próximo passo. Quando concluí que estava tarde o suficiente para que estivesse dormindo, uma vez que não ouvira a chegada de nenhuma outra mensagem em meu celular, decidi voltar para casa silenciosamente e pegar meus documentos e passaporte antes de procurar por um hotel no qual pudesse passar a noite.
  Para minha surpresa, ao procurar a carteira na bolsa, notei que meu celular não estava ali, provavelmente o havia deixado no taxi pelo caminho. Com um suspiro resignado, decidi me preocupar com isso depois e, com um nervosismo cada vez mais crescente, me encaminhei para casa.

  Tudo estava escuro e um silêncio incômodo pairava pelo ar. Caminhei silenciosamente pela sala e corredor até chegar ao quarto, notando imediatamente que ele estava vazio. Em seguida, acendi a luz e procurei pela casa reparando que não estava lá. Onde ele poderia estar? Por um segundo, cogitei a hipótese de ele ir ao hospital e tentar “terminar o serviço”, mas então me lembrei que ele havia chamado pelo socorro, então matar José não era exatamente sua intenção.
  Me apressei pegando uma mala pequena e colocando algumas roupas e outras coisas essenciais, além dos meus documentos. A única coisa que não conseguia encontrar era meu passaporte que não estava no local que tinha deixado. Senti meu coração palpitar no peito ao considerar a hipótese de que o havia pegado, e então passei a procurar pelas suas coisas. Demorou mais do que gostaria, mas finalmente decidi procurar na sua maleta de trabalho, encontrando meu passaporte e uma carta com o nome da empresa em que ele trabalhava e um endereço que imediatamente chamou minha atenção.
  Peguei a carta para observá-la mais de perto e cheguei à conclusão de que o endereço não era o nosso ainda que fosse na mesma avenida. Pegando papel e caneta anotei o número do prédio e apartamento antes de voltar para sua gaveta e pegar o molho de chave que havia visto pouco antes. Eu sabia que era arriscado perder mais tempo e que precisava ir para qualquer lugar em que ele não pudesse me encontrar o mais rápido possível, mas agora que começava a cair a ficha de que o que eu conhecera era uma farsa completa, a curiosidade de saber quem ele era de fato era quase insuportável. Ajeitei tudo que havia desorganizado, peguei minha maleta e saí apressadamente do apartamento, trancando a porta atrás de mim e decidindo descer pelas escadas ao invés do elevador, apenas para não correr o risco de trombar com ele pelo caminho.
  Por mais estranho que possa parecer, uma ansiedade e pânico constante pareciam querer me dominar enquanto eu sentia que a qualquer momento eu teria de encará-lo. A cada novo lance de escada e virada no corredor eu imaginava que ele se materializaria na minha frente e me jogaria escada abaixo. Assim que cheguei no térreo decidi sair pela saída de emergência, me certificando de olhar bem ao redor antes de dar a volta no quarteirão e atravessar a avenida, procurando pelo número que encontrara na carta.

EPÍLOGO

   jamais conseguiria apagar de sua mente a realização que teve ao entrar naquele apartamento, ela sabia que a perseguiria por toda a vida. A primeira coisa que notou foram os pequenos monitores espalhadas por cada canto do local, todos mostrando gravações de diferentes partes do seu próprio apartamento. Imediatamente ela sentiu medo, do tipo que nunca sentira antes.
  Desde o momento que descobriu o envolvimento de com o acidente de José ela havia ficado aterrorizada com a possibilidade de ter se envolvido com um psicopata, mas ao encontrar aquele lugar secreto um pavor congelante se apossou de cada pedaço do seu ser. Quem era ele realmente? Será que ele realmente a amara ou era tudo um faz de conta com um motivo tenebroso por trás?
  Caminhando pelo apartamento ela encontrou diversas notas adesivas grudadas nos móveis com pequenas informações que logo percebeu serem sobre ela: seu livro favorito, a marca de chá que sempre comprava, o restaurante no qual sempre pedia comida e até mesmo o mercado onde fazia suas compras semanais. Quanto mais procurava, mais encontrava informações sobre si, até mesmo relatórios completos sobre seus hábitos diários.
   sabia que não podia sucumbir à sensação de pânico que se elevava com cada nova descoberta, e quando encontrou seu lenço favorito - que desaparecera muito antes de conhecê-lo – finalmente se permitiu chorar. Com as lágrimas escorrendo pelo rosto, ela perseverou em encontrar até o último indício do seu obsessor, tentando descobrir onde tudo começara. Mas por mais que procurasse por todos os cantos não conseguia entender como ele a havia descoberto e quando sua obsessão iniciara. Estava prestes a tentar entrar em um dos computadores espalhados quando reparou em um dos monitores ligados, percebendo que estava de volta no apartamento que compartilhavam.
  Como que hipnotizada, se aproximou da tela, reparando no rosto transtornado do rapaz. Agora ela podia vê-lo como ele realmente era: os cabelos desgrenhados, olhos em devaneio e a raiva mal contida se expressando pela maneira como caminhava pelo apartamento à sua procura, derrubando tudo o que via pela frente. Ela sabia que assim que ele chegasse ao quarto notaria que ela havia passado por ali e pegado suas coisas, e foi com essa percepção que se forçou a sair dali, correr escada abaixo e entrar no primeiro taxi que vira antes que ele pudesse encontrá-la.
  Atordoada, pediu que o taxista a deixasse na delegacia mais próxima, sequer conseguindo responder propriamente à preocupação do senhor que insistia em perguntar se ela estava bem, seu rosto pálido e olheiras pela noite em claro deixando evidente que seu estado mental não era dos melhores.
  Assim que chegou na delegacia, pediu por socorro ao primeiro policial que viu, sendo prontamente encaminhada para uma sala de espera onde deveria aguardar pelo delegado. Ela sequer sabia as horas sem seu celular, mas tinha total certeza de que esperara por pelo menos meia hora antes de ser atendida por um homem de meia idade bem-vestido que a levou até sua sala.
  - Certo, Davies. Pelo que me contaram, você sente que está sendo perseguida. Pode me contar mais sobre isso?
  Ela não gostou da maneira como ele falara, como se o que ela sentia não fosse real, mas ainda assim começou a contar sem qualquer linearidade as coisas que havia descoberto nas últimas vinte e quatro horas: seu namorado havia atacado um colega de trabalho que entrara em coma e a monitorava desde antes de se conhecerem. Ela podia perceber o quanto soava louca e nada convincente, e a forma como o delegado a olhava deixava claro que ele não acreditava em uma palavra do que ela dissera.
  - Eu sei que parece uma loucura, mas eu tenho provas. – Ela insistiu colocando um molho de chaves sobre a mesa e falando o endereço e número do apartamento que encontrara mais cedo. – Lá você irá encontrar tudo, as câmeras, anotações, relatórios, tudo que prova por quanto tempo ele me perseguia.
  Daniel Figman - o delegado - já havia visto de tudo nessa vida e por isso não pretendia descartar a denúncia como se fosse nada, mas a aparência da jovem que parecia prestes a chorar, mais lhe parecia de uma mulher com sérios problemas de saúde mental do que uma vítima de fato. Ainda assim, anotou cuidadosamente o endereço informado e pediu que ela aguardasse enquanto se retirava da sala na intenção de enviar uma viatura ao local.
  O delegado não precisou ir longe para notar a movimentação atípica na recepção do distrito, e logo interpelou um dos oficiais que caminhava apressado para a saída.
  - Monroe, o que está acontecendo aqui?
  - Foi aberto um chamado de emergência, Sr. Houve um incêndio em um prédio na Regent Street. – Imediatamente Daniel olhou para o papel que tinha em mãos, no qual havia escrito o número de um prédio na exata rua mencionada pelo agente.
  - Espere um minuto, eu vou com você. – Informou, se preparando para pedir ao seu assistente que ficasse de olho na garota antes de sair, quando observou que ele já se aproximava com um olhar preocupado.
  - Figman, aquele rapaz – apontou para o balcão – chegou há alguns minutos e alega que sua namorada teve um surto psicótico ontem a noite e ele acredita que ela pode ser um perigo para si e para os outros.
  - Peça que o Bernie cuide desse caso, eu já tenho o suficiente nas mãos por ora – ordenou.
  - Essa não é a pior parte. – O assistente informou o interrompendo. – Ele acredita que ela incendiou seu apartamento na Regent Street, e o nome da garota é Davies.
  O rosto de Daniel Figman empalideceu ao ouvir o nome da garota, e imediatamente olhou para o balcão, reparando no rapaz completamente asseado e com um olhar extremamente preocupado falando com a policial. Refletindo por alguns segundos, optou por se aproximar dele.
  - Qual o seu nome, meu jovem? – indagou com um semblante impassivo.
  - Walker, senhor – respondeu com uma voz baixa e calma. O delegado usualmente tinha uma boa leitura das pessoas, e assim que seu olhar recaiu sobre o de ele notou a preocupação genuína em seu olhar.
  - Venha comigo, Sr. Walker – ordenou antes de se virar e seguir na direção de seu escritório. Sua intenção era clara, colocaria ambos os namorados juntos para que pudesse observar suas reações e versões para a história antes de iniciar a investigação. caminhou atrás dele atento a cada detalhe dos corredores pelos quais passavam. Assim que viraram no último corredor e Figman girou a maçaneta da porta, ambos se depararam com uma sala vazia. No local onde estava apenas sua mala de viagem se destacava largada sob o assento.

Continua...



Comentários da autora