Um Tanto Quanto O Sol
Escrito por Boo | Revisado por Mariana
Ela desacreditava.
Como ousava?
Rejeitava o sol, fugia dele como o diabo foge da cruz. Tudo porque ele não girava ao seu redor, provando que ela não estava sozinha e esfregava-lhe na cara os erros que cometia.
Todos a chamavam de louca, talvez ela fosse mesmo, mas eu não me importava. Seu mundo revirado e suas teorias malucas me fascinavam, apesar dos problemas que escureciam sua vida. Ela não era tão normal assim. Transtorno bipolar, recém-recuperada de distúrbios alimentares, ela vivia em seu próprio mundo, mas precisava de terapia. Nunca pensei que uma menina de 18 anos poderia pensar e criar as coisas da maneira que ela fazia. Queria ser seu sol particular. Ela não precisaria me odiar, porque eu não iria deixá-la sozinha. Derreteria o gelo que envolvia o coração de ouro que ela tinha. Giraria ao redor dela.
Eu a esperava todas as quartas, pontualmente às 16h.
Estava esperando por ela hoje.
Sempre a ultima paciente do dia, por causa daquela coisa toda do sol. Eu mesmo já me sentia um pouco louco. Ou pelo menos faziam acreditar que eu era. Segundo minha mãe, eu já deveria estar casado com alguém decente e devia ter pelo menos dois filhos. Tudo isso porque eu estava com 26 anos. E solteiro.
Uma loucura atrás da outra, mesmo assim eu não ligava.
Olhei pela janela e a vi caminhando até a entrada do prédio. Hoje ela andava devagar, cabeça baixa. A história seria um pouco longa hoje.
Sentei-me em minha cadeira e esperei pela ligação de Molly avisando que ela havia chegado.
- está aqui, Sr. . – anunciou Molly do jeito que eu esperava.
- Mande-a entrar.
Fechei os olhos, tentando prestar atenção em cada barulho que ela fazia enquanto passava pelo corredor.
Esbarraria na pequena mesa no corredor, xingaria baixinho e depois iria rir.
Ela chutou a mesa, mas não xingou, nem riu. Seus passos rápidos denunciavam sua proximidade.
Três batidas na porta.
- Entre.
E ela passa pela porta com a cabeça baixa, seu cabelo escondiam o rosto quando ela passou por mim. Sentou-se na cadeira perto da janela ao invés de deitar-se no divã.
- Boa tarde pra você também, senhorita – sentei-me na cadeira a sua frente com a prancheta em minhas mãos, mesmo sabendo que não iria fazer anotação alguma. Nunca fazia quando se tratava dela. Pelo menos não na frente dela. Sua presença era algo que eu valorizava, não queria perder nenhum detalhe da conversa que tínhamos.
- Oi, – murmurou sorrindo fraco, seus olhos brilhosos demais – Não é uma tarde tão boa.
- O que houve com você?
- Nick – suspirou uma vez e olhou para cima – terminou comigo na segunda-feira. Disse que se cansou de mim.
- Como você está se sentindo?
- Estranha – suspirou de novo, esquecendo o seu olhar perdido sob meus olhos – Não consegui chorar. Conquistei um mundo com ele, mas simplesmente não consigo.
- Isso é bom – dei de ombros. Bom pra ela e pra mim. Sem namorado na jogada, sem lágrimas pra ela – quero dizer, você não chorar por isso.
- Me sinto um pouco estranha por isso. Não consigo sentir nada. No dia, depois que ele disse que não queria mais eu fui pra casa. E deitei na cama. Sonhei com as mesmas coisas que eu sonho antes de dormir, e então eu dormi.
- Você o amava?
- Eu o amava? – um sorriso apareceu em seus lábios, mas seus olhos demonstravam a dúvida que havia se formado – Fizemos muita coisa juntos, mas eu não sei. Não sinto nada. Como se nos últimos dez meses ele não estivesse presente.
- Então acho que não o amava.
- O que é amor, ?
- Amor é colocar as necessidades da outra pessoa na frente das suas.
- EI! – cruzou os braços em seu peito e riu – Você andou assistindo Frozen?
- Não que esse seja meu filme preferido da Disney – respondi meio sem jeito –, mas é que até hoje não encontrei outra definição melhor.
- Talvez seja. – seus olhos pousaram na paisagem do lado de fora. Não havia sol naquele dia, nuvens escuras encobriam o céu, anunciando que choveria naquela tarde – Me sinto vazia. Não gosto de ficar aqui.
- Gosta de viajar?
- Nunca viajei pra muito longe, mas seria ótimo conhecer o mundo de uma forma diferente do jeito que passa na TV.
- Seria ótimo – respondi. Observei enquanto ela olhava para fora. Seus cabelos caiam um pouco abaixo dos ombros, as mãos abraçavam os joelhos. Por um minuto, pensei em como seria conhecer o mundo com ela ao meu lado. Como seria o mundo que ela criaria a partir do que ela encontraria e de como eu a ajudaria a torná-lo um lugar mais bonito. Ela me tornaria melhor – O mundo pode ser assustador, mas é lindo sabia?
- Jura?
- Claro – respondi sorrindo, como sempre ela duvidava – Aposto que ficaria mais bonito se eu pudesse vê-lo como você o vê.
- Meu mundo não é tão bonito assim, – suspirou novamente de forma profunda – Eu tenho um lado podre e é por isso que eu estou aqui.
- Lado podre?
- Defeitos.
- Quem não tem?
- Você.
- Eu?
- Sim! – exclamou um pouco sem jeito – Você é feliz.
- Como você sabe?
- É fácil de ver.
- Cometo erros também, – respondi, um pouco afetado pelo modo que ela me via – Já paguei caro pela minha teimosia, uso isso como aprendizado hoje. O que você vê pode não ser o que parece.
- Você também vai falar que o mundo é feito de aparências?
- Claro que sim! Porque ele é. Veja bem, você pode achar que eu sou feliz, mas posso não ser verdadeiramente feliz por dentro. Assim como pode ver uma mulher de rua alimentando seu cachorro. Ela pode não aparentar felicidade, mas por dentro pode ser completa.
- Você já achou a felicidade?
- Posso dizer que sim – respondi cautelosamente – Só falta tomar posse dela.
- Quero ser feliz um dia, .
- Você vai ser.
- Você reza antes de dormir?
- Não, – respondi rindo baixinho. Como sempre ela fazia perguntas inesperadas em momentos inesperados –, você reza?
- Sim, acho que é por isso que tenho algumas coisas que tenho. Falta uma coisa, mas isso vem com o tempo.
- O que te falta?
Com um dedo enrolando uma mecha de seu cabelo, ela voltou a sua atenção pra mim. Sorrindo discretamente, ela respondeu:
- O sol.
- Mas você não gosta – sua expressão divertida me deixava desconfiado – Se sente melhor?
- Acho que sim. Você é bom nisso.
- É o meu trabalho.
- Preciso ir, quero ver a chuva.
- Tudo bem, acho que já deu o seu tempo – respondi desapontado. Por que o tempo passava rápido quando ela estava aqui?
- Até mais, , tome posse da sua felicidade logo.
- Até – murmurei observando enquanto ela caminhava até a porta – Abra bem os olhos. Sua felicidade pode estar perto.
Ela se virou para mim.
Sorriu.
E saiu.
Chutou a mesa, xingou e riu sozinha
Me afundei na cadeira, jogando a prancheta sem nenhuma palavra escrita no canto da sala.
Eu precisava de terapia.
Tudo bem.
Não deveria me deixar envolver pelo caso dos pacientes, mas não era assim com ela. Não era o ao caso dela que eu estava apegado. Era a ela. Era o seu mistério e a forma de ver o mundo, os jeitos diferentes de rir, o modo como abraçava os joelhos quando estava em dúvida e a forma como se deitava no divã para contar as travessuras e teorias da vida. E eu não entendia o porquê de eu estar tão apegado. Há pelo menos um ano eu achava que ela seria mais uma adolescente chata que sofria bullying e que gostava de cantoras de pop meloso, mas não era. Todas as minhas teorias sobre ela estavam erradas. Eu não rezava antes de dormir, mas rezava todas as vezes que ela saia de perto de mim.
Não sabia como rezar, mas quando a vi saindo pela primeira vez do consultório, aquela música certa que tocava no rádio da sala de espera acabou se tornando minha prece pessoal.
Caminhei até a sala de espera que já estava vazia. Molly já havia partido também. Devia ter descido com .
Give me love
(me dê amor)
Give me love
(me dê amor)
Give me peace on earth
(me dê paz na terra)
Give me light
(me dê luz)
Give me life
(me dê vida)
Cantei baixinho e voltei até a minha sala, parando na janela para observar a chuva que caia sem piedade do lado de fora.
E lá estava ela.
Parada em frente ao carro com os braços cruzados. Mas o que ela estava fazendo?
Sai correndo do consultório sem me importar em trancar a porta, e desci as escadas. Eram apenas três andares e eu não estava com nenhuma paciência para esperar pelo elevador.
Logo eu estava na chuva, correndo até o estacionamento onde seu carro estava parado.
Os cabelos molhados aumentaram um pouco o comprimento, seu vestido grudado no corpo.
- ?
- Preciso de sol, .
- Ficar na chuva não ajuda.
- O que eu faço? – perguntou com os olhos marejados. Ela devia ter chorado por um bom tempo antes de eu chegar, pois os olhos estavam vermelhos – Eu preciso de sol. Preciso arrumar a bagunça. Não sei onde eu encontro o que falta. Estou vazia.
- Posso te ajudar – respondi me aproximando um pouco mais dela –, posso ser o sol se você quiser.
- Pode?
- Claro que sim! – sorri radiante quando ela me olhou – Demorei um tempo pra dormir sonhando com isso.
- Acho que você é meio maluco.
- Quem não é?
Ela deu de ombros e fungou, tentou secar as lágrimas, mas se deu conta que não era possível já que estava na chuva. Segurei sua mão pequena comparada ao tamanho da minha, e a apertei, recebendo o aperto da mão dela de volta.
- Quer ficar um pouco?
- Quero.
FIM
AI QUE MEDINHO! Primeira songfic que eu fiz e até que gostei do resultado hihihi Gostei mais ainda por ser com uma música que eu mesma não conhecia, então se a autora que mandou essa sugestão estiver lendo, obrigado e eu espero que tenha gostado!
E obrigado você, pessoa bonita que leu!
Boo xx