Sunbeam
Escrito por Danielle | Revisado por Natashia Kitamura
"Não deixes que a vida passe em branco, e que pequenas adversidades sejam a causa de grandes tempestades." - Vinícius de Moraes
Um
Levantei-me às seis e meia da manhã naquela segunda-feira cruel. Meu primeiro dia de aula na Beaufort High School. Sete dias atrás eu nem mesmo fazia ideia da existência daquela pequena cidade perdida na Carolina do Norte. Hoje, estava sendo obrigada a abandonar minha cama macia e confortável para encarar o primeiro dia de aula em um lugar completamente estranho.
- Merda. - reclamei quando a porta do closet emperrou e tive que fazer força para abri-la. Aquele tipo de coisa não acontecia na Austrália.
Podiam falar o que fosse de Sidney - que era no fim do mundo, que brigávamos com os pingüins todos os dias nas ruas para ter espaço para passar, que Deus só se lembrava de nós no Natal, e olhe lá, de tão afastados que vivíamos. Mas eu amava Sidney. Provavelmente porque sair dos Estados Unidos quando eu tinha doze anos fora a melhor coisa que acontecera em toda a minha vida. Aquilo havia significado não apenas um salário muito mais alto para os meus pais na época, o que representou mais conforto e um cartão de crédito com um limite mais alto para mim. Aquilo havia sido deixar meus dias como a nerd sem graça e gorda que ninguém olhava para me tornar a garota mais cobiçada dos colégios em que já havia estudado. Eu realmente não estava feliz em voltar para os Estados Unidos.
Peguei um short jeans curto, uma blusa de alças e um chinelinho de dedos. Repudiei cada metro quadrado de Beaufort quando a TV acusou temperatura de 35° Celsius para aquele dia, e lembrei-me que eu não tinha dinheiro para comprar meu almoço na ?nova escola? enquanto esfregava o xampu no couro cabeludo. Enxaguei meus cabelos o mais rápido que pude e me enrolei na toalha. Meu relógio de parede dizia que já eram sete horas, então meus pais já deviam ter saído. Desci as escadas num rompante, mas quando cheguei ao andar de baixo apenas Mia, minha gata persa, estava lá embaixo estirada no tapete da sala de jantar, tomando seu banho de língua matinal.
- Mãe! Eu não tenho dinheiro para o almoço. - falei assim que minha mãe atendeu o celular.
- Bom dia pra você também, . - ela respondeu ignorando meu problema.
- Não aceitam cartões de crédito nas escolas nem em Sidney, duvido muito que vão aceitar aqui nessa cidadezinha de nem cinco mil habitantes! E eu não tenho nem um tostão!
- Você teria se não tivesse bancado a rebelde ontem à noite e saído pra festejar em não-sei-aonde.
- Eu não quis vir pra esse lugar, tá bom? Vocês atiraram isso na minha cara num dia e no outro já estavam fazendo as minhas malas.
- Essa conversa de novo não, . A mamãe está dirigindo agora. Eu tenho meia hora para chegar a Jacksonville.
- Ok. Eu não vou à escola então.
- É claro que vai, mocinha!
- E quem vai me obrigar?
- Pode esquecer os cartões que você ainda tem se não for à aula hoje.
- Mas, mãe, eu vou comer o quê o dia todo?
- Leve um sanduíche ou coma o que servirem de graça na escola. É só hoje. E isso vai ser bom pra você aprender a não sair sem permissão de novo.
Bufei o mais alto que pude e desliguei o telefone sem me preocupar em me despedir.
Meus pais viviam pagando o discurso de que me criavam para que eu soubesse tomar minhas próprias decisões e me tornasse, um dia, uma adulta equilibrada e que sabe o peso das consequências. Isso não combinava exatamente com me arrastar para um lugar onde eu não queria viver e nem mesmo me deixar o dinheiro do lanche. Certo, eu confessava que havia estourado trezentos dólares na noite anterior. Mas não havia sido fácil convencer o garçom da cidade ao lado, Atlantic Beach, se eu não me enganava, a me vender bebida alcoólica. E eu tinha os meus motivos para precisar recorrer a uma coisa dessas.
Peguei minha mochila e o mapa da cidade que havia imprimido da internet, e comecei a caminhar. Meu carro ainda não havia sido trazido para Beaufort, mas eu tinha certeza que a escola não seria muito longe da minha casa, afinal, a cidade nem população tinha, então a extensão territorial deveria ser medíocre também.
Eu deveria chegar à escola no mínimo até às oito; já eram sete e quarenta e eu não fazia idéia de como encontrar o colégio ainda. Estava tentando evitar pedir informação para alguém. Eu simplesmente não estava com humor para conversar com estranhos - principalmente estranhos de cidades pequenas que deviam estar esperando a chegada de uma família nova e tentariam ser gentis demais comigo, eu poderia apostar. Mas eu estava ficando sem tempo e sem alternativas.
- Olá, com licença. A senhora sabe me dizer onde fica a Beaufort High School? - perguntei a uma senhora que parecia ter uns quarenta anos e que varria a calçada em frente a sua loja.
- Você está bem atrasada, hein? Não vai chegar a tempo da aula se pretende ir andando.
- Onde eu posso pegar um táxi por aqui? - só depois que fiz a pergunta, eu me lembrei que estava dura. Perguntei-me se aquela senhora emprestaria dinheiro para uma garota que nunca havia visto na vida. As respostas indicaram que eu realmente não estava com sorte aquele dia.
- Meu filho já está indo para a aula agora também. Vou pedir a ele que te leve. Só um minuto!
- Tudo bem, não é preciso...
- Lucas! - ela gritou e adentrou a loja ignorando minhas palavras.
Pensei nos prós daquela hospitalidade. Eu ganharia uma carona para o colégio e ainda teria alguém para me mostrar as dependências da escola, então não precisaria ficar perambulando por lá sozinha o dia todo.
- Vamos? - um garoto alto, de cabelos louros, trajando uma bermuda, camiseta e chinelos de dedo apareceu na minha frente e sorriu para mim.
- Você é o filho da senhora...
- Essa é a garota, meu filho. - a dona que havia ido chamar alguém me interrompeu. - Eu vi no jornal que a família dela chegou ontem à cidade e a pobrezinha está perdida.
- , certo? - o garoto perguntou sorrindo.
Fiz que sim com a cabeça. Pelo visto, meus vizinhos haviam feito a lição de casa.
- Meu nome é Lucas Sullivan. - ele estendeu a mão para mim. Correspondi ao aperto corando; a beleza do rapaz estava me intimidando. - E agora é melhor nós irmos ou vamos nos atrasar.
- Ok. - respondi feliz pela primeira vez naquele dia.
Capítulo 2
Lucas era muito educado. Perguntou durante a viagem como minha família havia descoberto Beaufort, então lhe expliquei que meus pais haviam sido transferidos para a unidade do banco onde trabalhavam nos arredores. Ele também questionou sobre onde eu morava anteriormente e ficou impressionado com o fato de eu não ter sotaque.
- Eu sou americana. Fui para a Austrália quando tinha doze anos. E agora estou voltando pra cá. - justifiquei-me um tanto melancólica.
- Você agora tem quantos anos?
- Dezoito.
- Está no último ano?
- Uhum.
- Então pode ser que a gente tenha algumas aulas juntos.
A possibilidade - na verdade, certeza absoluta, dado o fato de a escola ter seiscentos alunos no total - de ter aulas com Lucas me animou um pouco. Também me lembrei que estávamos em março, no meio do semestre, e a formatura não demoraria muito para chegar, afinal.
Lucas estacionou o carro no que eu chamaria de uma boa vaga em Sidney, apesar de que faltavam cinco minutos para o início das aulas. Ele me mostrou onde ficava a secretaria e me acompanhou até lá para que eu pegasse meu horário, uma folha que os professores deveriam assinar, um mapa do colégio e a chave do meu armário.
Minha primeira aula era português, a de Lucas era História, então ele me indicou o prédio para o qual eu deveria ir, e praticamente corri para lá quando o sinal tocou.
O professor de português era um senhor grisalho de uns cinquenta e tantos anos, muito simpático. Ele pediu que a turma me desse as boas vindas e perguntou de onde eu vinha. Algumas garotas louras de cabelo desbotado e muita maquiagem riram quando eu disse que estava chegando de Sidney e arregalaram os olhos quando eu acrescentei que havia nascido em Los Angeles, mas me mudara para lá quando meus pais foram promovidos no banco onde trabalhavam.
Um garoto chamado Mike que ostentava um moicano esquisito se apresentou para mim quando a aula terminou e se propôs a me acompanhar para a aula de Trigonometria, porque era seu próximo tempo também.
As aulas seguintes passaram mais rápido do que eu poderia imaginar. Encontrei-me com Lucas no laboratório de química no horário antes do almoço, e caminhamos juntos para o refeitório da escola enquanto ele me falava sobre as pessoas do colégio que eu deveria conhecer para ser considerada popular.
Quando a garota de cabelo palha-de-milho beijou Lucas e perguntou quem eu era, minha ficha demorou um longo tempo para cair.
- , essa aqui é a , minha namorada.
- Muito prazer, . - falei depois de pigarrear algumas vezes.
- E aí, Los Angeles?! - ela riu e explicou para Lucas porque havia me chamado daquilo.
- Eu sei que ela é da Califórnia. Ela me contou hoje de manhã. - ele comentou casualmente.
- E como foi que vocês se conheceram? - a garota perguntou forçando um sorriso.
- Ela pediu informação hoje mais cedo pra minha mãe e nós oferecemos uma carona para a escola, já que estava tarde e ela não sabia como chegar aqui.
e Lucas mudaram de assunto depois disso; não tentei acompanhar a conversa deles. Estava, de certa forma, me sentindo traída. Eu havia pensado que ele era um cara legal, mas observando a criatura que namorava... Ok. Eu não conhecia direito a garota, então não poderia tirar tantas conclusões precipitadas. Mas eu sempre havia sido muito boa em julgar o caráter das pessoas com poucas informações, e podia jurar que boa bisca a tal da não era.
Quando percebi que estava na fila de pagar pela comida, saí à francesa. Perguntei baixinho ao Mike Moicano onde a comida era de graça e o infeliz respondeu alto demais que não tinha isso naquela escola.
- Tá sem dinheiro, linda? - ele perguntou em um volume elevado o suficiente para se meter na conversa.
- Parece que você já virou a rainha dos esquisitos, hein, Los Angeles? - ela perguntou e deu uma gargalhada. - Por que você não paga o almoço da Vossa Majestade, Mike? Pelo visto faltou recursos nos caixas eletrônicos dela hoje.
Eu nunca fui muito conhecida pela minha paciência. Aliás, eu costumava pensar que a expressão ?pavio curto? me descrevia muito bem. Então, não calculei muito bem as consequências das minhas atitudes naquele momento. E não diria exatamente que me arrependi daquilo depois. Eu já estava tão farta da chatice daquela garota...!
- Duas coisas, . Primeira: não se diz ?Vossa? quando está se referindo à pessoa; diz-se ?Sua?. Então, o correto seria ?Por que você não paga o almoço da Sua Majestade, Mike??. Mas não se preocupe muito; ninguém aqui esperava de verdade que você fosse acertar uma coisa dessas.
- Escuta... - ela começou a dizer, mas interrompi:
- Segunda: a única pessoa esquisita que eu enxergo aqui é você. Pelo amor de Deus, não vendem tinta de cabelo nessa cidade, não? O seu só não está mais desbotado por falta de espaço! E, hellooo?, essa quantidade de maquiagem não combina nem um pouco com a luminosidade de Beaufort. Eu acabei de chegar aqui e já percebi isso. Você mora nesse lugar há quase duas décadas e ainda não notou?
Escutei algumas risadas, mas só percebi que até os funcionários haviam parado para encarar a cena quando a garota puxou uma mecha do meu cabelo e tive que devolver o gesto. Instantes depois, estávamos rolando no chão. Minhas unhas rasgaram a cara dela e puxei de mau jeito a alça de sua blusa, deixando-a sem a camisa no meio do refeitório apinhado de adolescentes. Eu, por outro lado, parecia intacta.
- O QUE É QUE ESTÁ ACONTECENDO AQUI? - um homem gritou no meio da bagunça fazendo todos procurar o que fazer imediatamente.
chorava abraçada a Lucas. Ele me fitou por cima do ombro dela com um olhar de medo e desdém. E, então, o homem que acabou com a confusão me encarou com os lábios cerrados.
- Para a diretoria. Vocês duas. - ele apontou para a porta do refeitório. Abaixei a cabeça e desejei com todas as forças do meu ser desaparecer dali. Mas, infelizmente, tudo o que eu pude fazer foi caminhar para fora daquele lugar com o cabelo estilo Black Power e o rosto vermelho como um tomate maduro.
Três
O diretor ligou para os meus pais que disseram que não poderiam comparecer ao local no momento porque estavam em uma reunião inadiável em Jacksonville. Achei a ligação desnecessária - eu já tinha 18 anos, afinal. Os pais de , no entanto, apareceram ali imediatamente e ficaram me olhando como se eu fosse uma criminosa. Até ameaçaram fazer uma ocorrência na delegacia, mas o diretor disse que meus pais eram boas pessoas e não julgava necessário medidas tão drásticas.
Fui suspensa por três dias. recebeu o resto da tarde de folga da escola, mas já poderia voltar às aulas no dia seguinte. Pensei em protestar, mas me senti tão humilhada e solitária que agradeci a Deus mentalmente por ter mais 72 horas livre daquele inferno.
Uma ótima forma de ter o primeiro dia em uma escola que eu ainda teria que aturar até o meio do ano. Sem dúvidas, eu não poderia ter começado pior. Caminhei até a praia com o rosto ensopado pelas lágrimas e a mochila pendurada no ombro direito. Tirei meus chinelos quando alcancei a areia e me joguei no chão, depois de alguns minutos andando.
- Dia ruim? - ele perguntou sentando-se ao meu lado.
- Ruim é apelido... - murmurei sem encarar o rapaz.
- Quem diria que uma cidade bonita como essa poderia ser cenário de um dia tão péssimo... - ele comentou.
- Tudo que essa cidade não é, pra mim, é bonita. - resmunguei e olhei para ele. Pisquei algumas vezes, esfreguei os olhos e me aproximei um pouco para ter certeza de que estava enxergando direito.
- É, sou eu mesmo. . - ele disse e sorriu de lado.
- Caramba! E eu pensei que só era possível ver pessoas assim em Los Angeles... O que está fazendo aqui?
- Fizemos um show ontem em Jacksonville. Aí viemos pra cá procurar um pouco de paz. - ele respondeu fitando o mar.
- Conseguiu o que procurava?
- Digamos que sim...
- Que bom pra você.
- Olha. Pode parecer clichê, mas não fica assim não. Dias ruins acontecem...
- Eu acordei sabendo que seria ruim mesmo. Quero dizer, eu nem queria vir pra cá.
- Acabou de se mudar?
- É. Meus pais vieram trabalhar aqui e eu fui arrastada junto. As pessoas que dizem que a Austrália é fim de mundo nunca ouviram falar de Beaufort mesmo.
- Jura que aqui é Beaufort? Eu pensei que estava em Atlantic Beach! - disse inocentemente arrancando-me uma risada.
- Cara, gostei de você! - falei sinceramente. - Meu nome é . - estendi minha mão para cumprimentá-lo, mas quando me lembrei que era um gesto ?beufortiano? demais, desisti e me aproximei dando-lhe um beijo na bochecha.
e eu conversamos sobre várias coisas aleatórias ali mesmo na praia até que começou a anoitecer. Comemos um hambúrguer e tomamos Coca-cola em um trailer a alguns minutos de caminhada de onde estávamos.
- É o . - ele disse olhando a tela de seu celular.
- O pessoal da banda deve estar preocupado com você.
- Duvido muito. e estavam jogando sinuca quando saí de lá, e se eu os conheço devem estar fazendo isso até agora. e provavelmente estão me ligando para me chamar para beber...
- Ah, beber... Isso seria ótimo agora... - eu disse e suspirei longamente depois.
- Se você tiver mais de quinze anos podemos dar um jeito nisso...
- Eu tenho dezoito.
- Então vamos! - me pegou pela mão e corremos até o táxi mais próximo.
Eu colocaria a culpa na bebida, mas nós dois estávamos absolutamente sóbrios quando chegamos a casa onde The Maine estava ficando. me disse que havia descoberto um lugar muito aconchegando no andar de baixo daquele lugar, e eu não me importei de verdade com o tamanho reduzido do sofá do quarto quando ele me beijou.
Pensei brevemente em como meu dia havia sido ridículo até as uma da tarde. Pensei em como meu pai e minha mãe gritariam comigo quando eu chegasse em casa no dia seguinte. E tudo aquilo simplesmente perdeu a importância quando me lembrei de como meu dia havia terminado mais perfeito do que eu poderia ter imaginado. estava deitado do meu lado e eu havia acabado de transar com o de The Maine.
Peguei minhas roupas e me vesti lentamente. Escrevi um bilhete para ele e deixei o recado numa mesinha onde repousava um telefone.
Obrigada por transformar o que parecia ser o pior dia da minha vida em vários momentos especiais. Posso dizer que você foi um verdadeiro raio de sol em uma manhã nublada para mim. Espero que a gente se encontre algum dia de novo. E se quiser me procurar, eu estudo na Beaufort High School. É, acho que só apareço de novo por lá daqui três dias, mas tudo bem. Um beijo! .
Li o bilhete de novo e acrescentei o número do meu celular depois do meu nome.
Saí do quarto sorrindo para mim mesma e pensando em como meu primeiro dia de aula na Beaufort High School fora inusitado; em como eu gostaria que aquele dia durasse para sempre, afinal.
Com amor, para o Autora Master.