Sonho de Dezembro
Lyra M. | Revisada por Lyra M.
Capítulo Único
Pelo que parecia ser a milésima vez só naquele dia, ajeitou sua árvore de Natal, que era pequena, branca e, naquele ano, estava decorada com tons de rosa e azul. Havia outra árvore, bem maior, na sala de visitas, mas a jovem era tão apaixonada pelo Natal que ganhara a versão em miniatura da decoração alguns anos antes, e desde então ela fazia questão de já montá-la no final de novembro, e a deixava no quarto, sobre a escrivaninha.
Mas por mais apaixonada pelo Natal que ela fosse, – como a menina preferia ser chamada – só estava ali dando os últimos retoques na decoração por puro nervosismo. Normalmente ela passava o Natal apenas com os pais e os avós, já que o resto de sua família morava em estados diferentes, mas aquele ano seria diferente; por algum motivo, todos resolveram se reunir, e mesmo sua tia e prima, que haviam se mudado para a Irlanda muitos anos antes, viriam para o reencontro familiar.
nem mesmo se lembrava de qual fora a última vez que vira todos reunidos, apenas tinha vagas lembranças de ser muito próxima de , sua prima, antes que ela se mudasse de país, e de as duas brincarem de contos de fadas quando eram mais novas, fingindo serem princesas que frequentavam lindos bailes, esperavam seus salvadores ou coisa que o valha. Por algum motivo, a perspectiva da noite que se aproximava a deixava nervosa.
— Mãe? — Ela chamou, descendo as escadas e seguindo para a cozinha, onde a mãe terminava de preparar um pavê. — Precisa de ajuda com alguma coisa?
— Pelo amor de Deus, , essa é a quinta vez que você me pergunta isso nos últimos quinze minutos, está tudo bem! Não preciso de ajuda! — A mais velha assegurou, exasperada, quando a filha entrou no cômodo. — Se está tão nervosa, tenta relaxar um pouco. Já se arrumou? Deita um pouco para descansar.
— Perguntar não ofende. — Revirando os olhos, a adolescente saiu da cozinha.
Ela voltou para o quarto e ligou o ventilador, jogando-se na cama. odiava o calor e, ainda por cima, dera a sorte de nascer em um país onde, no verão, cada habitante parecia ter um sol particular, brilhando acima da cabeça noite e dia. Deus, como ela queria poder passar o Natal em um lugar onde nevasse.
Não que ela gostasse tanto assim de frio – estava tão acostumada com o calor que, se fosse para um lugar mais frio, como o Canadá, com certeza viraria uma pedra de gelo. Mas, de uma forma ou de outra, sonhava em passar um Natal com neve, provavelmente por influência de tantos filmes sobre o tema.
Foi pensando nisso que deitou em sua cama e, apesar do nervosismo, adormeceu pouco depois.
Um vento frio não foi suficiente para despertá-la, mas a jovem se revirou na cama, puxando a coberta até o queixo. Ela resmungou um pouco quando sentiu a mão de alguém balançar seu ombro de leve.
— Alteza? — Uma voz que ela não reconheceu a chamou, hesitante. — Alteza, levante. Vai acabar se atrasando. resmungou e virou-se para o outro lado, mas algo naquela situação fez uma luz se acender em seu cérebro, indicando que algo estava, senão errado, muito estranho.
Para começar, a voz que a chamara era feminina, mas não era sua mãe. Além disso, ela não havia se coberto quando fora deitar – seria loucura fazer isso em pleno verão brasileiro. E, para encerrar, que história era aquela de alteza? Contrariada, abriu os olhos, e assim que eles se ajustaram ao ambiente, ela deixou escapar uma exclamação de espanto.
Aquele não era seu quarto.
sentou-se, encarando desnorteada seu arredor. O quarto em que estava era redondo, decorado em tons de creme e dourado, e a cama em que ela estava era enorme, com dossel e vários travesseiros e almofadas. Era tudo tão bonito, refinado e surreal que parecia que ela ainda estava dentro de um sonho, mas a moça (uma criada?) parada ao lado da cama havia acabado de acordá-la!
Não havia espelhos no quarto, mas ela olhou para os próprios braços e levou as mãos ao rosto. Tudo parecia igual, ainda estava no mesmo corpo. Pelo visto, o problema que precisava de solução era onde seu corpo estava.
— Eu trouxe o vestido para o baile. — A criada disse, envergonhada. — Está quase começando, mas talvez seja melhor ficar aqui e descansar?
Demorou um bom momento para que percebesse que era com ela que a criada estava falando, e quando tentou responder, sua voz soou distante, como se nem mesmo pertencesse a ela – o que até faria sentido, porque de todas as coisas que poderia ter deixado escapar de sua boca, inclusive um grito de susto pela situação em que se encontrava, ela jamais poderia imaginar que tivesse sido aquilo:
— N-não. — Ela gaguejou, hesitante. — Já vou me arrumar.
E, deixando que a criada a ajudasse a levantar da cama, ela seguiu para a cadeira onde fora colocado o vestido de baile. Tudo naquele quarto parecia clássico, refinado e atemporal, com exceção do vestido. Era tão bonito quanto qualquer um dos que ela já vira descritos em livros ou representados em filmes; o tecido era fluido (talvez seda?), em um tom de azul escuro que lembrava o céu noturno, e a saia, longa, era bem cheia e possuía várias camadas drapeadas, o que a deixava ainda mais volumosa. Além disso, a cintura era bem marcada, o corpete tinha uma amarração complexa e deixava os ombros nus. Era, de longe, o vestido mais bonito que já havia visto, e com exceção das brincadeiras sobre princesas quando era criança, ela nem sequer havia sonhado em usar algo tão lindo. Bem, pelo menos até o momento.
A mesma moça que a acordara a ajudou a se vestir, e o espartilho muito apertado e o corpete comprimiram seu peito, impedindo-a se respirar muito fundo – o que não fazia muita diferença, no fim, porque o vestido ficara tão perfeito e era tão estonteante que ela não conseguiria respirar de qualquer forma.
A criada a guiou para uma porta de madeira maciça do outro lado do quarto, que dava direto para uma soleira estreita e, então, uma escada. Fazia sentido o formato redondo do cômodo, então. Era uma torre. Que ironia, pensou . Agora sou mesmo uma princesa presa em uma torre, igual imaginava quando era criança.
Elas desceram com cuidado a longa escada, até se depararem com um corredor, cujas paredes estavam cobertas com quadros de pessoas e paisagens que não se lembrava de já ter visto antes. Ela andava no que parecia um estado de transe; seus passos eram confiantes, como se suas pernas já soubessem para onde estavam indo, embora seu cérebro insistisse em não dizer.
Atravessando o corredor, elas viraram em outro, e depois mais outro, e tinha certeza de que não conseguiria achar o caminho de volta sozinha, tão grande era o castelo. Depois do que pareceu muito tempo, o som de vozes abafadas e música finalmente chegou aos ouvidos delas, e logo estavam frente a um salão de baile magnífico, ricamente decorado, e cheio de convidados.
Imaginar era, com certeza, muito diferente de presenciar, e qualquer coisa que imaginasse nunca chegaria aos pés do que seus olhos viam naquele momento. A confusão de tecidos coloridos confundia sua mente conforme convidados caminhavam, conversando, e casais rodopiavam pelo salão, em danças bem ensaiadas. Ela tentou se misturar e, surpresa, percebeu que fora bem mais fácil do que o imaginado; era quase como se uma parte dela soubesse exatamente o que fazer porque deveria estar ali.
Dentre todas as pessoas presentes, uma chamada a atenção de , um rapaz não muito mais alto que ela, que passara por entre os convidados algumas vezes, para só então sumir de novo entre o mar de sedas coloridas dos vestidos e tecidos sóbrios das roupas masculinas. E justo quando achava que era apenas coisa de sua mente, ele surgiu de novo. Cara a cara com ela, com um olhar tão penetrante que ela não conseguiria desviar nem se quisesse.
Ela não sabia como, mas tinha certeza de que era ele. Havia algo na aura que ele emanava que não a deixava se enganar; ela até poderia se arriscar e dizer que ele era um príncipe. A aparência do rapaz era um bocado comum, dado o ambiente em que estavam: não era muito mais alto que ela, a pele era clara, e os cabelos e os olhos tinham um tom engraçado – o cabelo era castanho, mas ela podia ver um tom acobreado bruxuleando entre as luzes das velas penduradas em candelabros. Os olhos, por sua vez, eram de um castanho diferente, beirando o amarelo.
As íris cor de âmbar a encaravam fixamente enquanto ele estendia uma mão, em um convite silencioso para dançar, e aceitou sem hesitações.
Os dois giraram pelo salão, uma das mãos dele firme na cintura de , enquanto a outra segurava a mão dela. O rapaz – de quem ela nem sabia o nome – a guiava com uma naturalidade incrível, e quando a levantava do chão em um giro, era como se estivesse mesmo voando. Dançaram uma, duas músicas, e bem poderia dançar mais dez, se ele quisesse, e se antes achava que havia acordado no corpo errado, agora estava começando a achar que, pra começo de conversa, ainda estava dormindo. Era como um sonho.
Quase como se soubesse dos pensamentos de , a mesma criada se aproximou dos dois, com uma expressão aflita no rosto, destacando-se na multidão por usar um vestido muito mais simples do que as convidadas. Ela abriu a boca, falando algo, mas foi como se sua voz não pertencesse a ela, mas ecoasse de todos os lugares, distante:
— ! — Ela chamou. — , acorde!
olhou para ela, com o cenho franzido. O timbre não era parecido com aquele que a acordara algumas horas antes, na torre. A criada continuou a se aproximar, mas mesmo quando ela não dizia nada, a voz ainda se fazia presente, mais alta e vinda de todos os lugares.
— Acorde!
E, olhando ao redor uma última vez, tentou guardar na memória todos os detalhes daquele salão de baile tão ricamente decorado, do vestido azul meia-noite que usava, e do rapaz com quem dançara e que nem ao menos conhecia. Quando os olhos escuros dela encontraram os amarelados dele, sentiu uma forte corrente de ar empurrando-a para trás; ela não resistiu a fechar os olhos, e tudo desapareceu.
abriu os olhos com dificuldade, sonolenta. Não se lembrava de ter adormecido, mas nossa, como queria continuar dormindo agora. No entanto, uma mão insistente continuou balançando seu ombro, tornando difícil voltar para o mundo dos sonhos.
— , levanta logo! O pessoal já está chegando!
A jovem olhou ao redor, e foi meio desapontada e confusa que ela reconheceu o próprio quarto: tudo estava exatamente como ela havia deixado, o que deixava claro que aquele fora o sonho mais longo e intrigante que ela já tivera em toda a vida.
— Falei pra você relaxar, mas também não precisava dormir por tanto tempo! — Sua mãe brigou. — Quase todo mundo já chegou, inclusive sua prima . Desça logo!
murmurou algo incompreensível enquanto concordava com a cabeça. Assim que a mais velha saiu do quarto, ela se levantou e seguiu para a cômoda, sobre a qual havia um espelho. Passando a mão pelo rosto, como que para checar se ainda era ela mesma, não pôde evitar um suspiro desanimado. Por mais estranho que fosse, ela bem podia se acostumar com a vida de princesa, especialmente se envolvesse mais vestidos tão bonitos quanto aquele azul com o qual sonhara.
Depois de retocar o batom e ajeitar o cabelo, desceu as escadas, e o falatório do andar de baixo a atingiu mesmo quando ela ainda estava lá em cima. Pela primeira vez na vida, a moça não estava tão animada assim com o Natal, mas não podia simplesmente se isolar no quarto e voltar a dormir.
Com cuidado, ela desviou das crianças que corriam pela casa, cumprimentou os parentes que encontrou pelo caminho, e já estava pensando consigo mesma onde raios poderia estar , quando as duas quase se esbarraram no corredor.
— ? — Ela perguntou em dúvida, antes de abrir um sorriso enorme e praticamente gritar: — FANNY! Ah meu Deus, que saudades! Estava te procurando!
mal teve tempo de respirar e foi sufocada em um abraço, que correspondeu com entusiasmo.
— Senti tanta falta de todo mundo aqui! — continuou, empolgada. — Ficamos tanto tempo longe que eu quase esqueci como se fala português, sorte que mamãe e eu praticávamos em casa, de vez em quando. Você nem imagina como eu fiquei feliz por voltar pra cá, mesmo que só por um tempo.
— Sério? Achei que seria só para o Natal! Quanto tempo vocês vão ficar? — perguntou enquanto a prima a arrastava pelo pulso para a sala.
— Não, nós vamos ficar um mês ou dois. Terminei o ensino médio agora, e vou dar uma pausa antes de começar a faculdade. Dá tempo de matar a saudade das coisas aqui, né? Acredite ou não, senti falta desse calor do verão!
— É bem difícil de acreditar mesmo. — riu.
— Eu sei! — a acompanhou. — O pobre chegou a passar mal quando chegou aqui.
franziu as sobrancelhas.
— ? — Ela perguntou, confusa.
— Sim, você não soube? — parou. — Achei que sua mãe tivesse comentado, um amigo veio comigo e com minha mãe. Ele se chama , quer fazer um intercâmbio aqui no Brasil e veio conhecer os lugares um pouco. Até já aprendeu algumas palavras, estou ensinando a ele aos poucos. Olha, ele tá ali! , vem aqui rapidinho!
Ela apontou para o outro lado da sala, e mesmo em meio a todos os parentes que não via há uma eternidade, soube exatamente a quem se referia. Parado num canto, parecendo tão deslocado quanto confortável, estava um rapaz alto e de cabelos escuros, aparentando a mesma idade de e . Ele olhou ao redor assim que ouviu seu nome ser chamado, e se aproximou ligeiro, esguio como um gato.
— Essa é a prima de quem te falei, . , esse é o meu amigo, .
— Prazer te conhecer. — Ele falou com um sotaque forte, com um sorriso nos lábios finos e se inclinando um pouco, em uma reverência graciosa.
, em choque, tentou falar alguma coisa, mas falhou. Ainda não havia conseguido desviar o olhar do rosto e dos olhos amarelados do rapaz. A parte racional de seu cérebro gritava que aquilo era impossível, mas uma voz no fundo de sua mente sussurrava, insistindo que ela não estava louca, que aquilo era real.
Aquele era, claramente, o jovem com quem ela havia acabado de sonhar. E, a julgar pelo modo como as íris cor de âmbar dele também não se desviavam dela, poderia dizer que ele também a havia reconhecido. Finalmente saindo do quase transe em que estava, a garota balançou a cabeça e murmurou, ainda atordoada:
— O prazer é todo meu. Feliz Natal.
Fim!
História dedicada especialmente para a minha amiga secreta! Sei que não conversamos muito, então foi um pouco difícil decidir o que escrever, mas espero que goste de um bom clichê de Natal (eu, pelo menos, adoro HAUHAUHA). Escrevi de coração <3