Sight, My Sight
Escrito por M-Hobi | Instagram | Twitter
Revisado por Natashia Kitamura
Prólogo
— Com licença! — berrei ao sair pela porta da sala de aula assim que a professora se despediu, apressada em iniciar a corrida pela minha vida.
Ou eu chegava antes de Tori na biblioteca ou ela iria bancar a panaca comigo, como sempre, renovando o máximo que pudesse o empréstimo do único exemplar que poderia me ajudar na pesquisa sobre estudos de reabilitação para neurobiologia da psicopatia — do qual eu já sabia ter somente uma unidade disponível. Confesso que parecia uma louca, mas isso não importava naquele momento, eu me recusava a esperar por ela para ter o livro em minhas mãos, assim como jamais insistiria em ler on-line; odeiem ou não, mas não, eu ainda gostava muito da moda antiga, segurar um montinho cheiroso na mão e folhear as páginas. Também era muito interessante usar o meu post it transparente para fazer marcações em meus estudos. Além de que eu sabia muito bem como a senhorita Maxwell gostava de receber suas pesquisas solicitadas com fontes literárias antigas, de base.
Então, sim, para agradar minha professora favorita e odiada por muitos, eu alimentaria minha competição com Victoria Evans para ser a melhor, mesmo que isso me rendesse correr pelos corredores do prédio como se minha vida dependesse disso. Estar chegando nos últimos períodos da faculdade me rendeu uma coisa chamada "tô nem aí para o que vão pensar”, é inevitável, uma hora ou outra a vida universitária te presenteia com esse adorável método de autoproteção.
Era mais importante garantir minha nota máxima do que me preocupar com o que iriam pensar — até porque ficava uma coisa muito gostosa no ar todas as vezes que Tori esperneava dizendo meu nome com sua voz irritada, por eu ter, outra vez, chegado antes dela em alguma coisa; poderia ser sim um grande trauma de infância, já que estudávamos juntas desde novinhas, e tive o desprazer de ela também optar por fazer psicologia na mesma universidade, ainda assim era bem satisfatório ganhar dela em tudo.
Assim que desci o último lance de escada, a vi sair do elevador. Nossos olhares se cruzaram e semicerramos os olhos uma para a outra, nos encarando, com o desafio lançado. Pronta como já estava desde que Patricia Maxwell, em toda sua elegância, anotou no quadro o pedido de uma tese sobre a perspectiva do neurodesenvolvimento da psicopatia, eu tinha minha vantagem. Sabia que Tori optaria pelo elevador, achando ser mais rápido, mas a partir do momento que as aulas terminavam, o cubículo automatizado se enchia de forma surreal, e como eu estava mais perto da porta, conseguiria sair mais rápido.
E foi o que aconteceu.
Ela precisou se esquivar de muitas pessoas, enquanto eu corri para o final do corredor térreo, entrando na biblioteca com toda a minha felicidade de ser vitoriosa mais uma vez. Ser competitiva era um porre, mas eu bem gostava quando ganhava.
— Bee, já está aqui dentro, não precisa mais correr... — fui recebida pela bibliotecária, Antonia, uma senhora de meia-idade muito adorável. — Aceita uma água? — ofereceu, acredito ter sido educação por conta de me ver ofegante.
Me curvei brevemente, flexionando os joelhos, e logo me recompus, ajustando a mochila em minhas costas e o meu rabo de cavalo. Pensando melhor, ter escolhido algo mais esportivo para aquele dia, diferente da bolsa transversal pequena, levando o fichário na mão, foi uma decisão bem astuta.
— Depois eu pego, Tonia... Primeiro eu preciso colocar as mãos naquele livro que eu sou louca pra ler! — fiz uma careta para ela, agindo como se fosse o Smigol falando sobre seu precioso anel.
— Não brinca? Finalmente Maxwell deu o tema? — Antonia uniu as mãos na altura do peito, causando um barulho de palma e logo se autorrepreendendo devido à exigência de silêncio no ambiente.
— Sim, deu! Eu tô tão feliz, você sabe o quanto esperei para poder falar sobre isso, Tonia!
— Sim, eu sei... — ela moveu os olhos para a porta e sua feição mudou. Eu acompanhei e logo vi Tori parada do lado de fora, com o vidro nos separando. Ela abria a porta, quando Tonia disse: — Desculpe, Victoria, a biblioteca já está com a capacidade total... Precisa esperar alguém sair, querida.
Segurei meu riso e ajustei a postura, ainda parada no mesmo lugar.
— Mas só estou vendo Bee e os dois ali na mesa, a capacidade é para quatro pessoas, Antonia. — Victoria rebateu, ainda parada do lado de fora, mas entre o vão aberto da porta de abertura lateral.
— Tem outro rapaz do curso de direito por aí... — Tonia gesticulou.
— Mas ele tem a própria biblioteca, o que está fazendo aqui? — a outra reclamou ao vento, fechando a porta e dando as costas, furiosa.
Meus olhos encontraram os de Antonia e eu me aproximei, inclinada por cima da mesa dela, que nos separava, para fazer um toque de mão. Ela era uma das maiores testemunhas de como eu e Evans éramos uma com a outra, sempre presenciando nossas brigas entre as prateleiras por causa de livros, notas e tudo o que envolvia nossa competição antiga.
— Eu vou lá procurar. — disse ao me afastar, peguei o necessário e entreguei a mochila para ela colocar no guarda-volumes, como exigência.
— Vê se não se perde no horário hoje, hein! Quero fechar cedo e você precisa se alimentar e viver a vida lá fora, Bee! Está quase terminando os estudos, precisa agora estudar outro campo... De preferência que envolva anatomia.
— Antonia! — senti minhas bochechas arderem, entendo o que ela quis dizer, e controlei o volume da voz para não atrapalhar os alunos que já estavam ali. — Eu tô muito bem sozinha. Quando conseguir me tornar doutora e puder contribuir no veredito lá no tribunal, eu penso nisso. Minha regra, lembra?
— Besteira. — revirou os olhos, pegando seu chá. — Para toda regra existe uma exceção, querida... E eu duvido que algum dia alguém irá conseguir tirar seu foco, por mais que tire os seus pés do chão, mocinha.
Respirei fundo e entrei no meu modo entediado, assentindo somente por respeito a ela. Não respondi e apenas segui meu rumo entre as prateleiras.
A universidade dispunha de prédios abarrotados de salas de aulas, divididos de acordo com a área estudada (apenas a de ciências sociais aplicadas era dividida em dois, pela lotação máxima) e cada um tinha em média de duas a três mini bibliotecas com ambientes para estudos, além do grandíssimo prédio da biblioteca principal — um dos motivos de eu ter escolhido a dedo onde me formar. A maior parte do meu tempo era gasto estudando ali desde que iniciei os estudos, por isso tanta intimidade com Antonia, então eu já conhecia o lugar como a palma da minha mão.
Deixei meu caderno e estojo em cima da primeira mesa que encontrei mais no fundo e peguei meu celular, usando o aplicativo para ver no catálogo em qual prateleira eu encontraria o exemplar. Assim que me informei, varri o ambiente com o olhar e logo a encontrei, vendo-a fechada — a parte mais interessante, para mim, era que para o lugar ser compactado, as prateleiras abriam e fechavam, tendo uma alavanca em cada extremo para serem giradas, levando a enorme estante de um lado para o outro.
Pelo número de série, imaginei que estaria na última divisão, porém lá em cima. Respirei fundo e prendi meu cabelo mais firme, como um ato repetitivo de nervosismo, e olhei rapidamente para Antonia, desistindo de pedir que ela me ajudasse assim que a vi concentrada em digitar algo no computador. Há um tempo que ela estava tentando escrever o próprio livro e eu achava adorável a forma como ela encarava as letras na tela e, depois de ler seus inúmeros rascunhos, eu com certeza me tornei uma fã e ansiava por finalmente poder saber que caralhos Henry havia deixado na carta para Monalisa antes de partir para o exército. Não quis atrapalhá-la.
Então fui sozinha.
— Vamos lá, Bee, você só precisa segurar o corpo e girar a alavanca. — repeti para mim mesma em um sussurro, parando à lateral da estante. Das outras vezes que eu tentei fazer isso, sempre levou horas para que eu sequer conseguisse dar a primeira volta e mover centímetros do móvel.
Mas agora eu fazia academia. Isso ajudaria, não é? Pelo menos eu esperava que sim, ou então vinha sendo um dinheiro gasto sem necessidade — sim, um dos motivos de eu acordar às quatro da manhã e fazer exercícios diários às cinco todos os dias, incluindo os finais de semana, era para conseguir mover os brutamontes chamados de estantes, cheias de livros; era necessária certa vantagem contra Evans e o condicionamento físico seria um bom ponto, o campus era enorme.
Me esforcei, não movendo nada, porém não desisti logo de primeira. Demorou até o êxito vir e, quando veio, eu fui pegando o jeito da coisa, levando tudo para o lado direito. Até ouvir um berro.
— Tem gente! Tem gente! Ei!
Parei imediatamente de girar e curvei meu corpo para o lado, deixando só minha cabeça aparecer entre o vão das duas estantes quase coladas. Levei um susto ao ver que tinha realmente alguém ali, preso no espaço e quase todo torto.
Minha matemática não era boa, passava longe disso. Para não ser boa precisava ser ruim, o que não era o caso, ela era ridiculamente péssima. Tomei um certo tempo por esse delay para calcular: se os outros dois alunos lá na mesa da frente, no espaço de estudos com computadores, somados, era igual a dois e tinha eu, dava um resultado ímpar; a biblioteca tinha sua capacidade para quatro pessoas. O quarto ser, que permitiu que Evans não entrasse, por ser um intruso do curso de direito, estava ali então, sendo espremido por mim. Na verdade, pela estante que eu estava empurrando.
— Oh, céus! — me desesperei e recolhi a cabeça, tentando voltar tudo, sem conseguir, o que me deixou mais nervosa ainda. — Eu não consigo girar de volta... Droga! — reclamei manhosa e me afastei, passando a mão na testa para tirar o suor antes de me colocar entre o vão e o encarar ali, naquela posição delicada. Antonia estava tão concentrada, que eu não quis atrapalhá-la, haja visto que nem mesmo o berro do rapaz ela ouviu.
Ele arregalou os olhos rasgados para mim e eu torci os lábios, completamente envergonhada.
Já podia ouvir a voz de se eu contasse isso a ela e ainda lhe salientasse o quão bonito ele era.
“Você está vendo que os deuses literários colocaram este ser aleatoriamente bonito para você espremer entre as prateleiras no lugar que passa quase todas as horas do seu dia?”, tenho certeza de que ela diria algo assim, tentando contornar a sua opinião controversa de que jamais iria existir a chance de eu encontrar um, segundo suas palavras, “grande amor” na biblioteca.
Engoli a seco e pensei rápido.
— Você consegue vir? — estendi minha mão para ele, sugerindo. — Eu te ajudo.
Pelo tamanho dele e o meu, isso com certeza não daria certo. Academia nenhuma iria me dar condicionamento físico para sustentar um corpo que poderia claramente sumir com o meu se estivesse em minha frente ou por cima de mim.
Ele pareceu confuso e medroso, mas tão derrotado quanto, então estendeu seu braço e tocou minha mão. Imediatamente um choque elétrico gostosinho me percorreu por todos os cantos, mas eu ignorei junto com o pensamento anterior sobre tê-lo em cima do meu corpo, segurando-o firme e me forçando a ir para trás, puxando ele.
Por pouco ele não caiu em cima de mim quando eu me desequilibrei para trás; o acidente foi impedido por suas mãos ágeis que me seguraram pelos ombros, porém o choque entre nossos corpos foi um pouco forte e isso fez com que o óculos dele caísse no chão. Eu, como uma boa e velha desastrada, rapidamente me afastei para pegar, mas não pude evitar meu nervosismo atrapalhando meus sentidos e acabei pisando sem querer.
Ouvi ele “gemer” em dor.
— Ooops... — disse baixo, arrependida desde o início, mas ainda peguei o acessório e coloquei entre nós, à vista. — Se não tinha como ficar pior... — vi ele se esforçar para focar a visão no objeto torto em meus dedos. — Digo, a situação... O seu óculos não, ele é lindo... Ou pelo menos era... — desembestei a falar sem saber o que dizer realmente. Desta vez fui eu quem gemeu sôfrego. Eu jamais conseguiria fazer qualquer coisa em minha vida sem incluir destruição.
— Tudo bem, não tem problema... — Ele respondeu com a voz murcha e um sotaque entoado como uma flecha carregada.
Ótimo, ele era estrangeiro, e eu amo sotaques. Provavelmente era aluno do programa de intercâmbio da universidade que trazia alunos de todo o mundo com bolsa integral para uma formação acadêmica.
iria me alugar por horas e me convencer de que eu definitivamente me tornaria a tia dos gatos, mesmo não tendo irmãos para ter sobrinhos. Tia dos filhos dela, talvez. Porque não tinha a menor chance de algum dia eu conseguir ficar com alguém sem causar algum estrago. Não contar a ela sobre esse ocorrido foi o primeiro alerta em minha cabeça.
— Claro que tem sim! — Não me contive, sentindo o remorso ao analisar a feição dele. — Você está bem? Me desculpa, eu estava muito ansiosa e não notei que tinha... que você estava ali! Deve estar todo machucado. — tateei seu ombro, ainda maltratando seu óculos em minha mão, enquanto ele tentava pegar e eu, com toda minha afobação, esqueci do detalhe.
Na minha cabeça não tinha nada organizado, piorando a bagunça quando toquei nele.
— Eu tô bem, de verdade... — tentou me convencer e estendeu o braço para pegar o óculos da minha mão. Tentei captar de onde poderia vir sua calmaria, porque eu estava ali, quase colapsando, e ele mantendo um fluxo tranquilo, como se nada estivesse acontecendo.
Como se uma louca não tivesse feito ele ficar preso entre duas estantes.
Em segundos, eu me organizei pelo mínimo, como colocar a sujeira embaixo do tapete, deixando a situação menos caótica, ainda que estivesse começando a notar coisas demais ali. O principal fato, eu ter prensado o cara entre duas prateleiras e quebrado seu óculos, que parecia muito novo, começou a ficar quase em segundo plano e eu tive um leve alerta sobre a possibilidade de estar reparando demais em seus traços.
— Ah, claro... — estendi e ele pegou. Enquanto analisava o estrago no meio da haste, eu o observei.
— Posso pagar pelo estrago... Ou melhor, compramos outro! Ele parece ser novo...
— Era sim. — respondeu triste. — Mas, tudo bem, essas coisas acontecem. Talvez seja um sinal divino para eu aceitar usar lentes. — ergueu seu rosto, sorrindo para tentar me convencer, com o sorriso mais específico que vi em toda minha vida.
Além do detalhe de seus olhos rasgados, delineados como um felino, irem se fechando, era uma coisa surpreendente ver sua boca se tornar maior, mais larga, enquanto o lábio inferior se formava em uma linha, mostrando os dentes alinhados. Uma harmonia que trazia até um som de harpa, melodicamente encaminhando meus sentidos para uma calmaria. Ninguém diria que aquela boca pequena, sempre em bico quando falava, poderia se tornar tão hipnotizante assim.
Sorte de quem assistia a isso todos os dias, porque realmente era um sorriso muito bonito. Muito mesmo. O tipo que faria qualquer um não conseguir desviar o olhar e se prender, assim como eu.
Notando meu estado petrificado, limpei a garganta.
Precisava me organizar de verdade urgentemente, estava lidando com muita coisa ao mesmo tempo.
— Ou seja um sinal para eu parar de competir com a Victoria Evans... — murmurei, lembrando de me dizer que aquilo entre nós duas já ia longe demais, até pela nossa idade. Ele me encarou confuso e eu varri a aleatoriedade para longe. — Por favor, me deixa pagar o conserto ou por outro óculos... É o mínimo que posso fazer.
— Não se preocupe... Está tudo bem. — Ele insistiu, tentando colocar o óculos torto.
Ficou adoravelmente engraçado e eu ri fraco, com meu tique de sempre: franzir o nariz. Isso me dava muita vergonha, porque eu só conseguia lembrar do meu pai agindo como se eu ainda tivesse cinco anos de idade quando eu sorria para ele assim, genuína.
— Ficou fofo. — saiu sem que eu pudesse conter, e para não tocar na ponta de seu nariz, levei as mãos para trás do corpo. — Um novo estilo, talvez até eu possa aderir.
— Vai ser interessante fazer apresentações de seminários assim. — ele tirou e guardou no bolso frontal de seu moletom.
Então o silêncio caiu entre nós. Eu só ouvia o barulho dos meus pensamentos misturados e em briga para ver qual iria se sobressair. Fiquei com medo de abrir a boca e falar alguma coisa no idioma do Tazmania dos Looney Tunes.
— Bem, eu vou indo então... — ele foi o provedor da quebra do silêncio, colocando as mãos nos bolsos da calça.
— Você está mesmo bem? — perguntei para assegurar.
— Estou. De verdade. — sorriu para mim com os lábios fechados e, de alguma forma, eu fiquei decepcionada porque criei a expectativa do sorrisão 10/10. — Fica tranquila, mas só... vê se não esquece de garantir antes que não tem outra pessoa entre as estantes. — alertou, rindo fraco.
Fiz um gesto como continência e ele riu outra vez.
— Pode deixar! — ri junto e, ao desviar o olhar brevemente, sem nem saber porquê, olhei a estante, no alto dela, e me lembrei do exemplar. Eu não ia conseguir pegar sozinha. — Será que eu poderia te pedir um favor? — perguntei hesitante. A vergonha estava me consumindo.
— Pode, claro.
— Antes de ir, você não pode... É... — fiz careta. — Pegar pra mim algo na última prateleira? — apontei. — Está na divisão sete, mas eu não alcanço e Tonia está muito concentrada... Não quero pegar a escada, tenho medo de altura. — sussurrei a última parte.
Ele se virou e assentiu simples.
— Eu pego. Qual é o número de série dele?
— 1897-P. — a resposta estava na ponta da língua e ele pareceu surpreso.
Sem dizer mais nada, ele fez o que eu pedi e logo colocou em minhas mãos o livro que eu tanto estava ansiando pegar. Meu sorriso falou por si só e, como se estivesse sozinha, logo o levei para minhas narinas, sentindo o cheirinho.
Ao erguer o rosto para encará-lo, sendo necessário por conta da nossa diferença de altura, o peguei me analisando. Mantinha os olhos apertados, com certeza estava se esforçando para enxergar alguma coisa sem suas lentes de fundo de garrafa.
— Obrigada... — agradeci educadamente. — E me desculpa outra vez. Vou ficar mais atenta.
— Está tudo bem. — sorriu ainda de lábios fechados outra vez. — Então eu vou nessa. — apontou, parecendo meio sem jeito.
— OK... Bom... É... — Olá, hoje vamos aprender o idioma do Tazmania!
— A gente se... É... Tchau. — ele se esquivou rapidamente, saindo.
— Tchau. — meu próprio instinto se despediu baixinho.
Permaneci virada de costas para a saída dele por alguns segundos, abraçada ao livro, abarrotada da desorganização interna. Quando notei que o cheiro do perfume dele ainda estava forte, ficando como um rastro, percebi que seu rosto não era nada familiar. Eu vivia naquele lugar e nunca tinha o visto por ali, e eu conhecia todo mundo do prédio, principalmente quem frequentava a biblioteca.
De onde ele tinha saído?
E qual era seu nome? Eu não perguntei!
Me virei e meus ombros murcharam ao enfrentar o vazio de sua presença. Ele já tinha sumido. E ao longe, na entrada, Antonia sorria sugestiva para mim. Encarei o livro em minhas mãos e peguei minhas coisas, regressando até ela.
— Sem nenhuma palavra sobre isso, por favor. — pedi envergonhada, colocando o camalhaço em cima de sua mesa.
— Pegou o nome dele pelo menos? — ela já foi direto ao assunto.
— Por que me interessaria?
Antonia bipou a etiqueta do livro, me encarando com insistência.
— Ah, tá bom! — desisti de bater de frente com ela. — Qual é o nome dele? De qualquer forma isso não vai me interessar mesmo.
— Jeon . Está indo para o último período do curso de direito. — ela começou. — Ele iniciou uma tese de alguma coisa criminal envolvendo neuropsicologia. — seu sorriso parecia empolgado demais. — É parte daquele grupo de alunos que são do intercâmbio da Coreia do Sul, no programa. Tem boa-
— Qual o prazo? — cortei, pegando o livro de sua mão e esperando minha mochila.
— Está no seu e-mail com todas as instruções.
— Obrigada, Antonia. Bom final de semana. — me despedi, já pronta para ir embora.
— Não vai ficar para estudar? Você nunca vai embora a essa hora... — Antonia perguntou, genuinamente confusa.
Não respondi, eu precisava organizar minha situação primeiro.
Capítulo 1: Segundas-feiras
Segundas-feiras são os dias mais chatos de pegar trânsito e me locomover de uma ponta de Manhattan à outra. Mesmo que eu me programe direitinho para seguir a rotina matinal de exercícios às quatro e meia com o personal, banho às cinco e quarenta para começar a me arrumar às seis e terminar às dez para sete, não atrasando meu café para sair de casa no máximo sete e vinte, eu ainda pegava o trânsito deplorável gerado pela preguiça coletiva do dia que dava o pontapé inicial de mais uma sequência de dias úteis na semana. Dificilmente eu chegava adiantada de segunda-feira, sempre acabava “atrasando” meu cronograma, e não tinha nada mais capaz de tirar uma Bee do seu estado de espírito tranquilo do que atrasos.
Felizmente, minha vaga no estacionamento já era taxada com propriedade e ninguém ousava estacionar nela, o ponto decepcionantemente triste era que ao lado do meu carro ficava Evans e seu conversível. Ela tinha a sorte de morar a poucos quarteirões da universidade, então sempre que eu chegava, Victoria já estava em algum canto dentro do prédio, planejando como faria o meu período letivo mais tortuoso. De qualquer forma, mesmo não chegando com os vinte minutos de antecedência que eu gostava e chegava nos outros dias, ainda conseguia chegar antes do horário da primeira aula.
Estacionei o carro sem muitas preocupações e juntei minha bolsa e o fichário pesado que estavam no banco do passageiro, descendo do Jeep com certa dificuldade pelo peso em meus braços. Bati a porta usando o perfil do meu corpo e acionei o alarme, levando um susto ao me virar para a traseira e ver parado ali, inesperadamente, apoiado na lataria com uma pose nada séria, tendo seu olhar sugestivo para mim. Ele parecia uma musa, mas sem os pom-poms e todo o requinte chique.
— Ai, que susto! — reclamei, estranhando.
— Bom dia pra você também, nerd da neuro. — sorriu com uma ponta dos lábios mais erguida que o normal. — Quer ajuda?
Franzi meu cenho, sabia que alguma coisa não parecia estar tão certa assim. nunca foi tão educado logo pela manhã com ninguém, até mesmo comigo, nem mesmo quando queria informações sobre para publicar no — como ele chamava — noticiário da faculdade, um periódico produzido pelos alunos de jornalismo em parceria com os de comunicação no geral para gerar pontos extras. tomava conta da parte de entretenimento e para ele isso se referia a fofocas generalizadas, portanto, ele sabia sobre tudo e todos daquele campus, nem mesmo o corpo docente passava ileso.
Com certeza ele queria alguma coisa de mim, eu conseguia ver em seus olhos espremidos e sua pose. Embora fôssemos amigos desde que eu entrei na universidade e ele me deu as boas-vindas, depois de pregar uma brincadeira do trote de recepção aos calouros por ele ser veterano, ainda conseguia me surpreender às vezes.
— OK, essa feição é nova. — guardei a chave do carro de qualquer forma dentro da bolsa e dei os primeiros passos. — O que você quer? Eu não sei sobre , não passamos o final de semana juntas. — caminhei adiante, notando que ele começou a me seguir.
pegou o fichário dos meus braços assim que me alcançou.
— Valha-me, pra que tudo isso? — raclamou baixo, provavelmente se referindo ao peso por conta das inúmeras folhas de anotações e o livro de neuropsicologia no meio, mas eu não falaria para ele sobre o camalhaço. — Não estou aqui para falar da . — se recompôs em sequência.
— Como não? Eu não sou popular, não sei da vida dos outros.
— Você conhece todo mundo, Bee.
— De vista. — rebati, olhando-o e medindo sua feição.
— Dá no mesmo. As pessoas sabem quem é a nerd que trocou de lugar com as traças da biblioteca. Aliás, muita gente torce por você, sabia? A Evans é um pouco antipática demais para ter o povo do lado dela.
O caminho da minha vaga para a entrada do meu prédio não era muito longo, quando já estávamos na ponta inicial da escada, eu parei de andar, me virando para ele e pegando meu fichário de volta.
— Fala logo, o que você quer? Já aviso que não vou fazer seu trabalho de conclusão. Você deveria ter vergonha, está no último semestre, ! Pare de me procurar quando quer saber da vida dos outros. — disse, vendo-o revirar os olhos. — Principalmente da vida da !
— E o que eu digo para quem me procura querendo saber da sua?
Sua resposta me fez congelar no lugar.
Quem gostaria de saber sobre a minha vida?
Essa era nova, muito nova.
— M-M-Mas o quê? — gaguejei, sabendo que uma careta se formava em minha face. — Do que você está falando?
— Não sei, Bee... Talvez eu publique no periódico de hoje, posso usar isso como o Gossip Anônimo do Dia. O que você acha? Posso aproveitar que o dia dos namorados está chegando e fazer disso uma espécie de correio do amor. O cupido!
Revirei os olhos para seu cinismo.
— Deixa de besteira. Você está inventando. — suspirei. — Quer inventar algo para estrear essa sua ideia de série de TV adolescente? Tudo bem. Só não use meu nome.
— Não é isso, garota. — esticou o braço, olhando para o lado e tocando meu rosto, seu indicador fez uma parceria com o polegar para segurar em meu queixo. — Só pense bem, tem alguém muito interessado em você.
— Essa é fácil. O . — respondi, lembrando dele. — Desde o início ele se diz apaixonado por mim, mas eu sei bem que paixão é essa...
— É, ele é meio perigoso. Mas não é ele, meu bem. — recolheu sua mão, olhando para o lado, para algum ponto distante no jardim que separava o meu prédio do vizinho. — Bem, talvez hoje eu fique de olho no pessoal das ciências sociais aplicadas.
Tentei seguir seu olhar, mas não encontrei nada incomum ou facilmente reconhecível. Na verdade, estava me deixando confusa.
— Você não vai mesmo me dizer? Se for ideia de um novo especial para o periódico, só me deixa de fora... Por favor. — choraminguei. — Pretendo finalizar minha graduação sem muito holofote.
Ele se aproximou, me deixando um beijinho na bochecha e rindo fraco.
— Ah, Bee, quando eu for embora vou sentir falta de você... — se afastou. — Boa aula, te vejo no almoço.
começou a caminhar para longe, em direção ao seu prédio, e eu fiquei ali, parada como uma estátua. Ele simplesmente havia enfiado um conjunto inteiro de pulgas atrás da minha orelha.
De duas, uma: ou ia mesmo iniciar mais uma de suas peripécias e montar uma coluna de fofocas anônimas ou ele estava falando a verdade. Mas se não era uma mentira, quem é que poderia estar indo atrás do maior fofoqueiro de toda a universidade, que não fazia nada de graça pelos outros, para saber sobre mim? Justo eu, a nerd da psicologia, fissurada em livros, neuropsicologia e metódica demais.
estudava comigo, ele podia perguntar de mim quando quisesse, e já fazia isso diariamente desde que ingressamos na faculdade. Ele nunca escondeu o seu interesse em mim, mas eu sempre me esquivei porque sabia de seu histórico e, não só isso, meu foco realmente era estudar e deixar para me preocupar com relacionamentos depois do diploma e com minha carreira em mãos.
Não seria possível que simplesmente tivesse alugado uma mansão dos Hamptons na minha cabeça com aquela informação pela metade logo cedo. Logo numa segunda-feira em que eu estava exausta já às oito da manhã por causa do trânsito da cidade.
Capítulo 2: Seguro de vida
bateu a porta do meu armário muito forte e isso me assustou, fazendo com que eu pulasse no lugar, olhando ao redor em desespero pela vergonha da cena dela. Pedi desculpas às demais universitárias que também se assustaram e esperei que elas tivessem recebido o pedido mentalmente.
— Que isso? Pra que essa violência? — a encarei com uma feição de horror.
— Você vai embora. Agora. — apontou para mim, soando mandona como sempre fazia ao se tratar da minha forma de me dedicar à universidade e às atividades que envolviam minha vida acadêmica.
— Tá louca? Tenho atletismo agora. É meu primeiro dia e-
— Bee, você não precisa disso! — me cortou, falando mais alto, e também dando um tapa não tão leve na estrutura de aço ao nosso lado. Outra vez me assustei, tomando um passo para trás e abraçando minha própria cintura. — Céus! Quando você vai viver fora desse campus?
— Quando eu me formar... — falei baixinho e ela revirou os olhos. — É sério, . — choraminguei.
— Eu duvido, você vai acabar fazendo mestrado e doutorado para se tornar uma Maxwell e nunca mais sair daqui. E nossos planos de Vegas? Ibiza? Você não pode ser crente para o resto da vida, Bee!
— Não quero ser a Maxwell, estou estudando para ser Bee, ter minha própria carreira... Neuropsicologia na área jurídica, lembra? — abaixei a cabeça, olhando para os meus pés, sentindo minhas bochechas consumidas pela temperatura alta devido ao meu estado vergonhoso. Odiava ter olhares demais sobre mim e foi exatamente isso que adquiriu ao chegar daquela forma e continuar berrando.
— Que seja. Você precisa descansar, sair desse lugar. Aproveitar o tempo livre que tem... — enumerou, diminuindo sua intensidade. — Bee, você precisa conhecer pessoas, um... um... grande amor não vai estar no meio dos milhares de livros nos quais você se enfia na biblioteca.
Precisei segurar o máximo das minhas reações corporais para evitar o sorriso em meus lábios. Ainda não tinha comentado com sobre o ocorrido na biblioteca. Não é como se eu pudesse relacionar o tal do como um “grande amor” em potencial, do jeito que ela citou, mas eu poderia refutar a afirmação dela.
Nas bibliotecas da universidade o que mais tinha eram pessoas.
Relaxei meu corpo, tentando não parecer alucinada demais. A verdade era que eu não conseguia parar de pensar em desde o ocorrido na semana passada, até mesmo pelo fato de nunca tê-lo visto pelos corredores ou pelo campus todo, ainda mais sendo um aluno do tão tradicional programa de intercâmbio asiático. Infelizmente não tive tempo de encontrar novamente o grande porta-voz, o jornalista em formação que poderia tirar o emprego de grandes fofoqueiros da mídia, , mas ainda iria procurá-lo pelo meio dos alunos da comunicação para saber mais sobre . Minha consciência estava pesando e o mínimo que eu deveria fazer era dar um novo óculos a ele, ou pelo menos a armação. Ou pedir desculpas decentemente.
— Olha, eu prometo que hoje vou daqui direto para casa. É a última sexta-feira do mês, dia de jantar com meu pai e ele chega hoje à tarde de Dubai. Então não vou ficar aqui. — voltei a abrir meu armário, tirando meu moletom de dentro e um elástico de cabelo.
— Bee, você pode faltar hoje, isso não vai ser o fim do mundo! É uma atividade extra e você já tem pontos suficientes para cinco turmas completas de preguiçosos. — insistiu. — Vem comigo, eu troco meus planos para irmos ao cinema como fazíamos antes... Vou até na igreja se você quiser!
— Não! — encarei ela com horror. — Evans já tem uma falta, se eu faltar vamos ficar empatadas e não quero comparações.
— Céus! — sussurrou. — Você tem mesmo 21 anos? Nem quando teve conjuntivite você faltou, Bee... Você precisa de alguém pra te-
— Não termine! — apontei o dedo, enfim perdendo minha paciência. — Eu não vou faltar. Começar o atletismo foi uma ideia para me desestressar com todos os hormônios que a atividade física emite. Então eu não preciso de homem nenhum, não tenho tempo.
— Se você tiver alguém, não vai precisar de atletismo pra desestressar. Pode fazer outro tipo de atividade física. E você já tem um personal que te arranca da cama com as galinhas para treinar! Sua desculpa não me convence.
— Sua depravada. A resposta continua sendo não. — fechei a porta do meu armário e vesti meu moletom. — Bom passeio para você e tome cuidado, não confio nesse lado que você vai no Queens.
— Você não confia na sua própria sombra, Bee...
Fiz uma careta, amarrando meu cabelo. sempre insistia, mas eu não mudaria de ideia: não precisava de alguém para me trazer felicidade.
Deixei ela para trás e segui adiante, saindo do vestiário para ir até o campo de atletismo. Achei estranho ver toda uma galera espalhada pela grama, todos bem-vestidos e com aqueles livros enormes que o mesmo povo dos primeiros semestres de direito exibiam embaixo dos braços por aí pelo campus. Logo pude ver que só faltava a minha presença na roda com o treinador da corrida e então me apressei, parando ao lado dele.
— Desculpe o atraso, senhor Humphrey. — pedi baixo, tentando ignorar o máximo da presença de Evans e suas Bratz.
— Não se preocupe, senhorita Bee, você chegou no momento exato. — ele ergueu o punho, apertando algo em seu relógio, e então relaxou os braços, levando a prancheta para baixo. — Olá, meninas! Eu sou Peter Humphrey e serei o treinador de vocês. Para começarmos aquecendo, vamos iniciar com 30 metros depois do alongamento. A ideia desse projeto é que vocês consigam conciliar a vida acadêmica com muita saúde, principalmente a psíquica, então... Sem competições, apenas aproveitem.
Quando ele mencionou “competições”, pude ouvir o riso nasalado de Evans e a encarei com escárnio, logo mudando a atenção para o senhor Humphrey, repetindo os movimentos dele para o alongamento. Depois de dez minutos alongando, ele nos guiou para a pista, sempre pedindo para ignorarmos os alunos de outra turma que estavam espalhados em grupos por ali pelo campo, pois era uma atividade externa que um professor do curso deles havia aplicado. E o curso era o de direito.
No fundo, bem fundo, eu fiquei esperançosa em ver algum rosto familiar ali no meio e precisei lutar friamente para me concentrar em minha atividade e no propósito dela: relaxar minha mente.
Fechei os olhos e respirei fundo, me preparando na pose de largada. Quando abri as pálpebras, encarei Evans de soslaio, notando que ela estava concentrada à espera do apito que nos daria a liberação. Podia sentir em minhas veias a adrenalina começar a correr, como se o objetivo de fazê-la comer poeira fosse uma corrente elétrica percorrendo todo o meu corpo, agindo feito um combustível para que tudo funcionasse.
Então o estridente apito soou e eu corri. Meus pés se moviam de forma extremamente rápida e eu mirei toda a direção da linha reta, antes da curva fechada que fazia a volta no campo, forçando meus olhos a demarcarem todo o trajeto com o resultado da vitória. Pelo menos me mantive focada até que as vozes de Evans e sua amiga, Ashley, ecoassem próximas demais.
— Eu ouvi falar que o tal nerd do penúltimo período de direito é bom com as mãos. Ele joga bastante e é bem vitorioso, mas não mostra o rosto, os meninos e a Amber disseram que ele não dá as caras nunca. Qual deles ali é ele, hein? Tasty17... Queria saber a razão do usuário.
— Interessante esse ponto sobre a agilidade com as mãos...
O problema não foi ouvir a voz de Evans, toda sugestiva, também não teve nada a ver com a resposta de Ashley e muito menos ter as duas conseguindo conversar durante uma corrida daquelas. Não.
Na verdade, eu não sei bem qual foi o problema. Só me vi girando o corpo numa única passada, correndo de costas e pouco me lembrando da curva que estava bem próxima, encarando as duas com a feição séria. Por diminuir o ritmo, ficamos próximas.
— Vocês não têm outras coisas pra falar, não? — soltei sem sequer filtrar. — Só se importam com isso?
— Ah, claro, você vai sugerir que a gente fale sobre psicopatia ou o culto de ontem à noite? — Victoria revirou os olhos.
— Isso é um centro universitário, Bee. E temos uma bela vista hoje para contemplar durante nossa maratona. — Ashley completou.
— Você deveria aproveitar. Olhar não arranca pedaço e não faz ninguém pecador... Se soubesse das coisas que ouvimos falar sobre esse tal Tasty17, entenderia nossa curiosidade.
— Não sou como você, Evans. Meu foco é outro, eu olho para outra direção. — mirei a risca do chão, rapidamente, desviando do olhar penetrante dela, e notei que era a hora da curva.
Ao encará-la de novo, vi um sorrisinho escapar por seus lábios. Ashley trocou um olhar rápido com ela e apontou para minha direção, dizendo:
— Você deveria olhar melhor, então...
Não tive muito tempo para entender, logo senti um impacto forte e me embolei nos meus próprios pés, sentindo o meu corpo vacilar e ir caindo (rápido, certamente, mas senti como se tudo estivesse em câmera lenta, como o planeta de Interestelar). Eu teria caído de costas, mas fui virada pelos ombros e acabei caindo toda torta, meio de frente, meio de lado, mas com o corpo encaixado em cima de alguém.
Ao focar minha vista, meu coração parou e eu esqueci de respirar, deixando meu cérebro sem oxigenação e causando um desespero interno. Os olhos de estavam tão pertos que, naquele momento, pareciam grandes demais — ou apenas estavam arregalados, não saberia diferenciar —, mas independente de tamanho, eu sabia que eram dele. Não tinha esquecido as orbes tão calmas e densas que habitavam aquele rosto de traços tão sutis, ainda que fossem controversamente marcantes — ou talvez essa segunda parte ficasse por minha conta mesmo. E mesmo que os olhos não fossem o ponto de reconhecimento, ainda tinha, mais abaixo, a boca de lábios finos que, se eu bem me lembrava, quando se abriam em sorriso, poderiam me abocanhar e engolir por inteira de tão grande e aconchegante que era.
Maior do que a mansão alugada por na minha mente e sua brincadeira sobre alguém querer saber de mim, o sorriso de habitava uma moradia sem metragem definida e tampouco tinha um contrato com data de saída marcada. Era doloroso confessar, mas eu poderia fazer isso sem muita culpa, não tínhamos contato, sequer havíamos nos encontrado durante os anos de curso; inclusive, seria a segunda vez apenas, em duas semanas, claro, porém comparado ao tempo que dividimos o mesmo campus, isso era pouco.
Devagar fui sentindo meu corpo de volta em meio ao meu afogamento naqueles detalhes tão próximos dele, e pude começar a sentir um desconforto na região da cintura. Isso serviu para me fazer acordar definitivamente do transe, notando que não tinha em seu rosto as lentes grossas na armação redonda. Olhei dos olhos dele para sua boca e voltei algumas vezes durante aqueles segundos na inércia, me sentindo envergonhada quando dei por mim de toda a situação, e quando vi o óculos de um pouco acima de sua cabeça, no chão, e partido justamente na parte da "perna" da armação que se grudava à lente, me senti culpada. Mais um remendo seria feito.
— Ah, céus! — reclamei, arregalando meus olhos. — Eu acho que dessa vez não tem conserto...
— Isso não importa agora... — ele respondeu um pouco abafado e com dificuldade. — Eu acho que... — pressionou os olhos, soltando um arrastado e curto gemido. — Você... Você está bem?
— Sim, sim! Eu tô bem... Talvez você tenha amortecido a queda. — ri nervosa e ele sorriu simples, de lábios fechados, assentindo.
— Então... Se importa de levantar? Eu acho que você está apertando alguma coisa e eu tô ficando sem ar.
Brevemente olhei para baixo, vendo que eu tinha um joelho entre suas pernas, com meu quadril "torcido" para o lado e o meu tronco de frente para o seu. Certamente o incômodo que eu estava sentindo era por estar me forçando contra suas partes baixas e a boca do estômago.
Trágico, confuso, desconcertante. Para não dizer o contrário.
— Ah, me desculpe! — resmunguei, saindo de cima dele, mas não sem antes acabar o "chutando" com o joelho pela forma desengonçada que lhe dei liberdade. Ouvi seu grito de dor e me contorci por dentro. — Me desculpe mais uma vez...
Mais um pouco eu o mataria. Tenho certeza.
E eu não fui a única a pensar sobre isso.
— Cara, você está bem? — olhei para a direção da voz e vi um homem alto parar na frente dele, estendendo sua mão. — Eu só fui pegar uma água e você resolveu se matar?
se virou quase totalmente de bruços, parecendo ter dificuldade para se levantar. Eu permaneci sentada no gramado, coberta pela vergonha do acidente e querendo cavar um buraco para enfiar minha cabeça e nunca mais tirar. Aceitando a mão do outro, ele se levantou, um tanto desnorteado.
— Você está bem mesmo? — virou-se para mim imediatamente, batendo na própria roupa para tentar arrumar alguma coisa desalinhada (ou seja, nada). Consegui apenas assentir, inerte demais para formular qualquer resposta concisa, e ficamos nos encarando; eu tive uma breve certeza de que ele pouco conseguia enxergar de mim, pela forma como parecia tentar focar sua vista. O som de alguém raspando a garganta nos tirou de tal conexão visual. — Ahn... Bee, esse é , meu amigo. , essa é a Bee.
Acompanhei o seu passo dado para o lado, permitindo que eu pudesse ver nitidamente o cara tão alto, agora dono de um nome. Entretanto, um detalhe me chamou a atenção, mesmo que inconscientemente.
Como ele sabia meu nome?
— Ah, a famosa nerd da neuro... — murmurou e alguma parte neurológica minha prestou atenção, embora eu ainda estivesse bem confusa para fixar qualquer informação posterior. Vi de relance o cotovelo de bater na cintura do amigo, com seus olhos abrindo-se um pouco mais em conjunto com as narinas. Em seguida, estendeu a mão para mim. — Muito prazer, falam muito de você no campus.
Falam?
Aceitei a mão, notando a força que ele colocou no aperto para me puxar para cima. Antes de me levantar por inteira, estiquei o outro braço de maneira a pegar o óculos quebrado.
— Obrigada... — agradeci, ajeitando meu blusão. — Eu... Bem, espero que tenha ouvido coisas boas.
— Ah, ouço sim... Acredite, muitas coisas interessan- Ai! — outra vez tentou cutucar a costela de com o cotovelo e eu desviei o olhar.
Para não deixar a situação mais constrangedora, me virei para diretamente:
— Agora você não tem saída a não ser me deixar pagar por isso.
— Eu também acho. Primeiro você esmagou, agora atropelou... Os neurônios queimaram?
Eu e encaramos em sincronia e ele deu um passo para trás, fazendo um bico e passando um "zíper imaginário".
— Não precisa pagar, fica tranquila. — respondeu docilmente, levando o indicador até a ponte de seu nariz, frustrando o costume de ajustar a armação do óculos. No meu estômago, as faíscas responderam em um uníssono, achando gracioso. Principalmente porque ele parecia tímido demais em qualquer coisa que fazia, ainda mais se tivesse que me encarar.
— Então me deixa retribuir de alguma forma. Mostrar que eu realmente sinto muito. Primeiro na biblioteca, agora te atropelei como um carro desgovernado... — insisti. — Talvez... Talvez... Talvez não! Você vai me deixar lhe pagar um café! Tem aquela cafeteria aqui perto, com música ao vivo inclusive, é muito gostosa. Bem tranquilo!
— Ah, eu não acho que-
— Ele vai sim! — deu o passo de volta até nós, passando o braço em volta dos ombros de . — adora ambientes tranquilos, ele é a calmaria em pessoa...
Encarei , esperando seu veredito, e em completa ansiedade.
— Prometo que depois disso a gente pede uma medida de restrição para eu ficar longe de você, ou um seguro de vida. — tentei usar de humor, sorrindo simples e com culpa.
— Não! — ele respondeu apressado e um pouco exasperado. — Não é pra tanto. — riu nervoso, fraquinho, e eu pude ouvir uma sílaba sendo presa por . O olhei de soslaio e o vi desviar o olhar para longe.
— Tudo bem, a gente te coloca numa bolha anti- Bee então. Mais simples. — disse, ignorando o amigo.
Os ombros dele relaxaram e o sorriso aberto, aquele que havia me engolido por inteira na biblioteca, apareceu de surpresa.
Ele tinha achado graça do meu comentário.
E eu me desmontei por inteira, tal qual um LEGO sendo pisoteado.
— Se a indenização for boa, me coloca no seu seguro também... — quebrou o “clima” novamente, me fazendo colocar os pezinhos de volta no chão. — Ele deve ter tido uma pancada um tanto forte, Bee, por isso não está respondendo com facilidade, mas vai sim. Quando? Amanhã?
— Pode ser amanhã, sim. No intervalo do segundo e terceiro período de aula. — me mantive focada em , mesmo que respondesse à voz de , e estendi o óculos para ele. Ou melhor, os restos. — Te vejo amanhã, então? — perguntei, sentindo a ardência em meu rosto, me obrigando a desviar o olhar e encarar qualquer ponto abaixo.
— Vê sim. — outra vez respondeu.
— Até amanhã. E, mais uma vez, me desculpa... — disse, por fim, antes de me virar de costas para os dois, sentindo meu tornozelo começar a doer pela primeira vez desde que havia tombado em cima de .
Capítulo 3: Um café
Assim que passei com o carro pelo portão principal, notei o quão adiantada eu estava. Mirei o relógio no painel digital e soltei um gemido sôfrego pela minha falta de tato. Se qualquer pessoa passasse a analisar minha situação, ficaria muito na cara que eu estava desesperada. Sete e vinte da manhã e eu já estava estacionando na minha vaga de sempre, num horário que, normalmente, eu saía de casa.
E era segunda-feira, vale mencionar.
Permaneci algum tempo ali dentro do carro, encarando meu reflexo várias vezes para garantir que eu não estava com nada fora do lugar — exceto pelo estômago vazio, causando um buraco em minhas costas. E então, depois de quase quinze minutos parada, saí correndo para a entrada principal. Se eu tivesse muita sorte, passaria por ali àquela hora.
Desci, fechando a porta do carro com cuidado, tentando ser calma e não me atropelar nas próprias atividades. Do banco de trás, apanhei o fichário em meus braços e a bolsa, colocando-a pela alça em meu ombro, então segui adiante, não esquecendo o alarme. Minha sequência de todos os dias, certamente. Cruzei todo o gramado e parei na escadaria do prédio que tinha o curso de direito, sentando-me no pequeno muro para esperar ver o rosto que eu tanto queria ver. Rezando, claro, bem baixinho, para que a divindade fosse boazinha comigo e não colocasse ali àquela hora; como agora não precisaria dele para descobrir o que quisesse sobre , eu não tinha o preparo para encontrá-lo e explicar que raios estaria fazendo àquela hora da manhã no campus, parada em frente a um prédio que eu não tinha acesso normalmente.
Aproveitei o tempo de espera para continuar umas anotações de rascunhos de algumas coisas que estavam em minha memória para complementar os estudos do próximo final de semana e, logo que vi o movimento das pessoas começar a aumentar, devido o relógio continuar correndo, comecei a me sentir mais ansiosa, sem saber direito se deveria ficar com o rosto erguido ou não para que ele pudesse me ver se passasse por ali — não podia deixar parecer também o tamanho da minha ansiedade, não é?
Mas o relógio estava quase batendo na hora da minha primeira aula. Ainda tinha minutos para eu esperar mais um pouco e correr para o prédio certo, sem ter o risco de chegar um minuto sequer atrasada, chegando, como eu sempre gostava, na hora exata, entretanto, minha ansiedade não enxergava assim.
Quando decidi desistir, decepcionada, me levantei e juntei minhas coisas, porém, ao me virar para descer e dar a volta para o outro prédio, pude ver algo que amaciou minha decepção. Ou melhor, alguém. Eu vi no meio de um monte de gente, agradecendo sua altura quilométrica por me permitir vê-lo e não gerar aqueles tipos de mal entendidos de tempo, por eu estar indo exatamente na hora que ele chegava e perder de encontrar quem eu queria. E não foi exatamente o fato de vê-lo que me deixou feliz, foi ver ao seu lado, um pouco — coisa mínima — mais baixo, o rosto de queixo quadrado, nariz pontudo e olhos espremidos por forçar a vista.
tinha uma careta de quem estava muito sério, parecendo estar forçando mais e mais o olhar para enxergar algo ao longe, e meu estômago vazio, sendo oficina perfeita para borboletas inquietas, consumidas por muito açúcar, enviou a mensagem certa para meu cérebro: que ele estava tentando me enxergar. Que eu era o algo ao longe.
Olhei para trás e vi que não tinha ninguém, e quando retornei para frente, e estavam muito perto, como dois postes me cobrindo.
— E ela não esqueceu mesmo... — disse melódico, sem parar seus passos. — Bom dia, Bee. — me cumprimentou e eu vi que o encarava feio. — Até mais, Bee. — despediu-se de mim e dele com um aceno, dizendo algo em outro idioma para , mantendo sua caminhada para subir os degraus.
Varri os pensamentos, deixando de ser uma mosca morta, e sorri abertamente para , olhando-o de volta.
— Ei! — disse alto. — Que legal te encontrar aqui... Estava passando atrás de um amigo e... Esse é o seu prédio?
Ele pareceu levar um tempo para compreender. É óbvio que não tinha caído na minha mentira.
Acho que se eu fosse me ouvir, iria ter a mesma reação.
— Erm... Oi. — respondeu tímido. — É... É sim...
— E o que você foi fazer na minha biblioteca, hein? — brinquei, dando um soquinho meio desajeitado em seu ombro por meus braços estarem ocupados.
— Ah... Eu fui... — pausou, respirando fundo. — Eu fui atrás disso aqui. — ergueu um livro pequeno e meus olhos reconheceram de imediato. — Neuropsicologia. Precisava entender algumas coisas para um seminário importante. Mas acabei tendo que comprar em um bazar no Queens, pegaram quando retornei lá... — ao fim de sua justificativa, levou a ponta do dedo da mão vazia para a ponte de seu nariz, empurrando o nada.
O livro em sua mão era o que eu tinha saído apressada a alguns dias atrás para conseguir antes de Evans. O livro que ele mesmo pegou para mim. Por um momento, pensei no ponto que sequer tinha passado pela minha cabeça: eu poderia ter comprado um exemplar, isso não seria problema. Entretanto, ignorei, porque meu cérebro estava focado em outra coisa.
Ele tinha tique. Ele tinha o costume de erguer a armação do óculos.
E sua reação ao perceber o que fez me derreteu em peso na consciência.
De novo, não é? Porque eu já tinha notado isso quando terminei de destruir seu óculos no dia anterior.
Droga.
Era muita coisa para eu me concentrar de uma vez só. O tique, a voz rouca de quem tinha acabado de acordar, o rosto meio inchado — certamente porque ele tinha acordado àquela hora mesmo e simplesmente se trocado e ido do dormitório para o campus letivo — e tinha os lábios, que quando ele falava se fechavam em um bico, mas que quando se abriam para sorrir ou dizer palavras que exigiam uma abertura maior, se tornavam gigantes, mais do que prontos para me engolir. Não tinha como me concentrar exatamente em uma única coisa. Ele era inteiramente sobre detalhes e eu queria descobrir todos.
Descobrir por descobrir, claro. Estava sendo interessante, inclusive, analisar essa atração repentina da minha mente por alguém que eu não conhecia; a carência poderia estar vindo de uma forma diferente.
— Neuropsicologia é minha maior paixão! — disse empolgada, focando no que ele disse. — Se desse para casar com uma matéria, com certeza eu pediria a neuro em casamento, talvez no Empire State.
Ele foi abrindo um sorriso lento, mas de lábios fechados.
E novamente eu me peguei na expectativa de ver aquela boca aberta, sorrindo por inteira.
— Me avise se precisar de alguma ajuda com os preparativos. — brincou, olhando no relógio em seguida. — Eu... Você me desculpa? Tenho uma prova agora no primeiro período e...
— Não, claro que não! Desculpe tomar seu tempo. — respondi desesperada. — Estava passando por aqui e-
— Se você quiser, como tenho essa prova, podemos tomar aquele café no intervalo da manhã.
Meu queixo só não foi ao chão porque, por cima dos ombros de , eu vi a figura pálida e sorridente de , erguendo um celular para a nossa direção. Fechei os olhos para contar até três e quando os abri, vi o olhar perdido dele em minha frente, provavelmente decepcionado pela minha falta de resposta.
Preocupada demais com qualquer besteira que eu pudesse falar, tirei do meio do meu fichário a minha caneta preta de grifar meus próprios livros, não me lembrando que ela tinha uma durabilidade até que considerável na pele, e puxei a mão dele, virando a palma para cima.
— Me encontre aqui às... — anotei com calma e soltei. — Dez e vinte. Tudo bem? — ele assentiu, olhando para a própria pele marcada. — Anotei para você não esquecer. — tomei coragem de dizer.
— Não tem como. Toda vez que eu me olho no espelho agora, me lembro de você. Ou então quando tenho que me sentar na primeira fileira para enxergar e ouvir bem as explicações.
Ri nervosa, fazendo uma careta.
— Me desculpa...
— Fica tranquila. Uma hora eu tinha que aprender a usar lentes. — ele sorriu fraco para me consolar e olhou para o relógio novamente, fazendo uma careta: — Preciso mesmo…
— Tudo bem! Te vejo mais tarde, então.
— Sim. Até mais, Bee... — se despediu, subindo a escada.
Evitei o máximo que pude, mas não aguentei e me virei para a direção, vendo ele sumir pelo meio das pessoas e me colocando completamente perdida na figura dele.
— Não acredito que Bee vai chegar atrasada hoje porque estava conversando com o nerd do intercâmbio! — a voz de me fez fechar os olhos, prendendo o surto por me lembrar do horário. Ao me virar para ele, prestes a explodir, me segurou pelos ombros. — Fica tranquila, acabou de sair uma notificação que devido ao trânsito, alguns professores estão atrasados, então a sua aula do primeiro período está suspensa.
Soltei a respiração lentamente, mas logo me arrependendo, porque o sorriso dele já me dizia tudo sobre sua curiosidade.
— Não! Não vou falar sobre isso. — disse apressada.
— Bee... Você precisa saber que-
— Não! — o cortei rapidamente, fazendo o movimento de zíper imaginário. — Vou aproveitar esse atraso pra comer alguma coisa. Tchau, . Bom dia!
Me virei rápido, quase tropeçando em meus próprios pés ao correr para longe dele, dali, bloqueando qualquer pensamento sobre o que eu tinha tido a coragem de fazer naquela manhã.
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— Bom... — iniciei assim que a garçonete se afastou. — Eu adoro vir nesse lugar. Embora e meu pai acreditem que eu passe mais tempo na biblioteca do que até mesmo em casa, tenho os dias em que prefiro ficar aqui, rodeada dessa calmaria... Esse garoto... — olhei para a direção do pequeno espaço da música. — Não sei o nome dele, mas ele é bom. A voz dele é agradável para o ambiente. Você devia vir mais vezes! O café deles é incrível, o barista faz cada desenho... Às vezes me pego com vontade de vir aqui só para ver os desenhos dele.
Por um momento, pausei, notando como estava falando apressada e tirando todo o sentido do que queria de fato dizer. Encarei , vendo que ele estava com os olhos espremidos e a cabeça levemente tombada para a direita, parecendo se forçar a me entender.
— Está tudo bem? — perguntei, confusa. Vi que ele nem tocou na caneca cheia de café.
— Oi? — respondeu voltando sua atenção em um estalo. As suas orelhas ficaram vermelhas, assim como todo seu rosto, e ele, outra vez, levou o dedo até a ponte do nariz, pelo costume de subir a armação do óculos. Armação esta que eu tinha destruído. — Me desculpe, eu acho que... — suspirou. — Acho que devo parar de julgar a professora de penal por dizer que não escuta quando está sem óculos... Isso é mais sério do que eu pensava. — riu fraquinho, tímido.
Algo se remexeu no meu estômago. Algo bem leve e gostoso, que vinha tomando uma certa frequência quando eu estava na companhia dele.
Franzi o nariz, fazendo uma careta.
— Me desculpa... — foi o que consegui dizer.
— Tudo bem, de verdade. Não se preocupe. — sorriu com os lábios fechados, numa tentativa de me convencer. Mas não tinha como. — Então... o café...
— Você não gosta, não é? — segui o rumo do assunto, constatando, para me desviar a atenção de tentar mais uma vez convencê-lo de deixar lhe dar um óculos novo.
Desta vez a careta foi dele.
— Está muito na cara?
— A gente finge que não, pode ser? — perguntei, fingindo seriedade. — Só para não ser você a quebrar meu coração igual eu quebrei seu óculos.
pareceu ter recebido um tapa na cara e eu, somente depois de alguns segundos, compreendi o que disse. Qual era o meu problema afinal?
Porém a resposta dele me deixou sem rumo.
— Você é quem tem cara de que quebraria meu coração. — puxou os lábios em um sorriso divertido, daquele modo que era perfeito para me engolir, enquanto levou a caneca de café para bebericar o líquido. Nem mesmo a careta repetitiva de quem achou ruim foi capaz de me tirar o foco.
Somente o som estridente do meu celular tocando em cima da mesa pôde me devolver a atenção, ainda mais quando movi o olhar e vi o contato. Ler o “Pai” com um coração em cima da foto que tiramos durante uma das nossas trilhas mais perigosas na América do Sul foi como ter os letreiros da Times Square em época de natal bem à minha frente.
Rapidamente peguei o aparelho e levei ao ouvido.
— Licença. — disse rápido para , me virando, ou agachando, para quase me esconder embaixo da mesa. — Alô? — atendi a chamada.
— Bee! Que bom que você finalmente pôde atender seu pai... — do outro lado, o senhor Bee era irônico do jeito que só ele conseguia. Revirei os olhos, voltando a ficar sentada corretamente à mesa. encarava atentamente o garoto tocando algumas notas de uma música tranquila da Taylor Swit no violão, me dando certa privacidade.
— Desculpa, papai, eu estive ocupada. — mordi o lábio, me sentindo culpada por um momento. Deveria dar mais valor ao meu redor do que aos livros, mas isso era muito difícil, ainda mais quando meu pai viajava dia sim e o outro também, se fosse possível. E sempre era. — O senhor está bem?
— Já falamos sobre os livros, Bee... — ele suspirou. Sempre o mesmo discurso de que eu deveria colocar minha energia em outras coisas. O apelido de “traça de livros” já tinha chegado em minha residência, inclusive. — Sim, estou bem, e você? Está com a agora? Ela conseguiu te levar num lugar com música? Agitado? — completou logo em seguida, curioso demais.
— Não, estou com... — arregalei os olhos e, no mesmo instante, virou o rosto para mim rapidamente, voltando para o lado quando nossos olhares se cruzaram. — Estou naquele café do campus. Sozinha.
— Sei... Não tem nem como duvidar... — suspirou. — De qualquer forma, eu preciso que você faça uma coisa. Alfred está me ligando sem pausas, ele precisa de um segurança para a e quer que eu mesmo escolha, mas não posso! Ainda estou em Dubai.
Já pude imaginar o que iria sobrar para mim. E eu até teria rebatido sua fala sobre Dubai com desgosto, haja visto que nosso jantar mensal, que sempre ocorria na penúltima sexta-feira do mês como uma promessa, havia sido adiado porque ele não tinha terminado seus negócios nos Emirados Árabes. Passei por cima disso, não merecia ouvir uma estranha discutindo relações com o pai solteiro no telefone.
— É, eu sei... — respondi com desânimo, sem saber exatamente sobre o que eu desanimei, a ausência dele ou o pedido do vovô Alfred. — Mas espera aí! O senhor Chevalier quer um segurança para ela? — notei me olhando de soslaio, assim que eu elevei a voz, finalmente centralizando minha mente. — A não vai gostar disso.
— Não é problema nosso. Ele cuida dela, ele sabe o que é melhor para ela, assim como eu sei o que é melhor para você.
— Papai... Não somos mais crianças! — ralhei, fechando os olhos.
— Não me importa. Para mim, você vai ser para sempre a minha Baby Bee. Resolva isso e assim que voltar de Dubai nós podemos ir no show da Taylor que você quer muito.
— Embora isso seja chantagem, eu aceito. Vou ver o que posso fazer pelo senhor. — ajeitei minha postura. — Agora preciso desligar, era só isso?
— Você está com alguém, Bee? — meu pai perguntou de uma forma que eu sabia ser o seu tom sugestivo.
Tinha inúmeras opções do porquê da insistência dele. Geralmente, quando eu dizia que estava sozinha, a primeira resposta já valia. Ele nunca tinha insistido mais de uma vez.
Olhei ao redor, procurando por algum possível segurança por perto. Tínhamos um acordo de que seguiríamos à risca o que vovó falava sobre a “casa de ferreiro ter o espeto de pau”, e ele, como dono de uma das maiores redes de segurança privada do país (agora expandindo para a Europa e o Oriente), não botaria um brutamontes à minha volta. Mas pensar sobre isso me fez lembrar que não tinha uma outra especificação: para ser segurança ou qualquer outro cargo que se enquadre na segurança privada de um civil, não precisava ser um monte de músculos.
— C-claro que não! — gaguejei, mais nervosa por ter alguém me seguindo e vigiando do que outra coisa. — Era só isso?
— Sim...
— Então tá bom. Eu vou arrumar um segurança corajoso para a . O avô dela não vai sequer ter preocupações... — sorri mais como um ato em reflexo pela minha convicção. — Tchau, papai, não esquece a minha caneta de ouro...
— Jamais. Logo, logo vou estar com você, filha.
— Tá bom. — encerrei, colocando o celular em cima da mesa e passando a mão no rosto. — Me perdoa por isso, tem uns dias que estou ignorando as chamadas dele porque esqueço o celular no silencioso. — menti um pouco, ele não tinha que saber que também ignorei meu pai por dias porque estava chateada com ele e seu atraso no retorno. — Ainda não estou rica o suficiente para ser tirada do testamento. — brinquei.
— Não se preocupe... — ele sorriu cordial, mas logo emendou: — Você precisa de um segurança?
Analisei seu rosto, notando como ele parecia mesmo interessado.
De repente, entrei em pânico. Não, sem chance, de forma alguma! não tinha porte para ser segurança de , e não é físico, no caso. Ela era um problema grande demais para ele aguentar. precisava de alguém que fosse tão... radical? É isso! Ela precisa de alguém que seja tão radical quanto ela e é doce demais para isso.
Antes que eu pudesse responder, ele completou:
— Não é pra mim. — seus olhos se arregalaram, gesticulando. — Eu tenho um amigo que pode servir para o papel.
— Jura? — respondi aliviada e empolgada por isso. Não sei por que. — Digo... Você pode falar com ele? Eu te passo o endereço, telefone e tudo, ele só precisa ir até a sede da Bee e lá eles encaminham...
— Claro! Eu posso falar com ele... Você tem um telefone para ele contatar?
— Tenho. — puxei o meu rapidamente, sem entender de imediato que ele estava falando de um cartão. Quando pensei sobre isso, minha empolgação e expectativa já estavam altas, tanto que seu contato já tinha um nome digitado. — Fala o seu, eu te passo tudo direitinho e você encaminha pra ele. — continuei no mesmo tom para não parecer que estava em uma luta interna com meus pensamentos. Ao invés de esperar que ele dissesse, dei o telefone para que digitasse. — Melhor você digitar.
— Pronto! — me devolveu e eu vi o nome alterado, sem o “Saint Peter” do lado, com um emoji de óculos no lugar. — Me passa as informações e eu falo com o .
? Bom saber. Era o cara alto e forte que se apresentou como amigo dele no último acidente. Ele parecia ser tão radical quanto .
E eu poderia agradecer a ele, pois, graças ao conjunto todo — incluindo meu pai —, agora eu tinha o número de salvo. Era um curto passo para eu conseguir dar para ele o óculos novo que minha consciência insistia em gritar como dever.
Capítulo 4: Investigar um cara
— Bom dia, senhorita Bee. No que posso ajudá-la?
O sorriso de Lindsay era sempre o mesmo em minha direção e eu já vinha há um bom tempo tentando decifrar se ela era simpática comigo porque sua posição na empresa exigia isso ou se era mesmo verdade o que Angeline dizia sobre a recepcionista mais antiga da matriz: que ela tinha um interesse profundo no meu pai, coisa de paixão avassaladora mesmo. Eu bem a ajudaria se ela quisesse, mas desvendar sorrisos ainda não era o meu papel, e mesmo que eu estivesse a pouco de me formar, precisaria passar por outro processo longo de estudos, uma próxima fase, para enfim poder fazer a análise comportamental e definir perfis psicopatas, sociopatas etc — não dava para eu me intrometer por ora, meu pai que se virasse.
Por mais que eu fosse a dita herdeira de toda a Bee’ Safe Private Security & Investigations, meu pai sempre deixou explícito que minhas andanças por ali não eram liberadas 100%, até porque não fazia sentido. Era um local sério, de trabalho. Então eu usei meu máximo de simpatia, sorrindo de volta para Lindsay, como se não fosse apenas sete da manhã, a fim de usar de seus serviços e que ela não mencionasse a minha presença ali.
— Eu preciso falar com , ela já chegou? — perguntei.
Lindsay se esforçou, mas não conseguiu não murchar o sorriso.
— Se é que ela foi embora... — suspirou. — Pode ir, sabe onde encontrá-la, não sabe?
Apenas assenti e me virei para as catracas de liberação, vendo ficar verde a que ela liberou para que eu pudesse passar. Segui até o elevador e assim que a porta se abriu, digitei o número do andar onde uma das funcionárias favoritas do meu pai trabalhava. Não só dele, também era um anjo sobre a Terra para mim, e se ela não fosse tão nova, eu, com muita certeza e afinco, já teria feito dela a minha madrasta.
Ri sozinha com meu pensamento, ouvindo um “segura aí” bem alto quando a porta começou a se fechar e, instintivamente, coloquei meu braço no vão, não deixando isso acontecer. Logo vi um rapaz de boné, roupa meio social e mochila nas costas entrar, um tanto ofegante. O logo de sua bagagem era o da universidade e eu o analisei por completo, tentando reconhecer seu rosto, mas sem sucesso. Tinha alguma coisa estranha, eu nunca vi tanta gente desconhecida naquele campus nos últimos anos como vinha acontecendo ultimamente.
Ou talvez eu só estivesse reparando mais e isso acontecia desde um fato em específico.
— Pode apertar o doze pra mim, por favor? — ele pediu, seu rosto quase se contorcendo por ter que falar comigo.
— Ah, sim... Claro.
Apertei o número e a porta demorou a fechar, ficando aquele silêncio constrangedor. Limpei a garganta, tomando coragem para perguntar:
— Você estuda na Saint Peter?
Sua feição não mudou em nada ao me encarar, tirando a atenção do crachá que estava sendo bem posicionado na altura do peito, preso à camisa.
— Sim. Você também? — respondeu.
— Estudo. — sorri educadamente, estendendo a mão. — Bee, sétimo semestre de Psicologia.
Por uma fração de segundos, vi uma hesitação, mas ele logo estendeu seu braço, me dando sua mão para apertar.
— . — disse simples. — Faço Administração. — e como se estivesse entendendo algo, maneou a cabeça para o lado e tentou perguntar: — Você é a filha do-
— Sim. — cortei ele, fazendo uma careta.
— Ah, legal. É muito interessante esse programa de estágio filiado à universidade. Você vai herdar uma empresa com missão e valores intuitivos.
— Obrigada. Mas pode guardar isso para o quadro de elogios da Lindsay ou dizer nas reuniões anuais. Eu não tenho muito a ver com a Bee’s.
— Bom, falar abertamente em público não é muito o meu forte. — agora foi ele quem fez uma careta, parecendo aliviado de certa forma.
A porta se abriu no andar dele e suspirou, não de cansaço ou algo do tipo, parecia mais um ponto final para a conversa. Um tanto elegante, diga-se de passagem.
— Eu vou indo nessa, senhorita Bee... Foi um prazer. — passou para o lado de fora.
— , pode me chamar só de . Se me ver por aí, claro. — ri, rolando os olhos. — E não esqueça: no coquetel anual eu vou te cobrar pra ir lá no palanque pra dar algumas palavrinhas.
assentiu, acenando por fim e sumindo, conforme a porta se fechava.
Virei para o espelho atrás de mim e emiti uma sílaba baixa, satisfeita com a minha simpatia. Não era tão comum que todos os funcionários da empresa tivessem sequer a liberdade de tocar minha mão em cumprimento e muito disso vinha de mim mesmo, da minha limitação por contato, conversas etc.
Tinha realmente alguma coisa acontecendo. A fase adulta finalmente se instalando?
O barulho do elevador e a voz robótica falando sobre meu destino me tiraram da autoanálise e eu saí rápido, indo afobada até a sala de , no final do corredor. Não precisei bater na porta, ela logo abriu, me recebendo com um olhar desconfiado.
— Não vou investigar a Lindsay pra você.
— Poxa, todo mundo aqui já sabe sobre ela... Menos o meu pai? — respondi de imediato. — Bom dia, ! Não foi pra casa mais uma vez?
— Estou ocupada com uma coisa importante... — me deu passagem e eu entrei. — Do que você precisa?
— Direta como sempre. — virei para ela, parada no meio da sala. — Preciso investigar uma pessoa e você é a melhor que eu conheço para isso... Se eu for até a equipe de investigações, meu pai vai ficar sabendo e eu não quero prestar essa conta em específico com ele.
— , eu não posso. — ela logo se prontificou a negar e eu sabia o que vinha em seguida, somente pela sua feição de compaixão. — Seu pai deu ordem a todo mundo daqui para não aceitar esse pedido.
— Que pedido? — fingi surpresa. — De investigar a minha mãe? — emiti um som anasalado, colocando as mãos na cintura. me analisava como se pudesse me ler de alguma forma. — Não se preocupe, eu não tenho o mínimo interesse em saber dela, . — me aproximei, colocando as mãos em seus ombros. — Eu preciso que você investigue um cara para mim. — senti as bochechas arderem, ainda mais quando ela arregalou os olhos mudando sua feição para surpresa.
— O quê? Um cara? Por quê? Ele fez alguma coisa para você?
Fez, e eu ainda tô tentando descobrir, quando souber, te conto.
— Na verdade, fui eu quem fez para ele. — suspirei, me afastando outra vez. — Prendi ele entre as prateleiras da biblioteca e depois caí em cima dele em outra ocasião, causou um estrago no óculos que ele usava e eu queria recompensar, dar um novo. Mas ele se recusa, ! Então eu quero só chegar e “toma aqui, bota isso e agora eu juro que saio do seu pé”.
— Por que parece, para mim, que você não quer sair do pé dele? — prendeu os lábios entre os dentes, me olhando com os olhos cerrados.
Não soube o que responder e ela não insistiu.
— Certo, você quer que eu-
Neste exato momento, saindo da segunda sala que tinha ali dentro, abriu a porta, me encarando com os olhos arregalados.
— Nós vamos. — ele disse alto, apontando para .
— Mas o quê? Você... Ele... — encarei de um para outro. — Ele estava aí ouvindo esse tempo todo?
— chegou mais cedo hoje. Essa semana ele está comigo. — revirou os olhos. — Não me olhe assim, foi ideia sua de deixar ele andar livremente por esse prédio. E ele é seu amigo, qual o problema?
— Ele é um fofoqueiro — encarei . — Sem uma palavra sobre isso no seu bloquinho, tá me ouvindo? — apontei o dedo, dizendo firme, e ele ergueu os braços. Murchei os ombros em seguida, sabendo que não teria volta. — O nome dele é... Jeon .
— Sabia! — berrou, atraindo nossa atenção. — Vocês dois estão totalmente um na do outro! Foi ele quem veio perguntar sobre você pra mim... O papo de “quero saber se ela está bem depois do acidente” daquele nerd não me convenceu.
— Ele o quê? — meu coração acelerou com o que disse, mas ele não me deu justificativas, apenas veio até , passando um braço pelo ombro dela, e ela desvencilhou, claro. Ele me ignorou propositalmente, eu sabia.
— Nós vamos resolver isso pra você, Bee. Confia em mim! — disse, erguendo o braço em “força”, como sempre fazia. — Nem que seja a última coisa que eu vá fazer para o bem daquela universidade.
Encarei , esperando a resposta dela.
— Argh!
— Eu te empresto meu carro por um mês! — disse, juntando as mãos em frente ao peito.
— Aquele negócio branco cheio de rosa pra tudo quanto é lado? Não, obrigada. Prefiro dinheiro.
— Tudo bem. — saquei meu celular do bolso, eufórica, fazendo uma transferência rápida para ela. Assim que o seu celular apitou, tirou do bolso e , outra vez, berrou.
— Tudo isso? — me encarou. — E eu não ganho nada?
— Você é fofoqueiro, , vai usar dessa história para alguma coisa que gere views pro seu blog. Considere como pagamento o meu aceite.
Capítulo 5: Sem pagar dívidas
“Te encontro em 10 minutos.”
Li e reli a mensagem inúmeras vezes, me sentindo idiota e emocionada. Igual aquelas pessoas carentes que, infelizmente, não conseguem diferenciar o que é para ser e o que não é. Fazia 20 minutos que tinha me respondido depois de eu dizer que estava na biblioteca e sequer duvidei de toda a sua solicitude ao dizer que viria até mim, continuando a esperar por ele como uma boba, não conseguindo mais me concentrar em minha estruturação de um trabalho superimportante sobre psicopatia infantil. Eu precisava criar uma dinâmica para avaliar uma criança com esses traços, mas tudo o que conseguia pensar era que poderia estar sendo grudenta demais com alguém que devia não ter o interesse — este, no caso, que nem eu mesma sabia qual era por minha parte, além de saber que só queria conversar com ele, ter sua companhia de alguma forma.
Só tinha ideia de que era gostoso falar com e as trocas de mensagens não tinham sido tão poucas desde o café, quando ele teve o cuidado de salvar seu número como “Jeon W + emoji de óculos”, mas também não durava a cada minuto do dia, até porque tínhamos rotinas de estudos muito pesadas e cheias. A questão era que eu estava me acostumando, e se ele me disse que em 10 minutos viria até mim, certamente eu iria esperar pelo menos uma mensagem sobre o atraso. E também não seria eu a cobrar isso.
Então eu gastei tempo vendo a conversa e esperando por ele ficar on-line e me mandar alguma coisa, mas nada veio, só tinha a caixinha dentro da minha bolsa berrando que eu estava ficando louca de vez e que pulei de cabeça numa piscina muito rasa. Como um estalo sozinha, voltei a concentrar no meu afazer, me sentindo vazia por não ter ideia do que montar, já que minha cabeça estava consumida por outra coisa em paralelo. Esse era o meu maior medo: perder o foco por pouco. Não é como se eu estivesse desvalorizando alguém, porém eu tinha nadado um mar inteiro e estava quase chegando na costa para morrer afogada, reprovar em uma matéria no sétimo semestre seria um caso sério.
— A mãe natureza deve te odiar agora pelo tanto de folha que você já jogou nessa lata. — ergui meu rosto ao ouvir a voz dele, vendo-o se sentar em minha frente, do outro lado. — Me desculpa, fiquei sem bateria e tive que falar com minha mãe pelo telefone do . — fez uma careta. — Ela geralmente me liga mais tarde, mas hoje estava com os Kim e... Bem, é um monte de senhora querendo saber como é a vida na América.
Ele havia comentado por mensagem sobre seus pais ainda viverem na Coreia do Sul, de onde ele tinha vindo, por isso me senti “familiarizada” em sua justificativa. Assenti levemente, tentando ajeitar a carranca em minha face que eu sabia existir. Um dos meus maiores problemas: ser expressiva. E pelo tom de suas desculpas, imaginei que deveria estar se sentindo culpado pela forma como eu o encarava.
— Eu vim o mais rápido que consegui. — reforçou.
Me ajeitei na cadeira, relaxando o corpo.
— Tudo bem. — sorri amena. — De verdade. Meu problema tem outro nome. — resmunguei, apoiando o rosto entre as duas mãos com os cotovelos apoiados na superfície.
— Então acho que cheguei para te resgatar... — colocou sua mochila na cadeira ao lado e repetiu o mesmo que eu, ficando extremamente adorável com suas bochechas apertadas e os olhos minúsculos. — E qual é o nome dele? Vamos lá, futura neuropsicóloga, hoje serei seu terapeuta.
— O nome dele é “Ponto Extra”.
— Hum, nome composto. Não gosto, estes são os mais difíceis. — assentiu, recostando-se na cadeira. — Talvez você devesse pedir ajuda para a tal da nerd do extra. Já ouviu falar sobre ela?
Outro apelido, claro.
Neguei com a cabeça, mesmo sabendo que era sobre mim que ele estava falando.
— Dizem por aí que tem uma aluna de Ciências Humanas que é bem aplicada em tudo, além de nunca ter tirado menos que a nota máxima, completou o quadro de atividades extras ainda no primeiro semestre e agora faz isso por hobby.
— Sério? E o que você acha disso? — fingi ignorância, me mantendo na mesma postura. — Ela deve ser daquelas pessoas insuportáveis que só pensam em estudar.
— Eu acho o contrário.
— É? — minha voz mudou, saindo um pouco falhada, e eu me ajeitei, ficando ereta e atenta.
— Sim. Ela deve ser muito inteligente e é admirável para qualquer universitário ter tantas condecorações assim. — disse tranquilamente, ainda do mesmo jeito. — Você é muito inteligente, Bee, e deve merecer todos os resultados por seus esforços. Mas deveria começar a descansar, se extrair demais, uma hora não terá mais nada.
Senti que meus olhos se arregalaram e o sorriso dele foi acompanhando, aumentando conforme minhas pálpebras se abriam mais.
Levei um tempo até lembrar que confessou ter sido a perguntar para ele sobre mim, e quando me dei conta, fiquei preocupada com o tipo de coisas que devem ter sido ditas.
Ajeitei minha postura, notavelmente desconcertada, e engoli a vergonha, com as bochechas queimando, para dizer:
— Tenho medo do que deve ter te contado sobre mim.
A reação dele foi engraçada, como se tivesse sido pego cometendo um ato proibido.
— Agora eu estou com medo do que ele disse a você. — ajeitou-se, ficando numa posição alarmada.
— Fica tranquilo, o máximo que ele vai fazer é colocar no periódico. — dei de ombros, tranquila, mas em tom de brincadeira. — Dentre todos os fofoqueiros nesta universidade, você foi atrás do rei deles.
— Vou pagar caro por ter tentado descobrir o nome da garota que quase me esmagou entre livros. — ele franziu o nariz, cruzando os braços. — Tudo porque me preocupei por você ter ficado preocupada demais só por causa de um óculos.
Tentei não derreter com a feição dele se contorcendo em timidez pelo o que disse, assim como lutei comigo mesma para não colapsar com sua confissão. Respirei fundo, mas nem tanto para não aparecer, e me alinhei.
Organização primeiro, surtos depois, respostas mais tarde ainda.
— Além de tudo, você ainda teve o azar de ir justamente no meu melhor amigo. — ri, sendo acompanhada por ele.
— Você acabou de falar que ele é um grande fofoqueiro…
— Mas ele é! Melhores amigos também tem defeitos… — ri fraco, me inclinando um pouco para completar: — Só não conta pra ele essa parte de “melhor” antes de “amigo”, OK? Ou então o ego vai lá em cima e ele versus é algo um pouco insuportável de aguentar. É segredo.
me lançou uma piscadela em confirmação.
— Então eu te deixei preocupado? — engatei logo em seguida, aproveitando o fio da coragem. E se eu fosse pensar bem, não tinha muito o que ligar para o fato de eu estar mais falante, interessada, menos introvertida ao se tratar dele. Tinha algo diferente, um impulso ainda não identificado.
Contudo, era uma sensação boa e poderia ser isso o que instigava a continuidade.
— Na verdade, — ele raspou a garganta — eu... Eu queria saber mesmo quem você era, principalmente.
— Ah...
— E quando descobri que quase fui esmagado pela celebridade de toda Saint Peter, me senti lisonjeado. — completou e eu pude identificar seu tom de humor, velando a sua timidez em confessar algo que parecia ser difícil.
— Não sou uma celebridade. Para ser bem honesta, odeio holofotes e ser... vista. — murchei os ombros, voltando a apoiar os cotovelos na mesa e a colocar o rosto entre as palmas das mãos. — Me propus a ser uma profissional de excelência, fazer o meu nome. Para alcançar isso, eu preciso estudar. É só isso que faço. — dei de ombros.
— E faz muito bem. — sorriu e piscou para mim de uma forma diferente, menos tímido, também menos recluso. Como se uma camada de gelo estivesse sendo quebrada.
— Obrigada. — respondi por fim.
Para salientar o clima de silêncio que se instalou entre nós dois, enquanto nos encaramos em uma conversa muda, apenas de olhares, meu celular começou a vibrar em cima da mesa. Desta vez não era meu pai, a tela de bloqueio recebia inúmeras notificações, uma seguida da outra, com “ + um emoji de uma Lua pela metade” (porque ela tinha o meu salvo com a outra parte, claro) brilhando.
Suas perguntas só se resumiam a e disse que não iria me atrapalhar, mas que queria saber tudo. Eu li por cima, tentando não desviar totalmente dele. No café, eu atendi a ligação porque era meu pai, não que não fosse importante também, mas agora eu não podia dar atenção a ela.
Eu sequer sabia onde estava o meu foco no momento.
“Deu vida a algum personagem do Nicholas Sparks?”
“Quem é o gatinho?”
E tudo o que conseguia pensar, olhando para as notificações e para ele, era que eu provavelmente estaria bem perdida, afinal, a caixinha dentro da minha bolsa também podia provar isso.
— Eu tenho uma coisa pra você! — aleatoriamente, estalei a lembrança, virando o telefone com a tela para a superfície e pegando dentro da minha bolsa a embalagem. — Sei que você falou que não precisava, mas eu não acho... Então... Se não for o seu grau correto, tem um papelzinho aí que garante a troca! — tagarelei, somente notando a atenção dele quando estendi a caixinha.
— Bee... — disse melódico.
— , pode me chamar só de .
Ele me olhou nem um pouco convencido e tomou a caixinha em mãos, demorando a abrir o retângulo preto com laço dourado e ver ali dentro uma embalagem para óculos, que também demorou a ser aberta.
sorriu simples, mas nada muito aberto.
— Eu não posso aceitar. — estendeu de volta para mim, fechando a caixa, e eu neguei, tocando sua mão para que voltasse para a direção dele. O choque me percorreu por inteira, era a primeira vez que o tocava de forma consciente, sem envolver qualquer acidente ou minha afobação.
— Por favor. Se não for usar, leva pra casa, só para eu me sentir menos culpada. Com uma dívida paga. — insisti.
— Bee... Digo, . — olhou para o acessório e depois para mim novamente, desistindo de refutar. Provavelmente o meu lance com expressão fez ele desistir, porque eu bem estava decidida a convencê-lo.
— Por favor... — repeti, agora mais baixo e unindo as mãos em pedido.
— Se eu aceitar e você pagar essa — fez aspas com os dedos — “dívida”, como farei para ver você outra vez?
Engoli a surpresa que travou minha garganta, me desmontando por completo. me encarava sem qualquer sombra de hesitação ou vergonha, ele parecia bem decidido à forma que me rebateu com aquela pergunta.
Abri e fechei a boca algumas vezes, tomando tempo para entender o que minha cabeça estava matutando sobre e como deveria responder, até, por fim, encontrar a resposta bem ali, deitada no lugar onde estava o tempo todo: a coragem que ainda não poderia ser chamada de coragem; que, inclusive, eu deveria arrumar um jeito de descobrir logo o que era, de fato, pois se tratava de uma coisa menos abrangente, era mais específico, só dele para mim e vice-versa.
Desviei o olhar algumas vezes, até focar o que estava rabiscado na folha em minha frente, no meio do fichário aberto. Mordi o lábio, incerta, desconfiada, insegura, dentre outras mil coisas negativas no momento, e, antes que eu desistisse e recuasse, respondi:
— Você pode me ajudar com essa dinâmica. Envolve criar todo um cenário de tribunal, é um caso que eu montei e agora preciso entregar a dinâmica completa para o doutor Davies.
— Pois considere feito. Esse é o professor que mais me amou durante o curso, fui o melhor em prática jurídica com ele. — não tardou. Aliás, ele logo estendeu o braço por cima da mesa, me oferecendo sua mão em um aperto. — Pode me mandar tudo, vou analisar e o que precisar, te ajudarei.
Encaixei minha mão na sua, sentindo a maciez e reparando o quão pequena fiquei naquele cumprimento.
Para ser real, eu ficava e me sentia pequena por inteira perto dele, mas não por inferioridade ou pelo tamanho do corpo, mas porque parecia que ele tinha o tipo exato para me oferecer o que eu sempre achei impossível. Era uma exceção para as exceções de alguém que poderia me fazer acreditar que um grande amor seria encontrado numa biblioteca.
E não tinha lugar melhor para isso ter acontecido justamente comigo e toda minha negação.
Capítulo 6: Amansar a fera
Parei o carro e desci tropeçando em meus próprios pés. Fui até o porta-malas, tirando dali de dentro a enorme mochila que eu usava para as escaladas com meu pai e quase tive um pequeno acidente em cima dos meus dedos, por estar tão pesada e quase cair em cima dele com força. Bati a porta e saí arrastando ela com dificuldade, entrando ali pelos fundos da mansão, até avistar a sempre simpática governanta dos Chevalier.
— Bee! — ela me cumprimentou de longe ao me ver pela entrada de serviços. — Por que está vindo por aqui?
— Bom dia, Dorota. — sorri, ainda arrastando a mochila. — Parei o carro lá atrás. Já sou de casa, não se preocupe. — beijei sua bochecha ao me aproximar por completo. — E , já chegou?
— Há pouco tempo. — olhou para trás, apontando para minha mochila ao ter seu olhar cruzado com o homem alto que vinha atrás dela. Um segurança. E ele logo se atentou, tirando a alça da mochila das minhas mãos, com educação.
— Pode levar para o quarto de . — sugeri.
Ele nos deu as costas, levando aquele peso com a maior tranquilidade.
— Bee, desta vez o recrutamento da empresa de seu pai surpreendeu... — Dorota disse empolgada, indo para a cozinha, o que me fez seguir seus passos. Curiosa como era, claro que não deixaria esse comentário morrer, e eu precisava buscar algo comestível e delicioso para que tivesse onde se concentrar ao ver minha pessoa entrando em seu quarto.
— Por quê? — levei as mãos à cintura, um pouco assustada.
— O rapaz que mandaram para cuidar de .
Ah, sim... O , tamanho de um poste, com a língua sem trava, bronzeado, até que simpático e... melhor amigo de Jeon . A dupla nerd do penúltimo período de direito.
Suspirei e recebi um olhar cerrado de Dorota, mas deixei isso de lado.
— Ela já comeu? — perguntei.
— Sim, chegou e beliscou algumas coisas. — ela me encarava curiosa.
— Hum, então receio que vou precisar de um outro artifício para amansar a fera. — olhei ao redor.
— Vai me dizer que você está interessada no segurança dela, Bee! — sua fala saiu com ultraje e eu fiz uma careta.
— Quê? Claro que não, Dorota! — respondi atropelando as palavras, sentindo meu rosto esquentar. Abri e fechei a boca algumas vezes, não conseguindo me defender melhor. Também não foi preciso.
— Não é no meu segurança, Dorota, é no amigo dele... — surgiu, vestindo seu robe de cetim e as pantufas de mesmo conjunto. Ela logo se aproximou de nós duas na ilha da cozinha, passando o braço em volta dos ombros de Dorota e me julgando com o olhar.
— Bee interessada em alguém? — a governanta arregalou os olhos. — Eu estava brincando. — sussurrou para , mas eu pude ouvir.
— E qual o problema? — devolvi rápido.
— Nenhum. Só é... um pouco inusitado?
— E sabe o melhor, Dorota? — senti o tom afetado de em sua fala, sendo irônica, sarcástica, chateada... Tudo. — A minha melhor amiga me usou para conseguir o número de telefone de um macho.
— Bee...
Respirei fundo, rolando os olhos para e semicerrando as pálpebras.
— Dá pra você parar de falar isso em voz alta? — pedi, sentindo o peso nos ombros. Ela continuou me olhando por um tempo, antes de se afastar de Dorota e, com um sorriso nos lábios, pedir: — Você pode pedir aquela salada de frutas para nós?
— Pode deixar. — e Dorota respondeu com um sorriso nos lábios, me encarando em seguida, o olhar meio fechado. — Tenha juízo, hein, dona Bee. Juízo.
Assenti para ela, deixando um beijo em sua bochecha e acompanhei , andando rápido para lhe alcançar. Logo que alcançamos o segundo andar, pude ver minha mochila na porta de seu quarto. Ela entrou primeiro e eu arrastei o peso para dentro, ouvindo-a bater a madeira e, ao me virar no meio do ambiente, em cima do tapete redondo, a vi de braços cruzados à altura do peito.
Eu e nos conhecemos desde sempre, acho que em nenhum momento da minha vida existe algo que tenha acontecido sem que ela saiba ou tenha participado indireta ou diretamente. Tudo sempre foi conectado. Inclusive brincávamos, ainda mais novas, que se houvesse de fato um outro universo — em que eu tivesse o desejo de casamento e família, e todos os blá, blá, blás —, até filhos teríamos na mesma época, de tão coladas que éramos. Então, vendo aquele olhar dela, eu sabia muito bem o peso da sua indignação. Não tinha muito a ver com eu ter usado uma desculpa com seu nome para conseguir o número de e não perder o contato com ele ou então pelo segurança, que ela facilmente poderia usar a seu favor.
— Você me arrumou uma babá, Bee? — ela iniciou, me fulminando com o olhar.
— Seu avô pediu para o meu pai, eu tive que intervir. — OK, não foi muito bem assim, mas eu não ia dizer em voz alta sobre meu plano todo articulado. Eu sentia bem lá no fundo que isso tudo poderia render no futuro, e meu sexto sentido nunca falhou. — Era isso ou um dos brutamontes da empresa de segurança dele. Ele e o são amigos de infância, sabia? — tentei esboçar um sorriso para amenizar tudo, embora tenha sido automático ao dizer o nome dele.
Droga. O que estava acontecendo comigo?
— O pobre coitado que você quase esmagou e cegou?
— Foi um acidente, tá? — me defendi, erguendo um dedo e olhando para meus próprios pés em seguida. — E estou ajudando ele a conseguir outro óculos. — tentei não me expressar ao dizer isso e lembrar de e sua ajuda e o acessório já entregue.
— Eu sei bem o que você queria conseguir... — foi sugestiva, caminhando para sua cama.
Respirei fundo, virando de frente para ela.
— Tá bom, tá bom. Eu queria pegar o telefone do e usei a situação como desculpa. — confessei. — Você não ficou chateada comigo, não é?
— Por você me usar descaradamente para se aproximar desse míope que te deixou toda balançada? — esperei a sua resposta da retórica. — Não. Por você ter me acordado para pedir opinião na roupa que vai usar para almoçar com ele? — esperei novamente. — Sim.
Era sobre isso. Eu já imaginava.
Sorri, me jogando na sua cama de barriga para cima.
— Não quero ir muito simples. — pausei, me virando rapidamente para ficar de bruços. — Mas não quero ir too much, sabe? — ela não respondeu, então a encarei. — O que você vai fazer sobre o ?
sorriu sacana, eu conhecia bem aquele sorriso.
— Vou levá-lo para fazer compras comigo e ser bem insuportável. Eu faço esse nerd desistir de mim em dois tempos.
— Só espera eu tirar uma lasquinha do melhor amigo dele primeiro... — sussurrei e ela fechou a cara para mim, puxando o travesseiro para me acertar.
Capítulo 7: Já ouviu a palavra “passear”?
Parei o carro na mesma vaga de sempre do campus e, embora fosse um sábado, eu não era a única ali. Desta vez, porém, desci somente com a minha pequena bolsa de passeio, passando-a pelo corpo transversalmente, com tamanho perfeito para caber meu celular e a chave do carro, e acionei o alarme, saindo apressada e com liberdade por não ter o conversível irritante de Evans ao meu lado. Ao me virar para a direção do gramado que cortava como caminho do estacionamento para o grande conglomerado de edifícios, vi, ao fundo, uma figura esguia.
Minha vista não tinha nenhuma deficiência de grau, felizmente, então eu conseguia ver perfeitamente ele e seus detalhes. A cada passo que fui dando, meu coração acelerava ainda mais com as lembranças do nosso histórico de conversa.
Na última semana, desde o dia em que nos encontramos na biblioteca, eu lhe dei o óculos e ele prometeu me ajudar com a atividade prática para o senhor Davies, não pudemos nos ver, mas seguimos aumentando a rotina de conversar por mensagens (até tentamos um almoço num sábado, em que acabei me empolgando demais para vê-lo, mas meu pai chegou de surpresa e eu tive que fazer minha escolha). Claro que fizemos isso dentro do que era possível por conta das aulas e dos estudos, mas com o final do semestre chegando, não tinha como ser por mais tempo. Não tinha como eu passar quase 24 horas falando com ele, mesmo que eu quisesse. E eu queria muito.
Porém manteve sua promessa e eu fui me sentindo menos maluca, ainda que tivesse a dificuldade de entender e aceitar que não estava sendo invasiva demais com ele e que, sim, era possível ele também estar dividindo a mesma frequência e nutrindo o crescimento da nossa amizade. Tanto que ele mesmo havia sugerido que nos encontrássemos no sábado para falar sobre a atividade, com a condição de que eu não levasse nada, pois não iríamos precisar de mais papel. Eu apenas aceitei seus termos, concluindo posteriormente que fiz de forma consciente só pela vontade de vê-lo de novo pessoalmente. O trabalho extra com o senhor Davies era somente para maio, o final do meu oitavo semestre, mas eu coloquei urgência nele justamente para ter a companhia dele.
— Ei, ! — me cumprimentou com um sorriso normal ao me ver aproximar por completo e eu senti uma leve pontada desanimada porque não usava o óculos que eu havia lhe dado.
Mas deixei isso passar.
— Bom dia! — sorri em resposta, incerta de como deveria cumprimentá-lo, enquanto minha mente voltava na lembrança das pesquisas que fiz sobre como era a personalidade coreana. Me assustei um pouco com o que descobri, devo ressaltar. Porém, se eu fosse analisar mais a fundo, não teria muito problema, eu também não era uma pessoa calorosa e que gostava de toques (embora pudesse parecer estranho a sensação que eu sentia ao pensar que não receberia seu toque).
— Então... Preparada? — notei seu olhar me medir por inteira e eu fiquei um pouco constrangida, porque não foi nem um tanto sutil.
— Que foi? Tem algo errado? — perguntei, também me olhando, preocupada.
— Não, não! — se desesperou, negando e gesticulando. — É que... — suspirou de forma tímida. — Eu acho que você vai passar frio.
— Não vou, tem ar quente nos prédios de toda essa universidade e a biblioteca principal é quentinha. E depois eu vou direto para casa, de carro, então tá tudo bem.
— . — ele iniciou e deu uma pausa, cortando a minha tagarelice sem vírgulas.
— Sim?
— Nós não vamos ficar aqui no campus.
— Ah... Não? — respondi melódica, completamente confusa. deu um passo à frente, um tanto hesitante ao esticar o braço para arrumar a gola da minha camiseta polo que saltava por cima do suéter fino que eu usava.
— Não, mocinha. — disse.
— E onde vamos ficar? — tentei não gaguejar, mas minha voz automaticamente já diminuiu o volume, saindo bem baixa e hipnotizada por todo o movimento dele enquanto me ajustava e eu o olhava de baixo, literalmente, por conta da nossa diferença de altura.
— É aí onde mora a novidade. Não vamos ficar. — ele se afastou e eu fiquei mais confusa ainda. — Nós vamos passear, Bee, já ouviu essa palavra antes?
Fechei a cara imediatamente, cruzando os braços. Parecia que era na minha frente falando aquilo, ou podia ser meu pai.
— Você já foi corrompido pelo meu pai e pela , é? — senti o vinco se formando em meu cenho.
Ele riu brevemente, gerando um som gostoso para minha audição.
— Não. Nunca nem vi os dois, juro. — ergueu o mindinho para mim.
— Então de onde vem essa ideia maluca?
— Daqui. — apontou sua cabeça.
— Você é maluco de pensar que eu vou fazer outra coisa a não ser o meu trabalho, Jeon! — rebati, já me decepcionando com a quebra do meu planejamento e me prontificando a girar os pés e andar para a biblioteca. Mas ele me impediu antes mesmo que eu movesse qualquer músculo.
— Prometo que você não vai se arrepender, e se isso acontecer, nunca mais te encho o saco.
“Não, você pode continuar enchendo o saco o quanto quiser”, algum lugar dentro da minha cabeça berrou.
— O que você tem em mente? — perguntei desconfiada.
— Um pássaro fofoqueiro me contou que você mora aqui mesmo em Manhattan... Então eu fiquei pensando quando foi a última vez que você saiu dessa ilha ou até mesmo chegou a ir em algum lugar dentro dela que não seja esse terreno.
— Para começo de conversa, o não é uma fonte confiável, você deveria parar de perguntar as coisas para ele e perguntar para mim. — ergui meu queixo, numa tentativa inconsciente de parecer mais imponente, mas com a altura maior dele isso ficava impossível. Principalmente com ele me olhando daquela forma toda atenciosa. — E eu já andei bastante por Nova York sim, OK?
— Ah... É mesmo? Onde? Quando foi a última vez? — ele rebateu, parecendo não me dar credibilidade alguma.
Fiquei quieta, porque era uma coisa que eu realmente não sabia.
A última vez que fiz algo fora da universidade foi quando fui para o Alasca com meu pai e isso deve ter mais do que alguns contáveis meses. E me lembrar disso bateu em um lugar bem fundo, até porque, por mais que ele viaje muito a negócios, sempre deixou espaço em sua vida para mim, sempre me colocou em prioridade. O que aconteceu é que eu comecei a colocar meus estudos cada vez mais à frente em tudo e de todos na minha vida, deixando ele e para trás.
Papai vivia reclamando, assim como ela, mas saber que eu acabei abandonando ele, nessa breve lembrança, me fez sentir o estômago revirar. ainda tinha , Dorota ou até mesmo as outras pessoas das quais ela se cercava, como , por exemplo, que ainda vivia preso ao pescoço dela mesmo depois do tempo que ficaram sem se ver depois do colégio. Mas papai não tinha. Ele não encontrou alguém porque decidiu ser o meu pai e um homem dono de uma empresa de sucesso ao mesmo tempo, então precisou batalhar muito, fazer escolhas, se colocando por último, afinal, não tinha saído de berço de ouro, não tinha fortuna herdada, ele precisou correr atrás de tudo o que adquiriu, e agora também corria atrás de mim. Uma péssima e ingrata filha.
— ? Eu disse algo errado? — ouvi a voz de me acordar e voltei a respirar e piscar normalmente, deixando completamente exposto para ele que eu estava em modo de falha.
— Não. Não disse. — tentei sorrir para convencê-lo. — Eu só...
— Olha, me desculpa se eu estiver sendo invasivo e se foi uma péssima ideia te pegar de surpresa assim. Achei que pudesse ser legal você se divertir, e eu tô há um bom tempo querendo sair um pouco daqui... Morar e estudar no mesmo lugar é cansativo.
— Faz mais tempo do que eu posso imaginar. — o cortei desta vez, respondendo tardiamente. Seus olhos me encararam em expectativa. — A sua ideia é muito boa.
— Prometo que vamos focar no seu trabalho. Talvez esse descanso para o seu cérebro de gênio possa surtir algum efeito.
Assenti lentamente, comprimindo os lábios. Ficamos em um silêncio breve.
— Então... Como vai ser a partir de agora? — observei seu sobretudo fechado, esperando de verdade que o frio que ele estava aguardando não fosse chegar ainda naquele dia. Era final de novembro, o mês estava acabando, levando junto o outono e trazendo a contagem regressiva para o inverno, então eu deveria mesmo estar um pouco louca de sair de casa achando que minhas vestes seriam o suficiente. Porém como iria saber? Para mim, ficaríamos dentro de um lugar fechado e quentinho, o que não fugia do meu costume.
— Nós vamos caminhar até o metrô e ir até a Times Square. Como é sua primeira vez, para não assustar, vamos ficar em Manhattan mesmo.
— Você está falando como se eu fosse uma turista! — brinquei, fazendo uma careta com a constatação.
— Mas é realmente o que parece. Tenho até medo de perguntar quando é que você foi na Estátua da Liberdade. — olhei para os meus pés, mordendo o lábio inferior, e ele arregalou os olhos. — Bee! — protestou e eu ri.
— Não é porque eu sou nova iorquina que é obrigatório conhecer pontos turísticos. Estrangeiros e até mesmo nativos de outras localidades do país vêm todos os dias para garantir a receita de tais lugares. — analisei, erguendo o queixo. — Ou vai me dizer que todo carioca tem que ir ao Cristo Redentor... Coreano à Torre de Namsan... Até mesmo o pessoal do-
— Você não é real... — murmurou baixo, me cortando, e eu senti meu rosto arder. — Bem, vamos... — estendeu o braço para mim em um ato cavalheiro e eu aceitei, logo começando a acompanhar seus passos.
— Se o frio que você está aguardando de fato chegar, vou ter que comprar uma roupa. — comentei.
— Você realmente é uma turista. Não conhece o clima do próprio país? Da própria cidade?
— Ei! Eu conheço muitas coisas de onde moro, OK? — rebati, automaticamente soando competitiva em minha autodefesa, parando de andar e o soltando.
— Ah, é? Então me fala, senhorita, você ao menos já usou o transporte público? — assenti, mentindo. — E para que lado ele fica? — cruzou os braços, me olhando desafiador.
Fiquei quieta, mordendo as bochechas por dentro, até mentir outra vez:
— Pra lá. — apontei o lado direito, em um chute errado, já me movimentando para andar.
— Vem cá, maluca. — senti sua mão pegar a minha e me puxar, virando-me para sua direção, e eu fiquei bem perto do corpo dele. — É pro outro lado, . — sua boca formou um bico por sua diversão e então entrelaçou nossos braços de novo. — Não solta de mim, OK? É sábado, as ruas vão estar cheias e podem querer vender coisas demais pra você e essa sua cara de turista.
Não respondi nada, apenas fiquei com a cara de bocó, sendo guiada por ele e seu cheiro de pêssego amadeirado.
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Se alguém me dissesse que Jeon é extrovertido, eu jamais iria acreditar, não antes de ver ele me guiar pela estação de metrô até o nosso primeiro destino.
Quando entramos na estação, ele garantiu que eu não me distanciasse por um segundo sequer, e eu logo pude entender, porque a movimentação era realmente intensa. Nossa caminhada, inclusive, não demorou mais do que cinco minutos e eu simplesmente achei o máximo saber que aquele acesso era do ladinho do portão principal de pedestres da Saint Peter. Andando pelo meio da multidão, se concentrava em encontrar a nossa rota certa e eu apenas o deixei me levar, agarrada em seu braço para não me perder. Ver o tanto de gente ao nosso redor acabou por me deixar um pouco tonta, não estava acostumada com essa movimentação específica.
O ponto mais interessante e protagonista da nossa viagem não foi a movimentação excessiva em si. Talvez eu tivesse ficado presa no fato de ter que ir em pé pelo tanto de gente sentada e ter que me equilibrar e abraçar pela cintura para não cair, já que eu não tinha nenhuma experiência com esse transporte, mas quando eu ouvi o nome da estação em que deveríamos descer para ir à Times e ele não deu nenhum resquício de se movimentar, assustei — afinal, a estação tinha um nome específico com o ponto, então não dava para confundir.
— Não é aqui que deveríamos descer? — disse um pouco abafado, inclinando o rosto para enxergá-lo “lá em cima”. abaixou o dele e a ponta do seu nariz só não tocava o meu porque eu realmente tinha pouco mais de um metro e meio.
— Depois. Primeiro vamos a outro lugar, vai demorar mais um pouquinho, mas estamos na metade do caminho.
— Ah... — murmurei, voltando a ficar com o rosto à nível dos botões de seu sobretudo, que deveria ser na altura do peitoral, bem onde o cheiro de pêssego era mais forte.
Não disse mais nada, continuei quieta, acompanhando com o olhar a cabine se esvaziar e encher a cada parada, enfim chegando no que eu pensei ser o ponto final, pois se movimentou cuidadosamente para sairmos de dentro.
— Pronto, nossa primeira parada. — ele me olhou empolgado, oferecendo o braço novamente para eu entrelaçar e assim o fiz, outra vez seguindo sua direção.
Do que eu tinha lido sobre a forma cultural como os coreanos se relacionam, estava me surpreendendo, e deve ser por isso que eu tinha engolido minha própria língua e só sabia observar, ao invés de falar. Ainda não tinha conseguido computar verdadeiramente como foi que acabamos do jeito que fomos a viagem toda: ele segurando no apoio e eu abraçada em seu corpo, como se fosse um coala com medo de cair da árvore. Só sei que foi por conta da fila de gente que não parava de diminuir e foi entrando, me impedindo de encontrar um lugar pela minha lerdeza e falta de costume.
“Vem aqui” e “Fica aqui” foram as duas coisas que ele disse na sequência, após me segurar pelo cotovelo e me colocar em sua frente, ajeitando meu braço para envolver sua cintura. “Pronto, só não soltar”, por fim, foi a última coisa que eu entendi de tão inebriada que fiquei pelo contexto todo em somatória ao cheiro delicioso de pêssego que ele exalava. E era isso que ainda rodava em minha mente quando finalizamos os degraus da saída e eu recebi o Sol em meu rosto, não sendo tão forte quanto a brisa do outono.
— Espera... — disse pela primeira vez assim que vi uma placa indicando o local de saída das balsas. — Você tinha dito que não iríamos sair da ilha!
— Mudei de ideia. — ele respondeu, me olhando com o nariz franzido. Com isso, a feição dele, eu não consegui refutar. — Qual é... Solta esse controle um pouco.
Suspirei, mirando seus olhos. Senti uma certa saudade dele usando a armação.
Antes que esse pensamento pudesse tomar uma proporção maior, chacoalhei a cabeça, voltando ao momento.
— Certo, você venceu. — falei um pouco mais leve. — Vamos ver uma estátua parada, enorme, gigante e velha.
— Credo, quem foi que te deixou tão séria assim?
O deixei sem resposta, não seria legal mentir e eu não conseguiria falar o que havia me feito se tornar tão reclusa. Também estragaria o clima, claro.
Me desvencilhei de , apontando para frente:
— Olha, se não formos logo, vamos perder a balsa.
Sei que ele me seguiu e eu fui à frente, desviando das pessoas como se precisasse buscar por ar.
não me fazia sentir sufocada ou nada equivalente, mas ele me tirava o fôlego a cada momento, fosse pessoalmente ou pelas mensagens que trocávamos. E eu me sentia cada vez mais imersa, como se estivesse cavando um túnel sem profundidade específica.
Entramos na balsa depois de todo processo de pagamento, fila e coletes salva-vidas. estava empolgado ao meu lado o tempo todo e parecia que tudo o que eu sabia fazer era ficar mais presa em todos os detalhes sobre ele, em todos os seus trejeitos e ações. Podia até ouvir o que dizia, mas não estava prestando muita atenção, e não tinha nada a ver com o tamanho exuberante da estátua, só fiquei hipnotizada mesmo com ele, enquanto discursava o quão incrível achava a história do presente da França para os Estados Unidos.
Já estávamos de volta ao metrô, novamente em pé e eu ainda sem saber como me equilibrar sozinha, quando um grupo de asiáticos entrou em uma estação e ele riu de algo que ouviu. Foi um riso melódico, e eu teria me fixado no som se não fosse pelo empurrão que ele recebeu, forçando-o contra mim porque alguém atrás dele estava ocupando muito espaço. Eu já estava perto demais, a propósito, abraçando a cintura dele; quando isso aconteceu, quase me fundi com o rosto em seu peito. fechou a cara, mas me olhou com cuidado e eu apenas neguei em silêncio. Estava tudo bem, podia ficar colada nele daquele jeito sem me importar.
Me importei mais quando tivemos que nos afastar e ele saiu me puxando por estarmos na estação correta. Agora, parecia mais apressado.
— O que foi? Estamos fugindo daquelas pessoas? — questionei quando ele trocou a forma como me segurava, pegando em minha mão.
— Não. — respondeu apertando mais o passo, evitando esbarrar nas pessoas. — Mas eu não cronometrei certo, não achei que ficaríamos tanto tempo na Ilha da Liberdade e se demorarmos mais, vamos perder o musical.
— Musical? Que musical?
— Era pra ser surpresa. — ele riu, não me dando mais nenhuma resposta em alguns segundos. — Hoje tem O Fantasma da Ópera na Broadway.
— Mas mesmo que a gente chegue a tempo — comecei a ofegar pela correria, mal podendo me acostumar direito com a diferença de iluminação ao sair do subsolo do metrô para as ruas iluminadas pelo Sol da uma da tarde na rua. —, é quase impossível comprar ingressos assim, em cima da hora. A fila da TKTS Nova York é enorme.
— Eu sei disso, meu bem...
continuou me puxando, até enfim estarmos em uma parte menos movimentada, indo agora à frente com o fluxo certo das pessoas. Seu modo de me chamar fez com que eu ficasse muda por todo esse tempo.
Outra vez.
Até minha curiosidade falar mais alto.
— Como você espera conseguir ver a peça, então? — perguntei assim que vi a fachada de um dos lugares mais famosos da Times Square. Senti sua mão apertar a minha, que ele ainda segurava, e com a outra livre, surgiu com dois papéis bem detalhados sobre o musical. Fiquei sem reação imediata.
— Eu ia levar comigo, mas ele está trabalhando e pareceu muito mais legal trazer você. — justificou e eu tive a certeza de ver suas bochechas ficarem vermelhas.
— Eu... Eu... — tentei dizer, mas nada saiu. Tínhamos chegado e então ele parou bruscamente, um pouco confuso.
Na verdade, ele não deveria estar mais confuso do que eu. Uma das coisas que a Bee desde a infância mais quis fazer em toda a vida era ir a algum espetáculo na tão famosa Broadway, mas meu pai jamais se deixou ser convencido. Descobri uma certa vez que isso tinha a ver com minha mãe, pois foi exatamente nesse lugar que ele, segundo minha falecida avó, “notou que estava verdadeira e assustadoramente apaixonado por ela”. Então ele tinha um certo trauma com o lugar, era até compreensível; se eu tivesse sido abandonada assim, como ele foi, com uma filha de duas semanas de vida e sem sequer saber o que fazer, também negaria esses tipos de passeios que pudessem servir como lembrança.
Como eu sempre ia com ele ou para todo canto, não tive opção a não ser por deixar isso cair no esquecimento. Até me colocar diante da fachada exuberante e elegante do prédio, deixando-me sem fôlego, assim como parecia se tornar uma nova realidade em minha vida.
— Talvez eu devesse ter te perguntado se você queria.
— Não! — rebati rápido, até mais do que eu queria. — Digo... Estou sem saber como reagir porque vai ser a primeira vez que eu venho à Broadway e isso me deixou um pouco... Pensativa. Sempre tentei convencer meu pai a me trazer, mas ele nunca quis.
— Ah... Se é algo que você quer fazer com ele, podemos ir para outro lugar se você quiser! Não tem problema, eu ganhei isso aqui de um professor, então...
— Eu quero ir. — interrompi. — Com você. — completei menos intensa.
Talvez entrar ali com fosse tirar da minha cabeça uma memória que não era minha, que eu tinha criado dos meus pais sem ter qualquer noção do real fato.
Ver o sorriso que ele abriu, nitidamente feliz, me deixou encantada e tive muita certeza sobre a minha escolha.
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— Aqui o seu. — peguei da mão de o cachorro quente que me foi estendido por ele e esperei sua companhia para nossa caminhada.
Depois da peça, saímos tranquilos para caminhar pela calçada, até notarmos que, em algum momento, o Sol começou a se despedir sem a nossa percepção. Comemos um pouco de tudo o que vimos desde que passamos pelas portas da Broadway até chegarmos no ponto entre a bifurcação mais famosa do mundo com o grande telão, ponto do New Year’s Eve de Nova York. Com isso eu mal conseguia tirar uma mísera mordida do cachorro quente em minha mão, mas me esforcei pelo esforço de em não me manter faminta desde a primeira reclamação de fome que fiz na Estátua da Liberdade.
Ali, parados, tínhamos muitas pessoas ao nosso redor e o vento estava ficando mais forte pela temperatura cada vez mais baixa de acordo com o passar das horas. O interessante da Times Square era que, por mais cheia que estivesse, cada pessoa ou grupo vivia sua própria realidade, sem intrometer-se uns aos outros. Era divertido também, porque ali se fazia possível ver de tudo e todo tipo de gente. Exatamente onde estávamos, pude ver mais à frente um rosto conhecido e, assim que engoli o último pedaço, apontei empolgada.
— O garoto do café! — disse, fazendo virar seu rosto para a direção que eu apontava.
— Ah, . — ele limpou a boca antes de me responder, também finalizando seu cachorro quente. — Ele é do programa da Saint Peter.
— Você já sabia o nome dele naquele dia no café e não me falou? Gosto de ver ele cantar e tocar, é relaxante.
— Você não perguntou. — deu de ombros e eu semicerrei meu olhar. — Você fica brava muito fácil, Bee. — brincou comigo e eu não tive tempo de pensar em responder, ele logo esticou a mão para pegar a embalagem amassada presa entre meus dedos e se virou para a lixeira atrás de si; ao retornar de frente para mim, tirava seu sobretudo, vestindo-o em meus ombros.
Eu só soube ficar parada, olhando, gravando cada movimento em minha mente.
Novamente ele estava pertinho de mim, me cobrindo por inteira com seu tamanho e me passando aquela sensação de miniatura que eu tinha quando estávamos tão perto. Notei que isso teve um peso diferente depois de ter ido agarrada em seu corpo dentro do metrô. E realmente não era de inferioridade, tinha um quê de segurança.
— Pronto, agora você não vai ficar com frio. — disse, tendo minha atenção novamente, e se afastou minimamente. estava bem perto e por mais alto que fosse, eu conseguia enxergar seus olhos e poderia facilmente me esforçar para ficar na ponta dos pés e fazer nossos narizes se esbarrarem de verdade. Ele me prendia em momentos assim com muita facilidade.
Se me dissessem que eu estava louca, até que seria compreensível, mas tive a impressão de que começamos a nos aproximar mais, bem lentamente. Eu já estava com meu rosto inclinado para trás e ele para baixo, sua mão direita estava em meu cotovelo e eu dobrei o braço alcançando seu peito, tocando-o de forma casta. Nossos olhos se travaram em uma conexão inquebrável e eu não consegui ficar com a boca fechada por muito tempo, estava começando a ficar sem fôlego.
Alguém passou por trás de mim, rindo em empolgação por alguma coisa alheia dali, e acabou esbarrando, o que me fez colar o corpo contra o de em definitivo, espalmando a outra mão também em seu peito. Meu rosto ficou reto por alguns segundos e, devido à aproximação, eu podia enxergar perfeitamente a costura de seu suéter grosso, em uma lã muito bem tricotada; instintivamente eu dedilhei o formato dos desenhos ali naquele local, enquanto senti seus braços me envolverem em proteção, por conta do empurrão, da mesma maneira que havia feito no metrô. Poderia ter sido rápido, acontecido normalmente, mas eu sentia tudo em câmera lenta.
Meu coração parecia querer sair pela boca ou abrir um buraco no peito para escapar, porém eu continuava vidrada nos detalhes da sua roupa justamente por estar próxima demais, de uma forma que eu nunca estive com alguém. E de uma maneira que eu não esperava que fosse acontecer com , não assim, no meio de uma praça cheia de gente e não só gente da imensa Nova York, mas do mundo inteiro. Afinal, em sua cultura, esse tipo de contato, essa intensidade, não era demonstrada em público tão assim, explicitamente.
E dizer que eu estava louca até poderia ter algum sentido, mas falar que não era uma coisa intensa acontecendo, me levaria a refutar até o fim.
Ouvi seu suspiro e notei pelo peito subindo e descendo que ia dizer alguma coisa, mas fomos interrompidos, porque o tal estava mais perto, pude perceber pela sua voz mais alta e o som do violão que segurava quando começou a cantar.
— It’s the most beautiful time of the year...
Ergui o rosto para , o vendo sorrir timidamente, e olhei para os lados rapidinho, vendo uma galera começando a dançar (em casais) ao som de Mistletoe, enquanto outras pessoas fechavam o espaço em uma roda, cantando junto.
— Senhorita? — ele me perguntou, sugestivo e sem me soltar.
— Sim. — respondi baixo, seguindo o movimento ritmado com a música.
Dançar nunca foi meu forte. Quando meu pai fez minha festa de aniversário de 16 anos, igual todo mundo falava para ele fazer, eu bati o pé até conseguir tirar de sua cabeça que teríamos uma valsa. Mas não deu certo e o resultado foi ele com dores nos dedos por dias após a dança.
Mas, ali grudada em , eu não precisei fazer muita coisa. Ele estava me guiando sem sairmos muito do lugar e conseguia sentir o sobretudo enorme em mim balançar de acordo, ainda com os botões abertos. O cheiro dele estava se fixando no meu olfato, a gola erguida teve a capacidade de me inebriar muito mais do que antes e eu fechei os olhos, sentindo o cheiro de pêssego ficar marcado na minha mente, desejando poder senti-lo mais vezes, desde que fosse nele mesmo, porque em nenhuma outra pessoa o cheiro de pêssego seria gostoso.
Devagar, seguimos aumentando os movimentos, até eu ser rodopiada, me soltando mais por me sentir à vontade. Eu ria, respirava melhor, ia e voltava para ele, ouvindo sua risada do timbre grosso e aveludado. E a melhor parte ficava para a cada vez que nossos olhares se encontravam. Quando a música terminou e nós estávamos um de frente para o outro do mesmo jeito de antes, no momento que fui empurrada, reparei que ficar olhando em seus olhos delineados estava se tornando minha nova zona de conforto, porque eu não queria sair dali.
— Espera! Está faltando um visco! — alguém disse, não sendo suficiente para nos afastar daquele instante de conexão. — Aqui! — pela risada, eu supus que fosse a mesma maluca que passou eufórica por mim e me empurrou.
Primeiro ela me empurra, depois vem falar sobre o visco. E é aquela coisa que dizem: se estiver embaixo do visco, devem se beijar — ou talvez não fosse bem assim, mas era algo do tipo. A música que já tinha tocado era bem singular.
Então estávamos embaixo de alguma coisa que a maluca de sotaque californiano segurava, meus olhos não queriam se desgrudar dos de para conferir se era mesmo um visco, porém eu confiava na época natalina. Não seria nada anormal alguém ter alguma coisa que representasse tal época enquanto andava pelas ruas de Nova York.
Talvez eu devesse agradecer a ela depois e eu teria feito se não tivesse tirado de mim aquele momento, virando o rosto para o lado ao se esquivar, me deixando completamente confusa e preocupada sobre até que ponto eu tinha mergulhado naquela analogia da piscina. Porque enquanto estávamos naquele momento, presos, eu estava quase confessando para mim mesma que aceitaria qualquer sentimento que pudesse estar crescendo.
Vê-lo se afastar foi como um banho de água fria, e eu só acordei de vez quando o vi ter uma crise de espirro.
— Vem, é melhor a gente ir, o vento está ficando mais forte. — disse, sendo mais racional e ignorando as outras pessoas.
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Voltei em silêncio e sentada dentro do vagão, agora bem menos movimentado. Pelo horário, as pessoas estavam mais nas ruas do que se locomovendo para chegar de um lugar a outro, não era mais um horário comercial e ninguém estaria indo na direção contrária aos pontos turísticos da ilha. Estava cansada, mas não falei ou me movi, apenas fiquei prestando atenção no caminho e refletindo o dia que me propus a ter quando aceitei a surpresa de .
Estava surpresa com a iniciativa dele. Dizer que esperava por isso era mentira. Eu não esperava e fui surpreendida, e mesmo que tivesse criado todo um clima em minha cabeça e esperado por mais em algumas ocasiões, tinha sido perfeito da forma como foi.
Ele tinha razão, afinal, descansar minha mente foi uma escolha sábia.
Estávamos caminhando para o campus, sem nenhuma pressa, e dessa vez um pouco mais afastados, e eu me perguntava como ele poderia não estar com frio, porque o vento me cortava e a sensação do ar úmido parecia me cobrir com gelo. Tive pressa em meus passos para chegarmos logo e eu poder devolver seu sobretudo e lhe aquecer, mas quando notei que ele seguiu para a direção do estacionamento, perguntei:
— Para onde estamos indo?
— Vou te deixar no seu carro. — ele me olhou rapidamente, com uma linha reta em seus lábios fechados. — Te levaria para casa, mas não sei onde você mora.
— Estávamos perto dela em nossa primeira parada. — comentei casualmente.
— Sério? Você vem do outro lado para cá todos os dias? — me encarou surpreso.
Caminhávamos lado a lado pelo gramado e eu apertei a alça da minha bolsa atravessada em meu peito.
— Venho. Tenho um primo que se formou aqui e mora na mesma rua que a nossa. Derek diz que, pelo tempo que passo no campus, eu deveria fazer como ele e alugar um quarto no dormitório.
— Não seria de todo ruim. Seríamos vizinhos. — ele respondeu com um riso fraco.
— Não sou uma boa vizinha. — fiz uma careta e continuei olhando para frente, mesmo sabendo que ele me olhava.
— E o que define uma boa vizinha?
— Ah... Esse é o X da questão. Eu não sei. Não fico em casa o tempo suficiente para saber como conviver numa vizinhança.
— Faz sentido. — houve uma pausa de quase um minuto em nossa conversa e eu já podia ver Veronica estacionada. , porém, logo tornou a falar: — Você não sente falta de passar mais tempo em casa?
Nunca parei para pensar nisso.
Talvez eu sentisse, mas precisaria pensar com a cabeça da Bee menos nerd. A Bee que não era chamada de “Nerd do Extra” ou “Traça de Livros” ou “Beexwell”, dentre os outros inúmeros apelidos. Essa Bee, no caso, MB, eu não sabia mais onde estava.
— É uma pergunta para a outra Bee. — confessei depois de um tempo.
— E onde encontramos ela?
— Não sei. — parei quando vi meu carro a poucos metros. — Bem, Veronica continua aqui... Ainda posso confiar na segurança desse lugar. — mudei o foco.
parou também, levando os braços para trás do corpo e olhando para o único carro parado ali. O Jeep branco parecia enorme até mesmo para ele.
— Quem é Veronica? O Jeep? — perguntou.
— Sim. — franzi o nariz ao encarar seu rosto com um riso preso. — Qual é? É um bom nome, vai...
— É sim. Ela é muito grande pra você, não acha não? Como você não some lá dentro?
Arqueei a sobrancelha, vendo-o erguer a mão e mensurar os tamanhos usando o indicador e o polegar.
Não evitei e ri, tirando a chave da bolsa e destravando o alarme.
— Vou te mostrar. — respondi, saindo na frente.
Abri a porta do carro e me sentei no banco, fechando logo em seguida e o deixando para fora. se aproximou por fim e eu abri a janela por completo. Tínhamos alguns postes de luz cuidando da iluminação, mas a Lua estava mais forte, então ele conseguia ver o interior com detalhes rosados por dentro — contrário do que dizia, Veronica não era toda rosa, ela tinha algumas coisas estampadas na cor e a costura dos bancos de couro; minha Grand Cherokee tinha personalidade e era toda organizada.
— Não consigo te ver aí dentro, cadê você, Bee?
Soltei uma gargalhada irrecusável quando brincou e ele me acompanhou, apoiando-se na porta do carro.
— Eu te levaria para casa, mas já estamos nela. — comentei, surgindo com um assunto.
— Sim. — ele começou a fazer aquilo de novo de me olhar, chamando a nossa troca de olhares. Eu tentei desviar a atenção para não me prender a algo liso novamente, sendo aleatória:
— Seu sobretudo! Vou tir-
— Não precisa. Você me devolve depois. — me impediu de tirar sua peça, sendo rápido demais ao me interromper.
— Tem certeza? — garanti e ele assentiu. — Então tudo bem. Obrigada por hoje... Você tinha razão. — suspirei, sorrindo genuína.
— Disponha, senhorita. Quando quiser, sabe onde me encontrar... Não estou falando das prateleiras, OK?
— Vou anotar o lembrete.
Então ficamos de novo presos na mesma atmosfera e eu precisei lutar o máximo possível para sair, sendo novamente a responsável por trazer outro diálogo.
Olhei para a direção dos dormitórios e perguntei:
— Qual é o seu?
— Está vendo aquela estrela? É naquela direção que fica meu quarto.
A forma como ele falou, ficando de perfil para mim, fez eu me perder no delineado de seu rosto. O nariz afilado, os lábios de tamanho enganoso, o pescoço que tinha cheiro de pêssego...
Não, eu estava vendo outra coisa, visualizando outras imagens tão infinitas quanto o céu, .
— Uhum. — menti. — Aquela? — apontei, recebendo sua reação rápida em abaixar minha mão. Uma corrente elétrica passou por mim, vagando meu corpo inteiro, e com esse toque ele se virou para me encarar ao mesmo tempo que eu o fiz.
— Não é educado apontar para estrelas. — disse tímido, mas ainda sem me soltar, e seu tom baixinho, como sempre, me fez sentir as bochechas quentes.
Vai, Bee! É a sua hora.
O frio na minha barriga foi o combustível para eu não colapsar e desta vez não recuar.
— Sabe o que não é educado? — ele franziu o cenho suavemente, me encarando com o olhar confuso. — Você me soltar todas as vezes que me toca, que está tão perto... Embora eu esteja torcendo demais por dentro que não seja só o seu problema com a vista de não me enxergar direito te fazendo chegar tão perto assim, isso é um pouco frustrante e-
Não pude terminar de falar, ou melhor, tagarelar sem vírgulas pelo nervosismo.
Seus lábios se chocaram contra os meus.
O frio na minha barriga foi se tornando quente, aconchegante, e quando eu abri a boca para lhe dar mais intimidade e deixar que a sua língua se encontrasse com a minha, meu corpo todo amoleceu como uma gelatina sendo derretida em segundos. Jamais tive uma sensação tão boa e revigorante assim, e mesmo que eu não tivesse uma lista vasta de ex-namorados ou interesses, diria com propriedade que os lábios dele me marcariam para o resto da vida. Era ali que eu queria desbravar muita coisa.
Dali poderia sair a MB.
Capítulo 8: Passado, presente e futuro
O tempo é relativo, dizia Einstein. E ele nunca esteve errado.
Essa história de passado, presente e futuro é balela. Não existe isso. As coisas acontecem e a gente não tem como mensurar tempo. Elas simplesmente acontecem ao mesmo instante, o passado está junto com o presente e o futuro acontece no mesmo momento. Não tem como separar.
Se tornou uma incógnita na minha cabeça que em um momento eu estava dançando um clichê de Justin Bieber na Times Square com e de repente já veio o feriado de ações de graça, que me levou para a Califórnia em um passeio tradicional com meu pai para visitar vovô Bee, e logo em sequência mal tivemos tempo, porque as provas finais aconteceram e depois já tínhamos o final do semestre porque o natal e ano novo batiam na porta. Além dos meus planos tradicionais, tinha os dele com passagem comprada há meses para cruzar o planeta e passar os feriados com seus pais.
Não tinha erro nisso tudo, eu não podia esperar que do dia para a noite o nosso tempo fosse resumido apenas em continuarmos o que estava desenrolando. Querer ele só para mim seria muito egoísta, porque eu o tinha durante vários meses do ano — a partir de agora, claro — e sua mãe não, ela tinha que esperar pelo período das festas de final de ano, e ainda durava menos do que quinze dias.
Por mais que eu quisesse não ser egoísta, o vazio que senti por tudo ter passado tão rápido e levado ele para longe ainda era grande. Mas eu tinha que me esforçar e compreender o contexto, afinal, era uma novidade na minha vida.
Festas de final de ano são as minhas favoritas, então a espera seria menos dolorosa, porque eu estaria com a mente ocupada — ou pelo menos foi o que pensei.
— Por que não para de olhar para esse celular, hein? — entrou de novo em meu quarto, carregando duas taças com a medida ética de vinho. Colocou em minha mesinha de cabeceira e se sentou na cama. Olhei tudo pelo reflexo do espelho do closet, que ficava na direção da porta, me dando uma visão ampla de quem perambulava pelo meu quarto.
— Depois que voltamos da Califórnia, meu pai quer que eu monitore o vovô. — suspirei, não era mentira, mas não era exatamente o que eu estava fazendo quando ela entrou e me fez a pergunta. Na verdade, estava lendo a última mensagem de , a qual ele dizia que esperaria a meia-noite americana para me desejar feliz natal.
— Vovô Bee ainda está relutante em vir para cá? — olhei pelo reflexo e vi interessada.
Nos conhecíamos desde a quarta série, quando tivemos que fazer um trabalho de ciências juntas. já era a menina popular naquela época, sempre simpática, aberta para amizades e querida por todos; era completamente o oposto de mim. Mas ela foi capaz de conseguir ficar. Muito disso teve o dedo do meu pai, que quando a viu entrar em casa pela primeira vez, porque íamos fazer o trabalho lá, não a deixou mais ir embora.
Alfred, avô de , já era um conhecido do meu pai, então isso apenas contribuiu mais. Em algum momento, nesse corte maluco da relatividade do tempo, dormia mais do que três vezes na semana em casa, meu motorista da época sempre passava buscá-la quando isso não acontecia, e na escola não desgrudamos uma da outra por mais nenhum momento.
Mesmo que ela ainda tivesse amizade com as meninas populares que odiavam o meu cabelo, minha fissura por rosa e organização ou até mesmo o meu cérebro sempre metódico; mesmo que me julgassem por eu não me interessar em primeiro beijo, bailes, namoros ou sair para ir ao cinema, ela nunca soltou minha mão. Mesmo que tivesse se tornado mais interessante andar com os líderes de torcida e os jogadores do time de futebol, ainda almoçava comigo, ainda dormia na minha casa e fazíamos regularmente a nossa noite de filmes e rodas para falar sobre boybands — essa, na verdade, era mais ela me ouvindo chorar por One Direction do que qualquer outra coisa. Mesmo que eu ainda fosse a única da sexta série a não ter dado o primeiro beijo na casa da árvore que tinha na casa de Evans, me defendia; inclusive quando descobriram minha fascinação por Louis Tomlinson e colocaram lá dentro o Patrick Gordon com uma máscara com o rosto dele para brincar comigo, foi a primeira a me defender.
Enquanto todo mundo me julgava estranha e fazia brincadeiras com o meu jeito, me pegou pela mão, fazendo de mim um livro interessante para ler. Ela leu tudo e, como um exemplar pequeno, guardou num lugar bem protegido em uma estante. Ela era a única a saber cada vírgula da minha vida sem ser meu pai, tal qual uma irmã.
Foi assim que crescemos e fomos responsáveis por unir os Bee e Chevalier. Sempre passando férias juntas, indo para Los Angeles passar dias com a vovó e o vovô Bee, escalar e fazer trilha com meu pai. Absolutamente tudo. Eu sofri mais com a distância dela durante seu ano sabático pós-ensino médio, do que quando vovó descansou — afinal, minha avó já estava bem velhinha e doente, foi algo muito natural.
Antes de eu encontrar esse conforto em , eu só tinha nela, e pareceu muito errado vê-la ali, em minha cama, inteirada dos assuntos da minha família e preocupada com vovô Bee, enquanto eu escondia algo muito importante. Mas era mais do que , claro, então eu não queria simplesmente jogar em cima dela que estava malucamente envolvida com alguém antes de ter certeza. Nem mesmo quando dei meu primeiro beijo, já adulta com vinte anos, eu lhe contei imediatamente. só descobriu sobre o fatídico momento com quando conseguiu me tirar de casa para sairmos beber e durante uma brincadeira de “eu nunca” eu bebi uma dose (o que foi a única vez em todas as rodadas) de tequila depois de dizer “eu nunca beijei alguém dessa roda”. estava junto, então ela só precisou juntar um mais um.
— Está. — respondi, por fim, saindo da frente do espelho e me aproximando dela dentro do quarto. — Ele não quer deixar a casa porque foi lá que viveu toda sua vida boa com ela. — peguei a taça, bebericando um pouco do vinho. — Espero um dia conseguir viver um amor tão lindo quanto o deles foi...
me encarou de cima a baixo, arqueando a sobrancelha.
— Isso nunca passou pela sua cabeça antes, o que tá acontecendo? É o nerd, não é?
— Para de chamar ele de nerd. — retruquei falando contra o vidro em meus lábios. — E não, eu só... Tive um choque de realidade nesse último feriado.
— Hum. Devo dizer “finalmente”? — ela continuou sentada, me olhando desconfiada. — Porque eu pensei que você jamais cairia na real. Daqui a pouco vou ser obrigada a escolher ajudar ou . — dizer o último nome fez ela revirar os olhos.
Ri fraco, levando a taça de volta para minha mesinha e mantendo o celular na outra mão, segurando-o como se isso fosse dependência para minha vida.
— Não sei se devo confiar no seu dedo para escolher meu futuro marido. — fiz uma careta. — pode até ser bonito e ter aquele aparato todo, mas não me convence.
— Ainda bem, não é? Porque não é a você que ele deve convencer. — se levantou. — E vamos deixar fora disso, tudo bem? Sem falar de macho por hoje. — apontou para a porta. — Eu vim te buscar, o jantar está quase pronto.
— Nossa — comecei a caminhar para fora. —, você não quer falar sobre homem? O que houve? Está tendo tempo de sobra pra isso com a sua amiga ?
riu sarcástica, andando ao meu lado no corredor não tão curto e puxou o celular da minha mão. Porém, eu fui rápida, não deixando ela tomar ele de mim.
— !
— !
Estávamos numa parte que já era possível ser vista pela parte de baixo da casa e tanto meu pai quanto Dorota nos chamaram ao mesmo tempo. Ainda mantendo o celular em minha mão e com ela segurando com a outra mão que não tinha a taça, viramos o olhar para baixo.
— O jantar está pronto, meninas.
— Estamos indo. — respondemos juntas e, assim que eles saíram, voltamos a nos encarar.
— Eu sei que você está escondendo alguma coisa de mim. — ela estreitou o olhar. — E se não estivesse preocupada demais com o que quer que seja em seu celular, veria que eu tenho te mandado inúmeras mensagens como sempre.
— Vi todas. — mantive meu rosto impassível, puxando o celular e a mão, me livrando dela. — E agradeço o convite, inclusive, não quero ir numa festa com tema brasileiro. Ainda mais com a . — fiz careta, usando isso para mudar o foco, e continuei a andar.
— Não sei o porquê dessa sua implicância com ela.
— Não é implicância, só temos noções diferentes das coisas.
— Sim, igual eu e você. — usou tom de obviedade, estávamos no meio da escada e eu parei, olhando para ela, que fez o mesmo.
— É diferente. Nós duas crescemos juntas e eu consegui me acostumar com seu jeito. Inclusive, se não fosse a Abott, jamais teria acontecido.
— Não responsabilize a Abott, foi o papel, não ela. — ela revirou os olhos. — Mas isso não muda o fato de você ter ciúmes da . — cruzou os braços, inflando o peito.
— Igual você tem do . — devolvi, agora eu estreitei o olhar, vendo ela murchar. — E me diz uma coisa, seu segurança vai deixar você ir para uma festa dessas?
— Desde quando eu preciso pedir para sair, Bee?
— Ah, não sei... Essa coisa de segurança particular... Nem eu tenho, . — ri um pouco.
— Claro. Você não sai de casa, ! É parte da mobília. — sorriu cínica. — E tem outra, o bonitinho está de férias, tenho certeza que o amigo dele te contou aí nesse telefone — apontou com o indicador — que foram juntos pra Coreia.
— Mais um motivo para eu não ir. Não vai ter segurança.
— Olha — ela respirou impaciente, descendo dois degraus. —, eu fiz o convite. Se você não consegue mais me colocar na sua agenda pra pelo menos fazer o mínimo, tudo bem, mas não fica me cobrando sobre com quem eu ando ou não. Isso é chato. E a é incrível... — seu olhar recaiu em minhas mãos abaixadas e ela moveu o rosto e a sobrancelha para mencionar: — O está te ligando.
me deu as costas e eu a acompanhei com o olhar, deixando em segundo plano o celular que tocava no silencioso em minha mão. Respirei fundo e desbloqueei a tela, tirando uma foto e mandando para ele com um aviso de que estava um pouco ocupada e depois retornaria.
Sendo bem honesta, eu não retornaria ainda naquela noite. Iria dar um tempo na minha afobação e enxergar o que estava bem em minha frente: a minha recente ausência.
Desci rapidamente e logo me coloquei ao lado de à mesa, como sempre demarcada com os nomes e lugares certos de cada um. Eu me sentava à direita do meu pai e ela à minha.
— Eu tenho uma condição. — disse baixo em seu ouvido, enquanto os demais membros dos Chevalier e Bee se ajeitavam. Ela não respondeu com palavras, apenas o olhar me mirando de soslaio. — Você vai dormir em casa comigo.
— Não pode ser na minha?
— , não dormi na sua casa nos últimos doze anos uma única vez, acha que agora vai ser diferente? — ri, me afastando e colocando o tecido em meu colo.
— Argh! Odeio fazer suas vontades pra você fazer as minhas. — ela ralhou.
— Eu sei que você faz por amor. — deitei minha cabeça em seu ombro, no mesmo instante que meu pai se levantou para discursar.
— Saiba que o seu presente é o menor da árvore, OK? — seu tom bravo não me convencia, mas eu fingi que sim.
— Mal posso esperar para ver a tão tradicional Tiffany. — me ajeitei, ficando ereta para prestar atenção em meu pai.
Nosso natal era sempre assim: as famílias juntas para um jantar na véspera, em casa, todo mundo dormia e no dia seguinte abríamos os presentes depois do café da manhã. Geralmente eu passava a noite maratonando Esqueceram de Mim com e os primos na sala de filmes, e desta vez não seria diferente.
A não ser pelo desejo que eu tinha de dividir esse momento com também. Era gostosa a única vez no ano que eu deixava ser melosa, ficando abraçada com ela e dividindo o mesmo pote de pipoca, mas eu não conseguia parar de pensar que poderia ser o corpo dele ali para eu abraçar.
📚
Abbie me puxava pela mão com energia suficiente para animar todo mundo da casa, mas eu não estava muito animada. Não tinha como culpá-la de ser a única criança no meio de tanto adulto, mas a minha prima às vezes conseguia ser mais enérgica que eu. E se tratando de abrir os presentes... Ela com certeza estava animada.
Todo mundo se ajeitou no meio da enorme sala principal da casa, empolgados com a árvore tão grande quanto o ambiente necessitava, e um a um os presentes foram sendo distribuídos. Do meu pai eu ganhei outra viagem para o Alasca, com direito a acompanhante — uma de suas esperanças era que não fosse — e eu lhe dei uma nova mochila para suas escaladas, que agora não eram regularmente feitas apenas comigo. Ganhei muitas outras coisas, incluindo um livro em alemão do meu tio, sobre psicopatas; tio Andrew sempre me dava esses presentes em outros idiomas, dos quais eu pudesse entender, porque ainda achava que meu pai era contra a minha escolha de profissão, e isso acontecia desde que eu era adolescente e comecei a demonstrar esse interesse para ele, um juíz.
Ao trocar meu presente com , ela me pediu para que eu abrisse e lesse a carta, desta vez, apenas quando estivesse sozinha. Então assim o fiz. Para ela eu dei mais um berloque Pandora, para que ela pudesse completar com pingentes de locais visitados ou coisas que lhe faziam sentido. Recebi de suas mãos uma caixinha da Cartier e outra da Tiffany & Co, duas das minhas marcas de joias favoritas. Depois de toda a euforia, todo mundo se ajeitando para conversas afiadas e os jogos divertidos e interativos com Abbie por toda a manhã, eu saí para a área externa da cobertura, apenas com meu celular e o papel de .
Mesmo que eu dissesse e afirmasse com convicção, ainda aos meus quase vinte e dois anos de idade era um pouco difícil não conseguir deixar de lado a lembrança de que em algum lugar do mundo minha mãe poderia estar perambulando. Me perguntava se ela ainda lembrava de mim, se algum tinha tinha me desejado — meu pai dizia que sim, mas eu duvidava que ele dissesse isso apenas para que eu não me sentisse mal —, se em algum momento ela foi verdadeira com ele e realmente o amou como ele merecia. E além de pensar sobre mim, eu também pensava sobre e a ausência de seus pais que tinham falecido em um trágico e famoso acidente quando ela ainda era muito nova.
Nós duas tínhamos coisas a matutar nessa época do ano e não iria importar quantos anos passassem, sempre precisaríamos do nosso espaço para isso, por isso não fui interrompida por ninguém, e principalmente por ela, quando saí para o terraço.
Me sentei perto da fonte que tinha próximo à área de lazer, no espaço redondo e de arquitetura tão comum da antiga Nova York. Coloquei o celular no bolso e abri o papel. Era uma marca registrada de sempre colocar uma cartinha para mim no presente, ela conseguia escrever mais do que cinco linhas, enquanto eu sempre lhe dizia coisas genéricas. Mas desta vez, porém, notei que o papel estava mais cheio.
“,
é dezembro outra vez e nós não somos mais as mesmas pessoas. As minhas tatuagens aumentaram, você mudou o cabelo e nós não roubamos mais a massa de biscoitos da Dorota pra comer tudo escondido e ficar com dor de estômago depois. Muitas coisas mudaram. A vida é assim.
Acho que nós padecemos de tanta dor que, quando os ventos mudam e qualquer sinal de novidade aparece, a gente ainda assusta como se fôssemos aquelas duas garotinhas da classe da senhora Abott. Eu me encho de barulho, de festas, de gente... Você se fecha em si mesma, se mergulha. Sempre abraçamos nossos medos de formas opostas, mas também achamos um jeito de abraçar uma à outra. E eu entendo que o céu está mudando pra você e você teme o que os ventos vão te trazer dessa vez. Mas eu espero que você se permita sentir essa brisa.
Eu espero que você tome a melhor xícara de café da sua vida.
Eu espero que você dê um beijo que te arrebate e te deixe sem rumo.
Eu espero que você ache aquele livro de neuropsicologia que você procura há séculos.
Eu espero que toquem a sua música favorita nos shows que você for com o seu pai.
Eu espero que você dance.
E abrace, e toque, e ame, Bee.
Eu espero que você se deixe ser lida (mesmo que algumas pessoas precisem de um par de óculos redondos pra isso!).
Eu espero que, quando tudo isso acontecer, eu possa estar bem pertinho.
Me deixa ficar, OK?
Eu sinto sua falta, crente. Feliz Natal!
‘You and me got a whole lot of history,
So don’t let it go, we can make some more.’
.”
Finalizei a leitura sentindo uma lágrima rolar em meu rosto e o ergui, olhando para o céu. De lá de cima a neve caía e começava a me cobrir. Dentre tudo o que ela tinha me dito ali em sua caligrafia perfeita, a minha interpretação só me levou a pensar sobre o que eu vinha fazendo.
Se eu estava sendo ausente com e meu pai, como queria e teria capacidade para agregar mais uma pessoa em minha vida?
Como um sinal, do qual eu não entendi, meu telefone tocou. Era . Atendi depois do tempo que tomei para limpar o rosto e sorri ao ver ele do outro lado, na chamada por vídeo.
— Achei que não conseguiria te desejar feliz natal ainda no dia vinte e cinco. — ele logo disse, sorrindo gigantemente. Como era possível aquele sorriso se encaixar na tela?
— Desculpe — iniciei, fazendo uma feição de culpa. —, por aqui é sempre agitado. Te falei que não temos pausas. — em um estalo, notei um fato. — Ei, não é mais dia vinte e cinco aí... Que droga, me desculpa! Você estava acordado me esperando?
Pela minha matemática rápida: era uma da manhã onde estava.
— Não se preocupe. Aqui também é movimentado, estávamos jogando algumas coisas e só agora que vamos para a cama. Te liguei contando com a sorte...
— Entendi. — fiquei sem muito o que desenvolver, olhando em todos os detalhes que ele me mostrava.
— Onde você está? Te colocaram do lado de fora, na neve? — ele arqueou a sobrancelha.
— Não, eu estava tomando um tempo sozinha. — dei de ombros.
— Eu te atrapalhei?
— Jamais! — respondi automaticamente. — Ligou na hora certa.
Notei que atrás dele tinha uma silhueta, num vão que parecia ser uma porta. estava sentado e muito provavelmente o seu celular estava em uma mesa. Em suas costas eu podia ver um guarda-roupas e ao lado, até onde dava ângulo, deveria ser a porta.
Levei um susto quando a cabeça foi colocada para dentro por completo. Era mesmo uma pessoa. Uma mulher, na verdade. Ela disse alguma coisa para ele no idioma deles, um tanto gritado e forte, e eu logo fui sentindo minhas bochechas queimarem, principalmente quando apareceu atrás dela, abrindo a porta e revelando um outro senhor com ele.
— ... Bee! — entendi quando ele falou meu nome, se aproximando. estava vermelho e me mandou um “desculpa” em mímica. apontava para mim e depois para ele, e novamente a única coisa que eu compreendia era meu nome sendo dito de uma forma menos americanizada.
tentava dizer alguma coisa no meio dos dois, até que a mulher se virou para o celular, deixando ele e discutindo. Vi que ela se movimentava para a porta e ao seu lado o outro senhor sorriu para mim.
Fiquei vendo tudo sem saber o que fazer, como reagir. Deveria ter desligado?
— O-oi... — ela tomou minha atenção, tentando dizer em inglês e o senhor acenava. — Pais do Jeon... — apontou dela para ele.
Acenei de volta, me sentindo uma pamonha. Rapidamente o rosto de retornou, ele pegou o celular e agora eu pude vê-lo por baixo, observando seu queixo por ele estar com o celular para baixo. Depois de algumas coisas que foram ditas dele para os pais, tudo se organizou.
— Me desculpa pela confusão. Ninguém sabe o que é privacidade nesta casa... — fez uma careta. — acabou comentando com minha mãe que foi você quem quebrou meu óculos e o resto... Eu acho melhor você não saber.
Não consegui evitar rir, achando graciosa a vergonha dele.
— Tudo bem. Achei bem divertido.
— Então... Essa é minha mãe. — mostrou ela, ainda sorridente. Sua mãe lhe disse alguma coisa e insistiu que ele me dissesse. — Ela está dizendo que você é muito bonita e que por isso não vai ficar brava por ter quebrado o óculos que pagou caro.
Quis esconder meu rosto embaixo de toda a neve que cobria o chão.
— Diga a ela que eu agradeço e sinto muito pelo desastre. Posso recompensar de outra forma. — respondi, ouvindo a risada de .
disse algo breve e o outro logo berrou mais coisas por cima. Pela expressão da mãe dele e a risada do seu pai, entendi que ele não tinha traduzido o todo e cuidou disso.
Novamente ela insistiu que dissesse mais alguma coisa e antes que ele tivesse tempo de negar, sussurrava alguma coisa no ouvido dela.
— Você compensa cuidando bem do meu neném. — ela disse, sorrindo enorme, igualzinha a ele. E ao invés de me engolir com seu sorriso, ela me ofereceu um dos maiores aconchegos que eu já senti. — Meu neném, seu neném.
Ele resmungou algo em protesto, olhando feio para , que logo saiu correndo do quarto.
— Nosso neném é precioso. — seu pai disse, parado atrás de sua mãe e com as mãos nos ombros dela.
Olhei de para os dois e levei um tempo sorrindo boba, vendo ele todo desconcertado, até responder:
— Diga para eles que eu vou cuidar sim. Se você deixar.
— ... — sorria, mas seu tom era preocupado. Ele já tinha entendido como funcionava comigo, mas não precisava ter medo, não estava sendo nem um pouco difícil dizer aquilo.
— Pode deixar, eu falo, Bee! — ouvi o berro de .
Os pais de ouviram a tradução dele e se despediram definitivamente. A mãe dele ainda teve tempo de selar sua bochecha com muito gosto. Porém, quando ficamos a sós de novo, meu pai apareceu na porta do quarto berrando meu nome.
— Enfim a sós... Me desculpa mesmo. — ele começou, ajeitando os óculos.
— Não tem problema. Eu gostei. — sorri genuinamente. — Mas agora preciso ir, meu pai está me chamando.
— Ah... Tudo bem. — parecia querer dizer alguma coisa, mas eu não instiguei. Meu pai estava se aproximando mais e eu não queria que ele tivesse esse acesso agora. — Quando tiver um tempo, pode me ligar...
— OK! Eu tento. — me levantei, batendo na roupa e olhando da tela para frente, antes de encarar sua imagem novamente e me despedir. — Feliz natal.
— Pra você também. — Seu sorriso não foi aberto, foi singelo, mas era lindo de qualquer forma. — ...
— Sim?
— Estou com saudade de você e-
— Eu também. — interrompi. — E minha resposta para os seus pais foi verdadeira, neném... Se cuida. Tchau. — desliguei rápido, erguendo o rosto para meu pai.
— Com quem estava falando? — sua pergunta foi estreita, me deixando sem reação. Ele não esperou, inclusive. — Não sei porque ainda pergunto. — estendeu a caixa para mim. — Faltou eu te dar isso. Chegou com seu nome há alguns dias e Dorota não quer me contar de quem veio. Eu fiz uma inspeção de raio x e está tudo certo. Nesse papel estava pedindo para te dar no natal.
Peguei de sua mão o pedaço de papel pequeno e analisei a caligrafia, não reconhecendo ela. Meu pai não esperou, me deu as costas assim que tomei a caixa em minhas mãos. Sentei novamente e abri o laço, tirando a tampa em seguida. Ali dentro tinha um globo de neve com uma maquete de Nova York e a caixinha com os óculos que dei para .
Ambos estavam em cima de uma carta que tinha uma única frase.
“O amor não se vê com os olhos, mas com o coração” — Shakespeare, William.
Sorri, apertando o papel comigo. Talvez fosse sobre isso que queria falar e eu não deixei. Mas foi melhor assim, abrir isso sozinha me fez sentir cada uma das palavras.
Capítulo 9: Minha garota
Tinha muita gente.
Não era um “muita gente” banal, de exagero de ponto de vista, era um “muita gente” de muita gente mesmo. Mas e sua presença VIP nos colocaram dentro da boate em um piscar de olhos, sob reclamações de quem estava na fila esperando há horas.
Para minha felicidade, ela tinha um camarote cheio de regalias, fechado somente para nós e , e mais um cara de nome difícil que eu não fiz tanta questão de me enturmar, ele parecia elétrico demais e eu decidi manter distância. Enquanto os outros dois não chegavam, fiquei sentada no sofá, bebericando alguma coisa com gosto de desinfetante e álcool, uma bebida escolhida pelo meu instinto viciado em rosa. Em algum momento, desceu, enturmada como sempre — e eu tinha a certeza de que ela estava se esforçando ao máximo, porque alguma coisa estava errada em seu jeito um tanto apático, totalmente fora do comum.
Somente me senti animada quando o meu celular tocou e eu vi a chamada de vídeo de , logo atendendo-o.
— Olha só, você está em um lugar cheio de gente! — ele sorriu empolgado, dizendo diretamente quando conectamos a ligação.
— Não por escolha própria. Prefiro meu pijama e a minha cama.
— Sua cama não te permite diversão, Bee.
— Você não diria isso se provasse ela. O colchão é macio, tem esteira de massagem e também esquenta. E eu tenho um cobertor bem gostoso, antialérgico, que é muito mais quente do que essa roupa mais curta do que as minhas pernas. — reclamei, respirando fundo. Ao final, me olhava com as sobrancelhas erguidas e curioso. Eu simplesmente tinha mencionado minha cama para ele daquela forma, sem me dar conta de um possível duplo sentido. Minhas bochechas esquentaram na mesma hora que notei.
Mas antes que eu ou ele pudéssemos sair desse momento constrangedor, senti algo pesado em meus ombros, vendo pela imagem no celular erguido à altura do meu rosto a feição sorridente de .
Ele estalou um beijo na minha bochecha e então perguntou:
— Está falando com seu pai? — olhou para a tela e franziu o cenho ao ver . — Vocês se conhecem?
Notei como ficou sem jeito ao vê-lo.
— Sim. — respondi. — E vocês dois também, pelo visto. — ri fraco, um pouco nervosa e preocupada pela forma um tanto dada que era comigo e como poderia reagir a isso.
— Quem não conhece o melhor jogador de jogos on-line da Saint Peter? — soprou um riso nasalado e arregalou os olhos, ainda mais desconcertado. — Mas é segredo, MB, a identidade dele é desconhecida. — sussurrou, como se fosse um grande segredo que so ele detinha.
— Ah... — murmurei, um tanto confusa e em pânico por ele ter me chamado por um apelido tão pouco usado. MB era algo que nem mesmo usava com tanta frequência. Um trocadilho com “My ” que surgiu de e vez ou outra usava (quando ele se dispunha a tentar flertar ou ser carinhoso demais comigo). — Legal.
, sendo meloso demais, apertou meus ombros com o seu braço musculoso, me levando mais para perto.
— Eu atrapalhei alguma coisa? — perguntou, soando realmente inocente. — Como estão conseguindo conversar com essa música alta? E por que você está aqui em cima e não lá embaixo dançando?
— Estávamos-
Não pude terminar de falar, apenas fiquei olhando para e sua feição travada.
— Cara, me desculpe, mas eu vou ter que roubar a . A minha garota não pode ficar aqui em cima sozinha, é uma festa! — tomou o celular da minha mão.
— ... Eu... — tentei pegar de volta, mas ele virou a tela para mim.
— Diga tchau, MB.
— Me desculpa. — disse quase em uma mímica para e ele apenas acenou.
Quando finalizou e me devolveu o celular desligado, eu me senti derrotada. Tinha combinado com que desta vez, à meia noite, ele estaria comigo. Não pudemos no natal, mas a chegada de um ano novo seria diferente.
Ou era para ser.
— Achei você! — vi surgir pela escada, sorrindo abertamente. Ele podia, naturalmente, afetar qualquer pessoa com aquele sorriso perfeito, até mesmo a mim (confesso), mas desta vez eu não senti efeito algum. Queria ser engolida por outros lábios esticados de orelha a orelha. — Ei, ! Está bonita hoje... Que milagre a fez para te tirar de casa? — se aproximou de mim e eu me levantei, vendo que o cara de nome estranho estava logo atrás e continuava olhando para minhas pernas.
— Pois é, . Milagres acontecem. — respondi fraco e automaticamente me colocando mais perto de , porque ainda que ele sempre tivesse expressado abertamente o desejo sobre mim, era o rosto conhecido e mais confiável que eu tinha ali (junto de e , claro). E aquele outro cara estava mesmo me deixando nervosa.
No fundo, honestamente, queria estar me enfiando contra a proteção de .
— Você queria alguma coisa, ? — perguntou, passando o braço por mim, sendo protetor.
— Ah... Eu vim ver com você o que vamos pedir. disse que já vai subir.
— Hoje vamos pedir o que a minha garota quiser. — ele me olhou sutilmente e sussurrou em meu ouvido: — Fica tranquila, tô aqui.
— Então vamos todo mundo tomar água ou coca-cola sem açúcar. — brincou, recebendo um olhar estreito de . — Tô brincando, . Desculpa...
— Tudo bem, . — franzi o nariz, me sentindo mais à vontade assim que surgiu com sua falsa empolgação e o outro cara desceu. — Não sendo a bebida rosa com gosto de desinfetante, pode ser qualquer coisa.
se juntou a nós e me olhou estranho assim que se afastou deixando outro beijo em mim, desta vez na testa. Ele e desceram para pegar a bebida, sendo, como sempre, galanteador com ela e já marcando o seu território. Mas eu notei que minha amiga não estava tão afim desta vez, tinha algo muito diferente.
Nos aproximamos da grade e eu cruzei as pernas para evitar mostrar demais, mesmo que a saia fosse bem colada e estivesse usando um shorts por baixo.
— Você decidiu finalmente deixar o feliz? — ela perguntou sem me olhar.
— Não... Você sabe que ele sempre foi caloroso assim. — suspirei, vendo-o me lançar um beijo lá de baixo. — Mas eu também aproveitei a situação, aquele cara de nome estranho estava com dificuldades de enxergar meu rosto, ele deve ter confundindo com as minhas pernas.
— ... — se virou para mim. — Se você quiser ir embora, nós vamos, OK? Me desculpa ter te forçado a vir.
Olhei de cima a baixo, franzindo o cenho.
— Tudo bem. Eu até gostei e... Temos e aqui, não tem como dar tudo errado. — menti, já tinha dado errado desde que apareceu ao meu lado e eu sabia. — Mas isso não significa que eu vou embora com ele hoje. A razão de eu ainda manter contato com o é porque, mesmo sendo atirado desse jeito, ele sabe do limite e nunca me desrespeitou.
— Certo. Porém, já sabe, só me pedir e... — fez um movimento com a mão e eu assenti, entendendo que era sobre ir embora.
— Eu tô bem. Você que parece louca para fugir daqui. — brinquei e toquei sua testa. — Está bem? Não está com febre.
— Estou. Só... Acho que enjoei desse lugar. — ela voltou olhar para baixo e eu acompanhei. No térreo, e eram as celebridades, mesmo que estivessem apenas interagindo entre si. Qualquer pessoa ali daria tudo para estar na companhia deles e ter qualquer contato com um ou outro, de qualquer forma. — Deve ser a música... ou as pessoas...
As pessoas, eu apostaria.
Apoiei os cotovelos na grade e suspirei, olhando meu celular e a ausência de mensagens.
— É, as pessoas…
Estava quase decidida a retornar para , querendo explicar alguma coisa sobre a aparição de , como se eu devesse isso, quando senti uma mão pesada no ombro, seguido do timbre melódico e animado de .
— Estou vendo certo? Ou a bebida que me deram tinha algum alucinógeno? “Livros” Bee? Uau! — ela me mediu por inteira. — Ou devo chamar de Chevalier-Bee? Porque essa roupa não saiu do seu closet rosa, tenho certeza.
— Não mesmo, porque eu fiz a bonitinha aqui sair comigo em compras! — se pendurou em mim e eu tinha as duas alugando minha cabeça.
— Então a gente tem que honrar esse dinheiro gasto em Dior, minha querida, e isso não vai ser aqui.
sorriu para e eu me perdi. As duas me pegaram cada uma por um braço e foram me arrastando escada abaixo. Ao terminar o último degrau e passar pelo segurança do camarote, fui recebida por . Ele piscou para e ela praticamente me “empurrou” para ele.
Eu poderia ter olhado feio para e começado uma discussão ali mesmo sobre os motivos pelos quais não tínhamos a menor chance de conviver pacificamente, mas não queria levar um chute dela com aqueles coturnos de solas tão grossas. E eu poderia, inclusive, sair correndo de para ligar para , mas não queria me perder àquela hora e ocasião em Nova York. Não sabia onde estava e não era em Manhattan.
Fosse lá o que ele estivesse pensando, teria que ficar para depois. E muito depois. De preferência BEM depois de todos os shots de tequila que consumi.
📚
Meu corpo estava mole. Minha dignidade se tornou algo desconhecido.
Puxei o cobertor para cima e vi que usava apenas o cropped e calcinha. Rapidamente me cobri, assustada e com uma dor de cabeça surreal, exatamente quando ouvi batidas rápidas na porta do quarto. Olhei para a madeira branca totalmente receosa e quando a maçaneta girou e o corpo alto e grande de entrou, eu berrei.
Ele se assustou, quase caindo para trás com a bandeja cheia de coisas.
— Porra, Bee! Que susto. — ralhou, mas continuou se aproximando. Deixou a bandeja aos meus pés e se ajoelhou do meu lado.
— O que você está fazendo aqui? — perguntei imediatamente, me encolhendo mais por dentro do cobertor. Olhei para tudo rapidamente, em desespero. — Você... Eu... A gente...
— Não! Claro que não, MB! — pareceu chateado com a suposição. — Vocês três beberam demais e você não me deixou te levar para a casa da . Disse que tinha que dormir com o senhor “Trovão”... Então viemos todos para cá.
Não sei dizer o que, de tudo o que ele disse, que me deixou apavorada.
“Viemos todos para cá”.
estava dormindo na minha casa e eu nunca nem tinha lhe chamado uma única vez para um chá.
e no mesmo teto. No meu teto. Numa virada de ano, eles SEMPRE ficavam juntos.
sem camisa na minha frente, dentro do meu quarto, com o cabelo úmido.
Eu ter falado sobre o senhor Trovão para ele. Isso era, no mínimo, vergonhoso.
— O que tanto eu te contei bêbada? — fiz manha, relaxando mais o corpo.
— Tudo e nada ao mesmo tempo. Quando você fica bêbada só sabe rir. É muito fofo, mesmo que seja errado. — franziu o cenho. — Mas fica tranquila, não me contou o seu segredo para todas as notas máximas, não vou falar nada para a Evans.
Fiz uma careta, respirando fundo.
— Quem tirou minha roupa?
— Você mesma. — ele riu e se sentou no chão ainda ali ao lado. — Quando chegamos, eu tive que te trazer no colo porque você dormiu dentro do carro. E aí, quando te coloquei na cama, você passou mal e eu tive que te colocar no banho.
— E eu tirei minha roupa lá? — assentiu. — Depois...
— Te coloquei na cama, sequei seu cabelo e você dormiu. Mas antes de apagar me expulsou daqui e falou pra eu dormir no corredor... — ele fez uma pausa, passando a língua pelos lábios. — Você falou que — riu fraco. —, além do senhor Trovão e a , só ia dar espaço na sua cama para o neném.
Paralisei, não respirei, me perdi.
! Eu precisava falar com ele.
— Certo, entendi. Obrigada, . — agradeci, passando a mão no rosto. — Eu preciso me levantar e tomar um banho decentemente. Pode me dar licença?
— Claro. — se levantou. — Eu vou ver se o já acordou e chamar ele para irmos embora... Se precisar de alguma coisa, é só chamar.
— Chamo sim, pode deixar... — tentei não parecer nervosa demais.
deixou um beijo na minha testa e saiu. Assim que ele fechou a porta, eu levantei correndo, indo até o espelho do meu closet e vendo minha situação. Ele, ao menos, cuidou bem de mim e eu não parecia uma louca com tudo fora do lugar.
Voltei correndo para o quarto, procurando meu celular. Demorou e isso me gerou muito desespero, mas o encontrei dentro do bolso do sobretudo que usei.
Tinha muitas notificações. Abri uma a uma.
“Onde você está?” — .
“ Bee, sai desse banheiro” — .
“MB, eu tô preocupado... Cadê você?” — .
“Eu não acredito que você saiu para uma boate quando eu estou do outro lado do mundo, Bee!” — .
“Você está linda” — .
“Vai ser a capa do periódico de férias” — .
Fui correndo uma por uma, ansiosa por uma em específico, que ficou por último.
tinha me mandado um emoticon preocupado e “estou no aeroporto agora, quando chegar em Nova York te mando mensagem”. Nada mais. Então abri a nossa conversa.
— Merda! — berrei, me sentando no chão, largada e decepcionada. — Não... não... não... — fui passando a conversa, vendo os inúmeros áudios que mandei. Abri um.
“Quando você voltar eu posso te mostrar a diversão que é minha cama”, eu estava claramente fora de mim, embolando tudo. “Mas não nesse sentido, tá? Shhhhh... Isso é... Como que fala? É... Eu não sei”, senti meu coração acelerar.
Que merda eu estava pensando?
Abri outro.
“Olha, eu queria te dizer que... Não que eu tenha que te dar satisfações... Mas... O ... Ele... Ele pode ser bonito, todo musculoso e flertar comigo sempre... Ele faz isso desde o primeiro semestre quando nos conhecemos. Só que não passa disso, tá? Eu e ele... Eu e ele não combinamos em nada! Não do jeito que eu e- Bee!”, a voz de surgiu no meio do áudio, berrando e, ao que parecia, batendo na porta. “Sai desse banheiro agora! Você veio para se divertir! Quem está aqui somos nós. Quem não está, tá longe”, ela se embolou e eu cortei o áudio.
Tentei abrir mais um, o último que eu tinha mandado, e suspirei.
“Me desculpa, eles não sabem o que é privacidade. Mas... Eu prometo que quando você voltar a gente não vai ter nenhuma intromissão. Se você ainda quiser... Fica bem, se cuida” , minha voz já era mais calma, mas eu parecia muito triste.
— Que droga... — resmunguei, encostando nos pés da cama. Meu celular não parava de apitar com notificações do instagram e, quando eu abri, me senti uma idiota sem tamanho.
Beber não era para mim, definitivamente.
A foto postada já acumulava milhares de curtidas e centenas de comentários. Não sei e não me lembro em que momento Snoop Dog apareceu na boate, mas ele estava ali entre mim e , com agachada no chão, atrás dele e do meu outro lado, próximo demais. Não fiz questão de abrir os comentários, apenas passei o carrossel, vendo que tudo piorava. Na última foto, beijava minha bochecha do jeito que ele sempre fazia.
A legenda só mostrava como eu não sabia o momento e como me expressar. Como eu esperava que entenderia que o “ninguém é melhor do que você” estava ali propositalmente para dizer que tudo aquilo estava sendo insuficiente sem ele? Por que era isso que eu queria dizer quando escrevi, não era?
Fechei os olhos, apertando o celular contra o peito.
Capítulo 10: Deixa?
Já fazia mais do que vinte minutos que eu estava andando de um lado para o outro atrás da traseira de Veronica, segurando o celular em minhas mãos — ou melhor, apertando-o contra meu peito, algo que tinha se tornado um costume. Era o dia de retorno às aulas, um novo semestre, claro, e eu tinha chegado mais cedo do que nunca antes, considerando o começo do curso até aqui. Minha ansiedade tinha nome e usava óculos com lentes grossas.
Segunda semana de janeiro e já tinha chegado em Nova York há um bom tempo, mas desde então não nos vimos e ele parecia distante, sempre ocupado. Eu sabia que isso poderia acontecer, porque agora ele estava no seu último semestre, prestes a se formar, e isso lhe traria muito mais preocupações. Como a necessidade de já começar a ter escritórios para estagiar. Descobri pelas redes sociais que sua mãe veio junto, então ele passou boa parte do tempo com ela, até que fosse embora no domingo. Dava para compreender e me esforcei o máximo para não ficar atrás dele como uma maluca.
Porém, quando cheguei mais cedo, sabendo que o primeiro dia seria dedicado à recepção das admissões de inverno, e o vi entrando direto em seu prédio, senti meu peito ser esmagado, como se ele estivesse claramente me ignorando. Não consegui focar em mais nada, até me ver obrigada a deixar minha caloura com e ir até meu carro, decidida a ir embora. E eu teria ido se não tivesse com um comichão insuportável me dizendo que seria abandonar um problema, que não resolveria a minha situação e isso só alimentaria um trauma. Ser racional e estudar a mente humana poderia ser o meu espeto de pau.
Com essa confusão interna, fiquei ali boa parte depois do almoço, atrás de Veronica, igual uma barata tonta, sentindo o bolo da ansiedade em minha garganta.
poderia ter entendido tudo errado sobre e eu só queria a chance de explicar. Mesmo que o orgulho estivesse falando mais alto.
— Bee? — ouvi uma voz familiar me chamar e ergui o rosto, vendo se aproximar com uma cara estranha. — Você está bem? Parece um pouco nervosa...
Engoli a saliva ardida e tentei relaxar o corpo. Como eu poderia confessar para que estava esperando o melhor amigo dele aparecer depois de ter ficado desaparecido o dia todo? Inclusive, era estranho não estar vendo os dois juntos, porque isso sempre acontecia.
— Sim... Estou bem. — respondi baixo.
— Mesmo? — ele insistiu, tentando olhar em meu rosto, que eu insistia em desviar.
— Sim. Está tudo bem, estou esperando . — confessei, mas sem deixá-lo olhar em meus olhos.
— Ah, você falou com esse fujão hoje? — elevou um pouco mais a voz.
— Fujão?
— Sim, você não soube? Ele meteu o pé da Saint Peter e largou o calouro nerd comigo. — ele parecia frustrado e eu fiquei surpresa. — Eu acho que tem algo a ver com a entrevista do estágio, porque ele parecia nervoso quando me disse que ia ver alguma coisa gigante e velha.
Imediatamente minha mente vagou para o dia que fomos até a Estátua da Liberdade e meu primeiro instinto foi de entrar em Veronica e querer arrancar dali com muita pressa.
— Que horas foi isso? — perguntei, já em alerta.
— Bem, ele teve a entrevista às onze e falou a última vez comigo tem uma hora... Considerando a distância de onde estava pra voltar para a ilha, ele não deve nem ter chegado na estação de South Ferry.
Olhei no relógio, vendo que o ponteiro marcava exatamente duas da tarde.
— Muito bem, obrigada! — dei as costas para ele, ouvindo-0 resmungar confuso. Entrei no carro e logo liguei o motor, dando a ré para sair da vaga. ainda estava parado no mesmo lugar, segurando as duas alças da mochila.
— Bem que ele disse, você some aí dentro. — disse, analisando todo carro.
— — chamei, ganhando sua atenção. —, obrigada!
Agradeci sem saber exatamente o quê e cantei o pneu para sair do estacionamento, vendo o senhor Saanders, o vigilante que ficava na guarita da entrada, ralhar comigo.
Dirigindo o mais rápido e cuidadosamente possível, ajustei o endereço no GPS. Quando vi o tempo até o Battery Park, senti meu coração acelerar mais ainda. Sair de Inwood, onde fica a universidade, para chegar do outro lado, passando do Tribeca, estava dando uma hora e dez minutos de trânsito por conta do horário e de alguma coisa que o computador de bordo me alertou, mas eu ignorei.
As balsas para a Ilha da Liberdade iam até às três e meia e as filas sempre eram enormes.
Só queria não desencontrar de , mesmo que fosse uma loucura pensar que isso seria possível. Ainda mais com o meu celular quase desligando. Porém eu não desisti.
Assim que parei o carro de qualquer forma numa vaga do estacionamento tão lotado, saí correndo, apenas com a chave na mão, voltando no meio do caminho porque sabia que seria necessário pelo menos meu ID e um cartão para acessar a balsa, se precisasse.
Na verdade, eu iria precisar.
Não sei exatamente o que estava me motivando a isso, me fazendo gastar mais de uma hora para cruzar toda a ilha e avançar sinais vermelhos, mas eu tinha o feito e não parecia querer parar. Não até poder ver em minha frente e berrar que não era nada para mim, e se isso não fosse o motivo para ele ter sumido, eu aproveitaria para mergulhar no mar e me esconder nas profundezas.
Como esperado, a fila estava enorme e eu tinha chegado a tempo da última balsa, porém não o suficiente para conseguir subir nela. A capacidade total foi rapidamente completada e eu, como última da linha de espera, fiquei para trás. Entretanto, nem tudo estava perdido, encontrei um banco e ali sentei, ficando a postos para, se caso ele aparecesse, eu pudesse lhe surpreender — ou me surpreender, podia ser que fosse um daqueles casos em que o cara tem uma namorada no país natal, esperando, e desta vez ela tivesse vindo, por isso sua mãe passou uns dias em Nova York também, vai saber.
Esperar pelo pior foi uma maneira de me preparar para decepções e não só com ele, para qualquer um. Até hoje eu acredito no mantra de que pode facilmente escolher alguém mais popular e descolada do que eu, tipo a — estilosa, divertida, simpática, amigável, adulta, madura... muito mais interessante do que alguém que ainda tem medo de borboletas.
E isso me fez refletir a baboseira que era eu ter cruzado Manhattan e estar ali, esperando, vendo o relógio passar os ponteiros, acreditando em clichês. Eu deveria me acostumar com o abandono. Não tinha muito o que se esperar quando eu já era uma pessoa que foi abandonada por quem me colocou no mundo.
Deve ser por esta narrativa real que eu preferia mil vezes os livros científicos aos romances genéricos que sempre se tornavam filmes da Netflix.
— Você também não conseguiu chegar a tempo?
O timbre. O sotaque. A forma serena de chegar falando.
Era ele ou eu estava ouvindo coisas.
— Achei que você não gostasse de pontos turísticos.
se sentou ao meu lado e eu o encarei.
— Ela continua sendo velha e gigante. — respondi.
— Não de forma pejorativa, mas devo concordar.
Me sentei de forma ereta, olhando para o horizonte à nossa frente. Não sabia o que dizer, como começar e o que exatamente trazer como assunto.
— ... — me chamou e eu me senti envergonhada demais, um ponto de realidade caindo em minha mente: o que eu tinha feito poderia ser facilmente analisado como patético, ainda mais sendo por um momento de desespero. — me contou.
Sim, realmente foi patético da minha parte.
— Você sumiu. — deixei sair rápido, ainda sem encará-lo. — Eu apareci e você sumiu. — repeti, sendo um pouco mais lenta. Virei o rosto para ele, vendo-o paralisado no lugar. — Então eu pensei que fosse só a correria da sua nova fase, mas não parece que isso seja o grande X da questão.
— Eu tive um dia ruim.
— E a semana? — rebati, não sabendo de onde estava vindo tanta “coragem”. Notei que meu tom o fez recuar, então contornei: — Olha, eu sei que não devemos nada um ao outro, mas eu não sei se... — suspirei, tomando um fôlego. — não é nada, OK? Se foi isso que te assustou, não precisa se preocupar. Nós nunca tivemos nada.
Percebi o quão repetitiva fui, mas eu precisava que ele entendesse que “nada” realmente significava coisa nenhuma.
se virou para frente, curvando o corpo e apoiando os cotovelos em seus joelhos. Ele passou as mãos no rosto e me olhou apenas num virar de rosto.
— Você parecia bem com ele... E... Eu não tenho certeza ainda se as coisas darão certo e se vou conseguir ficar, , então fiquei assustado. Os pais dele têm empresa aqui, eles têm condições para mantê-lo pelo tempo que for nos Estados Unidos. Eu não. Eu e temos bolsa. Tudo é custeado pelo programa, diferente de , ... Diferente de todos os outros, nós dois e precisamos correr de outra forma para nos mantermos.
— Nem tudo se resume a dinheiro... — disse baixinho, me sentindo trêmula pelo tom que a conversa tomou. — Você ainda tem tempo para conseguir e-
— Sabe quantos escritórios eu já tentei? — ele me cortou, mantendo a voz no mesmo volume. Era uma retórica, claro. — Três só de dezembro para cá. Voltei mais cedo de Anyang porque tinha esse processo em um escritório no Bronx, mas não consegui. Eles não querem coreanos, eles não gostam de quem não é nativo.
— Eu gosto. — soltei sem pensar, num fio de voz. arrumou o óculos em seu rosto e eu senti meu coração, totalmente apertado, chacoalhar e vibrar, como se fosse uma festa lá dentro.
— , eu não posso ser para você o que você merece. — seus olhos caíram e ele começou a encarar o chão. — Eu tive dias ruins e não queria que você me visse desmotivado, por isso sumi... Minha mãe veio comigo porque... porque... — suspirou. — Ela não está legal e achamos que seria bom ela sair um pouco de Anyang... São muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo. Então hoje, quando te vi com , e , reparei que não me encaixo e que eu sobro. Mas isso não é responsabilidade sua e antes que a gente prossiga, tenho que ser honesto e ver que talvez eu não seja o melhor pra você.
— ... — continuei trêmula.
— Olha só como você se divertiu no seu ano novo com todos eles. Você estava ótima, ! Feliz. E isso é o que importa. Não tem espaço pra mim e eu não quero tornar tudo ruim se eu tiver que voltar para trás. Não quero ser uma memória ruim, que você irá tentar esquecer.
Instintivamente, eu saí do banco, parando em sua frente, ajoelhada. Tomei o rosto de com as minhas mãos, fazendo ele me encarar.
— Não fala mais isso! Nunca mais! — disse firme, fixando meu olhar no seu. — Eu não me importo se você é daqui ou de Plutão, eu me importo de te ter do meu lado. Porque é isso o que eu quero. Seja rico ou pobre, empregado ou desempregado. Nada disso importa, porque nenhuma dessas coisas é o motivo real pelo qual você tem me feito tão bem. Se você quiser compartilhar comigo os seus dias ruins, eu vou estar aqui para isso, eu quero estar! Quero que você aprenda a confiar em mim... E se tem um lugar em que você mais tem se encaixado, esse lugar é na minha vida. Então para de ser bobo e me deixa cuidar de você. Eu prometi pra sua mãe. Me deixa cumprir com a minha promessa.
Senti meus olhos marejados e vi que tinha os dele um pouco avermelhados, igual à pontinha do seu nariz. Ele parecia estar destruído por dentro, era muito mais sério do que suas palavras ensaiadas me disseram e tudo o que meu coração queria naquele momento era cuidar do machucado que o afligia, fosse grande, pequeno, em pedaços e sem me importar com qualquer motivo. Só queria cuidar dele.
Não esperei mais tempo e selei seus lábios, logo sentindo a euforia crescer dentro de mim. O seu beijo tinha me deixado viciada e finalmente pude matar a saudade dele, em um deleite sem pressa, sem precedentes.
Quando senti a falta de respirar, nós nos afastamos lentamente. tinha um mínimo sorriso em seus lábios.
— Me desculpa ter feito você ficar preocupada. — pediu, colando sua testa à minha. Era uma das melhores sensações que eu já pude viver ter o seu nariz esbarrando contra o meu. — Senti sua falta.
— Tudo bem. Só não faz mais isso, hein... — fingi estar brava, beijando o canto de seus lábios. — Vem, vamos. Vou te levar para casa.
Me levantei, estendendo a mão para ele.
entrelaçou seus dedos aos meus imediatamente e se levantou, me puxando para outro beijo, este, porém, menos calmo. Era um beijo de saudade, que eu acabei descobrindo como classificar por conta da sensação. Outra vez faltando o ar, separamos as bocas e ele continuou a beijar meu rosto, até chegar na testa. Enfim começamos a andar.
— Você quer passar o resto da tarde comigo? A minha cama não é de casal nem tem esteira de massagem e aquecedor, mas é divertida e dá pra assistir filme. No bom sentido. — ele disse e eu senti minhas bochechas ruborizadas com a referência.
Resmunguei manhosa, virando o rosto contra seu peito e ouvindo-o rir, deixando outro beijo em mim, agora em minha têmpora.
— Eu quero sim, mas nós podemos esquecer essa parte? — pedi, logo me lembrando de outro detalhe para mudar o foco. — Temos outra coisa mais interessante para nos lembrar…— ergui o rosto para olhar em seus olhos. — E se chama Shakespeare.
O rosto de ficou vermelho, mas ele sorriu desviando o olhar e eu já sabia que isso se tratava da sua timidez.
Ele ficou quieto e nós finalmente chegamos na Veronica. Entrei e esperei ele se acomodar, para então dar a partida e arrancar dali, agora sem nenhuma pressa. Em um outro momento, minha mente estaria 100% na empolgação de mostrar as bibliotecas e todas as instalações para o calouro ou a caloura que tinha sido designado a mim, mas desta vez eu confiei inteiramente em , porque minha mente estava começando a repartir espaços, dando um bem aconchegante para , inclusive.
Observei o trânsito, sem avançar semáforos vermelhos, e não deixei de olhar para ele sorrindo, principalmente quando, tomada pela saudade de seus toques e do beijo, vez ou outra me inclinei para beijá-lo pelo tempo que dava. E isso foi uma troca, em um dado momento, passado do meio do caminho, pousou sua mão em minha perna e se inclinou para o meu lado, beijando abaixo da minha orelha de forma carinhosa.
Reprimi um gemido arrastado pelo prazer que foi ter ele ali comigo, de senti-lo outra vez. Ainda mais matando a saudade do seu perfume.
— Eu gosto do seu cheiro de pêssego.
Não pude controlar, minha boca se moveu sozinha e o som da minha voz pareceu melódico demais, assim como as batidas do meu coração.
se encostou no banco outra vez e eu senti sua mão apertar levemente a minha coxa, onde estava posicionada.
— Então eu não vou mudar o perfume. — respondeu, somente com o rosto virado em minha direção.
Tal qual a correria de carros do lado de fora, dentro de mim tinha algo que cintilava e precisava se espremer para caber em meu peito, porque todas as vezes que seus olhos encaravam os meus, eu sentia algo vasto de novidades me engolindo. era o meu oceano, a cada momento com ele alguma coisa nova surgia, uma batida diferente no meu coração ecoava dentro de mim. Mas diferente do mar que em seu mais profundo possui a escuridão, ele tinha e me trazia luz. Não existia nenhum porquê para eu ter medo de estar com ele.
O semáforo abriu e eu continuei com o carro, ficando em silêncio pelo tempo da minha reflexão, ouvindo a voz de Freddie Mercury iniciar uma música muito propícia para aquele momento. Crazy Little Thing Called Love tinha uma letra muito intuitiva e ouvindo ela, ao lado dele, me fez querer dizer algo que eu somente dividia com meu pai e .
Eu senti a necessidade de compartilhar minha vida com ele.
— Quando minha mãe foi embora, meu pai jurou que jamais amaria outra pessoa. Não foi para me proteger ou se dedicar a mim. — segurei firme no volante, olhando a rua e prestando atenção aos sinais de trânsito, ainda que meu foco em segundo plano fosse falar o que estava entalado no meu peito, pensando que isso, de alguma forma, pudesse ajudá-lo a continuar encarando o que quer que fosse o acontecido com sua mãe. — Ele fez isso porque desacreditou. E eu não posso julgá-lo... Talvez chegar à conclusão que viajar mundo afora seja sua forma de continuar procurando por ela, tenha, de algum modo, feito com que eu também desacreditasse. Então... Se tornou difícil deixar qualquer pessoa entrar, passar páginas. Não falamos eu te amo um para o outro. Substituímos isso para uma forma menos vaga, porque o amor não deveria ser assim se é algo tão forte e direcionado. Tudo tem uma dimensão, até o infinito se define. Dizer que queremos estar um com o outro é a forma mais honesta de demonstrar qualquer sentimento. — virei meu rosto, encarando-o. — E eu nunca quis tanto estar com alguém, assim como quero estar com você.
Capítulo 11: Efeito borboleta
— ? — ajeitou o óculos, tão surpreso quanto atrás de si, ao me ver. Ele olhou no relógio e depois para mim novamente. — Você está-
— Um dia adiantada, eu sei. — ri fraco, apertando a alça da mala ao lado do meu corpo. — Me desculpa, minha casa está infestada de... — diminuí mais a voz. — borboletas. É coisa do bairro inteiro... O primeiro lugar que eu pensei para fugir foi aqui.
— Borboletas? — ele repetiu, ainda confuso. estava terminando de tirar sua gravata e fez o mesmo, repetindo mais para si.
Enchi o peito de ar para gerar coragem.
— Sim. Eu tenho pavor de insetos no geral, mas borboletas são as piores. — confessei, ainda com mais vergonha. — Não sei por que, mas Veronica veio direto para o campus. Eu sei, é sexta-feira e combinamos de jantar amanhã... Meu pai ainda não retornou da Europa desde o ano novo... Eu não vou conseguir dormir com aqueles... — senti meu corpo arrepiar por inteiro só com a lembrança e não terminei.
— Sua casa foi infestada de borboletas e ainda deu tempo de você arrumar uma mala? — surgiu ao lado de , apontando para a baixo. Segui com o olhar.
— Eu sempre tenho uma mala pronta para emergências. — dei de ombros. Falar isso em voz alta me fez pensar que qualquer um acharia ser uma desculpa esfarrapada, mas não, isso era verdade. Desde que o Tribeca todo teve problemas com insetos quando eu tinha quatorze anos, mantive uma mala sempre pronta, e toda semana arrumava ela de acordo com o que estava na minha agenda.
olhou para e os dois se encararam por um tempo, enquanto eu fiquei ali, parada, revirando em minha mente que teria sido mais fácil pegar um quarto num hotel do que cruzar a ilha e bater na porta dele. Sequer sabia se era permitido receber pessoas de fora do dormitório, principalmente para dormir. Simplesmente segui o meu instinto e fui. morava num bairro ao lado, pertinho, mas eu não lembrei disso.
Ouvi a conversa em coreano dos dois, com fazendo caretas e repuxando o ar, frustrado. Entendi que esse jeito de rasgar as sílabas e arrastá-las se fazia um perfil muito comum, do jeito deles mesmo, de cultura. Embora fosse um pouco difícil de acostumar.
Depois de algumas coisas ditas, forçou um sorriso pra mim.
— Que bom que eu estava de saída, indo experimentar dormir no carro dos Chevalier pra testar se é confortável o suficiente para levar a para cima e para baixo. — disse sendo irônico.
— E é sim! Eles compraram a Mercedes porque eu indiquei. Sempre tive problemas com carros muito desconfortáveis, principalmente para dirigir. Antes da Veronica tive um... Foi muito bom. — tentei contornar, sorrindo e piscando simpática.
prendeu um riso, coçando a nuca, e murchou os ombros.
— E tinha nome também?
— Tinha, era Mercedes-Benz. — dei de ombros.
Não, eu nunca tive um carro executivo. Gosto de coisas altas, que me permitam enxergar de cima — exceto aviões, porque tenho medo de altura.
riu fraco e fulminou ele com o olhar, outra vez reclamando em coreano. Ele foi até a mesinha que tinha no centro do enorme quarto e pegou sua gravata, depois o cobertor e o travesseiro em cima da cama. Antes de sair, outra vez disse alguma coisa para , passando por mim em seguida.
— Boa noite, Bee. Espero que você não se importe com as borboletinhas de luz. — sorriu cínico para mim, seguindo pelo corredor.
Senti meu corpo ficar duro no lugar e olhei assustada para . Ele estendeu a mão para a minha mala, tirando ela de mim e se inclinando para me dar um selinho.
— Fica tranquila, pesseguinha... — rapidamente olhei em seus olhos, arqueando a cabeça para trás, pela forma nova como ele me chamou. — Eu já fechei as janelas, elas não vão entrar.
Entrei no quarto, deixando ele me guiar, mas sem deixar de olhar todos os cantos do teto e luz, desejando que não estivesse falando sério.
— Você já comeu? — tomou minha atenção, ele tinha se afastado para colocar minha mala dentro do pequeno closet que tinha no quarto.
Era um espaço grande, se for considerar o fato de ser um dormitório de universidade. O quarto era comprido e tinha, inclusive, uma bancada com micro-ondas e frigobar, que ficavam na parede lateral à porta, separada da entrada por uma pequena divisória de gesso. No centro havia uma mesa redonda e as duas camas de solteiros, um tanto largas para se notar, se separavam por uma escrivaninha comprida no meio — tendo espaço suficiente para duas pessoas usarem. O closet não era tão grande, mas tinha um espaço bom, levando à porta do banheiro, também nada tão pequeno.
O quarto de tinha uma organização impecável e, segundo o que ele disse nas outras duas vezes que vim aqui depois do dia no Battery Park, ele tinha sorte por também não ser nada bagunceiro. Eles conseguiam conviver bem quando não brigavam igual irmãos — igual eu e desde crianças.
— Ainda não. — respondi à sua pergunta. — Estava terminando um relatório e tive que sair correndo das borboletas.
— Eu acho que vamos ter problemas se alguém te ver aqui, então vou pedir alguma coisa pra você, o que prefere? — foi se aproximando de mim, já com o celular na mão.
— Você não vai comer?
— Não, acabei de jantar com . — fez uma careta. — Poderia te oferecer, ainda está quente, mas ele me mataria se não sobrar bibimbap para o café da manhã.
— Bibimbap? — arqueei a sobrancelha, tentando repetir. Estávamos ao lado de sua cama e se sentou, eu me aproximei mais, encaixando meu corpo entre suas pernas.
— É. Uma especiaria coreana. É... — ele me encarou, tentando pensar em como descrever. — Um tipo de risoto. Significa “arroz mesclado”.
— E ele vai comer risoto no café da manhã? Antes das aulas? Às sete da manhã? — não consegui esconder minha indignação.
Ele riu, franzindo o rosto, o que fez seus lábios formarem um biquinho. Por estar sentado, arqueou a cabeça para trás, me olhando, e isso fez seu óculos refletir a luz. De tão lindo, isso o fez parecer como uma estrela em minha frente. E eu fiquei hipnotizada.
— Sim, pesseguinha. — deixou o celular de lado e levou as mãos até minha cintura, automaticamente eu apoiei em seus ombros. — Nosso café da manhã é diferente do seu.
— Bem diferente, aliás. — arregalei os olhos. — me lembre de nunca deixar você acordar antes para me servir café da manhã na cama.
— Ei! — ele apertou a minha cintura, formando um vinco no cenho. — Você iria amar comer kimchi, bibimbap, tteokbokki... Precisa experimentar primeiro.
— Neném, não me leve a mal, mas eu prefiro meus ovos mexidos. — ri, fazendo uma careta. — Nada contra sua carne... Mas...
— Mas? — ele incentivou, apertando outra vez minha cintura. Meu ponto fraco para as cócegas e ele já tinha descoberto.
Tentei tirar sua mão de mim, não aguentando manter a seriedade.
Porém, me puxou contra ele e eu acabei caindo por cima de seu corpo. Estava rindo até ficarmos tão perto.
Eu sabia que não iria me cansar de olhar em seus olhos. Desde o momento que eles se espremeram na biblioteca pela sua timidez.
Agora eu tinha mais certeza.
— Acho melhor tirarmos isso. — disse um pouco baixo e rouco pela aproximação e a risada passada. — Não queremos outro acidente. — tirei seu óculos, movendo minimamente do meu corpo para não perdermos o contato. Seus olhos passearam por todo meu rosto. — Pronto. — completei ao tirar a armação.
— Agora eu não consigo enxergar. — ele respondeu.
— Eu posso ser a sua visão, se quiser.
— É uma ótima ideia.
Continuei olhando-o em silêncio, até ser surpreendida por seus braços me segurando forte na cintura e nos girando. ficou por cima de mim, encaixado no meio das minhas pernas, lentamente ele tirou o óculos da minha mão, esticando o braço e colocando em cima da mesinha à cabeceira da cama. Tudo isso sem quebrar o nosso contato visual.
Meu peito começou a se encher de ar.
Não estava nervosa, eu estava ansiosa.
— Mas eu acho que consigo encontrar você mesmo sem enxergar. — sua voz saiu baixinha, grossa. — É só eu seguir essa corrente elétrica que me puxa até você. — fechei meus olhos quando ele colou seus lábios no canto dos meus, devagarinho beijando cada centímetro do meu rosto até chegar em minha boca. Estava pronta para outro beijo de tirar o fôlego, como todos os que ele me oferecia, até que ouvi uma voz afetada nos interromper:
— Coloca o “não perturbe” na porta, cara...
Fechei os olhos quando se assustou em cima de mim, colando nossas testas. Não sei o que aconteceu, apenas ouvi.
— Eu esqueci meu celular. — disse.
— Tenta levar a cabeça junto em cima do pescoço. — replicou, protegendo meu corpo com o seu. Ele não precisava de muito para me esconder, era enorme se comparado a mim.
A resposta de foi em coreano outra vez e eu me enfezei. Quando lembrasse, em uma ocasião que não estivesse em cima de mim, me causando um fervor por todo o corpo, os proibiria de falar em coreano na minha frente porque eu não entendia.
Ou eu podia começar a estudar o idioma. Seria mais compreensivo, até porque minha mente divagou no fato de que não era só com que eu poderia um dia conversar, tem a família dele. O pai, a mãe.
— Vem, . Vamos levar você para comer. — se levantou, me dando a mão para levantar junto. Frustrada pela interrupção, sentei na cama, conferindo se minha calça e jaqueta jeans estavam em ordem, sem interferir em minha blusa de lã. — Tem um restaurante aqui pertinho, podemos ir lá pegar e ver filmes.
— Só se você aceitar assistir O Hobbit dessa vez. — cruzei os braços. murchou os ombros e se inclinou até mim, dizendo contra meus lábios:
— Eu não vou ficar te mimando, Bee. Vamos seguir a lista, hoje é dia de terror.
— Seu espertinho. Só pra eu correr assustada até você — estreitei o olhar. Ele riu, me beijando em um selar mais demorado, e eu fechei os olhos, inebriada.
— Como se você já não tivesse corrido assustada até mim hoje.
Abri minhas pálpebras somente para ver um sorriso sacana no rosto dele e antes que eu pudesse reclamar, avançou contra mim outra vez, me beijando de verdade agora.
Capítulo 12: Ficar sozinha com você
— Não, sério, você tinha que ver a cara que ela fez quando me viu.
ria escandalosamente da história que eu estava contando para ele de quando não respeitei meu período de repouso por conta da conjuntivite e fui para a faculdade, mesmo tendo um receituário médico e restrições do meu pai, como a chave do carro confiscada. Naquela época, eu tive que ameaçar um dos seguranças que, pelo medo de perder o emprego ao me deixar dirigir, acabou dirigindo para mim até a universidade.
— Você precisa de limites, sabia? Principalmente os que dizem respeito à sua saúde. — ele cessou a gargalhada devagar, limpando o canto da boca sujo de molho do macarrão, e apoiou os cotovelos na mesa. — Se algum dia eu te ver burlando qualquer restrição médica, vou te prender com algemas.
— Mas aí eu não vou conseguir reclamar. Não vai ser de todo ruim. — respondi com um bico nos lábios e se remexeu na cadeira, desviando o olhar.
Percebi que isso estava se tornando um tipo de toque nele, porque às vezes eu falava alguma coisa e ele se mexia desta forma, parecendo estar com algum comichão por eu ter dito algo o deixando desconfortável. Uma parte de mim alertava que isso tinha a ver com os duplos sentidos das coisas, mas eu não tinha como saber ou medir o que dizia, quando não pensava desta maneira. Sei que pessoas adultas, principalmente as que se envolvem com outras pessoas, começam a criar experiências e noções mais explícitas das coisas, o que não era meu caso. Eu não pensava sobre sexo e coisas carnais o tempo todo.
Até porque, era a primeira pessoa com quem eu estava me envolvendo. Tudo com ele se tornaria novidade.
Meu primeiro beijo foi com , no meu quinto semestre na Saint Peter, e eu já tinha vinte anos. Foi algo que aconteceu aleatoriamente quando saímos uma vez; estávamos nós dois, e, como sempre, . Era um parque de diversões perto do Brooklyn e, quando subimos na roda gigante, ele me acalmou pelo meu medo de altura. O que resultou num clima propício para ele enfiar a boca na minha, me surpreendendo. Até pensei que poderíamos passar disso, mas não foi o que aconteceu.
é muito mais meu amigo do que outra coisa. Não teria a menor chance de dar certo, porque, afinal, não é para ser ele. Na época eu também não tentei muito, ficamos por mais umas duas ou três vezes e realmente vimos que não funcionaria.
E foi isso, só ele. Até aparecer.
Portanto, minha experiência com relacionamentos, beijos, sensações carnais e afins eram tão nulas quanto a dignidade humana para segurar o martelo do Thor.
— Está ficando tarde. — olhou em seu relógio e eu tentei disfarçar minha preocupação.
— Sim, quer ir embora? Amanhã não temos aula... Podemos fazer alguma coisa ainda... — tentei não me expressar tão ansiosa para não mostrar que queria mais dele comigo. — Que não envolva filmes, porque eu não aguento mais a sua lista de terror.
— Poxa, como vou fazer para você me agarrar? — ele ergueu o lábio inferior e tremeu o queixo, fingindo tristeza.
Céus! Eu só queria morder.
Fiz uma careta sonsa e pedi a conta. Quando o garçom chegou com a caderneta, tirou seu cartão e eu puxei da mão do rapaz em pé, pedindo a caneta. Ele, então, reparou quem eu era.
— Oh, senhorita Bee! Me desculpe. — pediu, coçando a nuca. — Não vi que era a senhorita, cheguei agora.
— Tudo bem, Greg. — sorri simples, tomando a caneta e assinando o papel. — Diga ao Tony que estava ótimo, como sempre. — pisquei para ele e devolvi a caderneta.
Greg se despediu educadamente em silêncio e saiu, ficou me encarando com a cabeça inclinada, alheio.
— Desculpa, eu não pago para comer aqui. — expliquei. — Meu pai e o dono são amigos desde a faculdade, quando ele se mudou para Nova York, para estudar na Saint Peter. — me levantei, sendo acompanhada por ele. rapidamente se colocou ao meu lado, caminhando para a saída, e eu continuei explicando. — Tony veio da Itália na mesma época e, enquanto estudava gastronomia, trabalhava aqui. Quando se formou, Tony comprou o restaurante e hoje toca sozinho. — paramos no hall de entrada, esperando nossos casacos e a minha bolsa de mão. — Ele não deixa ninguém tocar a cozinha e teve a sorte dos filhos gostarem de cozinhar. Junior está fazendo faculdade para saber administrar e Soraya já sabe cozinhar tão bem quanto o pai...
Assim que a recepcionista trouxe nossas peças, vestiu o meu casaco em meus ombros e saímos, esperando meu carro no valet. Ele ficou estranhamente quieto e eu não sabia bem o que fazer ou dizer, então apenas me aproximei do seu corpo, sutilmente tomando meu espaço em seus braços. Senti suas mãos na minha coluna e deitei a cabeça em seu peito.
Estava ali, bem no meio, o cheiro forte de pêssego. O meu favorito. Mas não era no tecido da roupa que eu queria sentir, tinha algo no meu interior gritando para ele tirar aquelas camadas de roupas, porque eram desnecessárias e complicaram o caminho para o meu olfato.
Tão logo quanto comecei a me sentir entorpecida, o manobrista chegou com Veronica e tivemos que nos afastar. Por um momento quis que ele dirigisse, mas minha mente divagou em uma ideia maluca e agiu automaticamente sozinha, mandando os comandos para o resto do meu corpo agir de acordo. Dei a volta no veículo e entrei no meu lado de motorista, jogando o casaco para o banco de trás e a bolsa junto, me livrando do que estava pesando em meus ombros com calor.
— Eu acho que deveríamos ter vindo de táxi. — comentou ao colocar o cinto. — Não que eu não confie em você, mas a polícia pode nos parar e você consumiu vinho...
— Mas aí não teria como eu te sequestrar assim. — terminei de ajeitar meu banco e dei o sinal, a seta, para sair com o carro dali. Pude notar que ele virou o rosto para mim completamente confuso. — O que foi? Achou que eu estava te alimentando por romance? Agora que te engordei alguns quilinhos, vamos ver quanto essa carne tá valendo no mercado da deep web.
— Bee.
— Acha que eu tô brincando? Caiu no conto da nerd, neném... — estiquei o braço para tocar sua bochecha e gargalhamos juntos.
segurou em meu punho e depois descansamos os braços no apoio entre os dois bancos. Ele entrelaçou sua mão na minha e se manteve quieto, como já estava, apenas fazendo o carinho no dorso dela com seu polegar. O trânsito, como sempre, lento e cheio, me permitindo a inclinar para ele algumas vezes e deixar beijos carinhosos em sua bochecha, mandíbula e, num desejo incontrolável, o pescoço.
Até que houve um semáforo em específico, depois de sair do Holland Tunnel para acessar a Varick, que ficamos mais tempo parados porque alguém bateu no carro de outro alguém.
O carinho de tinha cessado há alguns metros atrás, quando meus beijos em seu pescoço se tornaram mais repetitivos. Em nenhuma das vezes que eu me inclinei para ele e vice-versa nós dissemos qualquer coisa, porque simplesmente não parecia necessário. Somente seu olhar brilhando e de encontro ao meu parecia ser suficiente por ora. Então agora, ele parecia concentrado demais em olhar para o outro lado, controlar seus movimentos. Mas tinha alguma coisa dentro de mim que queria continuar beijando-o e de uma forma muito mais intensa.
Tirei minha mão da sua e usei ela pra virar seu rosto em minha direção, selando nossos lábios sem qualquer calmaria. E foi esse beijo que me deixou sem ar, ansiosa, com vontade de chegar logo. Por sorte, meu pai não estava em casa — outra vez, sem novidade alguma —, então eu não precisava me preocupar com a minha ideia maluca e tampouco restringir minhas vontades. Teria privacidade para seguir com aquele calor todo que me consumia.
— ... — tocou meu rosto e só então eu notei que estava quase em seu colo, acordando de uma espécie de sono que eu dormia acordada. — ... — tentou me chamar outra vez, mas eu não conseguia me afastar, e mesmo que não beijasse sua boca, continuei por seu pescoço. — Pesseguinha, tem gente buzinando e...
Me afastei, abrindo os olhos assustada quando ele apertou minha cintura.
Mais um pouco e eu estaria em seu colo.
— Céus! — senti meu rosto esquentar e voltei para o meu lugar. Não sei quando foi, mas até o cinto eu havia tirado. Tentei me auto sabotar nas imagens e fiquei parada como um robô, seguindo a direção.
Mas , sem saber do que estava acontecendo comigo, espalmou sua mão em minha coxa de uma forma a tomá-la quase toda. Ou deveria ser apenas o seu tamanho sendo o dobro do meu.
Não consegui reprimir a sílaba arrastada, nem mesmo mordendo o lábio.
— Está tudo bem, ? — a voz rouca dele só serviu para complicar mais ainda meu estado.
Então era assim que se sentia quando dizia que estava com tesão pelo ?
— Está sim. — virei meu rosto para responder rápido, com a voz trêmula.
Como podia ser possível que eu me sentisse assim com ele? Sempre tão à vontade...
— Na verdade, tô um pouco nervosa. — confessei, mantendo as duas mãos no volante e a cabeça levemente apoiada na janela. Ele apertou levemente minha perna e eu continuei. — Minha mente trabalhou sozinha e esse é o caminho para a minha casa, porque eu quero ficar mais com você... sozinhos… sem ter que atrapalhar o conforto do .
— Tudo bem, meu amor... — ele sorriu compreensivo.
— Mas eu tô com medo.
— Medo? De mim? — a voz dele falhou e eu fiquei com receio de puxar sua mão, mas ele não fez.
— Não, de mim mesma. — virei meu rosto para encarar o seu, tendo-o totalmente confuso. — Porque eu realmente quero ficar sozinha com você... — mordi o lábio, me sentindo patética.
— Ah... — abriu a boca, olhando para frente e ajustando a armação do óculos. — E por que você está com medo de si mesma?
— Porque eu... — parei abruptamente, tanto de falar, quanto freando o carro. Meu coração acelerou mais, pois eu já conseguia ver a rua que entrava para o prédio que morava. — Porque eu nunca fiquei sozinha com ninguém. Eu nunca... Sabe... Transei. — fechei os olhos e deitei a cabeça no volante, morrendo com vergonha e choramingando. — Que vergonha!
Ouvi o riso nasalado dele e sua mão que estava em minha perna foi para o meu ombro.
— Amor, você tem certeza? — perguntou de forma doce. — Eu não me importo de esperar o tempo que for. Isso é-
— Se você falar que é especial demais e toda a baboseira sobre primeiro namorado, eu vou largar você no meio dessa avenida. — interrompi, erguendo o corpo. — Eu cresci ouvindo que esse negócio tem que ser com uma pessoa com quem irá casar, ter filhos e bla bla blá. Mas como que eu vou saber que é pra sempre? E eu nem planejei essa parte na minha vida! — tagarelei. — Tudo o que é íntimo demais se trata de conexão e não de tempo. E eu não estou conseguindo mais controlar o que meu corpo tá pedindo. Ele tá pedindo por você... — choraminguei a última parte.
Quando terminei, minha respiração estava ofegante e eu sentia meu corpo arder.
se inclinou até mim, voltando a mão para minha perna e aproveitando o último semáforo fechado. Sua outra palma livre se fechou em minha nuca, entrelaçando os dedos nos fios do meu cabelo. Seus olhos estavam muito próximos e não se moviam, apenas me encaravam profundamente.
Todas as vezes que isso acontecia era como se ele pudesse me ver por inteira; igual um feiticeiro lendo um livro sem precisar folhear página por página.
— Nós vamos até onde você quiser, OK? — disse contra meu rosto, antes de eu assentir e ele me beijar.
Depois disso, dirigir os menos de 500 metros até em casa se tornou um martírio. Minha ansiedade nunca gritou tão alto quanto durante aquele caminho curto, mas, de repente, tão longo. Em nenhum momento tirou sua mão de mim, continuando ali por cima do meu jeans com um carinho lento e gostoso.
Ao chegar no prédio, não demorei para estacionar o carro em minha vaga de sempre; geralmente eu não coloco Veronica de frente para a parede, sempre deixo ela pronta para sair, parando de ré, mas desta vez eu não estava tão paciente para manobrar. Tirei o cinto e desci, entrando em um desespero lá no fundo por ter que me distanciar do toque de pelo tempo de dar a volta no Jeep e encontrá-lo do outro lado outra vez, pegando em sua mão e entrelaçando nossos dedos.
Seguimos para o elevador e, assim que entrei, digitei a senha rapidamente, eufórica por toda a ideia que estava em minha cabeça. Não sabia como seria e se realmente iria ser, só tinha noção de que eu não queria que fosse embora logo e se ele quisesse, poderia dormir comigo, igual fizemos quando eu apareci do nada no dormitório ou nas noites depois disso, que eu inventei qualquer desculpa para simplesmente ficar, mesmo que sua cama fosse de solteiro e a gente só pudesse ficar numa única posição: de coalinha.
Me vi viciada em dormir em cima do corpo dele. Era muito bom e confortável. Além do cheiro inebriante de pêssego, claro.
— Não tem ninguém em casa, pode ficar tranquilo. — virei para ele, soltando sua mão e ficando pertinho, espalmando seu peito coberto por uma camiseta branca e lisa. De uma forma maluca, minha mente começou a trabalhar na intenção de tirar todo aquele tecido que lhe cobria, incluindo a jaqueta jeans.
Ele se inclinou para minha direção, dando um beijinho casto um pouco acima dos meus lábios.
— Estou começando a achar que tinha alguma coisa naquele único gole de vinho que você tomou. — riu, sorrindo fechado.
Apoiei o queixo em seu peito, lembrando da taça.
— Ou você pediu para colocarem uma dose do seu charme e agora eu tô aqui, maluquinha com as minhas visões libertinas. — ousei dizer, resmungando em drama.
— Visões libertinas? Bee? — me abraçou como se eu fosse menor do que já era e eu fiquei sufocada em seu cheiro. — O que foi que eu fiz com você?
— Ainda não fez nada. E não vai fazer se continuar me abraçando assim — reclamei rindo e ele se afastou.
— Eu acho que estou acordando um monstro. — franziu o cenho.
O elevador apitou e as portas se abriram, revelando o hall já dentro da cobertura. Me afastei um pouco a contragosto e sai primeiro, estendendo o braço para ele.
— Vem. Não tem ninguém. — chamei, movendo os dedos também, e ele veio.
Atrás de mim, parecia controlar a respiração com medo de algo ou alguém, como se tivesse que entrar escondido ali ou estivesse se escondendo por vida ou morte. Depois de alguns passos, paramos diante da escada que dava para o andar de cima e eu fiquei de frente para ele.
Dei a volta em , ficando atrás de seu corpo. Lembrei de alguma coisa mais ou menos assim em algum filme que assisti e tentei agir de acordo com a única referência que tinha, então ergui meus braços e fui tirando sua jaqueta de forma lenta, sentindo-o travado, receoso. Pela sua forma petrificada, depois que eu deixei a peça em cima do aparador rente à parede da escada, me esforcei em cima dos próprios pés para alcançar sua nuca — um dos meus maiores pontos fracos ao se tratar dele — e deixei um beijo.
Foi tão rápido, que eu mal consegui raciocinar e apenas emiti um gritinho quase histérico pela surpresa.
O braço direito de envolveu minha cintura e a mão esquerda se encaixou perfeitamente no meu pescoço, abaixo da orelha, com o polegar erguido em minha bochecha. Seus olhos estavam sem brilho, ele me olhava atônito e sua respiração estava entrecortada, com a boca entreaberta. Conseguia sentir o hálito de menta pelo suco que tomou e isso, em contraste com o cheiro tão forte do seu perfume, estava me atentando a coisas que eu não poderia sequer citar por não ter ideia exata do que eram.
Sua boca foi de encontro à minha, sendo calmo e sereno, embora seu corpo parecesse lutar para ter um controle sozinho sobre si. Por um momento, eu me mantive sem reações, simplesmente deixando com que ele ditasse todo o rumo daquele encontro sempre tão perfeitamente encaixado, porém, não foi por muito tempo. Minhas mãos estavam coçando e eu não consegui mantê-las paradas, logo agarrando cada lado da sua cintura, sem conseguir controlar a força das minhas unhas. Talvez, se não fosse pelo tecido, eu teria até machucado ele — que horror.
Havia como eu culpar seu beijo por isso?
Ainda sem controle sobre o que eu estava fazendo, caminhei meus dedos por seus braços, também usando as unhas, porém menos intensamente agora. Foi como quando ele tinha me colocado em seus braços nas outras vezes e eu desenhei linhas que só existiam na minha cabeça, usando a ponta das unhas, mas só que agora, o clima não era nada ameno e eu estava descobrindo outra novidade intensa.
Ele se afastou, puxando meus lábios juntos, e por não deixá-lo se afastar por completo pela agilidade da minha mão se fechando em sua nuca, acabou sussurrando contra minha boca:
— ... ...
— Shhhhh. — coloquei o outro indicador contra seus lábios, me erguendo nas pontas dos pés. Nem mesmo usando um sapato de salto médio eu conseguia ficar do mesmo tamanho. — Até onde eu quiser, não era? — assentiu, beijando a ponta do meu dedo. — Então vem, vou te mostrar meu quarto... Falei que você precisava ver como minha cama é divertida.
Esperei por alguns segundos, até vê-lo passar a língua pela boca, com ela mais ou menos aberta, e aí lhe puxei pela mão, beijando-o conforme tinha ângulo para começar a nos levar para a escada. Vi pelo canto do olho que passou a mão na sua jaqueta. Quando subi o primeiro degrau e fiquei mais alta, paramos, com o ritmo do beijo se acelerando, se esquentando.
Com a temperatura tão alta, eu arranquei meu próprio casaco e o joguei para qualquer canto. me puxou pela cintura e, inerte demais para fazer observações, só pude perceber que ele me trouxe para mais perto e logo eu estava com as pernas em volta do seu tronco.
Quando dei conta do mínimo de sobriedade, estando mais longe deste estado por causa do jeito que ele me naturalmente me deixava, estávamos no corredor e eu apenas murmurei que a minha porta era a última a direita. Sem erro algum, entramos no meu quarto depois dele abrir a maçaneta com um equilíbrio forçado. Eu consegui alcançar o disjuntor e iluminar todo o cômodo. Durante esse caminho todo, quando não estávamos com as bocas coladas uma na outra, no ritmo cada vez mais intenso e voraz, passeava com seus lábios por onde alcançava do meu pescoço e busto.
Senti minhas costas contra o colchão e abri os olhos, vendo o rosto dele a menos de um centímetro de distância. tinha seus dois braços um de cada lado da minha cabeça e me olhava com muito afinco, sua respiração batia contra mim e eu juraria que conseguia ouvir o ar rodando entre nós. Ele estava esperando meu veredito, seu olhar preocupado e atencioso me dizia isso.
Para lhe responder, ergui minha mão e toquei seu rosto, usando a outra para ir até a barra de sua camiseta.
— Eu não vou desistir. — sussurrei, acariciando sua bochecha. Ele virou o rosto para beijar a palma da minha mão.
— Sei que não. — respondeu, voltando a me beijar, agora lentamente. Mas um pensamento me fez empurrá-lo pelo ombro.
— Vo-você tem camisinha?
Era óbvio que eu sentiria minhas bochechas arderem.
assentiu com um sorriso casto.
Seu beijo foi breve, apenas pelo tempo de voltar ao mesmo clima em que estávamos. Quando ele começou a beijar meu pescoço e a caminhar sua mão pela minha silhueta, adentrando ela pela blusa de lã, meu corpo se arrepiou por inteiro. Os dígitos macios que já tinham caminhado pelos meus braços, rosto e até mesmo a perna, não tinham ainda tido contato direto com as minhas curvas desta forma. E mesmo que eu fosse insegura sobre meu corpo também, não consegui sentir medo ou qualquer bloqueio ao sentir o toque de .
Parecia tão certo, tão devidamente calculado, que não tinha um porquê para eu não me sentir à vontade com ele.
Entretanto, eu não conseguiria abater um monstro passado tão de repente e assim que a blusa foi tirada sem muita cerimônia, eu abri meus olhos, assustando-o. Ele sorriu genuíno, parecendo reconhecer o porquê de eu encolher meu corpo de tal forma ao estar exposta. Não tinha a ver com o meu sutiã rosa claro de renda ou com o tamanho dos meus seios, era simplesmente o fato de nunca ter estado nua na frente de outra pessoa que não fosse — pelo motivo de nos trocarmos sem muita cena perto uma da outra.
De repente a realidade bateu em mim quase como um banho de água fria. Se não fosse por , se fosse outra pessoa em seu lugar, teríamos interrompido ali.
— Ei... — ele deixou uma trilha carinhosa de beijos abaixo da minha orelha, passando o braço por baixo de mim e me trazendo para cima, então eu fiquei em pé, fora da cama. — Você quer fazer isso?
Não soube muito bem o que ele estava querendo dizer, mas assenti.
— Então vamos fazer assim — fiquei entre suas pernas, com ele sentado. — Estende suas mãos. — obedeci — Eu não vou fazer nada, você é quem vai fazer, da forma que quiser e até qual parte conseguir. Tudo bem? — disse sereno e eu assenti.
Lentamente, guiou minhas mãos pelo cós do meu jeans e quando eu entendi o que ele estava fazendo, me soltei, sendo a maior responsável por guiar os movimentos. Ele se abaixou em minha frente, desafivelado a minha bota de cano curto e subindo o zíper dela, para tirar em seguida cada um dos dois pés. Fiquei na minha altura normal e isso fez com que ficasse na direção exata dos meus seios, me deixando ruborizada pelo mero detalhe.
Com as suas mãos em cima das minhas novamente, voltamos para o jeans, indo até o zíper. Eu abri. Eu deslizei a peça pelas pernas. Eu me despi. me olhava com um leve sorriso rascunhando seu rosto, quase sem piscar, prestando atenção em todos os meus detalhes, do mesmo jeito que eu sempre fazia com ele.
— Você é linda. — disse em tom baixo, como quando se conta um segredo a alguém. — Eu sou o homem mais sortudo por ter sido esmagado justamente por você, Bee. — seu polegar, atrevido, quebrou o contato prometido para alcançar minha silhueta com todos os outros dedos da sua mão macia.
Fechei os olhos.
O deleite de sempre não me permitia ver, não era a vergonha.
As duas mãos de estavam colocadas em minha cintura, no lugar que não deveria abandonar, e usou isso para me levar mais perto, voltando a tomar minhas mãos com as suas. Primeiro, subimos meus dedos até o fecho do sutiã e meu peito começou a se movimentar de acordo com a respiração descompassada, porém, somente um rubor amornou minhas bochechas conforme a peça foi sendo removida. E os dois pares de mãos continuaram juntos. Quando as senti serem colocadas por cima do cós da calcinha, meu corpo tremulou, mas a ausência da hesitação não deixou que ele parasse.
Outra vez sem pressa, desci mais uma peça. Agora ficando mais exposta que nunca.
E antes que eu tivesse medo, me acariciou com as mãos abandonando as minhas para se colocarem em meu quadril, divididas. Ele arqueou a cabeça para me olhar e sorrir antes de se direcionar para minha barriga, beijando suavemente a pele fria do meu corpo, iniciando ali e descendo sem correr. A relatividade do tempo não me fez contar exatamente a qual velocidade estávamos indo e isso já tinha, bem dizer, alguns meses.
Seus lábios se mostraram muito experientes para me causar arrepios, do mesmo jeito que era ao me beijar e tirar meu fôlego. De acordo com a descida, eu fechei meus olhos, apertando-os mais quando senti sua boca em minha coxa, no lado interno, com seus dígitos se enterrando em meu quadril. Por reflexo, alcancei sua cabeça, afundando os meus dedos em seu cabelo macio e volumoso.
Soltei um gemido quando o meu monte de vênus foi alcançado e tombei a cabeça para trás, instintivamente abrindo minhas pernas. Momento exato que eu soube que não teria mais volta.
Afundei mais a minha mão, quase não tendo noção de que estava puxando seu cabelo, e antes que o deixasse careca, voltou a envolver minha cintura com seu braço, me puxando para seu colo. Eu imediatamente sentei, levando as mãos para a barra de sua camiseta e a puxando, agora seria a hora de despir .
E fiz isso sem contar que meu desejo principal seria passar a mão por todo seu peito. Porque foi exatamente o que fiz, antes dele me deitar outra vez e me beijar. Não consegui mais tirar minhas mãos de sua pele, sentindo que em alguns momentos estava forçando não os dedos, mas as unhas, sem pensar no resultado posterior. Precisaria controlar esse instinto de querer apertá-lo, como se isso fosse a única forma de saber que estava ali, que era de fato real.
De olhos fechados, eu não sei dizer de onde veio, somente que ouvi o barulho de algo se rasgando, enquanto ele parecia distante. Em sequência, seu corpo me cobria de novo e eu podia sentir que estava encaixado entre minhas pernas.
— ... Meu amor. — me chamou baixo, em meu ouvido e, claro, com beijos. — Olha pra mim.
Abri as pálpebras lentamente, engolindo o que estava preso em minha garganta.
passou as costas de sua mão em meu rosto, beijando minha testa antes de abaixá-la para seu próprio corpo.
Somente afirmei com um aceno positivo e ele se manteve equilibrado.
— Se sentir qualquer desconforto... Qualquer coisa... Quiser parar-
Não o deixei terminar, inclinei minha cabeça para cima, selando seus lábios. Pela posição desconfortável tive que me afastar rapidamente, abrindo o meu melhor sorriso.
— Eu tenho certeza de que quero isso com você. Aqui. Agora — assegurei.
Ele respirou fundo e então prosseguiu.
Não foi tranquilo porque era uma novidade. E como todas as novidades até aqui, eu me assustei. Contudo, não a ponto de querer parar. A sensação ardente durou bastante tempo, mas não foi mais forte do que a outra prazerosa que fez meu corpo todo acender como um receptor de energia. Em qualquer outra ocasião na minha vida, eu jamais diria que algum dia iria apertar a nuca de alguém, cravando minhas unhas, enquanto entrelaçava minhas pernas em seu quadril e era penetrada, correspondendo audivelmente com gemidos naturais.
me colocou por cima de seu corpo em algum momento, mas eu não consegui seguir, mais pela vergonha ainda me travando do que pela vontade. Então quando acabamos, eu estava por baixo dele de novo, suando junto e ofegante. Se o tão falado e querido orgasmo trazia essa sensação de paz e calmaria, com certeza eu poderia dizer que vivia isso sem precisar de sexo, porque era exatamente assim que me sentia estando com ele.
— Me dá um segundo. — sussurrou e eu assenti, ainda me sentindo mole.
Puxei o lençol quando ele saiu de mim, depois de me beijar carinhosamente, e, enquanto se livrava da camisinha, olhei para a cama, caçando qualquer mancha vermelha, mas antes que eu pudesse encontrar, retornou com um pedaço de papel.
Não tinha problema algum, mas eu ainda não tinha me acostumado a vê-lo sem roupa, então automaticamente ergui o tecido até os meus olhos, me mantendo sentada. Ele deu uma meia risada e subiu novamente na cama.
— Vem cá, pesseguinha... Com licença. — pediu, tirando o lençol de cima da minha perna e eu senti o papel ser passado por dentro das minhas duas coxas e mais perto da minha entrada íntima. — Pronto.
Outra vez ele sumiu para o banheiro, parecendo familiarizado demais, e retornou, voltando para a cama. Quando deitou ao meu lado, me puxou para ficar deitada em seu peito, como nossa posição corriqueira. Entretanto, eu neguei. Ele ficou confuso, mas eu estava sem palavras o suficiente para me justificar, então apenas forcei que ficasse de costas para mim, e o abracei assim, sendo a conchinha de fora.
— Eu não gosto de ficar por dentro, me sinto sufocada. — expliquei simples, beijando seu ombro nu. Somente depois disso ele relaxou, segurando em minha mão com a sua.
— Todo dia você me traz uma novidade. — riu nasalado, beijando o nó dos nossos dedos. — E todos os dias eu me apaixono por cada uma...
— Ah, que bom... Porque agora eu entrei naquele clichê de ter que ser com o cara com quem pretendo me casar.
— E ter filhos? — ele completou e eu ri, ouvindo a sua risada em seguida. — Você não existe, Bee... E se existir, é só uma criação minha.
Fiquei quieta, mas dei outro beijo em sua pele, agora na nuca.
— Me fala uma coisa...
— Sim? — estava preguiçoso em sua voz arrastada e eu não teria como controlar meus arrepios se ele continuasse assim. Antes de responder, me deixei levar, mordiscando da sua nuca até seu ombro.
— Acabou? É assim? — tentei fingir seriedade. Ele gargalhou, apertando mais o meu braço contra o seu peito.
— Eu realmente estou criando um monstro.
📚
— Bom dia. — disse rouca ao sentir se mexendo embaixo de mim. Já estava acordada há algum tempo e fiquei ali quietinha, agarrada em seu tronco, ouvindo seu coração bater.
— Bom dia, meu amor.
Não tinha nada mais gostoso do que ouvir a voz aveludada dele pela manhã. Sem muito me controlar, deixei um beijo em seu peito, apertando-o mais.
— Você dormiu bem? — ele me perguntou, seu braço que estava por cima de mim pesou mais no “abraço” que me deu e beijou o topo da minha cabeça.
— Sim. Muito. — senti minhas bochechas quentes ao lembrar da nossa noite, não conseguindo impedir um suspiro. — Mas ainda estou cansada. — ri envergonhada. — A gente pode ficar de preguiça hoje? Eu peço para trazerem tudo no quarto e não saímos daqui nem por decreto oficial.
— Sim, senhorita.
Não disse mais nada e nem ele. Ainda estávamos acordando.
Fechei meus olhos outra vez e quando meus pensamentos começaram a se aprofundar, me assustei com as batidas na porta. Embaixo de mim, levou um susto maior e seu coração acelerou.
— Bee... Está tudo bem? Já passou das dez da manhã. — A voz era de Dorota. — Kimberly me disse que não te viu hoje... Está aí?
— Calma, é só a Dorota. — tentei acalmar , falando sussurrado. — Se ficarmos quietinhos, ela vai embora.
— Ela está aí. Veronica está lá embaixo. Disseram na portaria que ela chegou com um rapaz. — agora era Kimberly. Arregalei meus olhos, me sentando rapidamente e sentindo uma vertigem por isso.
— Será que está tudo bem? — Dorota respondeu a ela. — Ainda bem que me mandou aqui hoje! Não dá para confiar em você, Kimberly. A Bee não mata uma formiga, você acha mesmo que ela sabe se defender? — e em seguida ela socou a porta, tentando abrir.
Cocei a nuca, respirando fundo e olhei para trás, vendo o rosto pálido de . Ele estava sentado e eu, brevemente, vi que não estávamos totalmente nus. Eu usava minha calcinha e sutiã e ele, a cueca preta. Mas algo em seu tronco chamou minha atenção e, pela lembrança, olhei para minhas unhas.
estava todo marcado por arranhões.
— Fica aí, eu vou me livrar delas. — engoli a seco, enfiando a vergonha em algum lugar fundo, e me levantei, puxando o lençol junto para enrolar no meu corpo. Logo que abri a porta, Kimberly e Dorota se afastaram assustadas. Coloquei somente a cabeça no vão.
— ... Bee? — Kimberly esticou o pescoço, tentando ver para dentro e recebeu um tapa de Dorota, que logo deixou um sorriso habitar sua face.
— Oh, querida, que bom que está viva! — ela disse, tomando a frente da outra. — Precisam de alguma coisa?
Eu não sabia o que Dorota sabia, mas apenas assenti. Não tinha como esconder as coisas dela, até porque já haviam dito que eu cheguei com alguém.
— Sim. Café da manhã e privacidade. — sorri pra ela, relaxando e me colocando entre o vão. — E roupas masculinas. Será que meu pai tem alguma coisa que nunca usou?
— Bem provável. Tem coisas na embalagem ainda, querida. — Dorota continuou liderando. — Vamos fazer assim, vou trazer junto com o café da manhã e você me dá as coisas dele e eu coloco a máquina para lavar e secar. — Apenas assenti e ela continuou me olhando genuinamente. — Você está bem? Tem algo que eu possa fazer?
— Estou bem, Dorota... — sorri em reflexo. — Só não conta para a , por favor. Não até eu contar. — ela assentiu.
— Contar o quê? — Kimberly perguntou aleatória e recebeu um olhar feio.
— Pode deixar, ... Qualquer coisa que precisar, pode me chamar, hoje vou ficar aqui o dia todo. Colocar ordem nesta casa.
— Obrigada, Dorota. Obrigada, Kimberly.
Elas estavam quase distantes, mas eu lembrei de algo, chamando-as:
— Dorota. Por favor, se você conseguir, pode preparar um café da manhã coreano? E para mim apenas uma salada de frutas com iogurte.
Entrei quando ela me confirmou com um aceno e olhei para trás, não encontrando mais em minha cama. Fechei a porta e tranquei novamente, me livrando do lençol no caminho para o closet, ao entrar no espaço, ouvi o barulho do chuveiro vindo do banheiro.
Ele estava do lado de fora do box, ainda apenas com a sua peça íntima, e eu me escorei no batente da porta, olhando-o por inteiro. Demorou, mas fui notada e recebida com um gigantesco sorriso.
— Então é realmente um forte. E você é a princesa na torre. — ele disse e eu revirei os olhos. — Tem certeza que seu pai não colocou um rastreador no seu molar?
— Ele colocou, mas eu tirei quando tinha quinze anos e comecei a visitar cemitérios de madrugada. — tentei fingir e ele fez uma cara de horror. — É brincadeira, bobinho.
Adentrei o banheiro, indo até o gabinete e tirando da primeira gaveta uma escova de dentes. Tirei da embalagem e coloquei ao lado da minha, dentro do suporte específico.
— A sua é a verde, a minha é a rosa. OK? — ditei para ele como se estivesse falando com uma criança e acenou positivamente com a cabeça.
— Eu achava que seu quarto inteiro fosse rosa e branco... — riu nasalado, observando a sua volta.
— A única cor que não entra neste lugar é vermelho.
— Posso perguntar por que?
Passei por ele e fui até o box, conferindo a água e me preparando para entrar. Precisei respirar fundo para conseguir tirar as duas peças minúsculas e ficar totalmente nua na frente dele, minha metodologia prática foi fazer isso de costas e entrar rapidamente, deixando a água percorrer por toda minha pele.
Estava em um mix de memórias, a recente e a passada brigando entre si. Mas senti que poderia me abrir com ele e explicar o porquê da cor vermelha ser proibida.
— Quando eu fiz dez anos, eu descobri que minha mãe, na verdade, não tinha virado uma estrelinha. — suspirei, fechando os olhos. — Então comecei a questionar mais e com isso, soube demais. Aos doze, convenci um primo meu de Nova Orleans a me levar em uma vidente, durante um período de férias que passamos lá. A mulher era uma charlatã, mas, no meio da rua, uma outra maluca me parou e... Eu não sei explicar, talvez você não acredite, mas o que ela fez comigo me hipnotizou e eu vi, nitidamente, no meio da rua mais famosa da cidade, a minha mãe, vestida de vermelho e com uma outra criança do lado. Depois disso, eu descobri que ela era dançarina de tango e que essa sempre foi a sua cor.
— Igual você e o rosa.
Abri os olhos, vendo-o diante de mim, e me esforcei para não olhar seu corpo por inteiro, tentando me acostumar com a novidade de estar com outra pessoa dentro do meu banheiro, tomando banho. E nua.
— É. Igual eu e o rosa. — soprei um riso nasalado.
— Você sente falta dela? Digo... De ter conhecido ela.
— Não. — minha resposta saiu sem hesitação alguma. — Como posso querer ou sentir falta disso sobre alguém que me rejeitou? Que fez o meu pai sofrer... Só desejo que ela seja feliz, se estiver viva, claro. — ele assentiu, sem dizer mais nada e eu varri todo o clima do assunto para o além. — Enfim, isso tudo é baboseira, mas eu sou metódica demais para deixar essas coisas pra lá... E eu já fiz terapia, OK? Então se você tem problemas com quem-
— Bee. — me cortou. — Eu jamais vou querer mudar você. Gosto de como é. Gosto do seu jeito assim, exatamente dessa forma.
Fiquei quieta, comprimindo os lábios.
— E seu pai? Tem alguma chance de eu sair vivo daqui hoje?
— Tem sim. Ele está na Europa. Talvez com a outra família que esconde. — brinquei, mas sendo séria. fez uma feição preocupada e eu ri dele. — É brincadeira. Meu pai viaja muito, sempre dizendo que é por trabalho. Mas eu sei que não. Ele deve procurar ela por aí, nas companhias que se apresentam em teatros e tudo o mais. — dei de ombros. — Fica tranquilo, tenho certeza que, quando ele te conhecer, vai querer trocar e me colocar para fora. Tem uma razão específica para o meu banheiro ter dois chuveiros. — apontei o registro atrás dele.
— É?
— Não existe pessoa mais ansiosa para ter um genro neste mundo... — fingi casualidade, pegando o shampoo. A cada segundo que passava, eu ia me sentindo mais à vontade. prestava atenção, um pouco sem reação. — E você não precisa se preocupar com ele...
— Tem alguém com quem eu devo me preocupar? — perguntou, ligando o segundo chuveiro.
— Dorota. E também. Dorota e serão seu maior desafio. — abri um sorriso automático ao lembrar da minha amiga. — A é o meu .
Ele arregalou os olhos de uma forma divertida e eu gargalhei, saindo do meu espaço e invadindo o dele, deixei um beijo em seu queixo ao envolver sua cintura com meus braços.
— Mas o meu é menos ciumento. — sussurrei, apoiando meu queixo em seu peito, para inclinar a cabeça para trás.
— Ah, que bom. Porque eu não nego que quero você só pra mim. — beijou a ponta do meu nariz, afagando meu cabelo. — Eu gosto muito de você, Bee. E quero muito estar com você.
— Eu também. — respondi, finalizando e endireitando minha postura, levando meu ouvido outra vez para o seu peito, a fim de ouvir seu coração batendo.
Era gostoso demais saber que aquele acelero em seu batimento cardíaco tinha a mim como motivo. Era confortável estar ali e ser recebida por seu desejo.
Capítulo 13: Descanso obrigatório
Suspirei, fechando os olhos brevemente e desistindo. Só conseguia ouvir a voz do meu pai, vibrando meus tímpanos, sempre reclamando como eu conseguia ser lenta com tecnologia, mesmo sendo tão "inteligente e articulada". Era frustrante não conseguir me concentrar e entender a interface de um eletrônico em pleno século 21. Eu me sentia inútil, porque mesmo com o manual em minha frente, tendo suas letras rodando em meu cérebro como tatuagem, ainda não era o suficiente.
Resmunguei abrindo os olhos e endireitando o corpo, e captei a atenção de em mim. Ergui o rosto para ele, fazendo uma careta. Queria muito, de verdade, aproveitar o nosso tempo livre para fazer qualquer coisa que não envolvesse livros e dinâmicas para pontos extracurriculares. Ter ele em minha frente, descontraído, com a cara enfiada em seu laptop e concentrado num jogo on-line qualquer, parecia muito mais interessante do que ficar ali, focada num miniprocessador de alguma coisa que estava me tirando a paciência. Talvez eu devesse encontrar uma terapia para reconfigurar meu cérebro, assim poderia deixar de ser fissurada em estudos e notas máximas, então não perderia as horas livres com — que estavam começando a se tornar escassas, principalmente com o empenho dele em uma nova chance de estágio num grande e majestoso escritório; o que estava exigindo dele e uma apresentação mais elaborada.
Enquanto eu o olhava como se fosse um cachorro faminto em frente a uma máquina de assados, desejando que todo aquele corpo estivesse coladinho em mim, me fazendo um cafuné enquanto estivéssemos deitados na cama vendo algum filme ou série no notebook, ajustou seu gorro cinza e, em seu tique de sempre, subiu o óculos pela ponte do nariz, me encarando com a feição mais suave que eu jamais poderia receber de alguém. Ele parecia sempre me olhar como se eu fosse um livro a ser interpretado, e o fazia muito bem. Saiu da cama, deixando o computador, antes em seu colo com as pernas esticadas, de lado e me mirou, sentada no chão.
— Você precisa de ajuda? — sua voz saiu baixa, mas foi o suficiente para eu ouvir e entrar em calmaria. Apenas assenti, deixando o iPad cair em meu colo, com as pernas dobradas no modo borboleta. — O que você está tentando fazer?
— Configurar esse jogo que a senhorita Maxwell me indicou para a minha prática da atividade extra com o senhor Davies. — não notei imediatamente, mas minha fala saiu arrastada, manhosa, e muito baixa. Era a vergonha. — Eu não consigo... E estou exausta. Esse trabalho acabou comigo. — assumi naturalmente, sem quase perceber que estava assumindo em voz alta um possível "fracasso", algo totalmente raro. Era o efeito de em mim, afinal, ele me fazia sentir segurança nas minhas inseguranças e imperfeições. Para ele, eu não tinha medo de falar. Com ele, eu não tinha medo de nada. — Talvez eu devesse desistir e deixar a Evans atuar no meu lugar.
Ele respirou fundo e saiu de sua cama, logo ajoelhando ao meu lado e se encaminhando para sentar atrás de mim.
— Vem cá... — me puxou pela cintura, abrindo suas pernas e me encaixando no meio delas, para que pudesse me "abraçar" com seu corpo, passando seus braços em volta de mim. Não resisti e virei o rosto, para a direita, beijando quase a altura de seu ombro, a pele macia que estava descoberta por ele usar apenas uma regata. Eu já sabia o que ele ia fazer e dizer. E fiquei ansiosa por isso, me aconchegando encostada em seu peito. — Você não vai deixar Evans e nem ninguém ir no seu lugar, primeiro porque você é a Bee, determinada e muito inteligente. Já viu tudo o que montou para esse trabalho? Isso aqui é o de menos. — tomou o iPad em sua mão, com ele à frente da minha barriga. beijou minha nuca e eu sorri fraquinho em resposta. — Eu configuro com você, mas você vai me prometer que chega disso por hoje. Até chegar o dia da apresentação, não vamos falar ou sequer fazer qualquer coisa que envolva essa atividade. O doutor Davies já tem tudo o que precisa... Agora é você que tem que descansar.
— Mas eu ainda preciso-
Tentei refutar, mas ele me cortou.
— Bee, eu não tô pedindo. — sua voz grossa em minha orelha fez meu corpo tremular. Em reflexo, mordi o lábio e fiquei quieta, assentindo. — Depois disso, nós vamos dormir o resto da tarde e discutir sobre aquela viagem.
— O Alasca? Você considerou meu convite? — devolvi empolgada. Há alguns dias eu tinha dito a ele sobre as passagens com tudo pago pelo meu pai para o Alasca, um dos meus lugares favoritos do mundo, mas tinha rejeitado porque ainda se sentia meio sem graça de eu pagar tudo para ele.
— Não, amor, não é o Alasca. — deu outro beijo em minha nuca e eu murchei. — É a praia. Vai ser legal, toda a turma do Saint Peter fechando o hotel no final de semana... E é começo de verão.
— Mais um motivo para eu não querer ir. — reclamei, cruzando os braços. — Vai estar um inferno.
— Mas, pesseguinha... — jogou bem baixo ao dizer soprado contra meu ouvido. — Vai ser legal, divertido. disse que ia, não foi? Eu, você, ela e no mesmo carro.
— Esqueceu o , se eu for, ele vai querer carona.
— Então. Todo mundo junto. Se divertindo no calor.
— Eu só vou porque você quer muito ir. Mas saiba desde já que eu tenho nojo de areia e medo do mar, não sei nadar.
— Nem eu. — ele riu e eu levei um tempo para desemburrar e rir junto.
— Perfeito, temos os dois Patetas dentro da água se afogando.
— Qualquer coisa, o salva.
— Só se for você. Vai ser a oportunidade perfeita para ele me largar lá e ter você só pra ele de novo. — brinquei, circulando linhas imaginárias em seu braço. — Ele ainda vai fazer questão de te tirar primeiro.
— E aí eu te salvo por tabela.
Me afastei, virando de frente para ele.
— Acho melhor usarmos boia ou ficar longe do mar.
— É uma escolha sábia. — afirmou com a cabeça também, selando minha bochecha em seguida. — Vem, vamos ajeitar isso aqui e seguir com a nossa programação.
📚
A hora foi definida como uma unidade de medida com base na velocidade da rotação da Terra e suas dimensões, definida a priori pelas civilizações antigas, como o Egito, por exemplo. Na sua conversão moderna, 60 minutos é a equivalência de uma hora, tal qual 3.600 segundos; dependendo da forma como se mede a unidade, ela parece muita coisa. 1 minuto, por exemplo, são 60 segundos. Certamente, 1 é menor do que 60, mas não neste caso.
Um dia tem 24 horas, com 84.600 segundos. O que é maior? A dezena ou a centena?
Pois bem.
E deve ser por essa lógica que Einstein preferiu acreditar na sua teoria.
O tempo é incontável, tudo pode acontecer no mesmo instante e é relativo demais para que a duração seja igual para todos. A minha vida mesmo era uma coisa antes e agora, com , é outra. A hora passa mais rápido, eu quase não vejo e sequer consigo mensurar meus ponteiros antes tão controlados. Numa vida sem ele, às 10pm do ponteiro digital eu estaria em minha cama, pronta para dormir e cumprir com minha escala do dia seguinte, ao invés de estar saindo de uma lanchonete qualquer perto da Saint Peter.
As situações tornam o tempo incontável, sem controle. É por isso que eu acredito na teoria maluca e profunda de um dos maiores pilares da física.
— Acho que depois desse tanto de batata frita eu preciso de uma boa caminhada. — se esticou ao meu lado, estávamos parados em frente a porta da lanchonete e eu cogitava pedir um táxi para voltarmos os dois quarteirões até o campus.
— Caminhar? Sério? — respondi manhosa, já com o celular firme entre meus dedos. — Olha, temos um Uber aqui pertinho! — mostrei a tela para ele.
— Meu bem, olha que noite agradável. — ele abriu os braços, mensurando nossa volta. Eu continuei tentando persuadi-lo com meu olhar.
— Está tarde… E eu tô muito cheia. — abaixei o braço, passando a mão na barriga. — Embora acredite que ainda consigo comer mais uma porção daquela bem cheia. Deveríamos pedir para levar, não? O vai querer, eu acho.
— O provavelmente vai passar aqui e pegar para ele. — se colou em mim, tirando o celular da minha mão com delicadeza e entrelaçando a dele à minha. Selou meus lábios rapidamente e ao se afastar, ajeitou a armação dos óculos. — Vamos, pesseguinha, o máximo que vai acontecer é sairmos rolando.
— Eu tenho um chute muito bom, faço você ir parar lá no seu quarto. Quer? — fingi seriedade, franzinho o rosto. Ele riu fraco, beijando meu nariz e guiando nossa caminhada para frente, ao trocar o lado comigo e me deixar para dentro da calçada.
Sem soltar a mão dele, apertei mais o nó entre nossos dedos, deitando a cabeça em seu braço. A noite estava muito estrelada e eu me sentia bem relaxada, não só por comer, mas pela companhia, obviamente. conseguia me fazer desligar do mundo, das minhas preocupações excessivas, minhas neuroses e paranoias. Ele conseguia me fazer acordar faltando apenas vinte minutos para as aulas em noites que eu dormia escondida no dormitório.
Estar com ele era como viver a todo momento a noite brilhante que tínhamos em cima de nossas cabeças, que no dia seguinte, pelo céu tão limpo e estrelado, traria a claridade de um sol brilhoso.
— Amanhã vai fazer um dia bem quente. — resmunguei, olhando para cima. — Podemos ficar na piscina lá em casa…
— Uau, olha só pra você… Falando em gastar um tempo sem ser estudando… E, deixa eu adivinhar, seu pai não voltou ainda?
Continuei agarrada ao braço dele, ainda com as mãos entrelaçadas, e senti meu corpo vibrar com a lembrança de que minha casa está vazia, como sempre. Seria trabalhoso cruzar a cidade para ir até lá, mas poderia valer a pena.
Eu só precisava convencer .
— Não. Podemos ir agora se quiser… — ergui o rosto para ele, tendo a visão perfeita de sua mandíbula por baixo.
travou e eu pude ver seu rosto ficar rígido.
Apesar de já ter passado um tempo desde a nossa primeira vez, ele ainda tinha certo cuidado ao tratar desse assunto. A descontrolada, sempre desejando fazer loucuras, era eu. Pra minha sorte, embarcava nas minhas maluquices.
— Dormir apertadinho na minha cama não te anima mais, senhorita Bee? — ele brincou em resposta, movendo apenas o olhar para mim. — Não é tão divertida?
— Claro que é… Qualquer lugar que eu possa dormir com você é divertido.
— Eu sei, meu bem. Eu sei…
Ele virou o rosto e deixou um beijo no topo da minha cabeça. E eu voltei, claro, a pensar sobre um assunto, fazendo a caminhada perder a unidade de medida, mas ele me soltou brevemente, pegando o celular de seu bolso com a outra mão livre; espiei pela curiosidade e mesmo que seu sorriso dissesse tudo, eu conseguiria saber que era sua mãe. No mesmo horário, todos os dias, a senhora Jeon mandava uma foto para ele de sua caminhada matinal.
— Bom dia, atrasado. — ele leu em voz alta, rindo nasalado. — Ela realmente se acha o máximo por estar algumas horas à frente.
— É quase um dia inteiro. É compreensível. Eu me sentiria incrível se estivesse no futuro. — virou o rosto para mim. — O que? Ela está no futuro, neném, horas à frente. Nosso presente é o passado dela.
— Tá bom, Einstein. — outro riso fraco, cessando os passos. — Vem cá, vamos tirar uma foto pra ela.
virou a câmera frontal do seu celular para nós e tiramos uma foto simples, comigo ainda grudada nele. Era bom demais para que eu conseguisse soltá-lo.
Depois de enviada, com a legenda "diretamente do passado, eu fiz questão de tirar mais fotos de para que ele enviasse para a mãe. A saúde dela não ia nada bem e, por mais que não tivéssemos tido uma apresentação formal, até por conta da distância, eu ainda assim a respeitava e entendia que merecia saber e ver o máximo que pudesse dele. Isso se entendia para , claro, por conta do final de sua graduação, as coisas estavam mais corridas e apertadas, então sempre que ela surgia, eu lhe dava espaço.
Durante o resto da nossa caminhada para o campus, mais uma vez gastei o meu máximo rindo e aproveitando cada segundo ao lado dele. Na entrada do prédio tinha uma máquina de doces, paramos para ele pegar um pacote de balas, seu vício para todas as rodadas que conseguia ter ao tirar um momento de descanso e poder jogar fosse lá qual jogo on-line quisesse.
— Vou pedir para a Kim deixar o café da manhã bem tropical e a gente já chega indo para a piscina… Porque se for mesmo vir esse calor que tá dizendo aqui…
Suspirei, já desanimada pela previsão do clima que eu lia no meu celular. parou em minha frente e eu fiz o mesmo, esperando-o girar a chave na fechadura. Porém, já estava destrancada. Ele olhou no relógio em seu pulso e depois abriu a porta devagar, revelando, na cama, um apagado com o corpo todo desajeitado na cama.
E ele estava roncando. Parecia dormir um sono que há muito tempo não tinha, me deixando com a consciência pesada. A partir da primeira noite que eu surgi do nada na porta deles, , todas as vezes seguintes, se dispôs a dormir fora para eu e ficarmos sozinhos. Na maioria das vezes (duas, na verdade) eu não me dei muito ao trabalho de convencê-lo a dormir em casa, até por ser injusto com o outro que também usava o dormitório compartilhado, era muito aconchegante, sem explicação nenhuma, ficar com ele ali, mesmo que a cama fosse de solteiro.
— Eu não sei o que devo pensar primeiro… — sussurrei, atrás de , que apenas virou o rosto para mim. — Se ele já chegou, significa que a conseguiu vencê-lo. Ele está sem emprego outra vez.
— Ou ela finalmente decidiu ficar em casa.
O tom de saiu bem protetor à integridade de e eu arqueei as sobrancelhas. Geralmente, a demonstração de afeto de modo geral vinha apenas pelo outro.
Cruzei os braços.
— A e "ficar em casa" são coisas que não combinam, neném. Impossível.
— Também me disseram que seria impossível conquistar você e… agora tem roupas sua no meu armário. — ele sorriu de lado, desafiador.
Não consegui sustentar seu olhar por mais tempo. Refleti sobre o fato de estar em casa em um final de semana e não ter me chamado para fazer qualquer coisa, o que sempre acontecia. Também pensei que, de repente, eu não podia mais afirmar muita coisa sobre ela, pela ausência.
— Que seja. A questão aqui é — descruzei os braços, passando por ele. —, nós vamos dar espaço para o bebezão dormir em paz. Ele me parece bem cansado, não acho justo acordá-lo para ir dormir no carro.
Parei ao lado de , analisando. Ele estava de bruços, com quase metade do corpo pra fora e a roupa toda bagunçada. Sua gravada, meio solta, passava por seu rosto virado para o lado da parede. Devido ao meu tremelique com a cor do lençol e ver seu corpo todo torto, não resisti.
— O que está fazendo? — perguntou, ainda sussurrando.
— Vou tirar o sapato e as meias dele… Tá calor… — respondi com dificuldade, por conta do peso de . Ele era mais alto que e bem mais encorpado, cheio de músculos, tendo jus à sua capacidade de comer no mínimo três porções de batata frita, o tanto que encheu a mim e naquela noite.
— Deixa que eu faço isso, pega suas coisas pra gente ir.
Me afastei, indo até a outra cama, enquanto ouvia ele resmungar o nome de conforme mexia nele e o ajeitava na cama.
— Ela deve ser mesmo bem… difícil. Nem dormindo ele tem paz. — riu.
— Digamos que ela consegue ser marcante. — peguei minha bolsa, sem muita coisa a ser arrumada, e me virei para a porta.
— Não vai me esperar? — ele se preocupou.
— Sim, no corredor. Tira essa roupa dele, coitado, não merece acordar amanhã derretendo debaixo desse monte de tecido.
— Aí você quer demais, Bee…
— Você quem escolhe, neném, ou tira ou eu tiro. — fiquei séria. — Seu único e melhor amigo, ele faz tudo por você, até dorme naquele carro velho e desconfortável dele… O que custa?
— Agradar ele é um caminho sem volta. Não. — fez uma careta, resultado de uma provável lembrança. Eu continuei encarando-o incisiva e quando fiz menção de voltar, ele bufou. — Tá bom, tá bom…
— Te espero lá fora, neném.
Mandei um beijo no ar e sai com a consciência tranquila e aliviada por ter feito uma boa ação. Claro que havia um interesse muito mais específico, por isso merecia cuidados. Agora que ele impediu a minha estadia no dormitório, eu poderia usar a piscina de casa antes do amanhecer, e ter o prazer de mandar todos os seguranças sumirem, desligarem as câmeras e me darem total privacidade.
Graças a Kim e seu sono pesado, eu ia ter um bom descanso de uma forma bem proveitosa.
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— O que você fez? — me olhou estranho assim que coloquei a garrafa de vinho e duas taças em cima da mesinha redonda de tampo de vidro; ele soou bem preocupado, e eu comprimi os lábios, unindo as mãos em frente ao meu peito. — Bee, essa sua cara não me engana…
— Dei folga pra todo mundo. — murmurei baixinho e ele arqueou uma sobrancelha para mim. — E desliguei as câmeras da casa.
— Eu tenho medo dessa sua cara de quem quer aprontar. — ele deixou o celular em cima da superfície, me encarando em silêncio, enquanto eu servi as duas taças com o líquido.
— Qual o problema em querer ficar sozinha com você e pedir privacidade para isso? — dei de ombros e ele soprou um riso, pegando a taça que eu estendi em sua direção.
— E por que você quer tanta privacidade assim?
recolheu as pernas, ficando com elas dobradas na esteira que estava sentado, e eu sentei em sua frente, também dobrando os meus joelhos.
Franzi o nariz, bebericando o vinho. Ele me acompanhava com o olhar e eu percebi que não tinha sido uma pergunta retórica, realmente estava esperando uma resposta.
— Eu nunca fui do tipo normal de pessoas que sonham com primeiras vezes, namoros… Embora eu tenha planejado tudo num post it. — ri fraco. — Por isso ele não é mais do que um pequeno papel colado no meu quadro. Ou era. — senti minhas bochechas arderem e desviei o olhar para a taça. — Antes de você aparecer, era só a e meu pai na minha vida, eu só tinha eles e… E ainda assim não era desse jeito, eu não sentia essa vontade absurda de estar com eles o tempo todo, igual tenho com você.
— Ainda bem que a não está aqui para ouvir isso… — ele fez uma careta e nós dois rimos.
— Ela é a pessoa mais importante na vida, a sua chegada não vai mudar isso. Só muda o fato de que agora eu penso sobre esse processo… Entende? O que tem o resultado num post it. — passei a língua pelos lábios, bebendo mais um pouco pela vergonha. — E não dá pra eu querer aquilo com a , não é minha identificação.
assentiu, secando sua taça e colocando na superfície ao lado. Ele se aproximou, abrindo as pernas e me encaixando entre elas. Pousou seus dedos em cima da minha pele, na altura do joelho dobrado, onde o tecido curto do babydoll não alcançava.
— Você fala dormindo, sabia? — disse um tanto aleatório e eu franzi o cenho. — Sim, você fala. A primeira vez que dormiu no dormitório, por causa das borboletas, você ficou resmungando que só tentaria uma vez. Uma única vez. E eu notei que quanto mais te abraçava, mais você se sentia… sufocada.
— É, eu não consigo ser a concha de dentro. Desculpa.
— Não precisa se desculpar. — ele passou a costas de sua mão em meu rosto, numa carícia gostosa. — Eu sei que sou seu primeiro, embora não em tudo — revirou os olhos de forma dramática, provavelmente por estar citando o que lhe contei sobre , e eu ri fraco. —, mas eu quero muito honrar esse papel. Eu quero muito ser a sua única vez e de uma forma duradoura, Bee.
A taça presa entre meus dedos só não caiu porque foi mais rápido e tirou ela de mim, se esticando o mínimo para juntar com a outra na mesa ao nosso lado. Fiquei olhando para ele como uma bocó, sem saber o que dizer e sequer pensar.
Minha mente trabalhou como um filme rápido, igual todas as entradas dos filmes da Marvel, em que passa um rolo de personagens e cenas dos heróis para formar a fonte do logo da marca, passando momento por momento até aqui. E não tinha como eu não me sentir tão certa pela tentativa. Ter visto meu pai sofrer pela partida da minha mãe havia me feito enxergar o ceticismo, me impedindo de conseguir acreditar ser possível conciliar todas as minhas prioridades com um relacionamento.
Mas agora, também era preeminente.
— Você só precisa continuar fazendo o que faz. — respondi a ele, pegando em sua mão e beijando-a. — Me protegendo de borboletas, lembrando quando eu tenho que tomar meu remédio da diabetes, obrigando as minhas pausas para sair comer, e me levar naquela lanchonete, claro! Só precisa continuar cuidando de mim como está fazendo, isso já basta.
— Eu realmente tenho medo de não ser o suficiente.
— Quem foi que colocou esse medo em você, hein? — franzi o cenho. Sua mão caiu em cima do meu colo e nossos dedos brincavam com uma autonomia própria. — Mais cedo você disse que te disseram que não conseguiria me conquistar… Quem foi?
— Você não vai esquecer isso, não é? — ele fez um bico.
— Sabe que não. Eu estava esperando a hora certa para perguntar.
— Foi o . — entortou o bico, parecendo ter uma lembrança dolorida. — Quando eu recorri a ele pra saber sobre você, ele riu de mim e disse que não adiantaria eu tentar. Eu realmente queria saber se você estava bem… Ainda não tinha nenhuma outra intenção naquela época.
— Ele estava certo. — cortei, achando graça e um pouco coerente. Já conhecia bem para saber a justificativa dele, mas esperei continuar. — Prossiga. O que ele te disse?
— Que eu deveria esperar. Se fosse do seu querer, então você viria até mim.
— Tá vendo? Ele estava certo. — ri, usando a mão livre para apertar a bochecha de . — Não foi você quem me conquistou, o processo foi o inverso. Ou acha que eu realmente quis seu número só pelo ?
estreitou o olhar.
— Então você quer dizer que foi tudo um plano articulado seu?
Ergui a mão, assentindo.
— Culpada.
— No fim, o jornaleiro estava certo. — riu, usando a forma como chamava . — Ele realmente te conhece bem. Igual o .
— Quer saber o segredo deles? — ele assentiu leve e eu me aproximei inclinando o tronco para frente, falando em sua orelha: — Eles também tentaram, mas falharam. O máximo que conseguiu foi um beijo e a amizade. Por isso ele sabia que não daria certo. Você tirou o bilhete premiado, Jeon.
— Valeu a pena ser quase espremido por uma prateleira, afinal.
Rimos juntos e quando eu fiz menção de retornar o corpo para trás, soltou minha mão, usando as duas para segurar minha cintura. Fiquei presa em seu olhar com o rosto levemente virado de lado, sentindo a ponta de seu nariz esbarrando no meu. Seus olhos, como uma regra, me hipnotizaram, e eu só fui sentindo, como se aquilo me deixasse com a vista tapada.
Suas digitais pressionadas em minha cintura, por cima da fina cama de minha camiseta, já me deixaram arrepiada. Porque era assim, qualquer contato mais próximo, conseguia me fazer totalmente dele, totalmente entregue e pronta para fosse lá o que viesse a seguir.
Ele não demorou a me beijar, levando meu corpo a se erguer sozinho e encaixar-se por cima de seu colo, com as pernas passadas uma para cada lado. O beijo tão a nossa cara, tão nosso, começou de forma serena, até porque não tínhamos pressa alguma. Se ele tinha as duas mãos em minha cintura, eu tinha uma das minhas em seu ombro e outra fechada na nuca macia, dedilhando a pele que eu amava tocar e passando a ponta das unhas como sequência, apenas para sentir a forma ouriçada que ele correspondia.
Do beijo sem pressa, nós passamos para o intenso e profundo. Eu não dedilhava mais meus dedos em sua nuca, agora estava com os braços semi apoiados em seus ombros e as palmas das duas mãos colocadas no rosto, sentindo a maciez, ainda que houvesse o áspero da barba feita. afastou os lábios dos meus, beijando meu pescoço, e eu pendi a cabeça levemente para trás para me deliciar com a sensação e deixar tudo exposto para ele. Automaticamente meus dedos se moveram e foram para os cabelos macios, bagunçando-os. De forma breve, quando soltei meu primeiro gemido arrastado, ele parou e nós dois nos encaramos por alguns segundos.
Custei a desviar o olhar para baixo, levando minhas mãos a acariciar seus ombros nus e deixando as palmas se deslizarem pelo peito alto. Mordendo os lábios, tirei seus óculos, colocando na mesa, junto das taças, com cuidado. Ao voltar o corpo ereto em cima de seu colo, ele deixou um beijo no meu queixo, com a cabeça inclinada levemente por nossa diferença de altura, em seguida tirando minha camiseta de cetim, conjunto do babydoll que havia vestido ao chegar em casa.
— Bee… — ele cantarolou ao me deixar nua, pois eu não usava sutiã.
— Jeon … — imitei, mordendo os lábios.
Ele soprou um riso, sorrindo em seguida, antes de se enfiar com o rosto novamente no meu pescoço para descer até meus seios. A cada toque dele eu correspondia com meu quadril se remexendo sozinho, em reflexo, e quando pude sentir a ereção embaixo de mim, os gemidos arrastados que acompanhavam os beijos suaves passaram a se tornarem mais precisos, ansiosos. Me forçar contra o quadril de para sentir a fricção entre nossas partes transportava todo o meu corpo para outra dimensão, deixando minha respiração descompassada e sem ritmo. Agora que eu não sentia mais ardências e estava acostumada a receber suas estocadas, me via sempre ansiosa por isso.
As mãos de caminharam para o meu quadril, já me conhecendo o suficiente para saber o que eu queria, e na minha cabeça, quando ele passou os dedos pelo cós do meu shorts, algo se acendeu em alerta pela responsabilidade da camisinha. Enquanto ele tirava seu shorts e a cueca, depois de nos livrarmos do meu último tecido, isso continuou brilhando no meu cérebro.
E ele pareceu pensar o mesmo.
— A gente precisa subir. — disse, usando as costas das mãos para tirar meu cabelo da frente do rosto. Só que eu já estava sentada, encaixada demais no conforto dali para ser responsável.
— A gente precisa subir. — repeti, arrastando uma sílaba ao senti-lo contra minha entrada. — Mas só por hoje… — outra vez a voz saiu arrastada.
— … Já fizemos isso uma vez...
— E deu tudo certo. — tentei sorrir aberto, jogando todo o meu charme em meu quadril.
fechou os olhos e eu vi que ele engoliu a seco, pelo movimento de seu pomo e também as mãos fortes me apertando na cintura. Meu corpo automaticamente se colou ao dele e eu desci, engolindo seu membro com a minha lubrificação. Mantive os olhos bem abertos para captar cada reação dele, enquanto eu, sozinha, fiz questão de dar a ele tudo de mim. Foi meio a contragosto, mas consegui espalmar minha mão por um tempo em seu peito, fazendo-o deitar as costas contra o encosto da esteira, e conforme eu — como me disse uma vez que aprendeu com — “quicava” em cima dele, deliberei uma parte de mim que jamais pensei existir. E essa parte era sempre alimentada por ele.
Com gemidos, nomes sendo trocados, carícias e palavrões — porque falava muito deles, inclusive, e eu achava sexy demais a forma como ele ficava com a voz mais funda e rouca, bem grossa, xingando por prazer — eu o levava para fundo de mim. Em certo momento, um pouco perto de chegar lá, ele se desencostou da esteira e se manteve reto, com um dos braços me envolvendo para que a mão se fechasse em meus cabelos, usando isso para mover meu pescoço e poder levar sua boca até a pele exposta. Quando eu me vi perdida pela chegada, afundei o meu rosto na curva do dele, como um ritual.
Ao sentir o jato quente dentro de mim, eu amoleci, com meu corpo todo tremendo e os músculos recebendo espasmos. Mesmo com a respiração falhada, eu soltei um alto e arrastado gemido em anúncio do óbvio, logo em seguida fechando minha boca em uma mordida — não tão leve — próximo à nuca de . Não seria a primeira vez que eu fazia isso.
A atmosfera foi brevemente interrompida pelo toque do celular dele.
— Não vai atender? — perguntei, limpando a garganta.
— Deve ser os meninos chamando para jogar.
— Não vai jogar hoje? — mantive meu encaixe no pescoço dele, com a cabeça deitada em seu ombro.
— Tenho algo mais interessante para fazer. — outra resposta preguiçosa.
Ele voltou a encostar-se no encosto da esteira, com nossos troncos colados e ainda na mesma posição. Era sua mania de silêncio após todas as nossas transas.
Mas eu nunca conseguia passar mais do que alguns segundos quieta. Uma lembrança me fez acordar daquela sensação de maratona.
— Sabe o que chegou? — me levantei de seu peito, sorrindo e empolgada, ainda que estivesse um pouco cansada pelo esforço físico, mas mantendo as mãos espalmadas ali. Ele tinha os olhos fechados. Abriu um, apertando os dedos na minha cintura.
— Não me diga que é aquele casaco que você encomendou para o Alasca…
— Não! — revirei os olhos. — Sim. Na verdade, chegou também, mas você não se importa com isso… Eu tô falando do kit… Nosso golfinho chegou.
o abriu os dois olhos e seu sorriso acompanhou, se estendendo de orelha a orelha.
— A gente precisa subir! — dissemos juntos e nos levantamos.
— Mas antes eu preciso de uma passada na cozinha, estranhamente já estou com fome. — avisei enquanto me enrolava na manta da outra esteira, ao lado da que usamos. Não iria me vestir com o baby doll, para ter o trabalho de me despir de novo, e não estava usando calcinha e sutiã antes. Isso bastaria.
— Devíamos ter pedido batatas fritas para viagem, sim? — fez um bico, terminando de vestir a cueca.
— E se pedirmos pelo delivery? Enquanto a gente espera, já testamos o golfinho. Acho que ele veio com um brinde… Um cubo cheio de escritas…— levei as mãos à cintura, tentando controlar o sorriso empolgado. — E eu to com muita vontade mesmo de ver a nova temporada de Stranger Things, podemos ficar fechados no quarto e só sair de lá para ir para a aula…
— Eu realmente estou criando um monstro.
me pegou de surpresa ao passar os braços por trás de mim e me pegar em seu colo. Em meio a risos, subimos.
Se tinha uma coisa que da qual me fazia acreditar e muito no fenômeno do tempo, esta era a forma como os dias iam se passando e eu já não me sentia a mesma desde que ele havia entrado na minha vida. Eu não me importava mais com as quebras de horários, de trocar minha Lizzo ou Taylor Swift por podcasts sobre jogos e cultura coreana, dividir meu espaço de estudos na biblioteca — do qual todos na universidade pareciam ter conhecimento de ser algo “exclusivo” por eu ter demarcado o território —, sequer me importava de estar toda suada, suja de sexo, dividndo espaço com outra pessoa.
Eu olhava para trás e não via um passado, porque tudo o que eu estava vivendo com era perfeito demais para ficar para trás e serem apenas memórias.
Capítulo 14: O não namorado
— …I get so high, oh! Every time you’re, every time you’re lovin’ me. You’re lovin’ me. — fiz uma pausa para respirar e continuei com a música: — Trip of my life, every time you’re, every time you’re touchin’ me… You’re touchin’ me…
— Você poderia parar de cantar essa música comigo aqui, não poderia?
Ignorei a reclamação de e aumentei o volume, reconhecendo o próximo acorde. se juntou a mim.
Olhei para ele e, entrando na minha, como já sabia que eu adorava cantar Don’t Blame Me a plenos pulmões, me acompanhou — não cantando, no caso, mas me dando apoio como um grande fã. Ao fim, vi que estava emburrado no banco de trás.
— Tá bom, você pode escolher a playlist de agora… — relaxei no banco e ele sorriu simples, começando a fuçar seu celular de novo. Provavelmente procurando a rede de bluetooth do carro para conectar-se.
— Fala sério! — se colocou entre os dois bancos, quase alcançando o vidro da frente. Tudo para ver algo no painel. , dirigindo, me encarou com as sobrancelhas arqueadas, também sem entender. — Quando foi que você mudou o nome do bluetooth para “”?
— Ah... — voltei a olhar para frente, ouvindo a risada de no mesmo momento que ele levou o dorso da minha mão para seus lábios. — Uma longa história.
E não era mentira. Eu realmente tinha uma longa história sobre isso, a começar num dia de desespero que entrei correndo na biblioteca até o momento exato que precisei de ajuda para compreender o manual do meu próprio carro.
— Você é brega, Bee... — voltou a se encostar no banco e eu pude ouvir suas reclamações quase mudas passando por cima da voz de Lizzo no som. — Primeiro você pede para a investigar o cara, depois fica sumida, chama ele de neném pra cima e para baixo e agora troca o nome da Veronica para a junção dos seus nomes?
Já na primeira parte eu quis me afundar no banco, olhando de soslaio para , vendo-o me encarar brevemente, não tirando a atenção da estrada por muito tempo. Apertei a minha mão que estava junto com a sua, em seu colo, tendo o mimo de poder estar ali já que o carro era automático e ele conseguia se concentrar com apenas a sua esquerda no volante.
Fiquei com medo dele me rejeitar, mas fui apenas encarada com a certeza de que seria questionada posteriormente, até porque não tinha a mínima intenção em ficar quieto desde que saímos de Inwood rumo a Long Island para a confraternização anual dos alunos, sempre organizada pelo pessoal popular dos times atléticos da universidade — os Tigers Woods. Pela primeira vez, em anos, me arrependi de dar carona para o fofoqueiro por profissão.
— Isso não é nada a sua cara. — continuou e eu vi que estava com os braços cruzados, sentado no centro do banco de trás. — O próximo passo é mudar o status na internet para “namoradinha dele”?
— Não. — respondi, encontrando um espaço para humor, e me inclinei para o lado, olhando ao me aproximar dele, que, em sintonia, também virou o rosto para mim, a fim de me receber com um beijo. — Vai ser “pesseguinha dele”. — completei.
freou bruscamente quando selamos nossos lábios e eu estava pronta para ralhar com ele, mas vi que atrás de nós dois, tinha o celular apontado.
— Obrigado, Bee. Sua vida amorosa é muito mais interessante do que a de . — ele sorria para o celular e eu fiquei sem saber o que dizer, voltando a me sentar encostada. — Agora que ela tem segurança, ficou tedioso. Vamos falar sobre o seu namoro, então!
— Ah... — resmunguei, sem forças para refutar. não iria se calar e mudar de opinião, não adiantaria gastar saliva.
— Espera. — levantou o rosto, se colocando entre os bancos outra vez. — Vocês dois estão namorando, sim? Como eu não sei sobre o pedido de namoro?
Eu e nos encaramos assustados na mesma hora.
Não tínhamos chegado nessa parte ou tínhamos pulado a formalidade?
Assim, ele estava dirigindo meu carro. Era o rosto que mais tinha saído nas minhas polaroides nos últimos tempos. Eu tinha tido minha primeira vez com ele. Dormíamos juntos pelo menos duas ou três vezes na semana, já não sabia mais contar.
Ainda precisava disso?
Pela ordem natural, se não tínhamos passado por essa parte, então nosso relacionamento não era bem um relacionamento?
— Entendi. — pela demora, voltou para trás por um tempo, retornando pela terceira vez e se direcionando a . — Olha, se isso não é namoro, eu não sei. Porque a sua... como é mesmo? Pesseguinha? É... A Bee, ela não é fácil não. Mas se você não souber exatamente o que quer, tem muita gente que sabe.
— ! — ralhei, me virando rapidamente, o que fez com que minha mão soltasse a de .
— O que foi? Não estou mentindo, . Olha só. E eu não estou nem falando sobre mim. — ergueu o celular para mim, mostrando que a foto de mim e se beijando estava em um grupo de universitários. — O primeiro comentário. — tomei o celular de sua mão. — Eu superei, MB. Mas o tigrinho aí, não. Então o nosso neném aqui… — bateu no ombro de . Ele estava falando sobre . — …precisa demarcar mais o território... — se virou para mim. — E antes que você venha com papo, quando digo território, estou usando de forma crua. Eu sei que você não é um objeto ou terra. Só quero dizer que ele precisa mostrar com quem você está, porque mesmo que você coloque um letreiro, tem gente que não vai superar, não...
Depois de seu discurso, tomou o celular da minha mão e eu quis cavar um buraco no estofado de couro para me afundar.
Parecia que tinha tudo ido de 100 a 0 em um piscar de olhos.
📚
O calor estava insuportável para ser apenas o começo de um verão. Perdi a conta de quantas vezes precisei ajustar o ar-condicionado do quarto enquanto buscava a melhor opção de biquíni para passar basicamente o dia todo torrando no sol da praia lotada de Long Island. Tanto demorei que, em algum momento, decidiu que a companhia de seria mais interessante e disse que me esperaria no quiosque onde estava reservado para a turma da universidade.
Não tive como brigar com ele por isso, eu realmente não estava tão decidida ainda sobre mostrar meu corpo para outras pessoas, principalmente envolvendo os universitários da Saint Peter que não fossem Jeon . O cara que eu tinha um relacionamento há algum tempo e não sabia dizer se era meu namorado ou não.
— Pronto. — ele se aproximou de mim, parada diante do espelho do banheiro, e deixou um beijo em minha nuca. — Estou indo... E você tenta não demorar, OK? Quero ir no banana boat como planejamos.
— Tá, tá... — acenei com a mão, um pouco irritada. Talvez pudesse ser os meus hormônios da pré-menstruação. — O plano maluco de morrer em alto-mar, pode deixar.
riu, deixando outro beijo em minha nuca. Antes de sair em definitivo, deixou um tapa não muito forte em minha bunda.
— Jeon! — ralhei, ouvindo sua gargalhada ir sumindo.
A porta do quarto fechou e eu voltei a encarar meu reflexo no espelho.
Não tinha como negar, eu estava diferente. Nitidamente diferente. Não era apenas o “glow” de alguém apaixonado, tinha algo a mais. Meu corpo tinha mudado e eu não me sentia mais tão presa em minha própria sombra negativa e monótona. Talvez o algo a mais fosse essa soma de outra pessoa em minha vida, esse tal “Jeon ”.
Mas, mesmo que eu estivesse radiante diante de mim mesma, ainda tinha um negócio me deixando mais bipolar e eu precisava que me deixasse um pouco sozinha para conseguir entender melhor. Me interpretar melhor. Sem ele junto, eu sentia saudade, claro, mas conseguia ser mais racional.
A nota mental adquirida, enquanto espalhei protetor solar em meu corpo todo, foi de agendar uma consulta ginecológica e, de momento, descer com o filtro de cor para passar no pescoço dele, exatamente onde eu tinha deixado uma marca um pouco perceptível. A última, no caso, me deixando um pouco trêmula e preocupada.
Assim que finalizei e desisti de continuar me enfeitando demais, com o cabelo preso e já vestida com a saída de praia feita de tricô, saí do banheiro. Levei tudo para a cama, arrumando a minha bolsa de praia milimetricamente organizada. Então ouvi batidas na porta, mas não muito suaves.
— Vai me dizer que ele perdeu o cartão de acesso outra vez. — suspirei, indo abrir. Levei a mão até a maçaneta, me assustando com a outra batida forte, apressada, e finalmente puxei a porta. — ? — estranhei ao abrir.
— É, é a . A mesma que dividia quarto com você nessas viagens. “ Bee e Jeon ”? Que porra foi essa que me disseram lá na recepção?
Engoli a seco. dificilmente se estressava comigo, era por isso que nunca tivemos problemas. Pelo menos não até eu começar a esconder as coisas dela, claro.
Conforme ela foi dizendo, foi entrando e me fazendo dar passos lentos para trás.
— Eu... — iniciei, me perdendo no olhar furioso dela. — Achei que você não fosse se importar.
Sei que não foi minha melhor resposta e isso ficou muito claro quando ela fez uma careta de impugnação pelo o que disse. Levou alguns segundos para que respirasse, antes de explodir outra vez.
— Eu não me importo com a droga do quarto, Bee. Eu só quero saber por que você tá me deixando de fora de tudo. Mais do que o normal. — sua voz estava alta e eu espiei por cima dos seus ombros a porta que ficou escancarada.
— Eu não estou te deixando de fora. — continuei dizendo baixo, com a voz quase não saindo. Geralmente eu não era o tipo de pessoa que sabia se dar bem em conflitos, com pessoas gritando e apontando dedos contra mim. Não conseguia lidar com a frustração dos outros perante a mim em específico.
Teto de vidro, todo mundo tem. Assim como o espeto de pau.
— Você sempre foi ocupada, . — dei de ombros, tentando ser casual. E vi, pelo comportamento corporal dela, que isso piorou as coisas. — Principalmente depois que voltou do ano sabático. E agora você tem a , com quem tem afinidade, então eu só te dei espaço. — olhei para tudo, menos em seu rosto.
expeliu um grunhido, altamente irritada, tomando meu olhar de forma assintomática.
— Cabe mais de uma pessoa de uma vez na minha vida, . Diferente da sua, que costumava caber só a mim e ao seu pai. Mas agora que esse coreano chegou, parece que eu dancei, não foi? — por mais que sua voz estivesse mais baixa agora, eu conseguia ver na feição de que ela ainda estava brava. Ela ainda estava chateada.
Não sei dizer quando foi e como exatamente aconteceu o momento em que eu a cortei, mas apenas aconteceu. Talvez o fato de eu nunca ter deixado outras pessoas fazerem parte da minha vida não foi porque eu queria focar no meu sucesso profissional, não tinha como eu pensar em cima dessa perspectiva desde criança, sendo inocente e livre de qualquer malícia mundana. Lembro certa vez que uma das terapeutas às quais meu pai insistia em me levar, depois de descobrir sobre minha mãe e a história real, dizia que eu tinha uma grande dificuldade de conseguir focar minha confiança em mais de uma pessoa.
Podia ter isso em e meu pai, mas eu sempre deixaria um mais para fora do que para dentro. E foi exatamente isso o que aconteceu quando fizemos amizade, meu pai, de acordo com o passar dos anos a longo prazo, foi ficando de lado. Não um de lado no esquecimento, mas nossa convivência se reduziu e muito. Tal qual a minha e de quando chegou.
Mas eu não devia me sentir sempre errada por ter novas pessoas em minha vida. E ela me conhecia o suficiente para saber que não se tratava de algo que eu pudesse controlar. O tom de fez parecer como se estivesse sendo um pivô em nossa amizade, de uma forma negativa.
Avancei um mísero passo, devolvendo:
— Você está com ciúmes por que agora não é mais a única na minha vida? Você pode se relacionar com as pessoas, ter outras amizades, mas eu não?
— Você pode fazer o que quiser, se relacionar com quem você quiser, desde que me mantenha minimamente informada sobre a sua vida. É o que as amigas fazem! — bateu o pé de forma quase histérica, com os braços caídos às laterais do corpo e as mãos fechadas em punhos.
— Amigas têm tempo para ouvir. Você não é uma pessoa facilmente acessível. — senti um sorriso sarcástico se formar em meus lábios à medida que meus olhos reviraram. — Desde que voltou da Europa, nem mesmo teve totalmente a sua atenção. E se conseguisse mesmo administrar todas as pessoas na sua vida, não estaríamos aqui, agora. As coisas mudam, !
— Então tá, Bee. — ao lado de tinha um sofá encostado à parede, entre o espaço da parede que dividia a entrada do banheiro e a porta de entrada do quarto. Ela pegou de cima dele uma almofada, canalizando ali a sua energia raivosa. — Eu estou bem aqui. Agora. Você não tem nada melhor para me dizer do que ficar me acusando de uma ausência que foi sua? Suas mensagens sempre ficam visualizadas, mas nunca respondidas. — e outra vez, ela foi dizendo e indo para a frente, enquanto eu ia para trás. — Se eu vou na sua casa, escuto que você está com . Eu sou a pessoa que não é facilmente acessível aqui?
jogou a almofada no chão e se fosse algo pesado, não fofo, teria causado um estrago enorme em seu pé. Ainda mais sendo vidro. E quando ela fez isso, mesmo sem o barulho do impacto forte contra o tapete, eu me assustei, sentindo um choque em todo meu corpo. Automaticamente dei um passo largo para trás, batendo o corpo contra a janela, por sorte fechada por conta do ar-condicionado ligado — eu poderia me desequilibrar e cair, porque o batente era muito baixo e a cortina, mesmo sendo da sanca até o chão, não iria me segurar.
Abracei meu próprio corpo, sentindo-me um pouco zonza e alguns calafrios. É incrível a forma como o nosso cérebro pode pregar peças e traumas em nossa mente assim, tão rapidamente. Só de mencionar o fato dela estar chateada e eu ter sido, realmente, a causadora disso, comecei a passar mal silenciosamente.
E também me lembrei que não tinha tomado os remédios da diabetes ainda naquela manhã.
— Olha, eu sei que tô ausente! — respondi do jeito que consegui, por conta do mal-estar repentino. — Mas é tudo uma novidade. E você mais do que ninguém deveria entender em vez de chegar aqui e me jogar contra a parede assim. — minha voz continuou baixa, bem fraca pela culpa carregada. — Eu não estava acostumada a dividir atenção, a ter essa vontade de falar com alguém que não fosse você ou meu pai. Só que aconteceu e eu ainda tô lidando com essa novidade. Você começou a sair mais, tem a sempre junto... Meu pai não para mais em casa... Então eu tive espaço e... — me perdi nas lembranças que foram correndo em minha mente dos acontecimentos, deixando um sorrisinho fraco e automático escapar ao me lembrar do, quase, último ano. — Aconteceu.
Ela foi se aproximando de mim em silêncio, olhando em cada centímetro do meu rosto com a feição sisuda se desfazendo e agora mais atenta em meus detalhes. E, conforme se aproximou em definitivo de mim, eu fui me encolhendo, ainda abraçada em minha própria cintura. Levei um susto quando, em um tom alto outra vez, ela disse:
— Bee, cala a boca! — colocou uma das mão em meu rosto. — Você tá gelada, vem cá, senta aqui! — e me puxou pelo braço até a cama, me sentando ali, sem muita escolha. Observei ela ir até o frigobar e tirar uma água de dentro, arrancando o alumínio do copo, para abrir, de forma rápida. Quase desesperada. — Para de falar e toma esse copo d’água. Você tá branca que nem um papel, o que é isso?
Mais uma vez eu não tive escolha. Beberiquei um pouco do líquido gelado e ela, logo que se sentou ao meu lado, se levantou, resmungando coisas sem sentido e procurando meu aparelho para medir a glicemia e o de pressão. Sequer tive tempo de apontar o banheiro — mesmo que fosse fazer isso e me arrepender depois, porque a medição sairia alterada de uma forma ruim, haja vista que não tomei meus medicamentos matinais, e teria um motivo a mais para ralhar comigo.
Logo, ela estava muda. Não podia mais ouvir seus resmungos cessaram e eu me joguei com as costas contra o colchão, deixando o copo em algum lugar no meu esquecimento.
Ela tinha encontrado a gaveta do lado do . Cheia de coisas dele, como a caixinha do óculos reserva, que eu descobri ter sido uma sugestão da sua mãe depois do nosso acidente, seu livro da vez e, claro, inúmeras camisinhas.
Senti o colchão afundando ao meu lado, tinha se sentado outra vez.
— Bee... Quando? Como? — conseguia perceber a confusão em sua voz e assustei quando ela berrou. — Ele te machucou?
Encarei o teto por alguns segundos, refletindo minhas saídas.
Sem encontrar nenhuma, respondi baixinho:
— Faz algumas semanas... Ou meses, não tenho certeza mais. — fiz uma careta, já sabendo que viria mais outro berro.
— Como assim “não tenho certeza?” Isso é grande, Bee! Você já foi ao médico? Você tá se cuidando? — me deu um tapa na testa, não forte, nem fraco. E era algo corriqueiro de quando éramos mais novas e achávamos que isso seria o suficiente para fazer alguma memória esquecida retornar. — Claro que não tá, eu te conheço! Eu devia te matar agora! Mas eu não quero fazer isso porque eu tô muito feliz por você! E com raiva ao mesmo tempo! Argh! Bee!
Nunca gostei das suposições de coisas sobre mim ou que dissessem o que eu deveria fazer, sem que eu perguntasse. Mas desta vez, ao ouvir falar desta forma, eu apenas arregalei os olhos com uma lembrança aterrorizante. Porém, eu não iria pedir que ela me lembrasse sempre sobre o uso da camisinha.
Na verdade, eu precisava dar esse mesmo tapa na testa de , para que ele também se lembrasse e me lembrasse quando estivermos burlando a regra da proteção.
E mais uma vez um futuro sendo salvo pelo tapa na testa. Vovó nunca esteve errada em colocar a eficácia disso na nossa cabeça.
Para que ela não me questionasse, não demorei a responder:
— É claro que eu tô me cuidando. — me levantei, logo surgindo um arrependimento por ter feito isso rapidamente. — Não sou mais criança, . Sei me cuidar! — mas mantive a postura.
— Eu sei que você sabe. Eu só queria que você ainda precisasse de mim para isso.
Sentada ao seu lado, apenas movi o olhar para visualizar seu rosto com uma careta melodramática, usando seus lábios para formar um bico.
O que nunca me convenceu. Ela conseguia ganhar o avô e trapacear com Dorota assim, mas comigo não funcionava desta forma.
Entretanto, a verdade deveria ser dita e esta era de que eu tinha errado com . Ela realmente tinha um ponto naquela discussão. Tudo o que eu menos precisava era que a pessoa mais importante na minha vida fosse afastada de mim por minha própria negligência. O que eu estava crescendo com era bom e importante, mas não era substituível assim.
— Mas eu ainda preciso. — suspirei junto à minha resposta, sendo honesta. — Não do jeito que era quando tínhamos doze anos. Mas eu ainda preciso de você... Agora não é mais para você me ensinar a interpretar um livro com tradução arcaica. Mas... Para não acreditar nos contos do falso romance de Cinquenta Tons de Cinza... — usei de humor, resvalando meu ombro contra o seu, e lembrando dela batendo o pé para mim que eu não deveria acreditar na tal trilogia, porque aquele romance lá retratado era muito mentiroso e problemático. Tudo bem que eu não precisava que ela me dissesse exatamente sobre isso, até mesmo um estudante do primeiro semestre de psicologia conseguiria analisar isso. Mas sempre foi sobre e sua proteção de irmã mais velha. Até porque ela era, segundo a astrologia, o meu inferno astral (a pisciana contra eu, ariana). — Não que eu queira ouvir as suas experiências em detalhes ou contar as minhas, mas... Sabia que o conseguiu me fazer pegar a balsa da Ilha da Liberdade? — não tinha como evitar, era só citar o nome dele que o sorriso em meu rosto se formava sozinho.
— E como é que eu ia saber se você não me contou? A minha bola de cristal está quebrada. Igual a sua cara deveria estar agora. — arqueei sobrancelha para e ela começou a relaxar o corpo logo em seguida ao seu desabafo violento. — Mas acho que, se eu te bater, vou ter que me entender com o e o não vai poder me defender. Ele meio que nutre um amor platônico pelo seu namorado, acho que você deveria saber disso.
Imediatamente a voz de ecoou em minha mente com toda a sua conversa no caminho para Long Island no dia anterior.
— Ele não é meu namorado. — murchei, olhando para o laço amarrado da minha saia toda cheia de furos pelo próprio modelo ser assim.
Fui empurrada por ela brutalmente e cai em cima dos travesseiros, de lado. Tive uma vertigem e reclamei, claro.
— Você transou com um cara que não é seu namorado? Bee! Quando você deixou de ser crente?
E voltamos tudo outra vez.
Me sentei novamente, começando a perder um pouco da paciência com o papo.
— Você sabe que eu não escolhi ser virgem, eu só nunca senti antes essa vontade com ninguém. Até pra beijar na boca demorou! E... — respirei fundo. — Não é que não somos namorados. Eu só não sei! — neguei com a cabeça, confusa e querendo tirar a voz de da minha mente. — Assim, ele dorme em casa... Eu dormi algumas vezes no dormitório... Fazemos muitas coisas juntos e ele não me esconde. A gente até anda de mãos dadas na universidade... Almoçamos juntos e eu divido meu espaço na biblioteca principal com ele. Ele dirigiu a Veronica até aqui, estamos no mesmo quarto e... — sorri um pouco culpada. — Ah! A Dorota sabe sobre ele. Mas... Ninguém falou sobre namoro.
Esperei a reação pavorosa de , mas ela apenas ficou me encarando com as pálpebras piscando em uma frequência rápida e quieta. Demorou um pouco e ela disse:
— Você é maluca, Bee. Você não fala nada, ou fala demais. — ergueu um dedo para mim. — A propósito, a Dorota acabou de perder o bônus dela por não me contar essa fofoca. Não gosto de vocês duas de segredinho comigo.
Me olhou de cima a baixo, com uma “bitch face”, cruzando os braços.
— Eu sei. Mas ela não teve culpa nisso, fui eu quem implorou para ela não contar. Você mandou ela em casa justamente quando o estava lá. — suspirei. E era assim: ou sorriso ou suspiro ou os dois juntos. — Enfim, é isso, não somos namorados... Quem sabe ainda tem chance? E antes que você fale mais, é meio impossível não notar o amor dele. Por isso não tive outra escolha a não ser levar o pra minha casa... Já pensou que horrível ele aparecer bem na hora e... — tagarelei, esquecendo das pausas.
se esticou para pegar a água na mesinha ao meu lado e me devolveu, massageando suas têmporas.
— Bee... — respirou fundo, me induzindo com seu olhar a beber a água. — Respira. Fico feliz que não tenha flagrado vocês, eu quase subornei ele para fazer isso, mas aquela sombra irritante é incorruptível e ele não me entregou nada sobre vocês dois. Mas, eu preciso confessar. Eu já sabia.
Arqueei a cabeça, ainda com o copo na boca.
— Você tá diferente, amiga. — sua mão foi direto no meu rabo de cavalo, tão incomum quanto o biquíni em meu corpo. Geralmente era cabelo sempre solto e um maiô. — Tá mais confiante, mais aberta, e está até considerando usar um biquíni! Na frente de outras pessoas! Eu odeio admitir, mas acho que aquele quatro olhos teve tudo a ver com isso. É bom se sentir desejada, Bee. E tá na cara o quanto ele deseja você. Na cara e no pescoço, porque todo mundo já viu a marca que você deixou.
A marca.
Quando dizia que eu precisava pegar leve no quanto demonstrava o meu fraco por sua nuca, ele realmente falava sério.
— Ele gosta mesmo de você. Dá pra sentir. Ele vai te pedir em namoro uma hora ou outra. Se ele não pedir, então desconfie, é porque o amor do não é tão platônico assim! — senti o humor de tomando conta e relaxei novamente, deixando o plástico seco de volta na mesinha.
Ri fraco e a acompanhei.
— Eu tenho quase certeza que não é. Vai que no futuro eu tenha sido só a chave para ele conseguir o Green Card e depois assumir um segundo relacionamento, com o ! Não quero que minha última escolha acabe no ou — franzi o nariz e a testa com o pensamento.
— Se isso acontecer, você pode sempre assumir os dois agora que você tá toda moderninha. E depois a gente escolhe um daqueles brutamontes da empresa do seu pai e encomenda uma surra para e o . Aliás, seu pai já sabe sobre ele?
— Não...? — voltei a me encolher com o detalhe que não era tão “mero” assim. — Não o vejo direito desde que voltou rápido da Europa e depois viajou de novo. Tô achando que ele tem uma segunda família. Ou eu seja a segunda, vai saber... Contanto que não falte combustível para a Veronica, ele pode ter quantas famílias quiser. Não seria o primeiro a me abandonar mesmo... — dei de ombros. — Tô mais preocupada em apresentar para o vovô Chevalier. Não sei, tá com cara que ele vai querer colocar um segurança na minha cola. — toquei em seu ombro com o meu, comprimindo os lábios pela brincadeira velada, usando isso para mudar o foco.
— Se ele te abandonar, nós adotamos você. Meu avô te adora e eu sempre te vi como uma irmã mais nova. Mas eu tenho certeza que não vai ser o caso do seu pai. É justo que ele saiba o quanto você tá feliz, não acha? — olhou para frente, mas eu pude ver sua coloração mais rosada nas bochechas ao falar sobre . — E não me fala daquela sombra, que até na folga dele ele dá um jeito de me seguir! — algo em seu repúdio não estava convencendo.
— Mas não foi você quem escolheu vir com ele e não com a gente? — rebati ao me lembrar. — O disse que vocês dois não queriam vir no mesmo carro.
— Eu não escolhi vir “com ele”, eu escolhi vir em paz! Você, o seu não namorado e o jornaleiro durante mais de uma hora de viagem são demais para mim.
— Jornaleiro, não. Fofoqueiro por profissão... — saí em defesa de . — Um dia vamos ter falando sobre a gente no The New York Times.
O rosto de se contorceu e ela iria reclamar de alguma coisa em seu tão comum ciúmes quanto a , mas a porta ainda aberta deu espaço para alguém achar que podia simplesmente colocar a cabeça para dentro e se intrometer no meu espaço. Eu nunca, antes, quis tanto que essa pessoa fosse , até mesmo se ele estivesse usando o celular para registrar alguma coisa. Mas não vivo de sorte e quem o fez foi Evans.
— Vocês não vão descer? Acabamos de descobrir quem é o Tasty17... Vocês têm que ver isso! Alguém colocou no fórum em formato anônimo. — o sorriso dela denunciava que seria algo muito empolgante, mas eu só conseguia sentir um comichão estranho pelo meu sexto sentido que vinha tentando gerar um alerta ultimamente.
— A hora perfeita para a gente descer! — me puxou pelo braço. — É hoje que a Saint Peter vai saber o que aqueles moletons e jeans escondem... E que agora tem um dono! Ninguém vai se importar com essa fofoca nerd do fórum quando te verem assim…
Não tive tempo, como de costume, só consegui pegar minha bolsa de praia enquanto ela me arrastava para fora.
Dentro do elevador fomos eu, ela e Evans, porque o resto das Bratz foi no outro.
Pareceu demorar um século para descer um único andar e eu pensei que poderia ter usado a escada. Sempre quando viajávamos para Long Island assim, com a universidade em peso ou não, eu e fazíamos reserva no mesmo hotel e sempre no mesmo quarto do primeiro andar, por razões específicas. Primeiro: se o elevador quebrasse, seria muito mais prático para descer um lance de degraus sem sermos pisoteadas nos casos extremos de desespero. Segundo: eu tenho medo de altura e sempre que posso me livro de coberturas, morar em uma já era extremo demais.
Quando finalmente as portas se abriram, eu me preparei para descer e ter o livramento do dia, mas Evans não desgrudou, para meu desgosto. Entretanto, era para ser um momento de paz e descanso (assim como tanto me convenceu de usar como mantra), então não me preocupei com mais nada ou sequer questionei o uso da camiseta larga de futebol da minha amiga e se ela iria vestir a roupa de praia, porque já sabia que muito provavelmente ela estava usando um biquíni embaixo das roupas maiores que seu corpo. Basicamente me mantive inerte, por pouco, ouvindo os comentários de Evans, logo sendo interrompidos pela feição de ter surgido.
— Você viu isso? Consertaram o elevador! — O tom de foi totalmente sarcástico e eu não consegui evitar o riso, sendo a única coisa que compartilhei com Evans e provavelmente a primeira em toda nossa vida. Comecei a sair com ela, enquanto os dois continuaram em uma espécie de mundinho próprio, não sendo uma relação tão profissional, embora fosse feriado.
— É mesmo? Será que ele desce até o inferno? — a resposta dele entregou sua tão notória rigidez diante dela. — Porque acho que depois dessa é pra onde você vai.
Tinha algo muito mais além do que o profissional ali e eu não precisava de muito para poder concluir. O comportamento corporal dos dois denunciava e deixava mais do que óbvio.
Não foi preciso de muito para entender que deveria ter ludibriado com alguma história e ele subiu as escadas, o suor deixava isso bem claro. E mais engraçado, com certeza.
— Então boa sorte me seguindo até lá, sombra.
Me dividi entre os dois e as outras na frente, parando em uma espécie de meio fio. Respirei fundo, quase desistindo e voltando para o quarto, a fim de me enfiar nas páginas de um livro levado por precaução. Mas a impaciência falou mais alto quando, de repente, eu vi que agora segurava pela cintura, próximo demais. Não sei quando e o quê causou isso, só me senti na obrigação de sair daquele meio, com Evans e Amber me encarando, enquanto os dois pareciam um casal com tensão.
Eu sabia que isso, inclusive, vinha de . Ela conseguia tirar qualquer um do estado sóbrio de espírito.
— Não se preocupe, , você com certeza vai para o céu — me coloquei entre eles e sorri para lhe passar tranquilidade, apontando para . — Tem um lugar com seu nome bem do ladinho de Deus, por aturar essa daqui.
— E que tal se eu mandar vocês dois para lá, hein? Vamos logo, deixamos o míope sozinho, ele deve estar com a cabeça enterrada na areia procurando as lentes. — enganchou-se em mim e em , com um de cada lado, nos levando em uma caminhada adiante, o que deixou Evans para trás com Amber.
Quando me dei conta de que o assunto das duas não tinha parado, voltei a prestar atenção.
— Ele é do último semestre de direito... Amber é quem sempre joga com ele aquelas coisas on-line que ela gosta e falou que a voz dele é... Como é mesmo, Amber? — Evans tocou no ombro da outra, ao se colocarem do nosso lado.
— Aveludada demais. Rouca demais. Sexy demais. — Amber respondeu com suspiros. — E o melhor! Ele é solteiro!
— Não sei, essa foto está muito ruim... Não dá pra ver direito. — tomou o celular da mão de Evans, enfiando na cara de , ele quase tropeçou nos próprios pés, pois ainda estávamos andando. — Consegue saber quem é?
— Quem é o que? — ele perguntou, forçando a vista. — Só vejo um borrão.
— Você deve saber, ! — Amber apontou para ele, deixando-o encurralado. — Eu tenho a impressão de que esse rosto aí é muito familiar.
Estiquei o pescoço, estando do lado contrário dele, e vi o borrão. Revirei os olhos pela fofoca mal contada.
— Não sei onde você consegue ver alguma coisa aí. — puxei meu óculos de sol de dentro da bolsa, levando-o ao rosto assim que passamos pela saída do hotel que dava direto na parte privada da praia, onde era reservado para os hóspedes e, neste final de semana só tinha alunos da Saint Peter.
Amber revirou os olhos para mim e puxou o celular de , quase se colocando ao outro lado dele, no exato momento que fez o mesmo, sendo mais rápida na inversão. Não me concentrei muito nisso, buscando a figura esguia, de shorts de tactel curto e regata branca por entre as pessoas.
Meu coração viu primeiro, na direção do quiosque, jogando futevôlei.
— O usuário dele é Tasty17, mas eu sei que vou saber qual é o rosto dele assim que o ver.
— Mas a gente não tem sorte porque os machos da Saint Peter sempre usam a mesma roupa. Vai estar todo mundo de shorts ou sunga. — Evans discutia com Amber.
— Só buscar por alguém usando regata branca.
Meu cenho se uniu e eu olhei para o lado, vendo levar o indicador aos lábios de quando ele quis dizer algo e me olhou rapidamente, com os olhos arregalados e parecendo preocupado.
— Shhh... Sombra não fala. — ela brincou com ele, enganchando seus braços e ficando pequena com seu corpo do lado do dele. Tinha algo na forma de se embrenhar em que não estava sendo tão familiar. Isso eu trataria com ela depois, ou apenas ficaria com o discurso de “eu já sabia” quando ela decidisse me contar.
Senti que o acelero no meu coração vinha de outra coisa e não por já ter avistado . Algo antecipado.
Já estávamos a menos de cinco metros, quando Amber berrou:
— É ele!
Ela apontava para . Ele parou na mesma hora, assustado e quase levando uma bolada que vinha de um saque de do outro lado da rede, fazendo parte do time com . , olhou para , tão confuso quanto todo o resto pela interrupção da partida e , pálido pela atenção recebida, olhava para mim. Na mesma hora eu descobri que ele deveria ter tirado as lentes, porque forçava a vista para me enxergar, e não tinha sido esse o combinado — disse que não iria de óculos para poder jogar bola sem se preocupar com acidentes.
Até teria sentido em focar nisso se não fosse por dizendo ao meu lado:
— É o . Tasty17 é o usuário dele no canal de jogos on-line da universidade.
Esse era o segredo que já sabia antes mesmo de mim, então.
— Espera, não foi em cima dele que a Bee caiu naquele dia?
— E não só aquele dia e não só daquele jeito... — soprou com um riso fraco, deixando Evans confusa.
— E é com ele que ela está andando para cima e para baixo! — Amber me encarou, também apontando; fiquei petrificada com todas as informações e o que Evans disse em seguida me deixou mais dura ainda no lugar:
— Espera, ele é solteiro? Eu não... Eu não tô entendendo. Ele é namorado da Bee? A Bee está namorando?
Senti um braço se encaixar no meu e só desviei da feição confusa de , sendo puxada por . Antes de nos afastarmos em definitivo, ela ergueu o indicador para , afundando-o contra o peito dele.
— Nós vamos caminhar, OK? E você faz o favor de fazer seu amigo resolver isso... — ordenou. — Muita informação e atenção de uma vez só... Vem , deixa a bolsa com ele. — ela tirou a bolsa do meu ombro e puxou a saia junto pelo fio que a amarrava em minha cintura, talvez me exibindo propositalmente, e entregou tudo para antes de me puxar.
Nada, absolutamente nada estava passando em minha mente com coerência no momento. Parecia que eu estava sem o efeito da gravidade.
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Não me enturmar muito tinha uma razão bem específica, que poderia ou não ser a principal, mas ela existia.
Era para evitar assuntos banais e vazios que eu pouco me abria para outras pessoas. Então, estar sentada em um banco no balcão do bar da festa, ouvindo Evans e Amber ainda entusiasmadas com o fato de terem descoberto o rosto — e corpo — de quem estava por trás do Tasty17, não estava sendo tão empolgante. Em algum momento da noite eu não encontrei e o celular dela parecia desligado. Talvez ela estivesse dormindo porque o dia foi realmente muito cansativo na praia ou tramando alguma surpresa para , porque também não estava presente e mesmo de folga ele não tirava os olhos dela.
— Sério, Bee! — Amber tocou em meu ombro outra vez e eu a olhei por baixo, virando o resto da bebida tropical para dentro da minha boca. — Como você consegue ficar tranquila ouvindo aquela voz toda aveludada e não colapsar? — sua pergunta saiu arrastada e eu preferi pensar que era por conta do álcool e não seus pensamentos libidinosos com, segundo , o meu “não namorado”.
— Se você não quiser assumir o namoro, eu assumo! — uma terceira, que eu não sabia quem era, brincou, fazendo as outras rirem.
Respirei fundo, não dando atenção ao meu instinto revoltado e saí dali, batendo o copo em cima da superfície com mais força do que o necessário.
— Ih... — Evans disse melódica, tocando as meninas e pedindo, silenciosamente, que parassem. Pelo menos ela foi racional e respeitosa.
Deixei para trás as risadinhas e comentários maliciosos, caminhando estreitamente para a mesa de pingue-pongue.
ficou comigo desde que tínhamos chegado até dar dez minutos e , e mais um monte de marmanjos fazerem questão de levá-lo para os jogos de mesa e algumas outras coisas bestas, envolvendo bebida, claro. Ele simplesmente foi arrastado, quase não soltando a minha mão, mas eu deixei que fosse, por ser um daqueles momentos em que eu precisava ficar sozinha. Tive a esperança de aparecer, mas foi algo frustrado.
Desde que caminhamos pela praia por mais de uma hora e voltamos, não tinha conversado com sobre o episódio envolvendo as outras meninas e todo o resto curioso pelo fórum. Não pareceu para mim que fosse necessário questionar ele e o confrontar. Conflitos, para mim, sempre seriam a última escolha, então quando retornamos e não tinha mais futevôlei, passei o tempo que podia com ele, logo sendo interrompido porque os outros rapazes queriam jogar mais bola.
De certa forma, foi divertido. Mesmo que eu tivesse ressignificado a situação em vez de resolvê-la. Por aquele momento, fez sentido, mas agora estava tudo um bolo molenga e enjoativo na minha cabeça, fazendo eu ter vontade de deitar encolhida na cama e chorar baixinho para tirar o sufoco de tanta informação junta.
Por isso, ao chegar perto de na mesa de pingue-pongue, fui direta, logo quando ele interrompeu seu saque e ajeitou o óculos, me puxando pela cintura e deixando um beijo em minha testa, eu disse:
— Podemos voltar para o hotel?
— Agora? Mas a e o nem chegaram... — ele olhou para os lados, procurando pelos dois. — E eu tô quase ganhando dele. — apontou com a raquete para , do outro lado.
Suspirei, me afastando.
— Você pode ficar, se importa se eu for com o carro? — continuei falando quase para dentro, tentando ignorar a atenção dos demais. — Não confio em pegar um táxi sozinha.
— ... — me olhava como se estivesse procurando alguma coisa em meus olhos.
— Te vejo mais tarde, então. — sorri por costume, mas de lábios fechados e desanimada.
Meus pés caminharam sozinhos para sair daquele lugar todo cheio à beira da praia. Tirei minhas rasteirinhas para andar melhor na areia e ergui o rosto, olhando para a lua.
Quando cheguei ao asfalto, vesti novamente meus calçados e dei a volta no carro, parado logo ali em uma vaga fácil e perto. Entrei, fazendo tudo roboticamente, e coloquei o cinto, sentindo meus olhos arderem, liberando as lágrimas sem controle algum.
Nunca soube como chorar porque nunca chorei. Certo, dizer nunca pode ser algo pesado, mas se chorei duas ou três vezes, foi muito. Meu pai mesmo dizia que eu parecia ser seca e se preocupou com isso até descobrir que não tinha nada a ver com minha saúde, que eu não tinha câncer ou algo do tipo, e era somente meu jeito mesmo.
Deitei a cabeça no volante e chorei, mesmo sem saber como, só deixei as lágrimas saírem. Ainda que estivesse confusa com o motivo, deixei sair.
— . — ouvi batidas na porta e a voz distante de . Olhei para o lado e vi, pelo vidro sem película, que ele estava ali. — Abre, por favor.
Com a chave na ignição, abaixei o vidro e ergui a cabeça, expondo meu rosto molhado para ele. criou um vinco em seu cenho, com a feição preocupada.
— Pesseguinha, você... Você estava chorando? — perguntou, ainda mais preocupado. Eu assenti, soluçando baixo por conta do choro. — Quer conversar sobre isso? Foi algo que eu fiz e te chateou?
— N-Não. — tentei dizer entre o soluço. — Não foi exatamente você, sou eu.
— Meu amor, não pode ser sempre você...
— Mas foi. Eu que me confundo toda sempre quando se trata de você, porque a cada momento é uma novidade com a qual eu não pareço estar preparada para viver. — funguei o nariz. — Eu não estou chateada por você ter uma voz sexy e acharem que é solteiro, não tô chateada porque não somos namorados ou porque o parece pronto para assumir meu lugar. — passei a mão no rosto. — Eu tô chateada porque não consigo calar essas inseguranças e...
— … — esticou o braço, acariciando meu rosto e erguendo meu queixo para a direção de seus olhos. — Você não precisa se preocupar com nada disso.
— O pior… — continuei, voltando a chorar. — …não é me sentir insegura por ser quem eu sou, é pensar que talvez eu não consiga aprender a lidar com a sua ausência se você for embora da minha vida da mesma forma que tô aprendendo a te deixar nela. — solucei. — E é uma coisa que eu deveria saber porque lido com abandono desde que nasci. — virei o rosto para frente, evitando encará-lo e continuando a chorar.
Em silêncio, abriu a porta e se inclinou por cima de mim, tirando meu cinto de segurança. Seus braços passaram por baixo de mim e ele me tirou dali no colo, dando a volta no carro, me colocando no outro lado, durante esse meio caminho eu chorei em seu ombro e com a cabeça encaixada no seu pescoço. Depois de me deixar sentada e afivelar o cinto, beijou minha testa e afagou minha nuca, fechando a porta, logo surgindo no banco do motorista.
Sem dizer mais nada por todo o caminho, ele dirigiu os cinco minutos da extensa avenida beira-mar, não tirando sua mão da minha perna por um momento sequer, somente quando chegamos no hotel e ele desceu rapidamente em frente à entrada, dando a volta e me tirando do banco outra vez no colo. Foi comigo para dentro do hall e elevador sem uma reclamação, e eu já não chorava mais, mantendo meu rosto no aconchego do seu pescoço. Quando as portas se abriram no nosso andar, ele caminhou pelo corredor até a nossa porta, desajeitadamente passando o cartão no sensor para abrir a porta.
— Amor? — chamou, empurrando a madeira com o pé. — Chegamos.
Ergui a cabeça lentamente, abrindo os olhos e fungando o nariz ainda molhado.
Estranhei a ausência da luz, mas logo que minha visão se ajustou, pude entender.
— Mas... O... Quê? — forcei a descer de seu colo e me colocou com cuidado no chão.
A iluminação baixa estava por conta do uso de algumas velas espalhadas pelo cômodo, incluindo o banheiro com a porta aberta — em uma rápida espiada, eu vi que estava com a banheira cheia, tendo uma camada de pétalas de rosas vermelhas por cima. Na cabeceira da cama tinha um varal esticado e eu não contive o ímpeto de seguir até lá, olhando de perto as polaroides escolhidas dentre as inúmeras que tínhamos, penduradas cuidadosamente. E em todas elas, no espaço em branco pelo enquadramento, tinha a data em que tal foto foi tirada, tudo com a caligrafia dele. Além disso, o cheiro de pêssego no quarto estava bem forte, de uma forma adorável.
Em cima da cama tinha uma cesta com uma garrafa de vinho, duas taças e uma caixa de chocolate sem açúcar. Na mesinha de buffet, uma bandeja com frutas estava ao lado de um porta-retrato com uma foto minha. Uma que tinha usado para fazer um documentário sobre algo envolvendo o conforto da Saint Peter com os diversos pontos preparados para quem quisesse estudar no campus, em vez de em casa; segundo o fofoqueiro do milênio, a minha calmaria enquanto lia um livro de Karl Marx poderia convencer o mundo de que a universidade era um lar e não um centro aterrorizante de gente enlouquecendo por diplomas, e ele imprimiu no jornal.
— Eu recortei ela há um tempo... tinha esse jornal porque gosta de esfregar para os nossos ex-colegas da escola que foram para Harvard, que a Saint Peter é perfeita. — me disse ao ver meu olhar direcionado.
Soprei um riso fraco.
— Sabia que a rivalidade entre as duas começou por causa de uma história de amor? — virei o rosto para ele. — Um estudante de Medicina do último ano da Saint Peter se apaixonou por outro durante uma feira de ciências humanas... Esse aluno de Harvard era casado e... Bem, o sabe melhor a fofoca.
assentiu, olhando para mim por um tempo, eu me esquivei da sua análise, novamente prestando atenção em todos os detalhes à minha volta. Meu coração batia mais forte a cada ponto novo que os meus olhos batiam, porque ali tinha muito da nossa pequena história, estampada em polaroides, no cheiro e chocolates sem açúcar.
— Pode não parecer, mas eu tinha tudo isso planejado quando decidimos vir para Long Island. — ele começou e eu me virei para a sua direção, ainda parado perto da porta, agora fechada. — Minha ideia era aproveitar a presença de e fazê-la ocupar sua mente para eu sumir e arrumar tudo... Mas as coisas aconteceram de outra forma e eu tive que recorrer ao e a ela.
— Os dois arrumaram o quarto? — perguntei, pensando em e juntos, montando todo esse ambiente romântico e afrodisíaco, com acesso livre à minha bolsa de lingeries. com certeza tinha fuçado e encontrado as coisas que eu sempre a julguei usando. E, também, eu conseguia notar como ela se comportava perto dele, analisando tanto de forma profissional — do jeito que eu, psicóloga em formação, já conseguia — e por saber como ela, de fato, era.
— Eu não tive escolha. — franziu o nariz, dando um passo à frente. — A única coisa que a vida me permitiu escolher até aqui e eu fiz sem considerar nada porque tive certeza absoluta, foi você. — continuou se aproximando de mim depois de hesitar um pouco na lateral da cama. — E não me importa nada de fora, ninguém e absolutamente nenhuma teoria negativa, Bee. Eu só quero ser para você aquele que irá ficar. Todos os dias você me faz sentir o homem mais sortudo do mundo simplesmente por ter tido o privilégio de poder estar aqui, perto, junto, de poder estar com você.
Olhei para baixo, sentindo a vontade de chorar de novo, mas agora de uma forma menos melancólica.
— É com você que eu quero estar. É você que eu quero ter do meu lado. — continuou, levando as mãos para o meu rosto e encaixando no meu pescoço. — Você é o maior motivo de eu estar lutando para ficar nesse país. Porque quero ser seu namorado... Mas não por muito tempo, também, porque lá pra frente, quando você cumprir com seu objetivo e se formar, quero te levar ao altar. Compartilhar o meu sonho com você e somar os seus aos meus. Uma cerimônia para as pessoas mais próximas e lua de mel na Indonésia, o país que você ainda não visitou no mundo porque quer fazer isso quando se formar. E não me importa o que Einstein e a física dizem, o tempo é nosso, meu e seu, e eu não vou ser o seu passado acontecendo simultaneamente no presente. Eu não vou te abandonar, Bee. Porque quem não vai saber lidar com a sua ausência sou eu!
Meu rosto estava todo molhado, mas eu dei meu jeito de sorrir e mudar a feição triste. Estava transbordando felicidade e surpresa. Por dentro de mim tinha essa faísca mais forte que os fogos de quatro de julho.
Dentro de mim tinha .
— Bee, posso ser o seu namorado? — ele perguntou, por fim.
— Po-pode. — respondi reforçando minha voz quando a senti fraca e fui tomada com seus lábios, primeiro na trilha das minhas lágrimas, depois em minha boca.
As mãos de se uniram para apertar minha cintura, cada uma de um lado, com um aperto sutil, sendo firme à sua maneira. Devagar, eu fui amolecendo embaixo dos seus dedos, sendo guiada por seu beijo para uma dimensão em que só existíamos nós dois dentro do quarto iluminado apenas por velas, deixando meu estômago cheio de asas batendo em sincronia, causando um friozinho delicioso de se aproveitar. Eu me arrepiava por inteiro por causa dele e não queria que isso parasse.
Não queria que as mãos de me largassem, porque eu já não sabia mais controlar essa necessidade sentimental e de carne de senti-lo caminhar seus dígitos pela minha pele, arrepiando cada fio presente em mim. A necessidade de senti-lo passar sua mão para dentro da minha camiseta com todo o cuidado, num pedido silencioso por permissão, que eu concedia ao apertar minhas mãos em sua nuca, esforçando meu corpo a se manter erguido na ponta dos dedos. A necessidade de senti-lo delinear minha silhueta e envolver todas as minhas sensações única e objetivamente na sua própria atmosfera, tirando minha roupa enquanto me namorava com os olhos e os toques, para me deixar livre e inteiramente exposta para os seus olhos, que me preparavam para fundir-me com seu corpo. A necessidade de sentir meu coração abraçado, posto no colo, quando ele me deixava repetir toda a forma de carinho a mim oferecida, e eu podia fazê-lo sentir ou, pelo menos, ter certa noção de como me sentia.
E a necessidade de sempre, como uma via de regra, permanecer grudados um no olhar do outro quando estávamos livres de qualquer peça fina ou grossa, intrometida ou não.
Me pressionando contra ele, me deu o auxílio para que eu subisse em seu colo, apertando minhas pernas em seu tronco, enquanto nos levou para o banheiro e me sentou na bancada da pia. Por um momento, não dissemos nada ou nos beijamos, ele envolvia minha cintura com seu braço direito e a mão esquerda estava no meu rosto, usando o polegar para dedilhar a minha bochecha. Minhas mãos não sabiam para onde ir ou o que fazer, queria tocá-lo por inteiro, não sabendo por qual parte começar — e talvez devesse ser por isso que me perdia olhando-o por muito tempo, porque tê-lo em minha vista já era o primeiro e mais intenso toque.
Acordei quando minhas pernas se apertaram sozinhas em seu quadril, trazendo-o mais para perto como se fosse possível, e não contive um arrastado e melódico grunhido por sentir a fricção de seu quadril contra o meu, ao passo que meu sutiã foi aberto e jogado ao longe. Ele tornou a me beijar, porém agora saindo do meu olhar para traçar uma linha do pescoço até a virilha, iniciando os primeiros quilômetros do meu paraíso ao tirar minha calcinha com os dentes, enquanto me olhava de baixo, passando pelo meu monte de vênus, brincando com os lábios úmidos de mim pela minhas coxas e voltando para cima, fazendo a parada de descanso nos meus lábios, momento em que pude experimentar meu próprio gosto, sendo proveitoso vindo dele.
Agindo inconscientemente tirei seu óculos e deslizei pela bancada, deixando-o na superfície. Segurei o cós de sua boxer e, pelo ímpeto agora consciente, me virei de costas, deixando meu corpo agir sozinho e se curvar, ficando debruçada no balcão e sentindo-o atrás de mim. Pelo espelho eu conseguia encará-lo, com o sorriso de uma ponta só erguida no momento que encaixou-se na curva que se formou. se debruçou sobre mim para alcançar a gaveta do balcão, e me distraiu ao beijar minha nuca, ombros e cada parte que conseguia das minhas costas ao pegar a camisinha, também contendo um estoque no banheiro pela fração quase mínima de racionalidade que nos restava.
Dada a mesma sequência responsável de — ou quase — sempre, ele se despiu do tecido para vestir-se com a proteção correta (mas somente depois de garantir pela embalagem que era a certa e não a comum, pela minha alergia ao látex — mesmo que tenha sido ele a comprar). Ao me penetrar, lento e cuidadoso, deixando-nos aproveitar a mesma proporção da sensação de prazer individual, segurou em meu quadril e eu fechei os olhos na fração do segundo que a sensação da “invasão” me tomou, abaixando a cabeça e espalmando as mãos no mármore da superfície. E como em todas as vezes depois da primeira, eu não me contive por estar totalmente à vontade.
Por mais gostoso que pudesse ser ver o rosto dele pelo reflexo, tinha algo na banheira que, talvez pudesse ser o teor das pétalas e o cheiro dos sais misturados, me instigou a não deixar que tudo começasse e terminasse ali. Sendo a ditadora por um curto tempo, me tornei a responsável em nos colocar dentro da água aquecida, fazendo ele se sentar — e tampouco me importando no instante que a camisinha foi esquecida. Me sentei em seu colo, encaixando-o dentro de mim novamente ao descer lenta e serena, sentindo que eu estava sendo capaz de fazer com o mesmo que ele fazia comigo usando seu olhar: hipnotizando-o suavemente como uma cobra.
Nem mesmo toda a água que caiu para fora pela nossa intensidade ali dentro foi motivo de preocupação enquanto eu ditei nossos quilômetros finais, finalizando a rota quando ele me prendeu me segurando pela cintura em minha última descida. Tombei a cabeça para trás, sendo preenchida pelo morno da sua ejaculação em mistura ao meu próprio estado fervente, com as mãos nas bordas da banheira estreita.
Ele chamou meu nome.
Eu chamei o dele.
Demorou para que eu abrisse os olhos, mas quando o fiz, ele estava com a cabeça deitada no apoio próprio da banheira, não deixando de acariciar o local que seus dedos estavam colocados. Me movi lentamente para frente e fui subindo os beijos desde sua clavícula até o queixo, mordiscando ali de acordo com meu vício.
— Hummm. — resmungou, levando as mãos para a base das minhas costas, forçando-me a encostar nossos troncos e encaixar o rosto em seu pescoço. Assim o fiz, tendo as mãos espalmadas em seu peito.
Ficar em silêncio, se apreciando, se abraçando e em troca de carinho foi uma lei criada em comum acordo.
Mas eu não consegui ficar muito tempo daquela forma, meus joelhos estavam um pouco cansados e eu queria me submergir um pouco mais na água, então me virei, mesmo contra seus protestos. Encaixei meu corpo no seu, sentando-se com as costas apoiadas no tronco dele, logo sendo abraçada por seus braços.
Não contive o quão longe meus pensamentos se moveram tão de repente e soltei um riso nasalado, que pareceu acordá-lo. beijou meu ombro, afastando meus fios de cabelo concentrados para trás até ficarem caídos em meu ombros, deixando a nuca livre para ele beijar e mordiscar.
— O que se passa nessa mente genial? — perguntou baixo, tornando a me abraçar.
— Eu estava pensando em como as coisas são bem malucas. Até o ano passado eu não conseguia enxergar nada ao meu redor e mesmo assim eu tô com você aqui, agora, numa banheira com pétalas de rosa e algum composto afrodisíaco que você escolheu. — deixei o sorriso bobo fazer o que quiser em meu rosto.
— Mas nem mesmo a mim você enxergou. — riu, beijando meu ombro outra vez. — Foi assim que começou, na verdade. Eu era um qualquer ao seu redor...
E ele não estava errado, na verdade.
— Como foi quando você me viu? — continuei.
— Primeiro eu pensei “o que esse tamanho de mulher toma para ser tão forte assim e conseguir me espremer?”, depois fiquei em pânico porque tive medo de te tocar e quebrar. Mas você não é tão indefesa, mesmo que seja tão pequena a ponto de caber certinho no meu colo.
— Bom, pelo menos você não pensou que eu era louca. — suspirei.
— Isso eu pensei depois, quando te vi correndo de costas e no momento que fui lavar minha mão e a tinta não saía...
Rimos juntos e eu franzi o nariz, lembrando desse desastre.
— Desculpa. Papai me diz que eu sou oito ou oitenta, norte ou sul, cima ou baixo... Não tenho um meio termo. — relaxei mais o meu corpo apoiado no dele.
— Não precisa pedir desculpa. Nada disso foi ruim, olha só onde estamos agora...
— E eu não poderia estar em um lugar melhor. — virei o rosto no ângulo que deu, felizmente sendo o suficiente para ele selar nossos lábios.
Capítulo 15: Regras
Abri a porta do escritório do papai e entrei sem cerimônias, mas somente depois de respirar fundo várias vezes, claro.
— Olha só! A que devo a honra... — ele afastou a cadeira da mesa e abandonou a leitura em seu computador, tirando o óculos e se levantando para encontrar-se comigo no meio da sala, já com os braços abertos para me abraçar.
— Oi, papai! — sorri genuinamente feliz em vê-lo e aceitei o seu abraço. Ele beijou minha bochecha e nos afastou depois de um curto tempo, me segurando pelos ombros e me olhando por inteira.
— Mas olha só pra você... Está linda! — sorriu emocionado. — Aonde vai? Por que eu tenho a impressão de que não é com a que você irá se encontrar?
— Porque não é a . — obviamente minhas bochechas coraram e eu comprimi os lábios, olhando para baixo.
— Bem que eu imaginei que alguma coisa estava acontecendo. Ou melhor, alguém. — ele tocou a ponta do meu nariz, com um sorriso ladino. — Esse cabelo preso, Tony me perguntando quem era o seu acompanhante nos jantares... Aliás, todo mundo sabia, menos eu. — entortou os lábios fechados em um bico. — Me desculpa pela ausência, filha, acho que falhei com você...
— Não, pai! Na verdade… — limpei a garganta, erguendo o rosto para ele. —... fui eu quem falhou. — suspirei. — Eu tive todas as chances de te contar, de te deixar saber o que tem acontecido na minha vida, mas não fiz porque não consegui administrar mais de uma relação... Me desculpa.
— Bee… — tocou meu rosto, mantendo um sorriso singelo. — Não precisa se desculpar. Eu sou o seu pai, sei o que se passa na sua vida. E você é adulta agora, não precisa que eu saiba sobre tudo... Está tudo bem. Só quero conhecer essa pessoa, porque se ele foi capaz de te fazer tão bem assim, significa que não preciso me preocupar.
— Você é incrível! — abracei meu pai com toda a força da minha saudade e quando me afastei, sem soltá-lo, sorri enormemente. — E ele também. Vocês dois vão se dar super bem! é coreano, pai, ele cursou Direito na Saint Peter, está a dias de se formar e é o melhor aluno da turma. Ainda mora no dormitório, mas é uma questão de tempo para sair de lá... Eu até disse que ele pode ficar aqui por um tempo, caso precise e tenha que sair rápido assim que acabar esse semestre... Mas isso é assunto para depois. Ele gosta de trilha também! E se você ainda gostar e quiser, pode ir com a gente para o Alasca, porque eu quero levar ele com o presente de natal!
— , ! — ele me segurou firmemente pelos ombros, me cortando do monólogo. — Respira, Bee. Respira! Você vai ter muito tempo pra me contar sobre seu namorado ainda. E, sim, se vocês quiserem, podemos ir os três para o Alasca.
— Ótimo! — me empolguei, finalmente me soltando dele. — Agora eu preciso ir.
— E você vai dormir fora? — cruzou os braços.
— Não. Na verdade eu não sei, nós vamos ao cinema e depois numa exposição lá no Queens. Então se ficar muito tarde, eu fico no dormitório com ele e venho amanhã... Ah! — sorri com a lembrança. — Agora eu ando de metrô! É muito bom e-
— Transporte público é bom?
— Sim! Não em horário comercial. Aí é ruim, mas no meu ponto de vista continua bom, porque eu posso ir agarradinha nele, sabe? E-
— Tá OK, muita informação na mesma conversa, Bee! — ele elevou um pouco a voz. — está certa quando diz que você é uma caixinha de surpresas. Ou fala demais, ou fala de menos...
Ri com a verdade sendo dita e beijei a bochecha dele, aproveitando a minha deixa.
— Tchau, senhor Bee. Vou pedir para Dorota vir preparar um almoço pra gente amanhã, pode ser? — ele assentiu. — Ótimo! Se cuida.
Conforme fui falando, fui caminhando para a saída e, quando fechei a porta, me dei conta de como tudo estava perfeito demais, bom demais. A euforia em meu peito não conseguia mais se encaixar sem querer transbordar e eu simplesmente estava desejando gritar. Para não assustar ninguém, apenas sapateei no lugar, pegando meu celular em seguida e digitando o pedido de liberação de para que Dorota fosse em casa no sábado. Assim que enviei a mensagem, guardei o celular no bolso e segui reto para o elevador.
Estava tão, mas tão ansiosa, que o caminho para Inwood nunca foi feito com tanta rapidez em quase cinco anos do mesmo trajeto. Logo que estacionei Veronica na vaga demarcada, desci, pegando somente minha bolsa de mão e a caixinha preta, comprida, com um laço laranja na tampa. Talvez, se me vissem pelo gramado do campus àquela hora do final da tarde de sexta, diriam que eu estava louca, andando — ou correndo — como sempre fazia para chegar mais rápido na biblioteca do que Evans. Mas era só minha impaciência mesmo, agindo como se não tivesse visto mais cedo ainda naquele dia.
O detalhe era que, depois do meu estudo programado das duas às quatro para as provas finais, me mandou mensagem falando que já tinha agendado a apresentação que faria com para a corrida pela vaga de estágio no Cravath, Swaine & Moore LLP, o mais importante de toda Nova York, senão do país, e estava um pouco nervoso por isso. Meu primeiro instinto foi sair correndo assim que fosse possível para ir fazer companhia a ele e distrair sua cabeça, até porque as coisas com sua mãe do outro lado do mundo também não estavam tão boas. A ideia do cinema foi muito bem aceita.
Com a indicação de Atkins, eles conseguiram passar pela primeira fase de seleção sem qualquer esforço — na verdade, se for observar que a indicação do professor mais influente da Saint Peter foi gerada justamente por todo o período deles cursando a faculdade e se esforçando para terem bons resultados, pode-se dizer que foi sim feito com muito esforço. Agora tinham a segunda parte, em que apresentariam alguma coisa que eu não entendi muito bem, em frente a todas as cabeças principais do escritório, e se fossem bem, entrariam para o time.
já tinha iniciado as etapas do exame da ABA, a ordem americana dos advogados, e estava indo para a última e mais importante, tendo 100% de aproveitamento até agora. Então tanto ele, quanto com a mesma marca, tinham de tudo para se dar bem e conseguir o estágio. Era importante já saírem do curso dentro de um escritório forte como este, porque após um ano de contrato, se tivessem mais de 50% de sucesso, poderiam ser efetivados. E eu sabia que tinha capacidade para isso, ele era muito inteligente e sabia muito mais sobre as leis americanas do que os próprios americanos, não só porque estudou para isso, inclusive.
Assim que parei na frente de sua porta ela se abriu, revelando meu namorado totalmente pronto para irmos.
— Oi, amor! — sorri, me inclinando para frente e cima, a fim de alcançar seus lábios. Selei em um beijo rápido e logo me afastei, passando por ele, ainda empolgada. — Achei que ia chegar e você estaria tomando banho ainda...
— Dessa vez fui mais esperto e tomei banho quando você disse que viria. Não quero me atrasar para o cinema porque a senhorita invadiu meu banho. — se virou para mim, ainda segurando a maçaneta da porta.
— Você bem que gostou... — dei de ombros e sorri com a lembrança.
— Eu seria louco de não gostar. — riu. — O que é isso? — apontou para minha mão à frente do meu corpo, segurando a caixinha. — Outro presente?
— Sim! Na verdade... — olhei para o objeto. — Isso aqui não é bem um presente. Toma.
deixou a porta e se aproximou de mim, pegando da minha mão, com o rosto um pouco sério. Fiquei analisando-o, me sentindo estranha por sua reação que piorou quando ele viu a minha caneta de ouro dentro da embalagem.
— Bee...
— Calma, antes de você falar deixa eu explicar. — cortei ele, dando a volta na mesa e ficando mais perto. — Essa caneta era da minha avó. Perto dos sessenta anos, ela decidiu cursar Psicologia e se formou, meu avô deu para ela, dizendo que seria um objeto de sorte. Vovó sempre acreditou nessas coisas, então quando havia provas importantes, ela usava essa caneta. Em todas ela foi destaque. — estiquei o braço, tocando sua mão carinhosamente. — Quando eu comecei a minha faculdade, ela já tinha falecido, então vovô me deu e... Talvez o meu segredo seja esse. Esse é meu amuleto da sorte, o motivo de todas as notas boas.
Ele demorou um tempo olhando para a caneta, até devolvê-la para a caixa e fechar, afastando-se de mim em um passo para trás. Eu me assustei quando ele colocou a caixa na mesa, empurrando ela para mim pela superfície.
— Ela vai te dar sorte e você pode colocar no seu paletó... — tentei completar, sem qualquer reação dele.
— ... — suspirou, erguendo o rosto para mim e comprimindo os lábios. — Isso é demais. É incrível mesmo! E eu tô me sentindo muito mais do que lisonjeado de você pensar em me dar isso...
— Mas... Tem um “mas”, não tem? — mudei meu tom, sendo menos calorosa e mais séria.
— Tem. — Ele respirou fundo. — Eu não posso aceitar.
— Neném... — murmurei.
— , isso aqui é valioso demais. Não sei nem quantos quilates deve ter aqui. Mas deve ser o suficiente para ser necessário que ela seja colocada em um cofre. É demais!
— Não, não é! — rebati, ainda em tom ameno. — É uma caneta... É um presente que eu quero te dar.
— Um presente que eu não tenho como te retribuir ao mesmo nível! — ele aumentou um pouco o tom, falando junto.
Engoli todas as minhas palavras, fazendo um bico e olhando em seus olhos, sentindo minhas pálpebras se fecharem mais rápidas e ritmadas.
— Escuta, eu amo, de verdade, todas as coisas que você me oferece. Mas você precisa começar a entender que nós não temos o mesmo poder aquisitivo e nem sempre eu vou conseguir te dar as coisas no mesmo nível. Você me deu um vinho de mais de dez mil dólares de natal e eu te dei um globo de neve... Consegue entender?
— Mas eu gostei do globo de neve! Tem tudo a ver com a gente! — tentei argumentar.
— E é só isso que eu ainda posso te dar... — continuou irredutível.
— Por que isso é tão importante pra você? — questionei, sentindo meu cenho fechado e os lábios elevados quase em bico. — Sua masculinidade é tão frágil assim que não te permite aceitar que eu tenha mais dinheiro? — notei que talvez isso não fosse a melhor argumentação, então completei: — E o dinheiro nem é meu! É do meu pai...
— E por que é tão importante para você me dar todas essas coisas? — ele rebateu.
— Pra te deixar feliz, te mimar...
— São coisas materiais, Bee! De onde eu venho, é muito mais importante o que temos em sentimento, presença... Do que presentes.
— Então eu não posso te dar presentes? Nosso relacionamento não permite isso? — mantive meu rosto reto, sentindo meu coração se apertar, porque diferente de qualquer outra discussão que tivemos sobre coisas banais, o tom de e até o meu próprio ainda não tinha suavizado.
— Não preciso que você me dê coisas materiais. Só preciso de você do meu lado, isso já basta.
tentou me alcançar, mas sem calcular conscientemente eu dei um passo para trás, olhando-o confusa.
— Você precisa entender que somos de culturas diferentes. — ele tentou.
— E isso só se aplica ao meu modo de ser? Porque eu sou assim com todo mundo, gosto de dar presentes para o meu pai e para a . E eu dou o que é alcançável para mim... Então negar isso, de alguma forma, você está negando quem eu sou.
— Você está distorcendo... Comprar o nosso almoço ou qualquer outra coisa banal é uma coisa, mas uma caneta toda feita de ouro é outra! Um vinho de dez mil dólares é demais! Isso é demais para mim.
Assenti roboticamente, calculando o que minha mente estava digerindo.
— Que relacionamento é esse em que não podemos ser quem somos por causa da diferença social? — ri nasalado. — Você precisava ter um defeito, não é?
— ... — outra vez tentou me tocar e eu me esquivei. — Eu não quero que você mude, só tô te pedindo pra entender.
— Entender o que exatamente? Que temos regras? Nada disso tem sentido, ! Não estou te dando nada disso pedindo qualquer coisa em troca, e daí que eu tenho dinheiro para a merda de um vinho de dez mil dólares? Você só consegue pensar no lado material? Na diferença cultural? Estou te oferecendo algo que tem significado, não é só futilidade. Nada do que eu te dei foi por razão nenhuma. Nem essa merda deste vinho!
Ao terminar de falar, massageei as têmporas e peguei a caixinha da mesa.
— Você está agindo como se eu estivesse te rejeitando.
— E você está parecendo querer usar isso como desculpa para alguma coisa... Porque é o que você faz! Você pega algo pequeno e já usa para dizer que não sabe se irá ficar! — apontei o dedo, desabafando em tom aleatório. — Sempre quando o assunto é dinheiro você age como se eu estivesse te colocando contra a parede e exigindo te dar o que não quer!
— Para de ser radical! — apontou o dedo de volta, perdendo a postura. — Se escuta um pouco, Bee! Eu só falei que não posso aceitar uma coisa tão grande como essa e você está tornando isso uma tempestade.
Passei a mão no rosto e assenti, olhando para os lados.
— O que você quer que eu faça? Mude? Seja outra pessoa? Porque nós fazemos tudo o que você gosta e pode e tudo o que eu gosto e posso. A gente se divide na realidade um do outro e tem dado certo até agora... Ou pelo menos eu achava que estava dando. Mas o que eu faço? Pra você pode parecer algo pequeno, mas pra mim não é!
— Eu só não posso aceitar essas coisas assim... tão significantes. Por que você não entende? — ele disse mais baixo.
— Na verdade, acho que nenhum de nós está entendendo no momento... — abaixei a cabeça, olhando a garrafa de vinho no centro da mesa. — Faz assim, quando você decidir que estamos no mesmo nível, ou quiser, não sei... você quem manda, me liga. Se ainda der certo, a gente tenta outra vez.
Sendo impulsiva e querendo sair logo dali, pelo meu pânico de conflitos, peguei a garrafa.
— Vou levar para você conseguir dormir melhor.
Me virei com as duas coisas, levando o vinho embaixo do braço e apertando a caixinha na mão direita. Minha vista ficou embaçada pelo choro e enquanto eu o ouvia me chamar pelo corredor, não olhei para trás. Só me dei conta de que estava dentro de Veronica quando tirei a bolsa e a joguei no banco do passageiro junto com a caneta, deitando a cabeça no volante para chorar um choro sentido.
Mas ainda sem sentido algum.
Algo em minha mente estava berrando que eu deveria voltar e conversar, resolver, enquanto a outra parte era mais alta, me instruindo a ir embora. Foi o que fiz, levei o carro para casa, de forma arrependida por dar as costas para algo tão simples, me sentindo imatura e despreparada.
Quando parei o carro na vaga, sem qualquer vontade de manobrar e ajeitar de ré, desci com a garrafa, jogando-a no primeiro lixo que vi. A caixinha da caneta ficou no carro e eu nem me lembrei dela, apertando os números do elevador com um ritmo frenético, na esperança de que eu fosse transportada de vez e diretamente para o meu quarto. Infelizmente não foi o que aconteceu, então, logo que entrei na cobertura, saí apressada, mal olhando para os lados.
— Bee!
Não dei ouvidos ao meu pai, continuando o caminho desgovernado pela escada. Subi cada um dos degraus atônita, sentindo o meu peito rasgando pelo choro que estava prendendo. A próxima rodada me faria implodir.
— Bee! — sabendo que ele não iria desistir, parei no topo, segurando o corrimão para me virar. — Você não tem nada para me contar? — sua feição mudou ao ver a minha cara de choro. — Filha?
Respirei fundo, causando um soluço desesperado pelo choro parado em minha garganta como uma bigorna. Sem me questionar, ele subiu pulando dois degraus por vez, parando em minha frente. Eu já começava a chorar, ainda tentando segurar o que dava.
— O que... O que houve? — papai colocou as mãos nos meus ombros, parecendo assustado.
Colei a testa em seu peito, onde dava altura, chorando compulsivamente, como nunca antes.
— Ele... Eu... Acabou, pai — disse fora de ordem, sentindo doer a cada palavra.
Capítulo 16: Você está abandonando
As férias estavam chegando, eu só tinha mais uma prova para me ver livre e finalmente poder embarcar para Veneza, no meu período sabático que duraria somente o espaço de intervalo entre os semestres. Minha ideia era sumir, de qualquer forma, viver um pouco fora da Saint Peter antes que eu enlouquecesse. Esse último ano foi capaz de me tirar dos eixos de uma forma que eu jamais pensei ser possível.
Tinha duas semanas que eu e não nos falávamos e eu estava sentindo muita falta, como jamais tinha sentido até mesmo do meu pai. Parecia que tinha algo faltando, então a minha primeira noção sobre o que fazer foi reservar um hotel numa vila bem velha da cidade italiana, para me afogar em todos os tipos de vinhos, baratos ou caros, onde eu pudesse pensar somente no que tinha acontecido com nosso relacionamento e viver um clichê romântico na cidade de água fedida. Porque, de novo, se eu ficasse na Saint Peter ou qualquer lugar de Nova York enquanto fizesse isso, iria enlouquecer mesmo.
Tudo o que eu tinha tido de experiência marcante no lugar que cresci e vivi até agora estava marcado demais com a figura dele. Onde eu ia, os lugares que pensava e até os quais eu não conhecia, ainda tinham ele. E jamais achei que seria possível alguém me marcar desta forma, como uma mancha de vinho num tapete felpudo completamente branco. Nem mesmo Taylor Swift me preveniu disso tudo.
— Encontrei você! — tomei um susto ao ouvir a voz de quando meu fone sem fio do lado direito foi removido e virei para o lado, vendo ele se sentar no banco junto comigo. — Como sempre, ouvindo Pink Floyd em período de provas. — ele disse, abrindo um grande sorriso ao colocar o fone em seu ouvido.
— Oi, — cumprimentei baixo, no volume da minha empolgação dos últimos dias. — Roger Waters tem uma ideologia política que me agrada.
— E qual é? Obviamente você seria um gênio sobre política também. — perguntou, prestando a atenção.
— A defesa da democracia não é algo tão profundo assim para você ter que ser um gênio para entender. — suspirei, fechando meu livro. esticou o pescoço, emitindo um barulho baixo com a boca fechada. Uma forma de me dar atenção aos pensamentos altruístas, mas sem deixar que eu elabore, para não estender demais e virar um monólogo (ele e todo mundo sempre faziam isso comigo, exceto , que me ouvia e prestava atenção, até mesmo quando eu esquecia as vírgulas e ele não entendesse o assunto em si).
— Karl Marx, claro. Você ainda vai ser muito importante para este país, Bee.
— Obrigada. — sorri simples para ele, esticando o braço e pegando meu fone de seu ouvido para guardar ao lado do outro dentro da caixinha. Comecei a juntar minhas coisas. — Você precisa de alguma coisa?
— Não, na verdade eu queria falar sobre algo que não me parece certo... Você e terminaram?
Parei o que estava fazendo e continuei encarando meu fichário aberto, com o livro fechado em cima. nunca teve paciência para rodar em cima de um assunto, era sempre direto, assertivo, sem quaisquer rodeios para falar o que se passava em sua mente.
Me senti encurralada com sua pergunta. Era um assunto que ainda só corria pelas paredes do meu quarto, mensagens com e meu pai e os doces dietéticos que Dorota mandava pelo motorista dos Chevalier com a obrigação de Kimberly enfiar em minha goela abaixo. Talvez eu estivesse sim fugindo, mas tinha meus motivos e não iria conseguir focar nisso enquanto tivesse uma enxurrada de termos técnicos para gravar e provas dissertativas para gabaritar. Só tinha um término no qual eu possuía capacidade para me concentrar no momento e este era o do semestre.
— ... — falou um pouco mais baixo, movimento sua cabeça para me olhar.
— Isso não é da sua conta, me desculpe. — fechei o fichário e me preparei para levantar, sendo segurada por ele com a mão em meu cotovelo. me encarou profundamente, maneando a cabeça para o lado, e eu entendi que estava me pedindo para sentar outra vez. Respirei fundo antes de fazer, sabendo que ele não iria desistir.
— Você sabe que eu fico no dormitório porque é mais fácil, sim? — assenti. — Então, surpreendentemente, ouvi uma conversa de ontem a noite com a mãe dele... Pode ser que não pareça, mas mesmo que eu more aqui há mais de dez anos, meu idioma nativo nunca se perdeu... Deu pra entender bem o que eles conversavam.
— Seja menos prolixo. — olhei em meu relógio, me sentindo desesperada para sair dali e ir embora logo. Queria chegar em casa a tempo de poder ver meu pai antes dele engatar uma nova viagem. suspirou.
— Você realmente não consegue ver o que fez?
— Perdão? — arqueei a sobrancelha.
— , você abandonou um problema porque não consegue aprender a lidar com conflitos. Você abandonou por isso.
— Eu não abandonei ele... — franzi o cenho, um pouco horrorizada, me encolhendo.
— Te conheço há quase cinco anos completos, já passamos muito tempo juntos aqui nessas paredes, Bee, e sei que posso não saber sobre tudo, mas eu sei de uma coisa e está gritando nos seus olhos: você ama ele. Você quer ele! Só que você tem tanto medo de ser abandonada, que acabou fazendo isso na primeira chance inoportuna, só pelo privilégio de não estar do outro lado da moeda.
estendeu a mão para tocar meu rosto e acariciou minha bochecha, sorrindo singelo.
— No ano novo você falou muitas coisas pra mim e uma delas não sai da minha cabeça. Você me disse que queria ser capaz de dizer “eu te amo” para ele. — encarei seus olhos sérios, mordendo minhas bochechas por dentro. — Eu sei que é. Mas você está se permitindo chegar a isso ou apenas decidiu pular para fora do barco porque pegou uma onda mais alta? — fez uma pausa, recolhendo o braço. — Todo mundo tem conflitos, , todos vão brigar e é de coisas assim que surge o amadurecimento pessoal, individual, e dentro das próprias relações. A gente precisa quebrar a cabeça um pouco para ela calejar e aprender as partes difíceis, porque não é só do fácil que vem frutos... Entende?
— Sim. — respondi simples, não querendo dizer mais do que o necessário para não tomar muito tempo. — Eu entendo.
— Então não se perca por esse medo, não. Não deixe a sua felicidade ser abandonada porque você quis ir pelo caminho mais fácil. Ressignificar é tapar o sol com peneira, lembra?
Suspirei e assenti, ainda em silêncio. se inclinou e deixou um beijo em minha bochecha, segurando em meu queixo.
— Você é incrível e eu nunca vou me cansar de dizer isso com propriedade. Então deixa ele saber disso também, porque o é um cara legal. E, não que isso tenha alguma influência de qualquer forma, mas eu tô desistindo de conquistar você porque é com ele que a sua felicidade está. Seu futuro todo planejado naquele post-it... A parte em branco que você sempre quis preencher…
Pela última vez afirmei com um aceno positivo e então saiu, sem se despedir, numa saída dramática. Observei sua caminhada, mordendo meu lábios com muita força, enquanto minha mente girava e eu só sentia aquela ardência no peito.
Ele estava certo, eu inverti as mesas com uma coisa tão banal para não ter que estar do outro lado da moeda. Não precisei ir muito longe para conseguir refletir, talvez eu devesse ter procurado por outra pessoa antes de ter tentado me desvendar sozinha.
Como fui imatura!
Capítulo 17: Eu aprendi
— Com licença! — berrei ao sair pela porta da sala de aula assim que entreguei minha prova para a senhorita Peterson, apressada em iniciar a corrida pela minha vida.
— Bee, é final de semestre sua maluca! Eu não quero livro nenhum! — ouvi a risada de Evans, mas ignorei.
Os corredores da Saint Peter ficavam intransitáveis no último dia letivo, era sempre uma zona pela mistura dos formandos festejando a liberdade contra os depressivos por reprovarem... Era um caos. E eu precisava descer até o térreo e ir para o outro prédio, o de ciências sociais aplicadas, resolver meu maior motivo de insônia.
A conversa na tarde anterior com me fez ficar acordada e ir para a universidade com vários litros de energético ingeridos. Se eu não tivesse chegado assustadoramente atrasada, teria feito isso antes, mas precisava fazer uma prova primeiro. A última do semestre. Então corri contra o relógio, terminando o mais rápido que consegui, e ainda assim sendo a última, e acabei saindo em correria.
Meus pés só não afundaram o asfalto quando estava trocando de um prédio para outro porque não deu tempo. Nem tive como notar por onde estava indo, apenas fui, rápida como um furacão. E sem remoer em minha cabeça as coisas que queria dizer, porque tive medo de esquecer tudo quando estivesse frente a frente com ele. Me concentrei em uma coisa de cada vez.
Ao parar diante da porta de sua sala, conferi mais uma vez a numeração e o andar antes de bater. Meu corpo todo tremia e eu só soube me manter focada em não pensar, apenas agir. Visualizar o quão doloroso estava sendo a ausência de me deixou instigada a refletir tudo o que ouvi de para estar parada no segundo andar do prédio da turma de Direito, sendo observada pelos veteranos que já saiam de suas salas após suas provas. E se eu bem me lembrava, aquele último dia para os alunos da turma dele seria algo mais teórico como despedida, ainda mais por quase todos estarem em processo de pré-apresentação aos escritórios de advocacia da cidade a adjacências.
Demorou um pouco, mas eu ouvi um “entre” grosso, com meu coração disparando: não sabia se agora era porque a voz forte do mestre Gillies sempre apresentava imponência ou se porque a minha coragem estava me levando a coisas diferentes todas as vezes que se tratava dele.
Na verdade, não era coragem. E eu também não tinha descoberto ainda do que se tratava.
— Desculpe atrapalhar, senhor Gillies... — tentei soar o menos trêmula possível, colocando apenas minha cabeça no vão da porta aberta minimamente. Sequer olhei para o lado das cadeiras da enorme sala em formato de auditório.
— Bee… — o professor, no palanque, se virou para a minha direção apenas com a cabeça, inclinando-a em confusão. — O senhor Dickens está na sala dos professores...
— Sim, sim... Eu sei. — senti as bochechas corarem. Gillies e Dickens foram os responsáveis pelo trabalho apresentado que fiz para ter mais pontos extras (ou de hobby, como disse, já que eu tinha completado o quadro antes mesmo do período de estágio). — Na verdade, eu preciso falar com um aluno do senhor. — confessei, olhando para os meus pés e de volta para ele.
— Pois bem... — Gillies arqueou a sobrancelha olhando para a turma e, em seguida, de volta pra mim. — Quem é este ou esta aluna que a senhorita procura num dia tão importante para os formandos de Direito, interrompendo minha aula?
Enfim olhei para cima, vendo-o sentado no meio da sequência de fileiras, imaginando que era por conta da sua vista. estava ereto e impassível. Ao seu lado, comprimia um sorriso e tinha os olhos atentos.
— Jeon . — falei para o professor em minha frente.
— Ah, certo. — ele cruzou os braços e assentiu. — Você pode falar ou esperar ele sair.
— Obrigada, senhor Gillies — fiz menção de voltar para trás, mas ele continuou:
— Pode entrar, Bee. Pode entrar e falar o que deseja.
Meu corpo travou e eu senti a corrente elétrica percorrendo por todos os meus músculos, com espasmos estranhos e desconhecidos.
Mais uma primeira vez que eu me envolvi por ele.
Mais uma novidade.
Mais um ato gerado pelos meus sentimentos.
Me coloquei toda para fora e tomei três segundos antes de retornar, respirando fundo no mesmo instante que forcei a maçaneta e abri a porta por inteiro, entrando por fim.
Ouvi um burburinho da turma e o professor me olhava genuinamente, enquanto eu caminhava pelo palanque, ficando ao seu lado. Olhei para cima e fiquei de frente, segurando uma mão à outra para não revelar a tremedeira.
Limpei a garganta, comecei:
— Eu sei que talvez isso esteja sendo invasivo demais e que você, tanto quanto eu, odeia exposições. Mas eu... Eu sou oito ou oitenta e não ia conseguir esperar ou ficar ensaiando para isso. — suspirei. — Também sei que disse que se você me pedisse em casamento um dia no meio de um monte de gente, eu diria não. Então se você disser não, também vou compreender. Não que eu vá te pedir em casamento agora... Céus!
Olhei para o professor e depois meus olhos passaram por todos os alunos, voltando em novamente; ele estava sentado de forma ereta, ainda sem expressão alguma. Apertei os olhos fechados e, ao abri-los novamente, só tínhamos nós dois ali, um preso no olhar do outro.
E, na verdade, eu não me prendia ao olhar de . Era em suas orbes que eu mais me sentia livre.
Livre até de mim mesma.
— Não sei por onde começar ou se devo, mas eu preciso que saiba que, de todas as coisas novas que aprendi com você, lidar com a sua ausência não foi uma delas. E talvez isso possa ser problemático para alguém, mas, pra mim, não é. Porque você me fez sentir como uma pessoa nova, me ensinou coisas sobre mim que eu não conseguia enxergar sozinha e que e nem meu pai poderiam ver. Você me deu essa liberdade e me tirou de uma prateleira funda, esquecida, em que eu mesmo me coloquei. Sei que fui imatura, mas no fim, fui eu quem usou a situação como uma desculpa. Quis inverter a mesa para não ser a pessoa abandonada dessa vez e não acreditei em todas as coisas que disse à você. A verdade é sim que você vai ficar, mas não aqui ou na Coreia, é do meu lado. Eu quero ir para onde você estiver se ainda quiser. E nenhum dos meus planos feitos naquele post-it que te mostrei terão sentido e significado se não for com você. Eu não sei ler o futuro, mas a Bee de quinze anos que escreveu tudo aquilo já sabia que um dia iria te encontrar, ela só não me contou porque eu precisava aprender sozinha...
Respirei, me lembrando do meu pai e do exercício dele para todas as vezes que eu me atropelava pela ansiedade.
— Eu precisava aprender a amar primeiro. E eu aprendi isso com você... — engoli o bolo na garganta, mantendo meu olhar no seu.
não se moveu, sequer piscou. teve mais reação que ele, com os olhos arregalados e o corpo ansioso na cadeira.
Quando senti meu rosto ardendo, olhei para o professor, abaixando a cabeça brevemente em agradecimento e respeito.
— É isso, obrigada, senhor Gillies. Boas férias. — disse em um tom que só ele pudesse ouvir e caminhei em direção a saída.
Me senti aliviada, de certa forma, ao passar pela porta e fechá-la atrás de mim. Minhas pernas estavam bambas, então fui para o elevador. Independente do que ele escolhesse interpretar do que disse, o mais importante é que fui verdadeira e consegui me expressar, consegui deixar de lado o foco que eu tinha apenas em meu futuro cerca de um ano atrás e focar em mim numa primeira vez.
Poderia ter feito melhor, não sei, mas foi assim que fez sentido pra mim no momento.
Dei o primeiro passo para entrar no elevador quando as portas se abriram, mas parei ao ouvir a porta da sala se abrir. Não virei o rosto, não quis ver e me frustrar, apenas esperei.
Sei que ele correu até mim os poucos metros de distância, mas sem rodeios apenas me puxou para um abraço forte, segurando meu rosto com as duas mãos em seguida.
— Você é maluca de ir embora antes de me ouvir. — disse, os lábios naturalmente em um bico. — Me espera aqui, nesse endereço. — puxou uma caneta de seu bolso, escrevendo na minha mão, e eu reconheci o nome do novo restaurante próximo da universidade.
Assenti, não tendo tempo de dizer nada, porque logo fui beijada.
— Eu entendi. — ele disse, segurando meu rosto outra vez da mesma forma, ao cortar o beijo. — Também amo você. — disse, por fim, voltando para sua sala.
Fiquei parada no lugar igual uma bocó, sorrindo para o nada e lendo sua caligrafia em minha mão. Não queria que a tinta saísse jamais.
Capítulo 18: Deixa o neném em paz
Minha ansiedade estava a mil, mal consegui ouvir o que dizia durante nosso trajeto até o auditório principal. Era finalmente o dia da apresentação de para o escritório de advocacia. E ele ia apresentar com , por isso a presença da minha amiga. Inclusive, não precisava de muito ou que ela me contasse para dizer que os dois tinham se envolvido. Estava estampado no jeito de com ele que ela tinha se apaixonado.
Assim que entramos na antessala do ambiente meus olhos caíram em cima dos dois, em um canto, conversando. ajeitava a gola da camiseta branca de mangas compridas que usava elegantemente embaixo de um blazer preto e eu reprimi um riso frouxo, não querendo me explicar muito para ; eles tinham combinado de usarem roupas sociais, com gravata e tudo, mas eu acabei frustrando os planos do meu namorado, quando não me controlei em deixar uma marca em sua nuca e outra na volta do pescoço.
Próxima o suficiente, notando que não tinha conseguido me ver, mesmo que eu tenha escolhido o salto mais alto dentre minhas opções e recebesse todos os olhares ao redor, pude ouvir a conversa.
Ou pelo menos o que era pra ser o fim dela.
— Você tá com medo que eu te deixe com vergonha na frente da sua namorada, neném?
O tom de era zombeteiro e eu só percebi que agi por impulso quando ele reclamou.
— Deixa o neném em paz, ouviu? — respondi, sabendo que no fundo tinha um tom de brincadeira ao dar-lhe um tapa ardido na nuca. Ao passo que se recolheu dramaticamente no ombro de , eu abracei pela cintura, cumprimentando ele decentemente. — Como vai o meu advogado favorito? — beijei a pontinha de seu queixo e ele sorriu.
Só pelo seu sorriso eu soube que estava nervoso.
— Nervoso. Com medo. Trêmulo. Mas melhor agora que você chegou. — respondeu, beijando a ponta do meu nariz. Apoiei meu queixo em seu peito, como sempre fazia.
— Qualquer coisa é só fingir desmaio. — dei de ombros. — Se nada der certo, você vira um ator.
— Hum... Acho que prefiro o seu método de memorização. — resmungou. — Não acho que a minha namorada vai gostar de me ver dando beijo técnico a torto e a direito por aí nos telões...
Franzi o nariz, sendo atormentada pela imagem.
— É uma boa escolha. Você está olhando para a aluna do último ano de Psicologia que já poderia ter se formado sem concluir 100% do curso se não fosse a formalidade.
— Estou olhando para um gênio. — piscou galanteador pra mim. — E amor da minha vida, claro.
Sem muita cerimônia, nós nos beijamos, de forma tranquila, serena, e sem demorar. Algo bem sucinto.
Ele notou a presença cheia de imponência dos responsáveis por aquele processo seletivo todo do escritório, alguns professores importantes da Saint Peter e mais um bando de gente engomada indo em direção ao auditório, e eu senti seu corpo vacilar embaixo do meu. Me afastei, pegando em suas mãos e beijando cada uma.
— É melhor eu ir. — disse, suspirando e retornando sua atenção para mim.
— Não esquece, qualquer coisa é só fingir desmaio. Ou dizer “pêssegos são azedos”, que eu te tiro correndo daqui. — fingi seriedade.
— Até parece, com esse tamanhozinho, pesseguinha? — ele riu, me dando um último beijo.
— Se for pra te defender, eu derrubo até o brutamontes do . — dei de ombros, arrancando uma risada dele. — Ah, antes de eu ir... — disse em um estalo, ao me lembrar de algo por ver Lindsay saindo do elevador. — Não se assuste com nada, OK? Só foque no principal objetivo. O resto a gente deixa pra mais tarde.
com certeza não entendeu, ele franziu o cenho e assentiu, confuso.
Esperei terminar sua melação com o outro advogado formado e segui com ela e a recém-adotada, mas não tão recente assim, . Já fui tirando a minha câmera polaroide da bolsa conforme fomos adentrando o auditório, buscando por nossos lugares demarcados. Até ser surpreendida por Lindsay ao meu lado.
— , você acha que devemos colocá-las aqui agora? Ou só quando começar? — olhei para e distantes e fiquei confusa. — Seu pai está conversando com alguém importante e deixou isso comigo.
— Eu acho que pode começar a colocar, desde que você não faça alarde. Não quero desconcentrá-los. É bom para conseguir conectar tudo certinho. — sorri educadamente.
— Certo, vou me sentar e ligar para elas, então.
Lindsay deu a volta, empolgada com sua maleta.
Há dois dias, eu tinha combinado com a mãe de que se preparasse para assistir à apresentação dele e de , que daríamos um jeito de transmitir para ela e a senhora Kim, sendo surpresa aos dois. Eu queria trazê-las, mas não conseguimos por conta do tempo, já que foi uma decisão rápida, então Lindsay ficou responsável por cuidar da chamada de vídeo. Meu pai, no meio disso tudo, só teve o papel de pedir autorização do escritório, usando seu nome, e estar ali, presente num momento importante para .
Os dois se davam bem e eu iria descobrir como seria minha relação com a minha sogra no próximo final de semana, embarcando para a Ásia com , , , Dorota e papai. E eu não poderia estar mais ansiosa para isso.
Procurei pelo meu lugar do lado de e me sentei, começando a tirar as fotos, sem perder um momento sequer. Chequei uma última vez se estava tudo certo com Lindsay e seu laptop no colo, e fiquei tranquila quando recebi seu “joia”. Logo papai estava ao seu lado, também acompanhando a apresentação, que, inclusive, não tinha outra forma de detalhar sem dizer que foi um “sucesso”. finalizou sem fingir desmaio ou usar nosso código, depois que começou, não ajeitou mais o óculos, ele apenas seguiu tranquilo e amparado também pela inteligência e boa comunicação de — que treinou muito para conseguir falar “constituição” sem parecer o Patolino. Em pé, aplaudimos, e quando os dois se abraçaram eu me emocionei, sem esquecer de registrar o momento. Fiz menção com de sairmos apressadas até os dois, mas segurou nossa emoção pelas mãos, apontando em como eles estavam sendo cercados, principalmente pelos principais nomes daquilo tudo.
Eles começaram a seguir o rumo para fora do auditório e eu encarei com um bico nos lábios.
— Vai, vai... Vamos segui-los. — me virei para sair da fileira, apressando ela.
— Vai aonde, sua louca? — me encarou estranha. — Agora é o momento que vão babar em cima deles, para de ser ciumenta, Bee.
— Não é ciúmes, eu quero saber o que vai ser dito.
— É curiosidade. — ela revirou os olhos, reclamando quando eu passei por sua frente, pisando no seu pé pelo pouco espaço. — Bee!
— Você saberia como é se estivesse no nosso lugar, garota dos tanquinhos.
Não olhei para trás, continuei o rumo pela outra porta para fora do auditório, quase tropeçando nos meus próprios pés e me equilibrando. Ao ver meu pai já do lado de fora, tirei a bolsa e praticamente joguei contra seu peito.
— Eles foram incríveis! — ele começou dizendo.
— Sim, sim... Foram. E pra que lado seguiram? — perguntei, apertando a bolsa contra ele.
— Pro elevador. Devem ter ido para a cobertura.
— Bee! Me espera! — olhei para atrás de mim, estranhando o fato dela ter ficado tão longe. — Respira, não esquece de respirar. — olhou estreito pra mim e se virou para . — Você espera a gente lá no coquetel?
— E eu tenho outra escolha? Capaz dela parir esse filho aqui mesmo se não for ouvir por trás da porta... — riu.
— Filho? Quem tem filho? — vi parar ao lado do meu pai e estranhei a presença dele.
— Você está grávida, Bee? — meu pai perguntou logo em seguida.
Me vi encurralada.
— Quê? Não! Claro que não... Eu... Não... E não estou grávida! — neguei, ficando nervosa.
— Minha bola de cristal não diz isso. — me olhou de cima a baixo e eu olhei pro meu corpo. — Ou eu posso estar errada e você só está com esse corpão porque começou a se exercitar mesmo.
— Mas você já fazia academia, Bee. De que exercício ela está falando? — novamente meu pai perguntou em seguida.
— Argh! — reclamei alto, erguendo as mãos e puxando . — Eu não tô grávida. Parem com isso. Vem, .
— Ela era estressada assim antes? Ou o senso de humor ficou em algum livro da biblioteca?
Ouvi brincar e a risada do meu pai seguir a de , enquanto arrastava para a escada. Ela parou ao entrarmos pela porta de emergência e eu me virei.
— Vai ficar aí? — perguntei.
— , você quer subir de escada usando isso aí? Pra quê elevador? — apontou meus pés.
— Chegar pelas escadas é mais sutil. — justifiquei, tirando meus sapatos. — Pronto, vem!
Subimos seguindo o ritmo da minha pressa e quando alcançamos o segundo andar, meu rosto foi tomado por um sorriso gigante ao ver descendo. Corri, deixando as sandálias caírem, e pulei nele no espaço entre um lance e outro. Seu rosto estava tão radiante que ele não precisaria me dizer nada.
Enchi sua bochecha, testa e nariz de beijos, pendurada com as pernas enlaçadas em seu tronco.
— Conseguimos! — ele me contou e eu parei de distribuir os beijos frenéticos, deixando-o respirar.
— Eu sabia! Eu sabia! — voltei a beijá-lo, abraçando seu pescoço o apertando eufórica. Tão eufórica, que fiz seu óculos cair pelo vão, sumindo e muito provavelmente se quebrando ao atingir o chão no térreo. Paramos em sincronia e, me segurando firme, olhamos todo o trajeto. Fiz uma careta e ele franziu o nariz, forçando-se a me enxergar.
— Pesseguinha... — choramingou.
— Desculpa, neném. — ri com culpa, beijando-o outra vez. — Você precisa começar a usar lentes. Ou vou ter que te colocar numa bolha inflável para te proteger de mim.
— Ei! — me afastou, fingindo ultraje. — Quem tem que proteger aqui sou eu. Eu tenho que proteger você.
— E do quê, exatamente? De mim mesma?
negou com a cabeça, rindo, e encerrou me abraçando e, dizendo, por fim:
— Vamos descer, eu preciso ligar para minha mãe e contar tudo. Queria muito que ela estivesse aqui...
— Eu sei meu amor, mas ela esteve, viu! — tentei comprimir um sorrisinho, espalmando minha mão em sua bochecha e beijando a ponta do seu nariz de forma tênue, movida por seu sorriso genuíno.
O sorriso de era, com certeza, a minha fonte.
A minha maior fonte de coragem, afinal.
Epílogo
— In a minute I'ma need a sentimental man or woman to pump me up... Feeling fussy, walkin' in my Balenci-ussy's tryna bring out the fabulous...
A música em meu fone estava alta e eu não conseguia controlar meu corpo, remexendo os quadris de acordo com a batida e voz de Lizzo, acompanhando ela na cantoria também. Estava sozinha no quarto de , na casa de sua mãe, porque ele tinha ido com os pais ao mercado e eu quis dormir mais um pouco, então quando acordei e fiz todo o meu ritual da manhã, iniciei minha playlist e vesti meu fone sem fio, animando um pouco a minha recente preguiça para arrumar a cama e organizar a bagunça.
Faltavam dois dias para irmos embora de volta para Nova York da nossa curta viagem “em família” de férias. estava por aí com e meu pai e Dorota já tinham retornado para casa, e eu bem estava desconfiando que Lindsay era o motivo para ele. Seria nosso último jantar com seus pais, então eles queriam fazer algo diferente, haja vista que eu não tinha me acostumado muito bem com a culinária coreana e meu estômago parecia não aceitar o tempero.
— I'm comin' out tonight, I'm comin' out tonight... uh-huh... Ai! — levei um susto quando fechei minha necessaire no banheiro e girei o corpo, rebolando no ritmo de dança com os braços cruzados, vendo-o parado na porta, escorado no batente e com os braços cruzados. Sorrindo aquele abençoado e gostoso sorriso que me engolia inteira. — Faz muito tempo que vocês chegaram? — fiz uma careta, tirando os fones e morrendo de vergonha por perceber que talvez seus pais tivessem escutado meu show.
— Há uns dez minutos. — riu, se mantendo na pose. — Adoramos, inclusive. Essa casa era bem calma antes de você... Minha mãe, inclusive, não quer que a gente vá embora.
Assenti, vendo o olhar dele cair ao falar sobre sua mãe. Ela estava doente há um tempo e não melhorava em nada, pelo contrário, então doía para ele ir embora e estar do outro lado do mundo. Me cortava o coração só de pensar em vê-los tristes, porque eu sabia que sua mãe também sofria com isso, mesmo querendo que ele fosse feliz e estivesse onde queria. Acabei descobrindo que minha sogra era uma mulher incrível e que seu filho era o seu reflexo perfeito de bondade, carinho, doçura...
Uma mãe que muita gente gostaria de ter. Que eu gostaria de ter tido, mas ganhei ao conhecer .
— É algo a se conversar. — sugeri, deixando os fones dentro da caixinha. — O que é isso aí pendurado em seu braço? — apontei para a sacola, movendo as sobrancelhas.
— Ah... — se desencostou do batente e caminhou hesitante até mim. — Eu... — suspirou. — Eu sei que você abomina essa ideia e tá tudo bem, a gente pode conversar sobre isso depois e resolver... Mas... — tirou uma caixinha de dentro dela. — Acho que deveríamos primeiro descobrir sobre o que vamos conversar antes de te marcar um médico para ver a questão do estômago sensível ao kimchi.
Não formei nenhuma expressão facial, piscando rapidamente, a fim de que fosse uma miragem ou um sonho. segurava um teste de gravidez, não sendo o único dentro da sacola. Automaticamente cruzei meu braço.
— Trouxe de todos os modelos para você escolher qual quiser ou fazer todos... — fez uma careta.
— Você vai sossegar se eu urinar nesse negócio? — perguntei, não querendo discutir outra vez sobre o mesmo assunto.
— Pesseguinha... — se aproximou, fazendo com que eu erguesse a cabeça para lhe encarar. — Você está diferente. Fica mais emotiva a cada dia, tem reclamado de muito sono, está sem energia, não consegue comer tudo o que gosta... E agora eu mal posso tocar no seu peito, que reclama de dor! Não acha que a gente-
— Eu. Você acha que eu devo fazer.
— É, meu amor. Você. Pra nós tirarmos essa dúvida.
Respirei fundo, tomando o teste da sua mão.
— Eu já falei pra você que não é nada disso. Meu problema com alimentação está na diabetes. — comecei a reclamar em um tom mais estressado, indo para dentro do banheiro e não medindo cerimônia para fazer o xixi no teste. ficou parado na porta, de braços cruzados e encostado no batente. — Não existe a possibilidade...
— Você sabe que existe sim. Teve pausa no seu anticoncepcional e algumas vezes nós burlamos a regra da camisinha. Antes de Long Island mesmo a gente-
— Mas isso já tem quase quatro meses! E a pausa que eu fiz foi para trocar o anticoncepcional...
— … — interrompeu e eu ergui o rosto para ele, numa posição não muito agradável para fazer xixi no objeto. — O menor dos problemas é um filho, neste caso.
— Odeio quando você está certo. — revirei os olhos, colocando o teste em cima da pia ao lado e me limpando.
ficou parado no mesmo lugar e eu me levantei, indo lavar a mão.
— A gente vai ficar esperando pra nada. E não me diga que comentou com seus pais sobre isso.
— Minha mãe me convenceu a comprar, na verdade. — ele se aproximou e eu ergui o rosto da pia para ele, vendo seu reflexo pelo espelho. — Você sabe que ela adoraria um neto agora.
— É, mas eu não posso ter um filho. E não quero. Ainda tenho muito o que estudar para chegar onde quero. Não tem como se concentrar nos dois!
O olhar dele abaixou e eu segui a direção. travou o maxilar.
— Merda! — reclamei, me apoiando na pia. — E não é que você está certo outra vez?
— A gente pode pegar o outro se quiser, fazer mais… — senti na voz dele o autocontrole.
— Pode sorrir, seu bocó. Vai! — me virei, ficando de frente ao seu corpo colado ao meu. — Tira foto e manda para o . Faça a reunião dos bocós. — tentei não soar empolgada, porque o brilho no olhar dele me contaminou. Ainda que o positivo fosse uma revelação muito forte.
Até mesmo a ideia de ser mãe, que nunca tinha sido algo bem recebida por mim, mudou. Principalmente depois dessa viagem.
— Está falando sério?
— Estou. — fiz um bico. Um tanto incerta, claro, mas com a segurança de ter ele ao meu lado. — Vai contar pro seu namorado que ele vai ter um enteado ou enteada...
gargalhou, enfim se soltando para me abraçar e rodopiar até eu bater em seu ombro para parar. Ele chorou, eu chorei.
Senti medo, claro. Era um positivo que significava uma coisa muito específica.
Eu ia ser mãe.
Eu ia colocar alguém no mundo.
Eu ia ser o mundo de alguém.
E esse alguém iria depender de mim.
Mas tinha sentido e, mesmo com medo, não consegui me preocupar. Porque eu aprendi a amar, então conseguiria amar o fruto de um amor. Por mais que fosse um pouco fora dos meus planos.
Inclusive, nada até aqui tinha sido planejado.
Bônus: Senhora, não senhorita
— Droga! — bati a mão no volante, deitando a cabeça logo em seguida.
— ? — olhei para o lado e vi a senhorita Maxwell. — Está tudo bem?
— Oi! Está sim... — ergui a cabeça, ajeitando minha postura. — Só estou com um problema com a tecnologia... — sorri amarelo.
— Todo mundo tem que enfrentar um Golias, não é mesmo?
A senhora riu e trocou sua maleta de mão.
— O que está acontecendo? — esticou o pescoço para dentro do carro.
— Eu tô tentando entender esse manual e me recordar como faz para mudar o nome do bluetooth... fez isso pra mim a última vez e agora eu não quero pedir pra ele por uma razão meio... pessoal.
— Ah! Mas, menina, isso é bem fácil. — ela gesticulou com casualidade e eu me assustei ao ver uma das professoras mais antigas da universidade, conhecida por ser tão rigorosa, tão à vontade. — Posso entrar aí e te ajudar? Meu marido tem um Jeep novo também, deve ser parecido.
Apenas assenti e ela deu a volta, entrando no banco do acompanhante.
— Funciona assim... — observei sua facilidade em ir no menu necessário, um pouco boquiaberta. — Qual nome você quer colocar?
— Oi?
— Qual é o novo nome para ir no lugar de Veronica? — reforçou a pergunta e eu olhei o painel. Como continuava sem entender a forma de ajustar, sucumbi à vergonha.
— ... — disse quase no mudo. E ela trocou, sem me questionar, sem dizer nada.
— Prontinho, menina. Está feito. — sorriu para mim, pronta para sair do carro, tão ligeira quanto o oposto do funcionamento das engrenagens do meu cérebro. — Bom final de semana, vê se descansa...
— Obrigada... — respondi automático, vendo-a sair. Olhando para o painel e o novo nome, eu me situei de algo e a chamei. — Senhorita Maxwell!
— Sim? — Ela se virou educadamente.
— É casada? — perguntei sem nenhuma delicadeza. Não tinha aliança em seu dedo e só usava um sobrenome.
— Sou. Georgia Maxwell Belmore. Uso meu nome de solteira, porque foi assim que fiquei conhecida. — explicou.
— Ah... — refleti e ri sozinha. — Me desculpe, senhora Maxwell. — pedi, agora a chamando de forma correta. — Eu não sabia... Nunca vi a senhora usar aliança. E é tão... bem-sucedida como neuropsicóloga.
— Não acho necessário o uso de anel e não gosto de joias. — ela olhou para as próprias mãos. — E é muito mais fácil ser casada, feliz e ainda ter uma profissão com uma carreira de sucesso do que você pensa Bee. Você vai entender isso mais pra frente. Primeiro, vá para casa e descanse mais vezes. Isso é importante.
Bônus 2: O positivo
— É aqui? — olhei uma última vez para o prédio e desliguei o motor, encarando .
— Não faça essa cara de nojo. A arquitetura de Nova York não ajuda em nada. — ela revirou os olhos, já tirando o cinto.
Estávamos no Queens, em frente ao estúdio onde ela sempre se tatuava, e desta vez eu iria fazer uma com ela. A tão esperada tatuagem de amizade, pois para não bastava tudo o que já simbolizava nossa amizade, ela queria muito que eu aceitasse ter meu corpo riscado com algo que fizesse par com ela. Eu aceitei, com a condição de que fosse algo não muito grande — e faríamos apenas uma caixinha com uma mão tirando um papel, bem representativo.
Contudo, eu aceitei porque também queria contar a ela sobre o bebê que estava crescendo dentro de mim nos últimos quase 4 meses. E, depois de conversar com , ele aceitou que este momento fosse somente meu e ela, assim como seria quando ele fosse contar a . Além disso, também seria a forma de eu descobrir se era menina ou menino; com um exame não muito invasivo de sangue que detecta síndromes congênitas, conseguimos o resultado.
Ali no estúdio de tatuagem o tatuador de iria usar um decalque com um teste de gravidez, escrito no pequeno visor quantas semanas e se é menino ou menina. De volta dentro de Manhattan, estava com e o contaria com um ingresso para um musical na Broadway — quando ele soube que me levou no lugar dele com os ingressos ganhos por um dos professores queridos deles, ficou dias sem trocar uma palavra sequer com ele.
— Vamos? Não vai descer? — bateu na minha porta e eu respirei fundo, enfim acompanhando ela. Não podia negar que estava assustada, ansiosa com a reação dela.
Desci e travei Veronica, a seguindo em silêncio.
Já havíamos aprovado com o tatuador a arte, mas ela não sabia que eu tinha falado diretamente com ele e armado o plano milimetricamente calculado. Como eu sabia do tratamento quando chegávamos lá, pedi a ele que nos oferecesse apenas uma água ou algo que não fosse tão calórico e alcoólico, negar uma coca-cola zero na frente de a faria desconfiar de algo.
Quando entramos, fomos recebidas por Jeff e Olivia, o casal dono do estúdio. E como eu havia pedido e pagado a mais por isso, estávamos com o horário reservado apenas para nós duas, sem plateia.
Não consegui ser simpática, nem me esforçando, simplesmente porque estava nervosa, e fiquei agradecida por achar que isso tinha a ver com o fato da tatuagem e não porque eu estava escondendo algo dela. Então, logo fomos para a parte em que sentamos em duas macas e ele trouxe os decalques, colocando em mim o primeiro, um pouco acima do cotovelo, na parte de trás do antebraço. Segundo , ali seria menos difícil de eu enjoar.
A dela, porém, seria feita na mesma direção do antebraço direito, porém na parte de frente, onde seria visível.
— Por que o meu decalque está maior que o dela, Jeff? — me remexi na cadeira, olhando-o de soslaio. se esticou para o meu lado, olhando meu desenho e quando ele tirou o papel dela, ela franziu o cenho. — Mas o que… O que é isso?
— O desenho que você escolheu, não? — me fingi de desentendida.
— Mas eu… Eu não escolhi um teste de gravidez. — encarou Jeff e ele deu de ombros. Então ela virou o rosto para mim. — Bee? — moveu o braço na minha direção. — Você…
— Você vai ser titia. — disse em um fio de voz, sentindo meu coração acelerado.
encarou o desenho novamente, forçando a leitura.
— 10 semanas. Uma… Uma menina? — ergueu o rosto para mim, vermelha.
— Ah meu Deus! — levei as mãos até a boca. — É uma menina?
— É o que está escrito aqui! — ela leu outra vez. — 10 semanas, menina. — me olhou novamente, com os olhos cheios de lágrimas. — Eu não acredito!
Ri fraco, sendo atacada pelos braços dela e um choro cheio de soluços. Enquanto eu fui apertada por , senti meu coração se encher de muita cor, não só por enfim saber que seria uma menina, mas porque também eu tinha ela comigo. Jamais iria importar qualquer coisa que ela tenha feito no passado, qualquer dor de cabeça que tenha dado ao seu avô, eu sabia exatamente o quão infinito era o coração de .
— Sua safada! — ela se afastou segurando meu rosto com as duas mãos. — Não acredito que aquele míope enfiou uma mini míope dentro da minha nerd! — disse em meio a soluços. — Bee! Você vai ter uma mini nerd-míope! Você vai ter uma princesa dos post it! Eu vou ser tia!
— E madrinha. Claro. — sorri contagiada com o choro dela, sentindo meu rosto todo molhado.
— Mas é óbvio que eu vou ser a madrinha. A gente tem que comprar tudo rosa pra ela. Tudo de princesa. O mundo todo!
— Não exagere! — ri, enxugando meu rosto.
começou a se afastar, mas ao me encarar, voltou a chorar. A cada olhar, uma sequência de choro.
Fim, por ora.
Nota de Autora: Olá! Espero que gostem dessa jornada maluca na Saint Peter, que irá transcender os muros da universidade. Tem muito mais por vir aí!