Toxina

Escrito por Mia Luna | Revisado por Francielle

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  As gotas de chuva chocavam-se contra o telhado ritmada e melancolicamente. Pareciam expressar perfeitamente a angústia que dominava o coração da jovem mulher que se olhava em frente ao espelho emoldurado em bronze. Seus olhos, antes gentis e inocentes, transpareciam ódio e desprezo. Sua face, antes carregada de felicidade e plenitude, naquele momento ostentava uma expressão gélida e sombria. Felicidade que fora cortada brutalmente. Plenitude que não mais existia.
  Se encarava, enojada de sua impotência em meio aos desejos e tradições familiares. Seus lábios se contorceram em uma careta ao lembrar-se de sua família. Família esta que, por anos, fora seu abrigo e amparo. Sua força, seu alento, sua salvação, mas que agora se juntariam ao seleto grupo de inimigos que fizera na vida. Fora traída. Traída pelas pessoas que mais amava em todo o mundo e em quem mais confiava. Como uma presa encurralada, estava pronta para abraçar a morte. Morte. Palavra irônica em sua situação atual, pois preferiria morrer fisicamente ao se submeter à morte espiritual. Sim, morreria. À partir daquela tarde, seu coração continuaria batendo em seu peito, mas sua alma estaria morta. Como um robô, seria forçada à viver sob os desejos e caprichos de outro alguém que não amava. Morreria, mas lutaria. Não entregar-se-ia aos predadores tão facilmente.
  Tocou a pequena tiara que repousava sobre a penteadeira, escorregando seus dedos pelos pequenos diamantes que a compunham e uma súbita ânsia de vômito lhe ocorreu. A simples lembrança sobre a pessoa que havia lhe presenteado com a jóia, a fez sentir-se impura e fraca. Suspirou pesadamente fechando os olhos e os flashes de momentos felizes vieram à sua mente como um filme desordenado.
  Correr na tentativa falha de capturar uma borboleta... Esconder-se atrás de um arbusto como se fosse o melhor esconderijo do mundo... Comer o bolo preparado pela avó e lambuzar-se ajudando-a a fazer brigadeiro... Sentir o vento no rosto, elevando seus cabelos e fazendo-a se sentir livre... Livre... Algum dia voltaria a se sentir assim? Não poderia responder.
  Abriu os olhos novamente e sentiu o calor das lágrimas que, abusadas, começaram a brotar. Forçou-se a segurá-las. Não poderia borrar a maquiagem tão bem produzida, não naquele momento. Chorar seria um sinal de fraqueza e entrega, e ela jamais admitiria sua queda. Não imploraria por piedade. Não se rebaixaria a tal nível.
  Agarrou o objeto brilhante em suas mãos trêmulas, inspirando na tentativa de acalmar as batidas que martelavam ansiosas e desesperadas em seu peito. A cada minuto que passava, sua sentença se aproximava e aquilo consumia todo o controle que planejara para si mesma. Como uma bomba relógio, sua pulsação parecia subir a cada tique e taque dos ponteiros.
  Inspirou novamente piscando os olhos e cautelosamente posicionou a tiara no topo de seus cabelos cuidadosamente e milimetricamente penteados. Tombou levemente sua cabeça, observando a si mesma e seu reflexo esbranquiçado. A palidez de sua pele combinava perfeitamente bem com o vestido branco rendado, feito sob encomenda, importado da França e pago por uma boa quantia nojenta de euros.
  A chuva finalmente cessava e passava a ser apenas uma fina camada de garoa, lenta e triste. Ouviu batidas delicadas na porta e disse:
  — Entre. — sua voz saiu pouco mais alta que um sussurro e duvidou que alguém pudesse ouvi-la.
  A porta abriu-se lentamente revelando uma jovem menina de aparência pálida e seus longos cabelos presos em uma enorme trança enfeitada com minúsculas flores do bosque. A garota dirigiu-se em sua direção, fazendo-se ouvir o barulho de seus pequenos saltos chocando-se contra o piso. Parou perto do espelho, observando-as refletidas.
  — Você está linda, . — sussurrou.
   permitiu que seus lábios desenhassem um sorriso triste.
  — Obrigada, eu acho. Você também está maravilhosa. Provavelmente a menina mais doce e angelical da cerimônia, irmãzinha. — murmurou, observando os traços da menina que agora sorria abertamente.
  — Não precisa ser gentil. Sei que está sofrendo, . — apertou o ombro de com uma de suas pequenas mãos, confortando-a. — Gostaria de poder ajudar. Me diga que tem um plano. Você sempre tem um plano, lembra?
  — Eu também gostaria ter, Anne, mas infelizmente não tenho. Meu destino é esse, não há como fugir. Estou condenada.
  Ao ouvir isso, o rosto da menina se contorceu em desgosto.
  — Não fale essa palavra como se fosse pagar prisão perpétua, . Sempre há uma saída, juntas iremos descobrir. Eu te prometo.
   deixou-se sorrir plenamente ao ouvir isso.
  — Tão mais jovem e tão mais corajosa do que eu.
  — Não, você está errada. Somos ambas corajosas. Eu sempre me espelhei em você, , sabe disso. Mas... Você se entregou! Eu pensei que lutaria, que gritaria para os quatro cantos do mundo, mas você apenas abaixou a cabeça e assentiu! — Anne aumentou seu tom de voz, fazendo balançar a cabeça negativamente e apertar a mão da irmã, que ainda repousava sobre seu ombro.
  — Eu não me entreguei, Anne, nem irei me entregar. Não é tão simples como você pensa. Até duas semanas atrás, vivi uma ilusão, achando que poderia ser livre e independente, viajar por países desconhecidos, conhecer pessoas novas... Você não entende? Papai e mamãe sempre me deixaram sonhar com isso, fazendo-me acreditar que meu destino seria diferente das outras mulheres do vilarejo. E de um dia para o outro, tudo desaba! Eu descubro que isso tudo foi planejado desde o momento em que chutei a barriga da mamãe pela primeira vez e tudo por dinheiro! “Unir duas famílias ricas e poderosas, é isso que acontece no mundo real !” Você acha que a frase de papai não ecoa em minha mente todas as noites nas duas últimas semanas? É claro que sim! Mas o que você queria que eu tivesse feito? Batido o pé? Não iria adiantar, Anne! Fugir estava fora de cogitação, pois papai colocou todos os empregados e até mesmo as traças que comem a cama velha dele, para me vigiar! Estão rondando-me o tempo inteiro como se eu tivesse cinco de anos de idade ou fosse uma assassina com um plano diabólico para colocar em prática! Isso é talvez pior que prisão perpétua Anne, porque eu fui iludida e traída pelas pessoas que sempre amei mais que a mim mesma e isso tem doído a cada passar de minutos. Me desculpe se a raiva foi tamanha, que eu apenas pude assentir e abaixar minha cabeça para evitar um derramamento de sangue e futuras prisões perpétuas, Anne. — seu peito subia e descia descontroladamente ao final de sua fala enquanto encarava Anne com os olhos esbugalhados.
  A menina em sua frente balançou a cabeça, aparentemente se esforçando para não chorar. Anne apertou os delicados lábios rosados em uma linha fina, olhando para seus próprios pés, antes de levantar novamente seu olhar para a irmã e dizer baixinho:
  — Sei que jamais machucaria alguém, . Nem que fosse seu pior inimigo, eu sei disso, não fale assim.
   revirou os olhos e virou-se novamente para o espelho, vislumbrando seu batom rosa perolado, apenas para ter algo a se fazer.
  — Eu já não sei mais quem é amigo, muito menos quem são os inimigos. — estreitou seus olhos ao som da própria fala, virando-se para a irmã. — Anne, quero que saiba que o que quer que aconteça hoje, você sempre poderá contar comigo, ok? Eu jamais te entregaria aos leões como mamãe e papai fizeram comigo.
  Anne cerrou os olhos, imitando o gesto anterior de .
  — O que você está planejando? — sorriu esperta. — Ahá! — seu peito começou a balançar freneticamente ao som de suas gargalhadas e olhou-a, feliz em saber que ao menos sua irmã poderia sorrir plenamente naquele fatídico dia. — Eu sabia que você tinha um plano, ! Você não me engana. Eu quero saber de todos os detalhes e não me venha com “você é nova demais” porque eu não aceito desculpas hoje, ok? Eu tenho o direito e o dever de participar de sua vida. — ao dizer isso, repousou as mãos na cintura, aguardando lhe responder.
  — Eu não tenho um plano, ok? — beliscou a bochecha esquerda de Anne, fazendo-a corar levemente. — Eu apenas quero que saiba que estarei aqui para você. Só isso.
  — Eu sei que estará. — Anne jogou seus pequenos braços ao redor do pescoço da irmã, sussurrando em seu ouvido:
  — Eu sempre estarei aqui para você também.

**

   e Anne gargalhavam em pequenos intervalos de sua conversa sobre os momentos engraçados de anos atrás, quando Anne era apenas um bebê. relembrava uma história de um Natal passado quando ouviram batidas na porta e em seguida uma voz feminina dizer em alto e bom som:
  — , está quase na hora. Seu noivo te espera nos jardins, para conversarem antes da cerimônia.
  As garotas se entreolharam e levou o dedo indicador aos lábios, para que ficassem em silêncio. Anne assentiu apreensiva, porém não puderam escutar o som dos pés se afastando, o que indicava que a mulher ainda esperava do outro lado. Levantou-se de sua cadeira e obrigou seus pés a seguirem em direção a porta. Girou a mão sobre a maçaneta e suspirou, abrindo-a.
  A mulher, tão pálida quanto as irmãs, parecia se comprimir dentro de um longo vestido azul marinho. Seus cabelos já se encontravam impecavelmente alinhados em grossos cachos que caíam sobre suas costas e colo. Suas sobrancelhas, perfeitamente iguais, se achavam no momento arqueadas e a mulher sustentava um sorriso falso no rosto.
  — Achei que você gostasse de tradições, mamãe. — o tom de voz irônico de era quase palpável e pareceu atingir a mulher como inúmeras fagulhas afiadas de vidro, levando-se em conta a careta que se formou em seu rosto. — Não dá má sorte o noivo ver a noiva antes do casamento? Não é isso que diz a lenda e a tradição? — arqueou suas sobrancelhas e trincou seus dentes tão fortemente que sentiu dor, mas não importava. Seu objetivo era justamente atingir sua mãe e não mediria esforços ou artifícios para isso.
  — Você me culpa por seguir tradições, , mas a culpada deveria ser você. Não é você que sempre prezou a família e os momentos em conjunto? Você deveria seguir as tradições tanto quanto eu, aceitar o que lhe foi imposto de bom grado.
  — Eu costumava prezar essa família, não mais. — seus olhos a fitavam com demasiada intensidade, como se numa tentativa de perfurar sua carne e sua alma.
  Ouviu-se um fungo baixinho dentro do quarto e não precisou olhar para saber que era Anne. Sabia que sua frase teria impacto na irmã, mas não poderia explicar naquele momento que não referia-se à ela. Talvez mais tarde pudesse explicar.
  A mulher de aparência já mais velha, olhou por cima do ombro da filha e contorceu mais uma vez sua expressão, em desprezo ao choramingar de Anne. Com um último olhar em direção à , virou-se já caminhando pelo corredor e dizendo por sobre os ombros:
  — Como eu disse, ele te espera. Não é elegante por parte de uma dama se atrasar aos compromissos.
   semicerrou os olhos em ódio a fala de sua mãe. Lançando uma piscadela e um pequeno sorriso à Anne, ela obrigou-se a caminhar ao longo do corredor suspirando. Finalmente enfrentaria o leão.

**

  A fina garoa já havia se esvaído aquela altura. Os pássaros piavam felizes em seus ninhos nas imensas árvores que rodeavam a casa, e a grama, levemente molhada, crepitava sob seus sapatos. Suas mãos levantavam as barras de seu vestido, para que não tocassem o chão. Não estava com pressa, contudo. Caminhava lentamente, respirando o ar fresco pós-chuva e o cheiro de terra e folha molhadas. Às vezes fechava os olhos, tentando fazer com que os cantos penetrassem em seu ouvido e pudesse absorver um pouco da felicidade que emanava daquilo tudo.
  Ao decorrer de alguns metros, finalmente o viu. Enfiado em um terno preto impecavelmente liso, sorria abertamente como que em deboche. Seu cabelo, poderia dizer, carregava meio litro de gel e estava cuidadosamente penteado para trás. Os sapatos impecavelmente pretos, brilhavam tanto que poderiam cegar quem os olhasse diretamente.
   teve uma vontade súbita de rir, ao pensamento de que Anne faria o mesmo ao ver aquilo.
  Aproximou-se até que a distância fosse apenas de cinco metros. Não chegaria mais perto. Precisava manter uma distância segura, garantindo que não o atacaria caso se descontrolasse. O homem porém, caminhou em sua direção até que ficassem a apenas alguns centímetros distantes. Arqueou as sobrancelhas ridiculamente feitas, como se esperasse que tomasse a iniciativa da conversa.
  — Então, você me chamou aqui, certo? — ela murmurou, pigarreando logo em seguida, tentando desmanchar o bolo que havia se formado em sua garganta. Provavelmente pelo nojo, pensou.
  — Não. Sua mãe disse que você queria me ver, . — ele respondeu em sua voz grave e parecia tentar comprimir a todo custo um sorriso que ameaçava formar em seus lábios.
  — , me chame de . — ela balbuciou irritada. Não gostava quando ele a chamava por apelido, afinal, nunca lhe dera liberdade para tanto. — E não, eu não queria te ver. Ela me disse que você estava esperando por mim. — levantou suas sobrancelhas também, encarando-o.
  — Bem, parece que o plano dela de nos unir deu certo, . — frisou o apelido o máximo que pode, como que para afrontá-la. girou seus olhos, suspirando. — Literalmente, não é mesmo? — sorriu abertamente ao dizer aquilo.
  — Vamos logo acabar com isso. Se nenhum de nós chamou o outro aqui, podemos ir embora, certo? — virou seus calcanhares na intenção de voltar para a casa, mas Charles agarrou seu braço direito, fazendo com que ficassem cara a cara.
  — Você é uma menina doce, . Eu sei que é. — roçou a costas de sua mão nas bochechas levemente rosadas dela, fazendo-a cerrar os olhos. Sua expressão de surpresa era evidente. — Lá no fundo. — deixou que suas grossas mãos se dirigissem ao seu colo, referindo-se ao coração.
   removeu sua mão de lá, se recompondo do choque que aquelas palavras lhe causaram. Apenas balançou a cabeça e rumou em direção a casa.

**

  Suas mãos suavam enquanto entrelaçava seus dedos em um movimento frenético e automático, mas não era o suor de ansiedade e felicidade costumeiro da maioria das noivas. Era medo, apreensão e angústia. Encontrava-se em pé na grande varanda, a espera de seu pai que recepcionava os convidados nos jardins da frente. Sua mente vagava em pensamentos aleatórios e confusos, em busca de algo a que se pensar.
  Ouviu os passos de Anne correndo de volta a varanda e sentiu seus bracinhos envolvendo sua cintura. Olhou para baixo e a menina sustentava um sorriso esperto em seu rosto.
  — Eu sempre quis te ver com um buquê, sabia? — ela cantarolou em sua vozinha fina.
  — Ah, é mesmo? — sorriu. — E por quê?
  — Eu amo flores, principalmente buquês! Além do mais, seu rosto se ilumina quando as segura. — ela sorriu piscando seus olhinhos.
  — Você é incrível. — abraçou-a com um de seus braços e segurou o buquê de rosas vermelhas com a outra mão. Bufou baixinho ao fitar as flores. Tão clichê...
  Anne alertou-a que a hora se aproximava e que iria se postar no lugar que a dama de honra, os noivos e todos os padrinhos deveriam entrar. apenas assentiu e viu-a correr sobre os gramados em direção onde a tenda fora montada.
  Seus pensamentos correram desenfreados novamente e dessa vez foram parar justamente onde ela havia a todo custo, tentado evitar que fossem. Seu coração se acelerou como se cavalos galopassem em seu peito ao se lembrar daquele rosto... O homem que amava... O homem que sonhou se casar durante toda a adolescência e o único a quem ela entregou sua alma verdadeiramente. Aquele que correu ao seu lado na infância; foi seu suporte e melhor amigo na adolescência e que agora, era seu grande, único e verdadeiro amor.
   sempre fora muito correto e gentil com ela. Quando soube que seu casamento estava marcado e seu pretendente era justamente o homem mais rico, nojento, fútil e egoísta do vilarejo, imediatamente correu até para contar-lhe. O rapaz porém, ao contrário do que ela pensava, não se desesperou ou gritou com ela. Ao contrário. Acalmou-a e disse que daria um jeito na situação. Que ela não se casaria com Charles e que eles, no final, ficariam juntos.
  Mas sabia que aquilo não seria possível. Seu futuro estava marcado desde que nasceu e nada do que eles dissessem ou fizessem mudaria o seu destino.
  Suspirou pesadamente e engoliu em seco ao vislumbrar seu pai caminhando em sua direção. Ele usava um fino terno cinza e uma gravata borboleta cuidadosamente laçada. Na verdade, estava bonito; elegante como sempre. Seus cabelos grisalhos foram penteados e – para a felicidade e alívio de – sem gel algum.
  Ele postou-se ao seu lado, oferecendo seu braço direito a ela. agarrou firmemente o buquê de rosas com sua mão direita, com medo que em algum momento, pudesse deixá-lo cair. Enlaçou seu braço esquerdo a ele e olhou para frente friamente.
  Apesar de amar seu pai, não iria perdoá-lo pelo que fez. Sempre tiveram uma relação especial, mas isso não seria uma desculpa. Não apagaria o que ele e sua mãe haviam feito. Afinal, se seu coração é ferido por algo, não existe remédio ou pomada no mundo que o faça cicatrizar. Talvez possa haver perdão, mas não há saída para a cicatriz que inevitavelmente se forma. Ela continuará lá, intacta.
  Aparentemente, ele entendeu seu silêncio, pois começou a caminhar em direção aos gramados. se movia automaticamente e finalmente o choque da realidade parecia lhe atingir como um balde de água fria. Seus pés deslizavam pela grama cortada e sua única saída para a repentina tremedeira de suas pernas foi apoiar-se firmemente no braço de seu pai.
  O caminho não era longo, mas felizmente não era tão curto, assim ela poderia respirar fundo mais uma porção de vezes para se acalmar. O peso em seu corpo parecia aumentar a cada centímetro que percorriam e o aperto em seu peito só crescia a cada segundo.
  A tenda se aproximava e agora ela podia quase sentir a brisa da morte tocar seu rosto. Inspirou fechando seus olhos e acalmando-se quando finalmente chegaram à entrada e todos os rostos familiares viraram-se em sua direção com a conhecida expressão de surpresa e admiração.
  Quase permitiu-se sorrir ao pensar que aquela deveria ser a sua cara durante todos os outros casamentos que antes freqüentou. Aquela velha espiada minuciosa no vestido da noiva, captando todos os detalhes. A inspeção no penteado e a maquiagem cuidadosamente preparados para que, no todo, pudessem tornar da noiva em questão a mulher mais bela da cerimônia. Nunca pensou que seria a personagem principal tão cedo.
  Estava quase acenando para que seu pai a conduzisse até o altar, quando sentiu alguma coisa chocar-se contra seu pé. Olhou para baixo e viu uma pequena pedra próxima a seu vestido. Como ela havia ido parar ali? Alguém haveria jogado-a de propósito? Alguém queria que ela continuasse ali, parada, por mais algum tempo?
  Resolveu checar e disse para seu pai que havia esquecido algo na casa, algo importante, que queria levar junto consigo. Ele apenas assentiu e dirigiu-se para o altar, onde avisaria os outros.
   começou a caminhar de volta a varanda, olhando para todos os lados, na busca de alguém. Foi quando o viu, espiando-a atrás de uma imensa árvore. Ele sorria e acenava para que ela fosse até ele.
  Quase correu ao seu encontro. Ele estava perto, muito perto. Pensou que morreria ali mesmo, pois seu coração batia em uma velocidade inimaginável. Sua respiração ofegante, misturava-se com a sensação de prazer e euforia e tudo que conseguia pensar era em ir de encontro ao seu corpo.
  Assim que alcançou-o, jogou-se em seus braços, apertando-o com a maior força que possuía, como se para se certificar que era de verdade, que não estava sonhando. Ele devolveu o abraço, acariciando sua nuca.
  Felizmente, não precisaria se preocupar em esconder-se. O diâmetro do tronco com certeza os esconderiam facilmente.
  — O que diabos está fazendo aqui, seu maluco? — ela riu soando como uma insana, pois o nervosismo teimava em aparecer em sua voz.
  — Eu vim te salvar, oras. Não é isso que fazem os príncipes? — afastou-a do abraço, segurando suas mãos e olhando em seus olhos.
   sorriu abertamente ao encontrar-se com aquele mar de tons, tão perfeitamente combinados, que sempre a fez viajar em sua mente, por distâncias incalculáveis.
  — Não há salvação para mim, . — suspirou. — Não há salvação para nós.
  Seu sorriso se desmanchou ao ouvir sua própria frase. Por um momento o mundo pareceu cair de seus pés novamente. Que tipo de esperança ela achou que houvesse ao correr para aqueles braços fortes e acolhedores? Que tipo de redenção ela imaginou ser possível para si própria? Nada poderia ser feito. A poucos metros de distância, havia uma tenda cheia de pessoas que a esperavam para que o casamento com Charles acontecesse. Todas aquelas pessoas. Anne.
  — É claro que há. — ele sorriu ternamente, apertando ainda mais os dedos de . — Mas antes, eu preciso saber uma coisa. Me responda com toda a sinceridade, tudo bem?
  — Eu sempre fui sincera com você. — ela sussurrou.
  — Sei disso. Agora, me responda. — suas pálpebras piscaram impacientemente, como se todo o tempo ele esperasse por aquele momento. — Você estaria disposta a largar tudo? Para viver comigo? Você me ama o suficiente para isso, ?
  Seu olhar parecia querer perfurar a alma da garota. A ansiedade que emanava de seus olhos era evidente, mas ao mesmo tempo um leve sorriso apareceu em seus lábios.
  Um milhão de pensamentos buzinavam apressados na cabeça de . Largar tudo? Ele queria dizer mesmo o que ela achava que ele queria? Achava que sim. Mas então, lhe veio à mente Anne. Seu rosto delicado e levemente rosado na região de suas bochechas... Estaria disposta a deixar a irmã nas garras de quem a traiu? Seria seguro? Bem, não precisava pensar no resto de sua família. Ao que tudo indica, não faria a menor falta a eles.
  Subitamente, uma imensa vontade de rir lhe atingiu e ela não pôde segurar. Gargalhou tomando o cuidado de não elevar seu tom, para que não a ouvissem na tenda. a olhava sorrindo também, mas aparentemente nervoso e buscando seu olhar a todo custo, tentando entender o motivo das risadas.
  Que pergunta estúpida, pensou. Você me ama o suficiente? Suas gargalhadas aumentaram ainda mais ao refazer a frase de na mente, e se tornava cada vez mais difícil não deixar evidências de que estavam ali. Ainda restavam dúvidas para ele? Todo esse tempo ela não havia deixado claro que seu corpo e sua alma possuíam a um só dono? Cujo nome atendia por ?
  — Você é mais estúpido do que eu pensava, sabia? — disse.
  O sorriso do garoto se esvaiu como se um monte de gelo tivesse sido jogado sobre ele.
  — Por quê? — ele murmurou, fitando-a. — Você não... Quer?
   rolou os olhos ainda sorrindo.
  — Acho que essa é a hora em que eu devo fazer um pequeno discurso, não é? Se bem que, dado que o convite foi feito por você, você é quem deveria fazê-lo.
  Ele abriu sua boca aparentemente disposto a improvisar algo, mas parou-o balançando a cabeça e continuou:
  — Acho que eu te devo mais que um sorriso ou um agradecimento, . Durante todo esse tempo, quando eu me via perdida e sem rumo, é você quem sempre esteve comigo. Parece clichê, mas você sempre foi minha válvula de escape. Do mundo, da realidade da vida e principalmente agora, que meu futuro se desenhou em um caminho tão desagradável, você não me abandonou mesmo sabendo que qualquer outro que estivesse em seu lugar faria isso. E eu lhe devo muito, muito mais do que jamais poderei pagar. — seus olhos começaram a lacrimejar, mas apenas passou um de seus dedos por eles. — E agora você está aqui, arriscando-nos a serem pegos, mas minha felicidade é tanta que eu mal posso achar palavras para lhe agradecer. E então você me faz uma pergunta completamente idiota, como “Você me ama o suficiente para isso, ?” — ela sorriu ainda mais, tocando sua face com uma de suas mãos, acariciando-o. — Achei que soubesse. Na verdade, você deveria saber. Estou ofendida pelo fato de que todos os “eu te amos” soltos por mim não foram levados à sério. — pausou apenas para apreciar as lágrimas que também se formavam em naqueles olhos. — Eu nunca digo um eu te amo em vão, . Mas eu confesso que cometi um erro. Não especifiquei com exata precisão meus sentimentos. Você é mais que um amor, . Você é o meu refúgio e isso é mais do que um dia pedi pra mim.
   mal esperou suas palavras terminarem, para segurar sua cintura e puxar-lhe em um beijo. Mas não era o beijo lento e calmo no qual ela a tanto conhecia. Era feroz, urgente, sedento. Era mais do que apaixonado, era necessitado e foi só então que ela percebeu o quanto precisava daquilo também.
  Quando finalmente terminaram, puxou-a pela mão e correram em direção as árvores já mais densas. não fazia ideia de para onde estavam indo, mas a sensação de liberdade quase podia ser tocada e ela não queria perder aquilo por nada no mundo.
  Seus pensamentos voaram de encontro à Anne, que aquela altura, provavelmente estaria sendo mandada até a casa para procurá-la. Sabia que deixaria a irmã preocupada, mas se queria realmente fazer aquilo, não poderia parar, tinham que correr. Talvez depois pudesse enviar uma carta explicando-lhe todos os detalhes de sua fuga com . A única coisa que sabia naquele momento, é que sua vida dependia do quão rápido fossem.
  Depois de muito correrem, pôde ver a carruagem puxada por enormes cavalos negros. Seus pelos reluziam na fina cortina do sol fraco que iluminava aquela tarde. Uma pequena estrada de terra se esticava em um caminho que se perdia de vista.
  — Eu sei que príncipes costumam vir em um cavalo branco, mas os negros foram o que consegui. Espero que não se importe. — um sorriso divertido estampava seu rosto enquanto puxava para mais um beijo.
  — É claro que não. — respondeu após sentir o sabor tão característico da boca do rapaz. — Mas , você tem certeza que quer largar tudo também?
  — ... Eu já estou mais do que certo disso. — Ele sorriu afagando seus cabelos. — Você é minha droga, minha toxina. E eu sei que sou a sua também.
   abaixou seus olhos desconcertada. Não pode deixar de notar seu peito levemente nu, devido ao vento que abriu os botões de sua camisa com a corrida.
  — E... — ele continuou, levantando seu queixo, fazendo-a encontrar seus olhos. — Juntos somos um só. Suprindo suas necessidades mutuamente. Intoxicando um ao outro. Consumindo a droga mais perigosa que esse mundo já viu. O amor.

FIM



Comentários da autora


Olá! Primeiramente, se você leu isso, muito obrigada. De verdade. Esse é apenas um escrito no qual eu trabalhei durante uma tarde de domingo, na qual não seria transmitido o jogo do Corinthians e eu estava sem nada pra fazer. E esse também é o primeiro texto que eu criei coragem de publicar em algum lugar. Então se você realmente sentiu vontade de terminar de lê-lo e chegou até esta nota, eu lhe agradeço muito.
E segundo, eu gostaria muito que você desse sua opinião também. Qualquer coisa. Se você gostou de uma frase, ou de qualquer detalhe, me diga. E se não gostou também, pode deixar sua crítica construtiva aqui. Eu amo ouvir opiniões. (Acho que seria ler no caso, né? Haha)
É isso. Beijos da Mia.