Um PP Igual a Você
Escrito por Nellotcher | Revisado por Mariana
Fazia dois dias que tinha pensado em uma nova história.
Já tinha o tipo de narrador, a ambientação, as intrigas que se desencadeariam, uma protagonista interessante... Mas estava faltando algo. Seu personagem masculino, que de primeiro momento se mostraria mau e com o passar dos capítulos se revelaria apenas mal compreendido quanto à obstinação de seus sonhos. Sabia tudo o que aconteceria com ele, seu caráter, personalidade... Mas não sua aparência. Como autora ela podia definir as características básicas e sair escrevendo, porém, era preciso uma imagem dele em sua mente. E toda vez que tentava, independente da cor dos olhos, estilo do cabelo ou comprimento do nariz, surgia um borrão.
Por conta disso a história estava de molho, ainda que as mãos de pinicassem pela ânsia de escrever. O filme mental da história reprisava a cada momento oportuno e inoportuno. A única coisa que a impedia era o bendito personagem masculino.
Frustrada com a página em branco do bloco de notas do celular, encerrou a aplicação e meteu o aparelho dentro do bolso, desanimada. Não queria adiar mais a escrita, porém a cena que estava concebida em sua mente tinha a personagem principal e ele em um primeiro encontro peculiar.
As portas do vagão do metrô se abriram e buscou por um lugar estratégico — leia-se: onde sua pequena pessoa não seria esmagada por gigantes voltando para suas casas. Estava completamente absorvida sobre como contornar a irritante situação. Seria obrigada a passar a limpo em um papel as ideias principais da história e voltar a ela apenas quando finalmente descobrisse como seria seu personagem principal masculino. Era um saco! A história podia acabar em seu 'limbo criativo' por meses, pior, anos!
deu-se por vencida daquele assunto quando olhou ao seu redor, calculando pelo número de passageiros se o metrô ficaria ainda mais cheio aquele dia.
No outro lado do vagão, de frente para ela, parado e com a cabeça baixa lendo uma apostila estava um rapaz. A personificação perfeita de seu personagem! Em carne, osso, traços, roupas e acessórios!
conteve a si mesma, pois seus olhos se arregalaram e um sorriso enorme se formou quando o viu. Voltou ao seu aspecto de pessoa abatida retornando para casa após um dia chato de trabalho. Enquanto fingia olhar o seu entorno sem um pingo de interesse, registava cada característica possível do rapaz: altura, porte físico, tom da pele, tipo de cabelo, cor, pelos faciais.
Tudo batia! quase pulava de alegria no mesmo lugar por topar com o clone vivo de seu personagem pelas ruas de São Paulo.
Faltavam apenas: os olhos.
Como o rapaz era a cópia esculpida em carranca de seu personagem ficcional, não custava nada descobrir também a cor de seus olhos. Saber seria de graça!
suspirou discretamente em resignação, ela mal podia esperar. Mas era preciso paciência para que o rapaz desgrudasse seus olhos da apostila e erguesse sua cabeça. Ele o faria em algum momento, certo?
Estações foram passando e a ansiedade de podia ser vista em pequenos tiques, como o balançar frenético de sua perna e as unhas batendo no corrimão metálico do vagão. Aquela besta humana não desprendia os malditos olhos daquela porcaria!
bufou contida, seu tempo estava acabando: sua estação se aproximava. Ela teria de descer e ficaria sem saber a cor dos olhos dele. No fim, teria de se conformar e inventar uma. Se ao menos houvesse um meio de chamar sua atenção para algo. criava possíveis planos infalíveis, inconsciente das caras e bocas que fazia.
Deu alguns passos, vacilante — fingia-se indecisa sobre qual lado do vagão deveria ficar para desembarcar. Os olhos procuravam próximo ao teto o mapa da linha do metrô, mesmo ela sabendo de cor cada uma das estações e baldiações possíveis.
— Sabe qual é a próxima estação? — ela bateu de leve seu dedo na borda superior da apostila do rapaz, quem desviou sem demora sua atenção para ela.
"Próxima estação Cadouro."
A voz feminina, feliz sem motivo algum, soou alto e claro no ambiente fechado. suou frio. Mas manteve sua melhor expressão de "não entendi uma palavra do que foi dito". Ergueu a cabeça e encarou o teto como exagero em suas feições. Perdida.
— Estação Cadouro... — disse ele pausadamente, estranhado pelo fato de ela parecer não saber.
— Ah... Obrigada! — em meio ao sorriso de agradecimento, mudou seu sotaque, de um lugar muito único inventado por ela. — Não sou daqui, então não entendo o que diz a voz.
O tamanho do sorriso e a força com que fechava os olhos eram proporcionais à vergonha que aquela desculpa esfarrapada a fazia sentir.
O rapaz assentiu mais compreensivo, e retornou suas atenções aos seus pertences.
!
Lindos olhos . estava encantada, tão encantada que dentro de si seu subconsciente gritava de emoção pelo bem-sucedido plano.
Quando as portas se abriram, desembarcou na direção oposta ao rapaz. Sua mente agora estava concentrada em uma única coisa: anotar, anotar, anotar! Ela precisava colocar em um papel todas as características do rapaz — não havia como confiar em sua memória falha. Apalpou seu bolso da calça jeans atrás do celular, o próprio bloco de notas serviria. Ela quase saltita vá ao caminhar, mordendo o lábio só de pensar no quanto estava empolgada para escrever agora que sabia como seu personagem se parecia.
— Ei, moça!
Alguém atrás de si falou e levou alguns instantes para deixar de digitar freneticamente no aparelho móvel para olhar para trás.
Era ele.
A surpresa de podia ser notada em todo o seu rosto. Eles desciam na mesma estação? Ela nunca reparou nele. Mas com a cabeça no mundo da lua 99% das vezes era difícil de ela notar qualquer coisa.
— Você disse que não é daqui. Precisa de ajuda pra se achar? Ou ir a algum lugar? — a atenção dele variava com um ponto logo atrás dela.
Sem nem o menos notar, tinha parado diante de um grande painel com o mapa dos arredores — normalmente ignorado por todos.
— Ahnnn... — titubeou abobalhada. Contar a tosca verdade ou persistir na mentira? Mas se mentisse, como continuaria?
O rapaz parecia se cansar de esperar, mas sua educação o impedia de ser rude por iniciativa própria.
— Na verdade, eu menti. — ela se entregou com um sorriso acanhado. Não fazia parte de seu caráter mentir e não se importar. E o fato do rapaz se dispor a ajudá-la sem ter qualquer obrigação tornava ainda mais impossível a ideia de ser falsa com ele. — Eu... precisava dar um jeito de falar contigo porque você é perfeito pra uma história que eu comecei a escrever! Não era uma desculpa de cantada!
Não era normal ela ter de se justificar usando sua paixão pela escrita — até porque ela não dividia suas histórias com pessoas de carne e osso, apenas com leitores que se encontravam do outro lado de um computador (ou celular). No entanto, como ela não esperava se reencontrar com o rapaz, não havia problema em dividir algo tão particular uma única vez (seria inofensivo, ela concluiu).
O rapaz se mostrou surpreendido pela verdade, e secretamente intrigado pela explicação: ele, perfeito?
Ele sabia ser razoavelmente bom em algumas coisas, no entanto, não se recordava de alguém o considerar perfeito para algo. Seu mundo havia saído ligeiramente da órbita normal com aqueles dizeres.
Os olhos de cresceram sobre a figura do rapaz, flagrando seu desconforto por se sentir lisonjeado. torcia para que seus olhos gravassem as minúcias das expressões dele, enquanto o rapaz ruborizava de leve com as atenções recebidas por ela.
— Ca-ham! — ele fingiu uma tosse mesmo estando em perfeito estado de saúde. — Que tipo de história?
A pergunta soava casual, embora o rapaz estivesse mais preocupado com a ideia de como sua imagem seria retratada e usada em algo que dependia da imaginação de outra pessoa.
Causava medo. Muito medo.
congelou.
— Oh...! — foi sua vez de se sentir mal por não conseguir conter a violência do rubor em seu rosto. Ela parecia um tomate.
Não fazia mal explicar a um desconhecido que ela escrevia, mas ela não conseguia dizer, nem a conhecidos e nem a desconhecidos, sobre o que ela escrevia. abominava a ideia de alguém lhe dizer que ela era um lixo como escritora e que suas histórias mereciam ser deletadas.
— É uma coisa meio boba... — ela encarou os próprios pés, era doloroso falar com desprezo de algo que ela gostava tanto. Com uma fungada, ela resolveu recompor sua postura. Para o inferno quem não gostasse! — É uma história fantástica. Uma releitura do fantástico, na verdade. Meio Tolkien, mas sem a densidade com a qual ele narra as cenas, quero algo um pouco mais ágil.
se mostrou praticamente outra pessoa em questão de segundos, falando com propriedade mesmo sabendo que talvez o rapaz não a entenderia.
— Eu gosto de Os Filhos de Turin. — ele não havia entendido por completo todas as especificações, até porque ele lia algo apenas preocupado se a história era interessante ou não. Por isso o mais óbvio foi comentar a obra do mesmo autor mencionado por ela.
— Sério? — vibrou com um sorriso. — Que legal, eu também!
Mas a frase seguinte de morreu ali, pois o celular do rapaz começou a tocar dentro de seu bolso.
— Annhh... Eu tenho de ir. Estão me esperando. — ele anunciou, verificando apenas o número que o chamava, sem atendê-lo.
— Sem problemas! — gesticulou com ambas as mãos de que ele era livre para ir embora sem qualquer problema.
— Tchau, então...
— ! — ela se afobou a dizer, pois não entendera de primeiro momento a intenção na fala dele. — Tchau também...
— .
— ?! — seu rosto se iluminou em milésimos de segundo. Até o nome dele era…!
— Deixa eu adivinhar: é perfeito pro seu personagem. — ele brincou, ainda que fosse perceptível sua falta de jeito com a ideia de ele ser "perfeito". respondeu com um mero aceno, ela tentava em vão conter sua empolgação com as mãos sobre as bochechas (desfaria o sorriso na marra).
O rapaz sorriu consigo mesmo, encarando o chão. Porém, algo demandou sua atenção: o celular outra vez.
o viu partir, decidida a esperar alguns minutos antes de ela seguir pelo mesmo caminho. Já devia parecer estranha para o rapaz, não precisa parecer estranha e perseguidora.
"", anotou em seu bloco de notas para não correr o risco de se esquecer.
— Filho da mãe! Me atenda quando te ligo! — reclamava Louise, a expressão séria e as mãos nos quadris, do outro lado da catraca do metrô.
— Foi mal. Eu já estava quase aqui, por isso. — explicou a irmã menor. Em segundo plano, sua mente pensava a respeito do que havia acabado de lhe acontecer, ou melhor, conhecer.
— Estamos esperando alguém? — Louise soou curiosa para descobrir por que o irmão olhava por cima de seu próprio ombro pelo caminho que acabara de vir.
— Não, não. Vamos.
— Você está bem? — a irmã ergueu uma sobrancelha, inquisidora. a encarou hesitante, a meia catraca virada.
Ela era meio estranha...
Mas... o achava perfeito sem que precisasse fazer nada.
Era um tiro no escuro!
— ? !
imaginava que o rapaz já tivesse tido tempo o suficiente para subir o lance de escadas rolantes faltante, cruzar a catraca e cair na rua movimentada do centro da cidade. Então guardou seu celular na mochila e passou a seguir caminho para casa.
— Oi!
A figura de surgiu em seu campo de visão de repente, como se tivesse caído do céu (ou mais provavelmente do andar de cima). Ela ao pé da escada rolante; ele na escada de concreto entre as escadas rolantes que subia e descia.
— Oi...
Agora ele estava concorrendo ao primeiro lugar de mais estranho.
— Quando terminar de escrever sua história, você me manda pra ler? — questionou com o celular em mãos na direção dela, a tela aberta em sua página de dados do WhatsApp.
encarou o rapaz e o aparelho, receosa.
A ideia parecia terrível. Mas talvez o rapaz quisesse saber o que ela faria com sua versão em livro (por desencargo de consciência ou para processá-la).
— T-tá bem. — alcançou seu celular e anotou o número de em seu aparelho.
***
Passaram-se semanas até que tivesse notícias de . E como era ela quem tinha anotado seu número, tudo dependia da primeira mensagem dela.
A primeira chegou justamente para avisar que ela estava empacada na história. Tão frustrada que chegou ao ponto dela querer conversar com alguém sobre aquilo. Impensável!
e acabaram marcando um local para se encontrarem e ela poder extravasar sobre seu bloqueio. Não passou despercebido ao rapaz que no dia que se falaram pela primeira vez, os cabelos de eram azuis, na foto do WhatsApp vermelhos, e ali, pessoalmente, rosa.
— Mas eu posso ler pra te ajudar? Senão fica difícil... — ele disse, dando de ombros.
Ouviu falar empolgada — ainda que retraída — de sua história, só que ele não havia lido uma linha sequer.
coçou nervosamente a cabeça. Sua mente parecia bloqueada até mesmo para elaborar uma recusa gentil.
Não! Ela não queria ele lendo sua história! Gentilmente falando, claro.
— Se é do jeito que você contou, deve estar bem legal.
mordeu o sorriso presunçoso que queria brotar em seus lábios. "Bem legal". No mundo das histórias na Internet ela tinha prêmios e títulos de honra concedidos por seus mais fiéis leitores. Seu ego de escritora era massageado por tais fatos que, na vida real, pessoas ordinárias não faziam ideia.
— Ok. — ela cedeu a contragosto, havia algo na expressão dele que a obrigou àquilo. — Só... Não ria.
Sua boca entortou, como se sentisse um gosto amargo. Ela nunca soube explicar porque aquele era seu medo primordial ao pensar na ideia de alguém lendo suas histórias.
— Claro que não!
Era curioso para o lado tão restritivo que a jovem impunha em suas histórias. Ele agora sabia que tinha várias histórias postadas, mas ela não lhe permitia ler nenhuma, embora, segundo a própria, estivessem na Internet a um clique — desde que você soubesse onde procurar, ou soubesse seu "nome de guerra".
Através de seus emails, enviou o arquivo de sua história para , com uma restrição bem clara:
— Mas não leia aqui! — suas mãozinhas tapavam a tela do celular dele. — Leia em casa e daí você me conta o que achou.
bufou com insatisfação, no entanto, aceitou os termos de uma de rosto avermelhado.
Foi em casa que o rapaz teve oportunidade de fato de poder ler e se concentrar na história da jovem. Acomodado no quarto que ainda era obrigado a dividir com a irmã, seus olhos correram inseguros para o grande espelho do teto ao chão para analisar seu próprio reflexo. Não entendia como o achara perfeito para ser um centauro em sua história! Seus olhos se arregalaram por completo no parágrafo que o descrevia em linhas gerais, dando maior ênfase às características mitológicas.
Era ele, e ao mesmo tempo estava longe de ser ele.
O rapaz deu de ombros, não entendia como a jovem o enxergava daquela maneira, mas no fim a história era dela. Mais a frente, foi tomando um gosto maior pelo seu personagem e principalmente pelo seu passado tortuoso. havia gastador um bom tempo no "background" de cada personagem seu, mesmo que isso só ficasse evidente nos capítulos mais avançados.
***
— Oi! — cumprimentou quando este chegou, deixando sua mochila de antemão sobre a cadeira e separando sua carteira antes de ir à fila comprar algo para si. O copo que tinha em mãos fumegava com café misturado à essência de menta de forma convidativa, mas ele preferia coisas mais simples, como um café com leite.
— Tudo bom? — foi a primeira coisa que ele disse, lembrando-se de última hora de retirar da mala uma pasta de plástico e entregá-la para . — Veja se gosta...
Não houve tempo hábil para perguntar do que se tratava, pois ele marchou em seguida para a fila. Curiosa, deixou seu copo sobre a mesa diante de si e abriu a pasta.
Deparou-se com seus personagens retratados à lápis, com as mesmas roupas, acessórios e características físicas narradas por ela. Havia todo um jogo de luz e sombra cujos conceitos ela desconhecia, no entanto, criavam aquele efeito de desenho profissional.
— Isso é incrível! — ela deu pulos na poltrona quando o rapaz retornou, abraçando a pasta como se segurasse um tesouro. — Você... Você não disse que estava fazendo Economia na faculdade?
— Estou sim. Por quê?
lhe lançou um olhar óbvio:
— Devia largar tudo e ser artista! Estar trabalhando na Disney ou na Marvel! O mundo tá bem de economistas...
quase se engasgou com as afirmações exageradas dela e sua segurança para dizer aquilo. Ele discordava profundamente.
— É um hobby. Sei que não quero desenhar pra ganhar a vida. — deu de ombros em sua resposta simplista e confiante.
A jovem murchou. E mesmo o tom loiro de seu cabelo não foi capaz de manter a aura de iluminação em seu rosto.
— Você pretende ser escritora pra valer?
— Ahnnn... — ela mordeu seu lábio. — Eu não sei bem se quero todo mundo lendo o que eu escrevo.
— Por falar nisso! — ele se acomodou novamente na poltrona em frente a ela, seu olhar agora fixo em seu rosto, não querendo perder a reação dela. — Nos últimos capítulos que você me passou, pareceu que tinha umas partes faltando, sabe? Tá incompleto mesmo... ou rolou uma censura...? Porque eu fiquei perdido em algumas partes, principalmente sobre os dois personagens principais.
manteve sua melhor cara de confusão, e teve de mantê-la por um longo tempo, pois a atenção fixa do rapaz seguia sobre ela.
Era óbvio que uma pessoa paranoica como tinha uma versão de cada capítulo seu editado nas partes que não queria que lesse. Quase todas relacionadas ao progresso nos sentimentos amorosos entre os principais.
O grande problema como autora que ela enfrentava agora era estar perigosamente apaixonada pelo seu personagem principal na história. E ele ser baseado em alguém que ela conhecia pessoalmente não ajudava nem um pouco!
— Alguma chance de você me mandar as partes que faltam? — sugeriu, ele já havia notado a dificuldade da jovem em compartilhar suas criações, só não sabia ainda a dimensão. Por isso, todo cuidado era pouco.
— Tá bem, tá bem, tá bem... — rendeu-se, frustrada. O sentimento era algo contraditório, pois ela devia ficar feliz com o fato de ter lendo de verdade e não apenas lhe dizendo o que ela queria ouvir.
Em suas trocas de mensagens sobre a história, ele sempre opinava sobre onde ela investir mais e onde revisar. Eram sempre sugestões para a história ficar "mais incrível", ele nunca usava o termo crítica, pois acreditava que a jovem não resistiria ao peso da palavra.
Em suas várias pastas, que continham vários arquivos, com várias histórias, ela buscou pelo original. Estava tudo lá.
ainda titubeou, olhando incerta para , e então enviou o arquivo anexado ao email para ele. No pior dos cenários, o rapaz leria e zombaria dela.
Sentia inveja da sua personagem principal, que diferia tanto de sua personalidade insegura. Sua "PP" não teria medo em chegar em e ser sincera com ele sobre o que vinha sentindo, não mesmo, ela seria verdadeira e — caso não correspondida — saberia seguir em frente com a vida de cabeça erguida. Ao menos ela havia tentado. Quanto a , nem isso. Contudo, não era escrevendo uma versão melhor de si mesma na ficção que ela, magicamente, mudaria na vida real. Não era assim que as coisas funcionavam.
***
— E teve oportunidade de ler alguma coisa? — perguntou receosa. Mesmo sendo seu único leitor, e com a sua autorização, a pergunta ainda lhe causava certo medo.
Tinha acabado de se encontrar com o rapaz na plataforma de desembarque do metrô, ela voltando do trabalho, ele indo para a faculdade.
— Sim. Já li tudo.
confirmou com a cabeça, muda pela aterrorizante expectativa. O comum era o rapaz entrar em contato com ela através de mensagens para dizer sua opinião sobre a história, porém não chegou dele nenhum comentário sobre o arquivo original. Não era sua obrigação atuar como um editor e orientá-la na condução da história, porém tinha um olho bastante criterioso e muitas de suas sugestões acabavam sendo para melhor.
O rapaz não comentar absolutamente nada estava fazendo o coração de palpitar rápido de angústia.
— E o que achou? — sua curiosidade tão atiçada por conta do silêncio dele que a pergunta tão direta a impressionou. Desde quando ela queria tanto saber a opinião de outra pessoa, que não lhe importava que estivessem em meio a um mar de desconhecidos no metrô?
coçou a cabeça, reunindo todas as suas forças para manter seu ar de tranquilidade, embora até seu dedo mínimo se torcesse de nervosismo dentro do converse verde surrado.
— Então, é frustrante quando o autor força o leitor a ser burro por uma questão de conveniência.
paralisou em choque.
Não tinha entendido uma palavra na verdade, e uma sensação negativa de vergonha e autodepreciação a inundavam. A pior escritorazinha do universo, ou nem isso uma mera "pessoa que junta palavras".
— Como assim? — sua voz era um misto de confusão e pânico.
— Os dois personagens principais... Eles obviamente se gostam. Então por que você, a dona da história, inventa mil desculpas pra adiar que eles fiquem juntos?
não sabia como responder, e muito menos para onde olhar, mas sabia que precisava desviar daqueles olhos com urgência.
Seu argumento estava correto e muito preciso sobre como ela resolveu agir como autora. Sua primeira intenção era fazer o casal ficar junto apenas no ápice da história, fato que achava possível mudar, o ponto maior da história não seria afetado, mas...
Haviam chegado a primeira das duas escadas rolantes daquela estação. se colocou à direita, enquanto imitou seus gestos um degrau abaixo. Ali suas alturas se equiparam por um breve momento. Os olhos de estavam na mesma linha que os de , encarando-a de um jeito diferente.
— Ele já sabe faz um tempo que ela gosta dele...
A jovem confirmou estar lhe prestando atenção com um aceno.
— E mesmo sabendo disso ele não sumiu.
Outra confirmação com um aceno da parte dela.
— Então, o que ela vai fazer?
A única coisa que tinha em comum com sua personagem principal era a cor de cabelo inusitada. Atitude, garra e uma baixa consideração pelo que os outros poderiam achar dela eram características que sempre quis ter e, uma vez que não os tinha, presenteou sua personagem com todas elas.
encarou perdida por um instante os próprios pés, queria calar o instinto que lhe dizia que o tom de era sugestivo demais, como se quisesse indicar a existência de algo nas entrelinhas de sua fala.
Seu nome foi dito e a mão do rapaz alcançou a sua, um toque gélido para , que parecia um pimentão humano, sentindo o sangue correr fervendo por ela inteira.
fechou os olhos com força exagerada, puxando um suspiro com dificuldade. Ela inteira dividida entre o que fazer a seguir. Medo versus coragem.
Ágil e sem precisão, moveu seu rosto de encontro ao de . Suas bocas se chocaram, e seus narizes também! riu com surpresa pelo nariz, sensação que conseguiu sentir em seu rosto, e então inclinou-se para o lado, deixando os narizes livres para respirar, e encaixando melhor sua boca sobre a de .
Assim que encontraram o jeito ideal, suas bocas se separaram contra suas vontades com um estalido. A escada rolante chegava vagarosamente ao topo e com isso a diferença de altura entre eles voltou a de sempre.
Ela girou seu corpo por completo para não errar a saída do degrau (havia nela um medo real em um dia o cadarço de seu tênis acabar preso à grade). parou ao seu lado, com várias pessoas dando-lhe ombradas, bolsadas e mochiladas na tentativa de abrir passagem pelos dois.
— Uau!
— Eu posso explicar! — exclamou com urgência, embora em um deserto de ideias para ser justificar.
sentiu um puxão em sua mão da parte dele, que a fazia correr despreparada para a atividade até a segunda escada rolante. Ela se mostrou confusa e exageradamente esbaforida pelo pequeno percurso — sair lascando beijos em um outro alguém não era uma prática rotineira para ela.
Por outro lado, não se mostrava interessado em cobrar alguma explicação sua, um sorriso que mal conseguia conter o deixavam ainda mais encantador aos olhos de . Engenhoso, o rapaz a guiou sobre a escada rolante para que ficassem da mesma maneira que na anterior.
Um riso frouxo e abobalhado escapou de ao se dar conta de seu plano em repetir o que tinha acabado de acontecer. Com uma mão sobre o rosto tentou cobrir a tamanha felicidade que tinha marcada no rosto. Marquinhas no canto dos olhos e as bochechas mais arredondas e infladas, um sorriso intenso, e que deixava ainda mais intensamente bobo por ela.
— Então eles vão ficar juntos? — seu indicador estava sobre a mão dela, como se abrisse uma janela bem pequena, para poder ver seu rosto.
— Sim. Juntos.
Ela ainda não tinha fôlego para frases muito longas.
— A partir de agora?
— A partir de agora.