
Umanità
Escrito por Julia Nakamoto | Revisado por Especial Criativo
Shin encarava a paisagem estonteante de Riomaggiore da sacada de seu quarto de hotel. Ia fazer um ano desde que tudo tinha acontecido, desde que seu martírio familiar havia ganhado um ponto final e desde que decidira tirar um ano como sabático. Tanta coisa havia acontecido em tão pouco tempo no ano anterior. Ele havia descoberto que a mãe o tinha substituído por um andróide enquanto ele tinha passado boa parte da vida tentando encontrá-la; sofreu um acidente em um país estrangeiro ao ir averiguar com os próprios olhos sobre a mãe; ficou em coma durante meses; teve o andróide o substituindo na própria vida enquanto ele mesmo estava desacordado; ouviu de muitos que aquele pedaço de metal era melhor homem do que ele; odiou sua mãe e seu "filhinho perfeito"; e se culpou pela morte dela.
Muita coisa tinha acontecido mesmo.
Nam Shin soltou um suspiro alto enquanto se apoiava no parapeito da sacada e poderia ter ficado por horas ali apenas aproveitando a paz que o lugar inspirava se não sentisse que alguém o observava às suas costas.
— Vai ficar aí até que horas? — ele perguntou sem se virar e ouviu o risinho divertido em resposta.
— Desculpe, é que gosto de te ver assim, tranquilo. — , sua melhor e mais fiel amiga, respondeu indo parar ao seu lado para apreciar a vista também.
Os dois ficaram em silêncio por um longo tempo, apenas observando a paisagem italiana e deixando os pensamentos vagarem.
Shin se lembrou de quando acordou do coma e com a ajuda de sua então noiva arranjada, Yena, arquitetou um plano para "se vingar" da substituição desumana que as pessoas em quem acreditava confiar fizeram.
O que o deixava com raiva, mas também serviu muito aos seus planos, era o fato de ninguém ter percebido a diferença entre ele, o verdadeiro Nam Shin e o andróide impostor. Ninguém até ele reencontrar . Quando se viram pela primeira vez depois de meses, a garota o abraçou com tantas emoções misturadas que até ele havia ficado confuso.
— É você mesmo, não é, Shin? — perguntou com a expressão analisadora vasculhando cada centímetro do rosto dele. — Dessa vez é você de verdade, né?
E naquele momento ele soube que alguém tinha notado a diferença.
soubera desde o começo que aquele que estava se apresentando diariamente no Grupo PK com tanto afinco não era o seu Shin. Os dois se conheciam por tempo demais de uma forma profunda demais para que mesmo um robô de aparência perfeita pudesse enganar.
era filha de um dos empregados da casa onde Shin morava com o avô. Ele havia ido parar ali ainda muito jovem e a garota o tinha ajudado a passar por aquele momento difícil de separação da mãe. Shin não queria a aproximação de nenhum empregado do homem ruim que o havia tirado de sua mãe, mas a garotinha de marias-chiquinhas não era uma empregada, era uma garotinha esperta que segurava sua mão quando estava com medo das chuvas fortes e brincava com ele mesmo que fosse repreendida diversas vezes. Por causa de ele tinha se tornado alguém um pouco menos pior do que poderia ter sido sem alguém que o compreendesse.
Mesmo com o tempo passando e a personalidade de Shin ficando cada vez mais rebelde e mesmo de forma relutante, Nam Shin sempre procurava por para se sentir seguro. Mesmo tentando mascarar suas mágoas e frustrações saindo com várias garotas e aparecendo a cada semana em um escândalo diferente, era sempre para ela que ele ligava quando sentia o vazio de sua vida o esmagar.
Shin nunca havia sido ruim ou desrespeitoso com e era por aquele motivo que ela continuava ali. Ela conhecia bem o amigo para saber que por trás daquela fachada de playboy rebelde e inconsequente existia ainda um garotinho confuso e assustado a procura da mãe.
— Acha que David vai conseguir finalizar o projeto a tempo? — perguntou num tom quase preocupado.
Shin soltou um riso debochado.
— Foi você quem ajudou ele em praticamente tudo, devia saber, não? — ele voltou seus olhos de tom claro para a moça que pareceu pensativa.
— Tenho certeza de que deixei toda a minha parte pronta antes de viajar, mas mesmo assim, é bastante coisa o que faltava.
era engenheira robótica e estudou grande parte do projeto que envolvia Nam Shin III com o professor David, o homem que havia ajudado a doutora Oh, mãe de Shin, a criar o andróide perfeito.
Eles estavam trabalhando em algo durante aquele ano, o projeto sendo financiado secretamente pelo Grupo PK.
— Sobong vai ter uma surpresa. — sorriu parecendo animada, mal se contendo.
— Eu nunca concordaria com esse projeto se não fosse por você e o hyung me enchendo tanto. — Shin revirou os olhos e voltou-se em sua direção.
— Vai poder nos agradecer depois que sentir o gostinho de fazer pessoas felizes. — Ela deu um tapinha leve no braço do rapaz como se quisesse confortá-lo.
Mas ele não precisava esperar, já sabia bem qual era esse "gostinho". Ele sempre soube, só não se lembrou durante seus anos sombrios que haviam durado até o ano passado. Mas Shin sempre sentia o coração mais aquecido quando fazia algo que deixava feliz, mesmo o mais simples gesto. Um ursinho de pelúcia de aniversário, um pirulito por causa de um joelho ralado, um abraço quando necessário… Era uma das coisas que Shin mais gostava de fazer. Deixá-la feliz.
enganchou o braço no dele e voltou a encarar a paisagem colorida de Riomaggiore, um sorriso enorme nos lábios. Shin se sentiu de volta ao seu porto seguro como sempre acontecia quando estava com ela. Lembrou de como achou irônico o fato de que por toda sua adolescência e vida adulta ele só precisou oferecer presentes caros para qualquer mulher que ela ficaria com ele sem o menor esforço, mas com era diferente. Ela não queria presentes, não queria ser mimada… Na verdade, ele não sabia o que ela queria quando tudo aquilo começou. O nervosismo em sua presença, o coração acelerado, a vontade de agradar… Quando saíram da primeira vez naquele ano, ele se montou no melhor dos seus personagens e foi recebido com uma bela cara feia de desgosto.
Por um bom tempo ele se frustrou com suas tentativas de agradar sua melhor amiga por quem tinha se apaixonado, chegou a ficar irritado como uma criança mimada até pouco a pouco perceber que tudo o que ele precisava fazer era voltar a ser o velho Shin que sempre havia sido com ela.
Mesmo que boa parte de seu temperamento sombrio tivesse se dissipado, demonstrar seus verdadeiros sentimentos continuava sendo difícil. Mas simplesmente sabia das coisas, ao menos as relacionadas a ele.
Quando sua mente saiu dos pensamentos, Shin percebeu os grandes olhos curiosos de o analisando de forma curiosa.
— O quê? — perguntou erguendo a sobrancelha.
— Você tava sorrindo igual bobo e eu achei fofo. — Ela gargalhou da cara séria que ele fez.
Por fim, ele soltou um riso nasalado e passou o braço por sobre os ombros de que se aconchegou melhor ao seu lado.
— Eu tô louca pra ver ele de novo! — A mulher exclamou e Shin sentiu uma pontada de ciúmes, a expressão se fechando um pouco.
— Sério que você sente falta dele? — Resmungou um tanto contrariado.
saiu de seus braços para poder encarar o melhor amigo — e agora um pouco mais do que isso — com certa diversão.
— Nam Shin, seu ciúmes é infundado e apesar de eu achar fofo às vezes, prefiro que tenha mais confiança em mim e em você mesmo. — declarou cruzando os braços e o encarando seriamente. — Eu sei que você passou anos da sua vida ouvindo coisas péssimas sobre si mesmo, mas dá para tentar acreditar só um pouquinho em mim quando eu digo que sempre gostei de você do seu jeitinho? — A moça fez bico chateado ao finalizar.
É claro que ele ainda tinha feridas em sua alma que foram reabertas inúmeras vezes durante sua vida, muitas delas ainda doíam, mesmo já estando quase cicatrizadas. O medo que tinha de perder a única pessoa que tinha acreditado nele o deixava em desespero às vezes. Shin sentiu um toque leve em seu braço, olhava para ele com a expressão mais terna que possuía.
— Eu queria poder fazer você se ver da mesma forma que eu te vejo… Assim talvez a insegurança fosse embora e eu pudesse ver seu sorriso mais vezes. — Ela apertou as bochechas de Shin, o que o fez rir. — Sem ironias, sem deboche, só… Esse sorriso bonito e verdadeiro. — Ela sorriu quando ele sorriu também. — Eu vou me arrumar para o café. — Avisou quando se afastou e foi em direção ao quarto novamente.
Shin voltou a encarar o horizonte com um sorriso simples.
Por muito tempo havia sido tratado apenas como o herdeiro de Nam Gunho, o bonequinho a ser moldado para suceder o avô, não importando suas vontades, suas emoções, nada. Ele deveria ser a criança perfeita desde o início. Ele riu da ironia mais uma vez. Reclamou sobre um andróide fingindo ser um humano, mas aquele andróide tinha criado muito mais sentimentos do que o verdadeiro Nam Shin. Por tanto tempo ele havia convivido apenas com a mágoa e a raiva que deixar todo o resto surgir parecia estranho. Quando pensou naquilo pela primeira vez, um ano antes, achou que o que muitos diziam, que Nam Shin III era muito mais humano do que ele, era verdade.
Agora ele se sentia como uma criança aprendendo a se expressar, deixando os sentimentos aos poucos surgirem, aprendendo a lidar com cada um deles. Estava deixando o outro lado de sua humanidade finalmente se mostrar.
— Estou pronta! — apareceu na porta novamente e Shin se virou sorrindo de uma forma que ele vinha se acostumando a fazer nos últimos meses. — Depois do café podíamos ir até Terra di Bargon degustar vinhos. — A moça disse fazendo uma careta engraçada que fez Shin rir e se aproximar.
— Pretendo ter o fim de tarde livre, vamos fazer um passeio de barco ao pôr do sol em Cinque Terre. — Ele avisou adentrando o quarto e fechando a porta que dava para a varanda.
— Humm, um passeio romântico. — riu e depois sorriu ao saltitar para perto de Shin que não pôde segurar o próprio sorriso.
Ser mais humano não era fácil para alguém que tinha reprimido por tanto tempo vários sentimentos, mas trabalhar sua humanidade seria um pouco mais fácil com aquela mulher ao seu lado.

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