Setealém

Escrito por Hels | Revisado por Natashia Kitamura

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Capítulo 1

  Já estava perto das onze horas da noite quando eu me mantinha parada do lado de fora do grande cinema central de Hollow Grow. Ele estava prestes a fechar, e mesmo assim Eve insistia em demorar dentro do estabelecimento; já estava vendo a hora dos funcionários a expulsarem de lá.
  Suspiro pela milésima vez, batendo freneticamente minha bota contra o chão de cimento, fazendo um pequeno estalo toda vez que o salto de meu calçado entrava em contato com o chão duro.
  – Sinceramente... – falo sem humor para mim mesma. – Eu deveria te largar aqui sozinha. – continuo o meu devaneio como se minha irmã pudesse escutar minhas palavras.
  Encolho meu corpo quando sinto o vento gelado da noite passar por mim, como um rápido e apressado viajante. Involuntariamente acabo abraçado meu próprio corpo, enquanto meus olhos varrem toda extensão da rua deserta à minha frente.
  Hollow Grow realmente é uma cidade chata, praticamente tudo se fecha à meia-noite, assim como os transportes que se estendem pouco mais de meia hora depois do toque de recolher. Transportes que, por sinal, vamos perder, se Eve não se apressar.
  Vasculho o bolso do meu sobretudo à procura de meu celular, não demorando para localizá-lo. Uma vez com o aparelho em mãos, checo o visor: onze horas, nós temos apenas uma hora e meia até a passagem do último trem, ou acabaremos dormindo em um banco de praça qualquer.
  Escuto o barulho de passos vindos de trás de mim, do meu lado esquerdo, e já preparo minha língua afiada para descarregar boas reclamações em Eve.
  – Até que enfim! – resmungo de forma alta antes de me virar em direção ao barulho. – Achei que tivesse morrido na porcaria do banheiro. – lentamente me viro com a minha melhor feição séria, apenas para encontra o vazio.
  Não havia ninguém ali, nem sequer o sinal de uma mísera alma. Apenas o vento gelado e eu.
  – Eu jurei que escutei passos. – sinto meu cenho se franzir em total confusão. – Devo estar ficando louca. – divago de forma baixa, mas sem desfazer o cenho franzido.
  Isso foi muito estranho.
  Fico os próximos segundos em silêncio, escutando apenas o barulho do vento. Dou alguns passos em direção ao cinema, mas a única coisa que vejo através da enorme porta de vidro são funcionários transitando de um lado para o outro, enquanto guardam algumas coisas para o fechamento do estabelecimento.
  Fico tanto tempo encarando a porta e vidro que acabo me assustando quando escuto finas risadas vindo do lado oposto. Em um sobressalto, volto a me virar para rua, encontrando ela ainda deserta. Apenas lojas fechadas, tijolos cinzas no chão e um pequeno banco marrom de madeira acoplado na frente de uma enorme fonte ao centro da rua.
  Sem saber o motivo, sinto um estranho arrepio correr por minha espinha, me fazendo encolher no lugar ainda mais. Aquela rua que até aquela hora não parecia nada, passou a me incomodar, e de certa forma me causar alguma tensão.
  Mas me sinto aliviada quando vejo um cachorro de porte médio surgir entre os tijolos cinzas. Ele parece tranquilo e caminha de forma lenta pela rua, parando exatamente em frente ao velho banco de madeira marrom. O cachorro fica observando o objeto por alguns segundos até começar a latir freneticamente para o mesmo. Os seus latidos se tornam altos e ferozes, o animal parecia fortemente incomodado com algo.
  Dou alguns passos para frente e cruzo os braços, forçando minha vista a tentar enxergar algo entre o escuro do banco. Já que o cachorro parece tão incomodado, eu quero saber o que é.
  Dou outro passo para frente, e forço ainda mais meus olhos, mas nada.
  Mais um passo. Mais um latido alto. Nada.
  Outro passo. Mais alguns latidos. Apenas a escuridão do banco.
  Paro de andar quando vejo o cachorro cessar seus latidos e correr para longe do banco. Ele se mantém imóvel, mas ainda assim seu olhar é voltado para o mesmo.
  – Ei, amiguinho! Qual o problema? – falo com o animal, enquanto me aproximo dele.
  O cachorro me olha por um instante e emana um som similar a um pequeno choro, antes de sair correndo de onde estávamos.
  Fico estática em meu lugar, não entendendo o que aconteceu. Encaro o cachorro sumir pela escuridão da noite, me deixando para trás totalmente sozinha.
  Ainda confusa, me viro em direção ao banco, encarando o mesmo na busca por uma resposta, mas não consigo enxergar nada, apenas a sua silhueta e um tom bem fraco de marrom.
  Respiro um pouco mais alto e, hesitantemente, começo a me aproximar do objeto de madeira. Em momento algum eu desviando meu olhar do mesmo. Sinto o vento me atingir outra vez, balançando a barra do meu sobretudo preto e bagunçando meu cabelo, que se espalha por meu rosto, tapando minha visão por alguns segundos. Sou rápida ao retirar os fios loiros que cobriam meus olhos, me espantando ao notar uma sombra atrás do banco de madeira.
  Assim como o cachorro fez, eu cesso meus passos e fico parada, apenas encarando o banco. Ela estava ali, realmente havia uma coisa ali, aquela sombra pertencia a algo. Algo que, por sinal, estava totalmente encolhido por de trás das tiras do banco de madeira. Eu podia ver finos dedos correrem por entre as frestas, mas apenas a sua sombra.
  Uma respiração alta preenche o silêncio da noite, mas não era a minha respiração. Ela vinha daquela sombra. Aquela sombra que parecia me espreitar de dentro da escuridão.
  O que era isso?
  O mesmo arrepio de antes surge com mais intensidade quando vejo a sombra indicar com os dedos para que eu me aproximasse, mas eu não conseguia me mexer. Meu corpo naquele momento estava paralisado.
  Notando que eu não sairia do lugar, a sombra volta a deslizar seus dedos pelas frestas do banco, agora arranhando sua unha pela madeira, causando um baixo e agudo som.
  As batidas do meu coração começam a acelerar, e o vento gelado já não me acusava mais frio, na verdade, eu me sentia quente dentro do sobretudo.
  Vejo a sombra se movimentar, trazendo sua mão para luz, me mostrando quão escura ela era. Na verdade, parecia banhada pela noite, era tão preta quanto o carvão, e suas unhas eram amareladas e sujas, fazendo meus olhos se arregalarem antes que eu sentisse algo agarrar meu ombro, me fazendo soltar um grito de pavor, que preencheu cada canto daquela rua deserta.
  – Ei, Mae! Calma, sou eu! – escuto a voz de minha irmã, que me faz voltar a abrir os olhos, já que por um momento eu fechei pelo medo.
  – Eve?! – me viro desesperada para ela, que me encara com um misto de confusão e preocupação.
  – Aconteceu alguma coisa? – ela retira sua mão de meu ombro, mas mantém a feição preocupada.
  – Não. Apenas vamos embora logo. – falo exasperada antes de agarrar em sua mão e a puxar para longe daquele banco.
  Saio arrastando Eve pela rua, escutando seus pedidos para que eu andasse mais devagar.
  – Desse jeito nós vamos cair, Mae. – minha irmã mais velha me repreende, e eu olho por cima dos ombros.
  – Você não devia ter demorado tanto. – devolvo a repreensão e a mesma revira os olhos.
  – Eu estava apertada. – ela se defende. – E ande mais devagar, nós não vamos perder o trem.
  Não era com o trem que eu estou preocupada.

***

  O caminho até a estação de trem foi calmo, para a minha sorte. Mas me mantive calada o tempo todo, apenas tentando entender o que aconteceu. Aquilo poderia ser apenas um animal, ou um morador de rua tentando me assustar.
  Pelo menos era com essas desculpas que eu tentava me convencer do que vi.
  – Você está estranha. – Eve se esgueira ao meu lado, e me olha semicerradamente enquanto esperávamos a nossa vez na fila do trem. – O que foi? Não gostou do filme que vimos? – apenas a encaro de maneira séria. – Redemption é o filme do ano, e Ellinora é a melhor. Se você não gostou, eu vou te forçar a assistir outra vez. – Eve me ameaça ultrajada, enquanto entrega nossos bilhetes para o bilheteiro do trem.
  – Não. Eu gostei do filme, Eve.
  – Então o que foi? Não me diga que você está se culpando outra vez pela morte de ? Mae, já está na hora de superar isso, já faz dois anos desde a morte dele. – como de costume, Eve começa a falar desenfreadamente, e justamente sobre algo que eu não gosto de lembrar.
  Meu namorado morto.
  – Eu só estou cansada, não precisa se preocupar. – sorrio forçadamente, tentando acabar com esse assunto. Eu não quero e não vou pensar em agora, isso só irá piorar as coisas.
  O bilheteiro entrega nossos bilhetes que agora estavam cortados, e dá passagem para que embarquemos no trem. Deixo que Eve entre primeiro, enquanto checo em volta para ver se não via nada. E acabo suspirando pesadamente com a minha paranoia.
  Embarco no trem também e sigo os cachinhos loiros da minha irmã até nossos lugares. Estávamos nos bancos B24 e B25, o B26, que estava perto do corredor, já estava ocupado por um rapaz jovem de olhos azuis e cabelo loiro. Na frente de nossos bancos estavam o B27 e B28, ocupados por um casal de idosos, e por fim, o B29, que estava vazio.
  Pedimos licença ao rapaz de olhos azuis, que com um singelo sorriso se levantou para que pudéssemos nos acomodar em nossos bancos. Acabo ficando com o assento da janela, e Eve no meio.
  Cumprimento o casal de idosos com um pequeno sorriso, mas não tenho retorno, pelo contrário, ambos apenas me encaram com semblantes sérios, me fazendo desviar o olhar e encarar através da janela, a estação quase deserta de trem.
  Poucas pessoas estavam por ali, algumas com malas, outras apenas com a roupa do corpo, mas todas bem agasalhadas com chapéus, sobretudos e cachecóis. Realmente era uma noite fria.
  – Você se importaria? – escuto a voz de Eve e viro minha cabeça para o lado, vendo ela conversar com o rapaz que estava com a gente.
  – Não. Pode ficar, eu já li. – ele sorri, e logo entrega uma pequena revista de viagens que estava sobre o braço de seu banco.
  – Muito obrigada...
  – . – o rapaz dá outro sorriso.
  – Muito obrigada, . – a loira ao meu lado retribui o sorriso. – Sou Eve, e essa é minha irmã Mae. – ela aponta para mim, que apenas ergo uma mão dando um pequeno acesso para o rapaz.
  Durante nossa pequena apresentação algo me chama atenção, mais especificamente duas garotinhas que estavam sentadas nos bancos do outro lado do pequeno corredor do trem. Ambas nos encaravam com sorrisos divertidos nos rostos, enquanto cochichavam algo. Como fiz com , dou um aceno para as garotinhas, que retribuem.
  – Vocês não vão para Setealém, vão? – volto a olhar para frente quando escuto uma voz fraca e falha, que logo percebo ser da senhora que estava sentada à nossa frente.
  – Como? – pergunto educadamente não entendendo sua fala.
  – Setealém. Vocês três não vão para lá? – a senhora volta a perguntar, mantendo aquela assustadora feição séria.
  – Não. – franzo o cenho, enquanto olho para Eve, que me olha e dá de ombro.
  – E você, rapaz, você vai para Setealém? – a senhora desvia seu olhar agora para .
  – Não, eu não vou. – ele também se mostra bastante confuso com a pergunta.  
  – Então vocês têm que descer. – agora foi a vez do senhor tomar voz.
  – Descer? – questiona.
  – Se vocês não vão para Setealém, desçam agora! – o senhor responde em um grito que capta a atenção de todos no trem. E agora somos a atração principal. Mas o estranho mesmo era que todos encaravam apenas a nós três com as mesmas expressões sérias do casal de idosos.  
  – Vovô velho, não brigue com eles. – surpreendentemente uma das garotinhas que me encarava antes, responde ao senhor, e depois sai de seu banco caminhando até onde estávamos, junto da outra que julgo ser sua irmã, esta que segurava um pequeno caderno rosa e caneta da mesma cor.
  Neste momento, todos voltam a prestar atenção em outra coisa, e eu agradeço mentalmente quando os pesos de seus olhares somem de nós.
  – Oi. – a garota de antes nos comprimente e sorri.
  – Oi. – assim como eu todos ali respondem ela, menos o casal de idosos, que continuam nos encarando estranhamente.
  – Vocês vão passear? – agora foi a vez da outra garotinha se pronunciar, enquanto sentava no banco vago, seguido por sua irmã, e como ambas eram bem pequenas, couberam em um banco só.
  Pareciam duas lindas bonecas, com grandes olhos verdes e pele clara, tão clara que eu poderia contar as sardas em seus rostos. Seus cabelos eram um tom de ruivo claro, que combinava muito bem com o lindo vestido rosa que elas usavam, e o laço de mesma cor que estava no topo de suas cabeças.
  – Estamos voltando para casa. – Eve responde por nós duas, e sorri gentilmente para as garotinhas, guardando em seguida a revista que havia pegado de .
  – Eu também. – é breve, e percebo como suas respostas são curtas e diretas.
  – Vocês querem brincar com a gente? – a mesma garotinha de antes pergunta, me fazendo trocar um olhar com Eve, que parece encantada com elas.
  – Claro. – minha irmã apoia as mãos sobre os joelhos coberto por seu sobretudo vermelho, e se inclina para frente. – Do que vamos brincar?
  – Setealém! – a primeira garotinha responde animada.
  Mas que diabos é Setealém?
  No mesmo segundo meu cenho se franze e eu encaro o casal de idosos, mas ambos desviam o olhar.
  – Ok... e como se brinca disso? – pergunto meio incerta, vendo a segunda garotinha abrir seu caderno rosa e arrancar uma folha de lá, para depois, partir ela em cinco partes.
  – Hm... – a mesma garotinha fica pensativa. – Nós precisamos escrever nesse papelzinho uma coisa malvada que já fizemos, e depois escrever em baixo "Alma Setealém" três vezes. – ela indica o número três com seus pequeno dedinhos.
  – Só isso? – para minha surpresa o questionamento vem de .
  – Aham. – a garotinha acena freneticamente. – Aí nós dobramos o papelzinho e esperamos dar meia-noite, e todo mundo vai para Setealém! – as duas garotinhas se mostram bastante empolgadas com a ideia.
  E mesmo achando estranho eu acabo dando de ombro, afinal, eram apenas crianças com a mente fértil. Com certeza escutaram o que o casal de idosos nos disse.
  Depois de nos entregar o pequeno pedaço de papel, um a um foi escrevendo, vendo que só havia uma caneta. Eu aproveito para olhar pela janela enquanto espero chegar a minha vez, mas a noite parece tão densa que mal enxergo algo do lado de fora, apenas uma forte neblina com muitos corvos voando por entre ela. No final das contas eu fiquei tão distraída que nem senti o trem começar a se mexer; para mim estávamos parados esse tempo todo.
  – Aqui! Toma! – Eve me cutuca, e me entrega a caneta.
  Depois de pegar o objeto, fico ali encarando o papel branco, pensando no que eu poderia escrever, até me recordar de algo.
  "Sammy...
  ALMA SETEALÉM
  ALMA SETEALÉM
  ALMA SETEALÉM"
  Depois de escrever, dobro o papel e entrego de volta a caneta para as garotinhas.
  – Que horas são? – Eve pergunta.
  – Faltam três minutos para meia noite. – responde checando seu relógio de pulso.
  Ao escutarem a resposta de , as duas garotinhas trocam cochichos e risadas, antes de ambas saírem do banco vago e voltarem para seus assentos do outro lado do corredor.
  – O que fazemos agora? – nos encara confuso.
  – Esperamos dar meia-noite. – solto uma curta risada e os dois ao meu lado acenam.
  O barulho de algo sendo arrastado capta minha atenção, e logo vejo uma moça que trabalha no trem entrando em nosso vagão.
  – Por favor, fiquem em seus assentos, já estávamos chegando. – ela anuncia, sorrindo cordialmente para todos.
  – Droga! – Eve resmunga ao meu lado.
  – O que foi?
  – Eu acho que perdi a chave de casa. – ela me olha culpada enquanto tateia seu sobretudo.
  – Eu não acredito, Eve. – bufo pesadamente.
  – Talvez eu tenho derrubado quando fui dar nosso bilhete para o bilheteiro. Será que alguém achou? – ela pergunta de forma culpada, enquanto eu nego com a cabeça.  
  – Eu vou perguntar. – levanto de meu lugar, ainda sem acreditar que Eve perdeu a chave de casa.
  Saio do meu assento e me coloco no corredor do trem, indo em direção à moça uniformizada, sentindo estranhamente o olhar de todos ali sobre mim, inclusive o do casal de idosos que em momento alguém desde a nossa "discussão" parou de me encarar.
  – Senhorita, por favor, volte para o seu assento. Já estávamos chegando. – a moça me instrui gentilmente.
  – Eu gostaria de perguntar uma coisa. – me aproximo dela.
  – Você pode perguntar quando chegarmos. Agora se sente, por favor. – ele mantem o seu sorriso cordial.
  – Mas isso é importante. – Insisto.
  – Eu falei pra voltar para o seu lugar, senhorita. – mesmo mantenho aquele sorriso, sua voz sai totalmente grave e sombria, me assustando por um momento.
  E antes que eu possa falar algo ou sequer voltar para o meu lugar, o trem dá um forte tranco e acelera atingindo uma velocidade tão intensa que humanamente é impossível para um trem.
  Meu corpo é rudemente impulsionado para frente quando escuto todas as janelas do trem se partirem e cacos de vidros voarem para todos os lados. Sou lançada contra a parede, batendo violentamente contra a superfície dura, que me leva ao chão quase que inconscientemente.
  Minha visão fica turva e meu corpo doí, eu quero gritar por ajuda, mas não consigo, meu corpo parece não obedecer aos meus comandos. Estou assustada e com medo, não escuto um barulho sequer, nem gritos ou choro, isso me apavora, eu preciso ver Eve.
  Uma dor aguda corre por todo meu corpo, me obrigando a fechar os olhos para não conseguir abri–los outra vez. Eu estava perdendo a consciência, mas ainda consigo escutar uma única voz quebrar esse silencio pavoroso.
  – Sejam bem-vindos à Setealém!

Capítulo 2

  Sinto cada parte do meu corpo falhar; neste momento, eu não tinha tantos movimentos ou controle sobre ele. Era como se minha alma tivesse sido brutalmente arrancada de dentro de mim, uma sensação de vazio avassaladora.   
  Meu corpo fraco balançava de um lado para o outro de forma lenta, sem que eu conseguisse entender o que acontecia. E demora apenas alguns segundos até que, de fato, consiga sentir braços me embalando; eles passavam por minhas pernas e costas, acompanhado de um baixo barulho de passos contra o que me pareciam ser pedras. Minha cabeça e mãos pendiam para baixo, e com uma sutileza, eu conseguia sentir eles balançando à medida que cada passo era dado.
  Reunindo os poucos resquícios de força dentro do meu corpo vazio, vou lentamente abrindo meus olhos, enquanto espero que minha visão se torne nítida, para que eu entendesse o que estava acontecendo.
  A primeira coisa que consigo ver é meu corpo curvado em um pequeno 'u', por isso sou obrigada a levantar mais um pouco minha cabeça para contemplar o cenário escuro do qual eu me encontrava. Eu não reconhecia nada ao meu redor, na verdade, eu quase não enxergava nada, onde quer que esteja agora, era extremamente escuro.
  Mais alguns passos e meu corpo continua balançando.
  Com os sentidos ainda falhos, eu não conseguia identificar muitas coisas, por isso ergui de vez minha cabeça para que eu pudesse, finalmente, enxergar quem me carregava. Mas assim que o faço, sinto como se meus sentidos voltassem de uma vez só em uma violenta explosão, mas apenas sentidos ruins. 
  A imagem que vi em meio a toda aquela escuridão fazia com que meu coração pulsasse desenfreadamente, mostrando que eu ainda estava viva.
  A pessoa que me carregava, que eu logo identifiquei sendo homem, tinha a pele pálida, tão pálida que quase chegava a ser azulada. Seus cabelos, sobrancelhas e cílios eram de um loiro extremamente claro, que chegava ao ponto de incomodar a minha visão. Seus olhos eram fundos e esbranquiçados, dando uma aparência totalmente horripilante, completando todo aquele conjunto medonho.
  Fico apenas ali, sem me movimentar ou falar alguma coisa, completamente vidrada pelo medo, enquanto encaro aquela pessoa que parecia ter saído de um filme de horror. Acho que logo ele pode sentir o peso de meu olhar sobre si, já que suas órbitas brancas viram em direção ao meu rosto, enquanto um sorriso de dar arrepios surgiu em seus lábios pálidos.
  Ele não disse nada, apenas devolveu o meu olhar por longos segundos, que fizeram meu coração acelerar mais do que humanamente parecia ser possível. E o pior de tudo era que o medo havia me paralisado, e eu não conseguia olhar para outra coisa que não fosse seu medonho rosto.
  No momento em que seus olhos brancos me tiram do centro de seu olhar, comecei a sentir meu corpo pesar outra vez, eu estava me desligando. Foi como se seu olhar tivesse uma ligação direta com o que eu estava sentindo naquele momento. E de fato, foi isso. Bastou que seus olhos voltassem para frente, se concentrando no caminho em que fazíamos, para que todas essas sensações de fraquezas fossem intensificadas.
  Eu não pude controlar. Eu estava me perdendo naquele lugar outra vez. 

***

  Assim como antes, eu lentamente parecia despertar de alguma coisa, mas desta vez sentindo meu corpo estirado sobre uma superfície dura, sem ninguém me embalando em seus braços. Apesar de não me sentir normal, meu corpo era menos fraco do que antes, e os meus comandos pareciam ter voltado ao meu domínio. Mas bastou uma pequena recordação do que vi quando acordei antes, para que eu temesse abrir meus olhos agora e encontrar o mesmo homem.
  Meu corpo começou a suar frio, e minhas mãos começavam a ficar lisas pelo suor. Eu estava com medo. Estava com medo de dar de cara com aquele homem e descobrir o que ele poderia fazer comigo. Mas ficar de olhos fechados, sem ter noção nenhuma do que está ao meu redor, parecia dez vezes pior.
  Nossa mente é nossa pior inimiga.
  Reunindo um pingo quase inexistente de coragem, eu começo a abrir meus olhos de forma relutante, mas desejo não ter feito isso, quando encontro duas pessoas tão perto de meu rosto que posso contar quantos fios tinham em suas sobrancelhas.
  – Veja só, Jack. Ela finalmente acordou. – uma mulher alta, de cabelos loiros igualmente claros aos que vi mais cedo, pele pálida azulada e olhos esbranquiçados, diz.
  Ela se inclina para trás, me dando algum espaço, e logo é seguida pelo homem que estava ao seu lado. Ele tinha a mesma aparência do homem que vi mais cedo... na verdade, eu acho que é o mesmo homem de mais cedo.
  – Ela parece estar com medo, Angeline. – a voz profunda do homem, Jack, ecoa por toda minha cabeça confusa.
  Me mantenho imóvel outra vez. Parece que essa é a única coisa que consigo fazer.
  – Q–Quem são vocês? – com um receio enorme, acabo perguntando algo. Na mesma medida que tento me levantar, me sentando sobre um aparente sofá velho e gasto, enquanto encolho meu corpo.
  A mulher sorri para mim, mostrando aqueles dentes amarelados e sujos, iguais ao do homem ao seu lado.
  – Ora! Quem mais nós seriamos? – seu sorriso some, dando vez para uma expressão confusa, enquanto tomba sua cabeça para o lado. – Nós somos os seus novos pais, Mae. – e outra vez, aquele sujo e mal encarado sorriso surgia em seu rosto.
  – O–O quê?! – pela primeira vez desde que acordei minha voz parece soar alta, na verdade, desesperada, tão desesperada a ponto de me fazer levantar daquele sofá velho, vendo o casal que antes estava agachado na minha frente, também se levantar.
  Eles eram muito altos.
  Por um instante disperso minha atenção dos dois, para que possa analisar o lugar em que eu estou. Parecia ser uma casa, uma casa completamente feita de madeira, desde o chão e paredes, até os móveis velhos, quebrados e gastos. Tudo ali parecia sujo e antigo, era como se um furacão tivesse passado por aqui e arruinado tudo.
  A luminosidade do lugar também era precária, na verdade, ela parecia ser assim de propósito, criando um ar pesado dentro da casa, contrastando perfeitamente com o aspecto físico do ambiente, para o meu desespero.
  O lugar era de causar arrepios. Muito semelhante à um verdadeiro pesadelo.
  – Está é a sua casa agora. – a mesma voz grave de antes faz com que eu volte a direcionar minha atenção sobre o homem e a mulher.
  – Do que vocês estão falando? Que lugar é esse? Quem são vocês? O que vocês são? E cadê a Eve? – as perguntas simplesmente correm por minha boca desenfreadamente, haviam tantas coisas que eu queria entende neste momento. – Meu Deus, a Eve! – meus batimentos cardíacos voltam a acelerar quando me recordo do acidente. – O trem em que eu estava... ele... ele... eu não sei o que aconteceu. Eu preciso achar Eve. – atropelo as palavras sem conseguir assimilar as coisas, enquanto sou banhada pelo olhar inexpressivo do casal que não parecia nenhum pouco interessado em minhas palavras.
  – Sua irmã está bem, Mae. – a mulher responde apenas uma de minhas perguntas.
  – A–Angeline, certo?! – minha voz embargada pelo desespero, treme. E a mulher loira apenas acena com a cabeça, confirmando. – Você sabe onde ela está?
  – Ela está aqui. Na verdade, está te esperando nesse exato momento. – Angeline volta a sorrir.
  E toda a esperança que havia surgido em mim escorrega para longe, dando lugar, outra vez ao desespero. Eve está aqui, será que está bem? Será que estão mantendo ela como refém? E será que vão me manter também?
  Eu quero ir embora desse lugar.
  – Bom, chega de conversa. Você precisa descansar agora, amanhã terá um longo dia pela frente. Estamos ansiosos por isso. – o estranho com nome de Jack, diz.
  – Era você que estava me carregando mais cedo, não era? – me encolho no lugar ao lembrar.
  – Sim. Eu fui te buscar no trem. – ele dá de ombros, nem um pouco interessado. – Sem conversas agora, Mae, você precisa vir comigo. – Jack diz, enquanto tenta segurar minha mão, mas recuo, temendo–o.
  Ele suspira pesadamente, parecendo não ser muito paciente.
  – Eu estou tentando ser um bom pai, não me obrigue a ser ruim com você, Mae. – suas palavras me fazem tremer, e acabo não relutando quando ele agarra rudemente meu pulso, me puxando para longe do sofá.
  – Boa noite, querida. Nos vemos amanhã. – Angeline acena para mim, enquanto sou arrastada por Jack.
  Eu penso em lutar, eu quero lutar para que ele me solte, mas estou com medo. Ele disse que Eve está me esperando em algum lugar desta casa, por isso penso que a melhor ideia é deixar que ele me leve até minha irmã, assim eu posso saber se ela está bem. Estou me iludindo com essas coisas, e espero não deixar o desespero me arrebatar.
  Sou arrastada por alguns corredores de madeira podre, me fazendo notar que essa casa era maior do que parecia. E a cada canto que passávamos eu tinha a completa certeza que um furacão realmente havia passado por aqui. Tudo revirado e quebrado, sujo e viçoso, mas nada disso parecia incomodar o homem que me arrastava.
  Bastou alguns minutos para que entrássemos em um corredor reto, repleto de quadros escuros espelhados pelas duas paredes do corredor. Todos eram fotos em família do casal com um garoto e duas meninas…
  Minha irmã e eu.
  Como assim? Eu nunca os vi antes, não conheço nem ao menos o garoto da foto. Eu não me lembro de ter tirado essas fotos.
  Não lembro porque, na verdade, eu não tirei foto alguma com eles. Aquelas duas garotas não éramos nós, apesar de serem idênticas, talvez irmãs gêmeas horripilantes?
  Elas eram exatamente como Eve e eu, a não ser pelo loiro intenso de seus cabelos, e pele azulada como todos, olhos fundos e expressões vazias. Era como olhar para o meu lado obscuro através destes velhos retratos.
  – Chegamos. – olho assustada para frente quando sinto Jack parar de andar.
  Uma pequena porta de madeira estava a nossa frente, a única do corredor de quadros.
  – Eve está te esperando ai embaixo. Infelizmente, não podemos deixá–las ficarem aqui em cima, pelo menos não até que se tornem uma de nós. – um grande e enorme sorriso surge em seu rosto ao pronunciar o final de sua fala. – Você parece não ter notado, mas tem alguns machucados que não doem agora. – Jack solta meu pulso, que com uma rápida checagem, vejo estar com a marca de seus dedos. – Não se preocupe, amanhã Angelina cuidará deles. Agora durma bem, filha. – e com estas últimas palavras, ele abre a pequena porta e me empurra em direção à escuridão do outro lado, me trancando ali.
  Tenho que ser ágil para não cair nos degraus da escada que eu mal podia enxergar, tropeçando em meus próprios saltos, mas é inevitável não cambalear nos primeiros degraus assim que sou lançada para dentro de algo que não sei o que é, ou onde é.
  Subo os poucos degraus em que tropecei e começo a bater contra a pequena porta de madeira, estou desesperada.
  – Me deixe sair! Por favor!... – bato meus punhos contra a madeira, mas não obtenho resposta alguma. – Eu estou com medo. – sussurro para mim mesma, deixando que que minhas mãos escorregassem pela madeira.
  Suspiro profundamente até conseguir ver o sombra de algo luminoso contra a porta de madeira, me fazendo virar o corpo de uma vez só, apenas para ver uma pequena chama acessa no final da escada de madeira. A chama perecia flutuar, iluminando poucas das coisas ao seu redor, fazendo com que meu corpo ficasse em estado de alerta.
  Eu acho que não saberia responder quantas vezes minha respiração e coração já aceleraram desde que estivesse nesse lugar.
  A chama flutua de um lado para o outro, antes de se tornar maior, como se, se aproximasse de mim, me fazendo virar contra a porta de madeira e voltar a esmurrá–la. Mas como antes, eu não tenho uma resposta sequer. Eu estava perdida.
  Fecho os olhos e encosto minha testa contra a madeira da porta, quase me entregando ao que poderia me acontecer.
  – M–Mae, é você? – a familiar voz aterrorizada de Eve me faz abrir os olhos e me virar tão rapidamente que quase caio no lugar.
  – Eve... – pronuncio o nome de minha irmã em um longo suspiro de alívio, a vendo parada na metade da escada enquanto segurava uma lamparina.
  – Mae, graças a Deus! – minha irmã sobe os últimos degraus com pressa, e me envolve em um abraço apertado que transbordava preocupação e alívio. – Eu pensei que tivesse acontecido alguma coisa com você. – escuto–a fungar em meu pescoço.
  – Eu estou bem. Nós estamos bem. – tento reconfortá–la, a vendo se afastar de mim, e secar as pequenas lágrimas em seus olhos.
  – Que lugar é esse, Eve? O que estamos fazendo aqui?
  – Setealém. – Eve engole em seco.
  – O quê?! – todas as conversas estranhas que tive no trem me atingem de uma vez. – Do que você está falando, Eve?
  – Estamos em Setealém, Mae. – eu podia ver o medo no semblante de minha irmã.
  – Mas que merda é Setealém? Não era só uma brincadeira idiota de crianças? – o desespero toma conta de mim.
  – Eu não sei, Mae. Mas estamos em Setealém. – Eve leva sua mão livre até a cabeça e passa de forma nervosa pelos cabelos.
  – Eu não sei que diabos é esse lugar, mas vamos ir embora dele agora mesmo. – agarro a mão de minha irmã, a puxando em direção às escadas de madeira que rangiam debaixo de nosso pés.
  Tomando cuidado para não cair, descemos degrau por degrau, torcendo para que eles não se partissem, pois pareciam muito gastos. Quando alcançamos o chão outra vez, uma brisa gelada corre por todo o ambiente que eu julgo ser um porão. Eu não podia ver muitas coisas já que a lamparina de Eve não iluminava muito, apenas o que estava bem próximo de nós, não nos dando um longo alcance de visão.
  – Você estava aqui antes, viu alguma saída ou coisa parecida? – me viro para Eve, que olha de forma assustada para os quatro cantos da escuridão que nos engolia.
  – Não. Não tem nenhuma saída a não ser por aquela porta. – ela aponta para o fim das escadas, me fazendo suspirar.
  – O que vamos fazer agora? – pergunto mais para mim mesma, enquanto tapo o rosto com as mãos.
  – Espera! – retiro as mãos do rosto, quando escuto Eve exclamar um pouco mais alto – Eu acho que vi uma janela em algum lugar por aqui. – ela força os próprios olhos fazendo uma expressão pensativa, tentando se recordar.
  – Aonde?! – agarro em seus ombros, sedenta por uma resposta esperançosa.
  – Acho que por ali. – ela aponta em direção à um lugar qualquer da escuridão.
  Eve toma frente, já que tem uma lamparina, e começa a nos guiar em meio à escuridão daquele porão que cheirava a poeira. Acabamos parando em frente a algumas caixas de papelão que estavam empilhadas, onde se podia ver pequenos feixes de luzes saindo por detrás das laterais delas.
  Sem cerimônia, eu as empurro para o lado, vendo a pequena e retangular passagem de ida para nossa liberdade.
  – É muito pequena, Mae. – Eve suspira desanimada ao examinar a janela, que refletia uma fraca luz que vinha do lado de fora.
  – Mas eu acho que podemos passar por ela. – me aproximo do vidro sujo, checando se havia alguma forma de abri–lo, mas ele era acoplado a madeira da parede – Precisamos de alguma coisa que quebre esse vidro. – passo a ponta dos dedos pelo vidro sujo, notando o quão grosso ele era.
  – Acho que isso serve. – Eve estende em minha direção uma barra de ferro, me fazendo arregalar os olhos. – Estava aqui, junto com esses ganchos e outras coisas que eu não sei o que são. – ela indica as caixas de papelão caídas no chão.
  Que tipo de pessoas estranhas aqueles dois são? E por que têm esse tipo de coisa no porão?
  – Nós precisamos sair daqui logo. – digo assustada, vendo Eve concordar.
  Depois de pegar a barra de ferro das mãos de Eve, respiro fundo antes de dar a primeira pancada contra o vidro, que apenas faz alguns arranhões.
  – De alguma forma isso é resistente. – resmungo dando outra pancada, fazendo a primeira rachadura aparecer no vidro.
  A esperança volta a surgir dentro de mim, enquanto escuto Eve respirar pesadamente do meu lado
  – Calma, Eve. Nós vamos sair daqui. – falo em meio a uma curta risada de alívio para encontra–la me olhando de forma assustada.
  – Não fui eu, Mae. Não fui eu que respirei desse jeito. – os olhos dela mal piscavam, e seu corpo estava paralisado.
  – Se não foi você, então foi quem? – minha pergunta é banhada pelo receio de ouvir a resposta.
  – E–Eu acho que não estamos sozinhas aqui. – Eve sussurra, ainda paralisada no lugar.
  Um silêncio pavoroso se instala depois que Eve diz isso, fazendo com que nós não saibamos o que fazer. Até que aquela respiração pesada preencha o porão outra vez, fazendo todo meu corpo se arrepiar ao relembrar que já escutei ela antes. Era a mesma respiração vindo detrás do banco que ficava perto do cinema de Hollow Grow.
  Meu coração dispara quando escuto o que quer se seja se movimentar, fazendo Eve sair de sua paralisia e se virar em direção ao barulho, iluminando minimamente o que estava ao nosso redor.
  Não demora muito até eu consiga escutar o barulho de algo arranhando o chão de madeira, o que dura alguns segundos até que uma mão negra como a noite e com unhas sujas encontre a luz.
  Definitivamente era a mesma coisa.
  Tomada pelo desespero, dou outra pancada contra o vidro, fazendo-o trincá-lo de vez. Mas o barulho parece atiçar o que está escondido na escuridão, já que começa a respirar pesadamente outra vez, e a se movimentar, derrubando coisas, mesmo que não conseguíssemos ver o que era.
  – Anda, Mae! Quebra isso logo! – Eve me olha exasperada.
  – Eu estou tentando! – respondo no mesmo segundo em que consigo quebrar uma parte do vidro.
  Olho por cima dos ombros vendo se enxergava o que estava com a gente no porão, mas parece que a coisa não quer se revelar, mas sinto que falta pouco para isso acontecer, já que sua agitação dentro da escuridão era cada vez maior.
  – Aqui! Me dê a lamparina e tente passar pela janela! – jogo a barra de ferro no chão quando não há mais vestígios de vidro na janela.
  – Mas e você? – ela me entrega a lamparina.
  – Eu vou assim que você passar. Agora se apresse antes que aquela coisa venha para cá. – gesticulo em direção à janela.
  Eve junta algumas caixas caídas e sobe em cima das mesmas, dou um apoio para que ela não caia. Ela passa os braços para fora da janela, e eu empurro seu corpo para cima, e logo ela está deitada com metade do corpo para fora, e metade aqui dentro.
  A respiração do que estava escondido no escuro se transforma em grunhidos horripilantes, que me incentiva a apressar Eve, que se rasteja pelo chão do lado de fora.
  – Pronto! Agora você, Mae! Rápido! – minha irmã se abaixa do lado de fora e estende suas mãos para mim.
  Escuto os grunhidos ficarem mais altos e me viro por um momento, usando a lamparina para iluminar na esperança de descobrir o que era aquilo, mas não vejo nada. Apenas acabo me assustando quando suas mãos saltam para fora da escuridão, me fazendo involuntariamente jogar a lamparina em sua direção, escutando–a se partir em pedaços, e depois começar a queimar o chão de madeira. A coisa havia recuado e se escondido para longe do fogo.
  – Anda, Mae! Pare de enrolar! – Eve repreende, e volto a me virar para ela. Subindo sobre as caixas de papelão e colocando meus braços para fora da janela. Eve não demora para arrastá–los e me ajudar a sair, me puxando para fora.
  Sinto meu sobretudo enganchar na janela e peço para que Eve me puxe com mais força. E em um último grunhido alto do que estava no porão, sinto Eve me puxar de uma vez para fora, no mesmo instante em que aquela coisa tenta agarrar meu tornozelo.
  Uma vez do lado de fora eu tento levantar e me afastar da janela, mas acabo caindo quando sinto uma dor aguda em meu tornozelo.
  – O que foi? Nós precisamos dar o fora desse lugar. – Eve ainda se mantém exasperada. – Você se machucou? – ela se abaixa em minha direção, enquanto checa meu tornozelo sobre a grama do lado de fora.
  Haviam arranhões grandes e profundos em minha carne que latejava dolorosamente, enquanto uma quantidade significativa de sangue escorria pelas feridas.
  Vejo minha irmã retirar seu sobretudo e rasgar a manga do mesmo, amarrando fortemente o pedaço de pano ao redor de minha ferida, na tentativa de estancar o sangue.
  – Me desculpe. – ela encolhe os ombros quando percebe minha careta de dor. – Você consegue se levantar? – ela pergunta preocupada e eu apenas assinto.
  Com o auxílio da mais velha, ela me ajuda a ficar de pé, para que depois eu retire meu outro salto, já que o do pé direito foi arrancado pelo que está no porão.
  Chamando nossa atenção, meu salto perdido é arremessado de dentro do porão em nossa direção. Quando olho para a janela vejo apenas a sombra de grandes e afiados dentes, e olhos amarelados.
  O que estava dentro do porão solta um grande grito alto, e coloca suas mãos pretas para fora da janela, tentando a todo custo sair, arrancando grama e terra do lado de fora, tentando se segurar em algo.
  Sem perder tempo ou olhar para trás, Eve e eu começamos a correr para longe daquele lugar. Neste momento eu apenas fazia o meu melhor, sem me preocupar com a dor em meu tornozelo. Eu apenas precisava sair desse lugar.
  Eve e eu corremos pela grama alta e malcuidada do jardim dos funda da casa de madeira em que estávamos antes, indo em direção à rua.
  – Hollow Grow. – digo enquanto corro ao lado de minha irmã. – Você disse que estávamos em Setealém, mas este lugar é Hollow Grow. – a encaro.
  – Foi o que os donos daquela casa me disseram, Mae. – Eve para de correr, e leva suas mãos até os joelhos, recuperando o fôlego.
  – Mas este lugar é igual a Hollow Grow.
  – Está mais pra verão pós–apocalíptica dela. – Eve diz, enquanto endireita seu corpo.
  Ela estava certa. Este lugar era realmente parecido com a minha cidade natal, mas estava completamente destruído. As casas eram velhas e assustadoras, todas pareciam estar abandonadas. Carcaças enferrujadas de carros estavam espalhadas pelas ruas. Os jardins que haviam nas casas tinham gramas altas e malcuidadas, dando um aspecto ainda mais tenebroso para tudo. Mas o que realmente me causava arrepios em tudo isso era o céu, ele era totalmente escuro, pintado por um vermelho sangue que me trazia sensações ruins, não havia uma estrela sequer nele e muito menos sinal da lua. Eu nunca vi isso antes.
  – Eu não sei se esse lugar é Setealém ou não, mas que é parecido com Hollow Grow, isto ele é. – falo para Eve, a vendo tremer de frio, já que não estava mais com seu sobretudo.
  Retiro o meu sobretudo preto e estendo para ela.
  – Toma. Vista isso e vamos até o centro dessa cidade, porque se ela se parece mesmo com Hollow Grow, estamos quase lá.
  – Você não vai ficar com frio? – ela segura a peça de roupa de forma receosa.
  – Não se preocupe, eu estou bem. – sorrio minimamente para tentar acalmá–la.
  Depois que Eve veste meu sobretudo, começamos a caminhar pela rua de tijolos cinza. Até cogitamos a hipótese de bater na porta de alguma dessas casas, mas elas realmente pareciam abandonadas.
  Ficamos algum tempo andando até que conseguíssemos enxergar aquela mesma fonte com um velho banco destruído. O letreiro do cinema estava queimado e faltando letras, mas de fato eu podia reconhecer.
  – Olha, Mae! Acho que tem alguém ali. – Eve me cutuca e aponta para o lado esquerdo da fonte seca que não jorrava nenhuma gota água. Ali haviam duas pessoas, mas especificamente dois homens, eles pareciam conversar.
  – Vamos pedir ajuda. – seguro na mão de minha irmã, e começo a caminhar com ela em direção aos dois homens.
  Um era extremamente alto, o outro também, porém mais baixo que o primeiro. O mais baixo que estava de costas para mim parecia ter o cabelo preto, usava uma jaqueta de couro rasgada e calças escuras. O mais alto que estava na sua frente, tinha os cabelos lisos, porém ondulados, todos jogados para trás, e devido a precária luminosidade do lugar não consegui ver muito bem seu rosto, ele estava perto de poste de luz, mas era tão fraco que mal me mostrava alguma coisa. E com muito esforço eu pude ver algumas tatuagens que cobrirem braços e pescoço do homem alto, elas eram muitas.
  – Vamos chamá–los. – sussurro para Eve, soltando sua mão – Hey! Com licença! Vocês poderiam nos ajudar?! – falo de forma alta e clara para que eles possam nos escutar.
  Mas no segundo em que o homem alto se inclina em direção à luz e o mais baixo se vira em nossa direção, sinto uma mão rodear a minha cintura, enquanto a outra tapa minha boca. Olho para o lado, mas não vejo mais Eve, o que me deixa em pânico. O corpo alto que me prendia era visivelmente mais forte, me levantando do chão enquanto eu me debatia e tentava destapar a minha boca para gritar por ajuda. Olho desesperada para os dois homens pelos quais chamei, os vendo encarar a cena parados em seus lugares, parecendo não se importarem muito com o que viam, e foi nesse momento que eu senti como se meu coração fosse rasgar meu peito.
  No segundo em que aqueles olhos se encontraram com os meus eu soube que estava ficando louca, porque quem estava ali parado me encarando com completo desdém no rosto, era meu namorado que havia morrido há dois anos.
  .

Capítulo 3

  – Mae. – sinto alguém chacoalhar meu corpo. – Mae, acorda logo. – a voz era inconfundível. Mas por que ela está sussurrando? 
  Solto um baixo resmungo desconexo, e me remexo sobre a superfície macia em que meu corpo estava. Lentamente vou abrindo os olhos, vendo pouco a pouco minha visão se tornar nítida, enquanto a imagem de Eve preenche todo o meu campo de visão.
  – Eve... o que foi? – sentindo todo meu corpo cansado e banhado por uma moleza, eu me sento sobre a superfície macia, soltando um logo suspiro enquanto coço meu olho direito.
  – Nós precisamos sair daqui. – a loira sentada à minha frente me encara tensa, mantendo suas mãos sobre os joelhos dobrados.
  Franzo o cenho, não entendo o que ela queria dizer. Mas basta que eu cheque o ambiente ao meu redor, para que toda tensão estampada no rosto de minha irmã, seja direcionada para cada fibra do meu corpo.
  Agora eu conseguia entender e lembrar de tudo. Eve e eu fomos trazidas para um lugar desconhecido, conhecemos um casal estranho que diziam ser nossos novos pais. Depois, fui jogada em um porão escuro com Eve, onde encontramos aquela coisa morando lá. Tentamos fugir e acabamos em uma Hollow Grow pós–apocalíptica, onde eu reencontrei, depois de dois longos anos, quem eu menos esperava.
  Eu queria falar com ele, queria correr e perguntar como aquilo era possível, porque eu tenho certeza que aquele era o . Sei que não estou delirando.
  Depois disso, Angeline e Jack nos encontraram e nos trouxeram de volta para esse lugar horripilante. Eles colocaram um pano sujo em meu rosto, e eu simplesmente apaguei, acordando apenas agora.
  – Minha cabeça dói. – comento, levando uma mão até a lateral da cabeça. – E o meu corpo está estranho. Eu não estou bem, Eve. – falo diretamente com minha irmã, que mescla entre tensão e preocupação.
  – Provavelmente isso é efeito daquele pano que eles colocaram em nossos rostos. Acho que tinha alguma substância para nos fazer dormir. – ela segura minha mão livre, dando um leve aperto reconfortante.
  – Será que ficamos muito tempo desacordadas? 
  – Eu não sei. – ela suspira. – Eu fui checar a janela, mas o céu está vermelho, não dá pra saber. – ela aponto ao longe, onde havia uma grande cortina preta que ia do teto até o chão, e por entre ela, alguns feixes vermelhos de luzes transcendiam, criando um contraste sinistro com o tom escuro da cortina.
  – E como vamos sair daqui? – questiono curiosa, assim que examino o local.
  Era um quarto consideravelmente grande, haviam apenas duas portas, uma provavelmente para o banheiro e outra para a saída do ambiente. E como os cômodos que já vi antes, aqui também era totalmente destruído, sujo e escuro, inclusive a cama que estou sentada, mas essa não é hora para me importar com isso, tenho coisas mais importantes pra fazer agora, como dar o fora daqui.
  – Eu também não sei. Fico pensando naqueles dois, eles podem estar em qualquer canto dessa casa apenas esperando alguma tentativa nossa. – Eve solta minha mão e a leva de volta para seu joelho, apertando o tecido da camisola branca que ela usava.
  – Que roupa é essa? – aponto para sua camisola. E só depois notando que eu usava uma semelhante.
  – Quando acordei já estava usando isso. Devem ter sido eles. – ela solta outro suspiro.
  Um arrepio corre minha espinha ao pensar nas coisas que eles poderiam ter feito com nós duas naquele estado de inconsciência profunda.
  – Toc-Toc! – meu corpo dá um pequeno sobressalto ao escutar uma voz feminina soar do lado de fora da porta principal do quarto, me tirando abruptamente da conversa que tinha com Eve. – Meninas, estou entrando. – a voz anuncia antes que a maçaneta da porta comece a girar, criando um fino rangido de madeira quando a porta é empurrada para dentro do quarto.
  Segundos depois a imagem imponente de Angeline preenche o quarto, e sua aparência mórbida se encaixa perfeitamente com esse quarto escuro.
  Ela fecha a porta atrás de si, para depois caminhar calmamente em nossa direção, com um grande sorriso amarelo no rosto.
  – Vocês dormiram bem? Espero que sim. – ela para em frente à cama e coloca suas mãos para trás, se inclinando para frente.
  Eve e eu apenas ficamos em silêncio. O medo com certeza era maior nesse momento.
  – Perderam suas línguas? – o sorriso em seu rosto some, e uma expressão confusa toma lugar, enquanto ela tomba a cabeça para o lado.
  Por canto de olho noto que Eve se mantém petrificada, por isso tomo a frente e dou um leve aceno de cabeça para a mulher, vendo seu sorriso ressurgir.
  – Vocês tentaram fugir ontem, isso não foi muito educado. Eu fiquei preocupada com vocês. – sem um motivo específico, um calafrio me invade.
  – Desculpe... – falo de forma baixa, notando Eve me encarar de canto de olho. Eu realmente não acho que seja inteligente deixar essa mulher irritada, ainda mais depois da nossa tentativa falha de fuga. – Angeline... que lugar é esse? Ele se parece muito com a nossa cidade. – tento disfarçar minha tensão e ser um pouco mais confiante.
  – Aqui é Setealém, e essa é a sua cidade agora. – ela endireita sua postura, enquanto eu arregalo os olhos.
  – Setealém? Como assim, Setealém? Isso não é apenas uma lenda de brincadeira? – pela primeira vez desde que Angeline entrou nesse quarto, Eve se pronuncia. 
  – Isso parece brincadeira pra você? – Angeline indaga o quarto ao nosso redor, fazendo Eve se calar.
  Como isso é possível? Setealém? Eu me sinto tão confusa agora. Antes de embarcar naquele trem eu nunca tinha ouvido falar sobre esse lugar.
  É inevitável não lembrar da brincadeira que participamos com aquelas duas garotinhas ruivas. Elas nos disseram que iriamos para Setealém quando a meia-noite chegasse, e me lembro de ir falar com a mulher do trem perto do horário, exatamente quando alguma coisa estranha aconteceu naquela viagem.
  Isso é logicamente impossível. Como eu poderia parar em um mundo que surgiu através de uma brincadeira besta de criança? É impossível! E mesmo sendo, eu estou nesse lugar.
  O silêncio se instalou outra vez entre nós. Tenho certeza que minha irmã está tão conturbada com tudo isso quanto eu. Não preciso perguntar para saber que os mesmos dilemas estão rondam cada canto de sua mente, e que ela também deve estar se perguntando como tudo isso é possível. 
  – A hora das perguntas termina aqui. – o rosto de Angeline se torna extremamente sério. – Vocês precisam se arrumar para escola. – meu cenho automaticamente se franzi.
  – Ir pra escola? Como assim? Eu já terminei a escola, tenho dezenove anos. – explico.
  – Oh, querida, se não engane. Você irá para outro tipo de escola. – ela cruza os braços. – Vocês vieram do mundo humano, mas agora estão em Setealém. Não podem continuar dessa forma. – ela aponto para ambas, fazendo uma expressão de desgosto. – Nessa nova escola vocês irão aprender coisas novas e conviverão com muitos de nós. E só assim poderão permanecer no nosso mundo, se tornando um genuíno morador de Setealém. 
  – Isso é loucura. – abraço meu próprio corpo, totalmente assustada com suas palavras.
  – Ora, no seu mundo não existe loucura? – ela tomba a cabeça, outra vez, para o lado, me encarando através daqueles olhos esbranquiçados. – Ela é uma dádiva aqui em Setealém, melhor se acostumar com isso. – Agora andem! Saiam dessa cama de uma vez. – usando um tom forte e alto, ela caminha até o outro lado da cama, fazendo um gesto para que saíssemos dali logo.
  Encaro minha irmã outra vez, na busca por uma resposta. Isso era uma mania minha, Eve é a mais velha, então tendo a esperar dela uma resposta para tudo. Mas estranhamente, e diferente de todas as vezes, Eve se mantém quieta e apenas obedece Angeline, me fazendo pensar que ela pode estar mais assustada com tudo isso do que eu.

***

  Agora me encontrava sentada em uma cadeira lascada, de madeira, enquanto Angeline penteava meus cabelos com uma escova de metal enferrujada.
  Eu havia sido obrigada a vestir um uniforme escolar que consistia em uma blusa de botões em cor de um branco encardido com um blazer preto por cima, blazer este que continha rasgos nas mangas e se finalizava na parte superior do meu corpo, com uma gravata preta com alguns furos. Na parte inferior do meu corpo, eu usava uma saia preta com rasgos em sua barra, uma meia branca extremamente suja, e sapatos, também, em tom preto.
  Eu parecia uma sobrevivente de um massacre estudantil.
  – Você está perfeita. – Angeline para de pentear meus cabelos e coloca a escova enferrujada sobre a penteadeira, que eu jurava que desabaria a qualquer momento, de tão acabada. 
  Através do espelho trincado que havia na penteadeira, eu olhava o reflexo de Eve sentada sobre a cama, encarando as próprias mãos. Assim como eu, ela também tinha trocado suas roupas. Estou começando a me preocupar, sei que toda essa situação é surreal e assustadora, mas ela de repente ficou extremamente quieta.
  – Pronto! Hora de irmos! – a mulher alta e esguia atrás de mim dá um leve tapa em meu ombro para que eu levante. 
  Sem contestar suas palavras, Eve e eu apenas obedecemos. Em seguida, Angeline nos conduz pela casa até a porta de entrada da mesma, nos fazendo dar de cara com um céu tão vermelho quanto o sangue, nos impossibilitando saber, de fato, se era dia ou noite. Mas ainda chuto ser dia, já que quando tentamos fugir, o céu era de um vermelho mais escuro.
  Reparo em um pequeno garoto estranho parado sobre a calçada. Ele também tinha a pele pálida quase azulada, olhos esbranquiçados e o cabelo extremamente loiro. O garoto nos encarava de onde estava, seu olhar era curioso, ele nos examinava como se fossemos estranhas criaturas de outro mundo, e, de fato, éramos mesmo.
  Com um leve empurrão, Angeline nos incentiva a andar em direção ao garoto estranho, logo tomando nossa frente. Ela o alcança antes de nós duas, e para ao seu lado, repousando as mãos sobre os ombros do garoto, enquanto nos encara com um sorriso no rosto.
  – Esse é Mark, o irmão mais novo de vocês. – sem desviar seu olhar de nós duas, ela diz.
  Depois de todos os acontecidos recentes, eu já nem sei mais como reagir ou o que falar, eu apenas tenho medo de dizer a coisa errada e sobre alguma consequência disso. E para piorar minha situação, Eve ficou subitamente muda. Já não sei mais o que fazer.
  – Ele irá mostrar  o caminho até a escola. – Angeline retira suas mãos dos ombros do garoto. – Espero que se deem muito bem. – ela sorri uma última vez, antes de passar por nós duas, voltando em direção a velha casa atrás de nós.
  Sem dizer uma palavra, apenas com um olhar mórbido, o garoto se vira e começa a caminhar pela gasta calçada de concreto rachado.

***

  O longo caminho até a suposta escola não poderia ter sido mais silencioso. O garoto que nos guiava não ousou dizer uma palavra sequer, apenas nos olhava sobre seus ombros, vez ou outra. 
  A cada rua deserta que passávamos, eu me convencia mais ainda de que esse lugar era Hollow Grow totalmente destruída, haviam tantas semelhanças que até me assustava. Porém o garoto à nossa frente, Mark, acabou tomando um caminho totalmente desconhecido por mim, e não sei dizer se é uma parte de Hollow Grow que eu não conhecia, ou se era exclusivo desse lugar.
  Durante nosso trajeto eu pensei em questionar a quietude súbita de Eve. Ela parece ter notado minha inquietação perante isso, já que segurou minha mão e deu um leve aperto, seguido de um olhar significativo para que eu apenas continuasse quieta.
  Acabei fazendo o que a linguagem corporal de minha irmã sugeriu, e fiquei quieta até chegarmos em frente a um pequeno prédio de três andares, ou escola. E assim como tudo nesse lugar, essa suposta escola era totalmente acabada. Não havia uma pintura bonita, apenas o concreto gasto e sujo. As janelas não tinham vidros e o jardim na frente era alto e malcuidado, como o de todas as casas.
  Algumas pessoas transitavam pela escola e pelo jardim, não parecendo se importar em estar no meio daquela grama alta. O garoto que nos trouxe até esse lugar apenas ficou nos encarando por alguns segundos, antes de, outra vez, nos dar as costas e seguir pelo caminho contrário, se afastando da escola.
  – Anda. Vamos entrar. – sinto Eve agarrar meu pulso, e me puxar para frente, enquanto eu ainda olhava o garoto indo embora.
  – Por que vamos entrar? Vamos embora daqui, Eve. – rebato. Ela me puxa até a entrada da escola, que nada mais era do que um grande buraco sem porta.
  – Eles podem estar escondidos em algum lugar. – ela me olha seriamente sobre os ombros. – Já que eles nos querem dentro dessa escola, vamos achar um lugar isolado para podermos pensar em algo e dar o fora daqui. – ela explica, enquanto atravessamos o grande buraco de entrada.
  Agora eu posso entender o motivo dela ter ficado tão quieta. Eve apenas estava fazendo tudo que eles queriam, ela estava fazendo eles pensarem que apenas obedeceríamos a tudo o que pedissem. O que é muito inteligente, uma vez que tentamos fugir antes e eles provavelmente estão de olho em nós nesse momento.
  Depois de entrarmos nessa escola suja, deixei que Eve continuasse me guiando por entre os alunos distribuídos pelo local. Todos paravam para nos olhar, e suas expressões não eram nada amigáveis, todos pareciam nos julgar e cochichavam à medida que andávamos pelos corredores.
  Passamos em frente à inúmeras salas acabadas, e nenhuma tinha uma porta, apenas um grande buraco na parede, paredes essas que eram completamente pichadas, e até mesmo tinham marcas de mãos, que mais se assemelhava com sangue seco. O chão era coberto de lodo verde e escorregadio, o cheiro aqui dentro não era agradável, e todos os alunos usavam roupas semelhantes às minhas, todas rasgadas e manchadas. 
  Vasculhamos pelo local por mais um tempo, até finalmente acharmos um espaço vazio no primeiro andar, longe de todos os olhares estranhos que me causavam medo. Eu não sei sobre as pessoas daqui, mas elas não parecem felizes em nos ver, e tenho receio que tentem algo contra nós duas, por isso é melhor manter distância. 
  Acabamos por entrar em um jardim dentro da própria escola, ou pelo menos era pra ser um jardim. A grama alta estava localizada junto de uma árvore ao centro do lugar, e entre o concreto crescia mais grama, ao redor de tudo haviam bifurcações para os corredores, isolando esse lugar.
  – Escuta, Mae. – Eve se vira de frente para mim enquanto coloca suas mãos sobre meus ombros para que eu preste total atenção em suas palavras. – Eu estive pensando... como falei antes, eu acho que eles devem estar de olho em nós duas, por isso vamos dar um tempo aqui dentro, depois tentamos fugir. Se esse lugar se parece com Hollow Grow mesmo, vamos tentar achar nossa casa, e se não tiver nada lá, pelo menos sabemos que tem um posto policial ali perto. – ela espera por uma resposta minha, me fazendo assentir. 
  Eu não tenho muitas ideias sobre o que podemos fazer. Mal consigo entender o que está acontecendo nesse lugar, então vou apenas fazer o que minha irmã disser. 
  – Vamos ficar aqui por algum tempo então.
  – Tudo bem.

***

  E assim o fizemos. Apenas ficamos sentadas sobre o chão sujo deste jardim por mais tempo do que eu pude contar. Não havia nada que pudesse marcar as horas, e nossos celulares desapareceram desde o incidente no trem, e tantas coisas estranhas aconteceram desde então que nem nos lembramos de procurar por eles.
  Ficamos por mais um tempo apenas em silêncio, até que uma movimentação estranha captou nossa atenção. Dois garotos entravam no jardim usando uma das bifurcações, ambos conversavam sobre algo, mas nenhum deles se mostrava animado com tal conversa.
  Pensei em apenas ignora–los e continuar quieta, se não fosse pela fisionomia de um dos dois. Eu conhecia muito bem o garoto alto que vinha andando do lado direito; ele tinha suas mãos dentro dos bolsos de sua calça preta rasgada, o blazer de mesma cor estava aberto e dobrado até os cotovelos, deixando em evidencia todas as inúmeras tatuagens macabras em seus braços extremamente pálidos. A camiseta de botões por baixo do blazer estava totalmente encardida e amassada com um rasgo em seu abdômen; os dois primeiros botões estavam abertos moldurando a gravata preta, também, rasgada, ajeitada de forma frouxa ao redor de seu pescoço.
  Ele mantinha sua cabeça abaixa encarando o chão, mas demora apenas segundos até que ele a erguesse e, por coincidência, em minha direção, fazendo todo meu corpo tremer no mesmo instante em que aqueles olhos – nem tão verdes agora – mirassem em minha direção. Aqueles olhos que um dia eu via toda a minha alegria, nunca pareceram tão mortos, o branco que invadia sua íris verde, deixava tudo mais mórbido em seu olhar. Os piercings moldavam uma nova aparência, se desatacando na pele pálida de seu rosto.
  Ele se assemelhava à morte. Nem quando o vi deitado em seu caixão ele me parecia tão moribundo como agora.
  Sua boca sem cor estava em uma fina linha reta, enquanto seu olhar carregado se mantinha firme em minha direção. Eu simplesmente não podia acreditar no que eu estava vendo, e só posso, de fato, estar ficando completamente louca por enxergar meu ex-namorado morto. E mesmo com tais pensamentos, não posso deixar de sentir meu coração saltar inúmeras vezes dentro de meu peito.
  E por esse motivo, apenas movida pelo turbilhão de emoções que sentia neste momento, eu rapidamente me levanto, me colocando de pé, pronta para ir até ele, se não fosse por Eve, que agarra minha mão, me impossibilitando de continuar. 
  Ela também se levanta, sem me soltar por um segundo.
  – Eve... – minha irmã tenta dizer algo, mas apenas arrasta meu nome de forma triste, me olhando com pena.
  – Olha só o que temos aqui. – quase dou um pulo quando escuto uma voz tão perto de mim, que sou capaz de sentir a vibração sonora se propagando pelo ar denso desse lugar.
  Olho discretamente sobre os ombros, vendo o outro garoto, que não era tão alto, parado atrás de mim. Me distancio no mesmo instante, mantendo uma linha segura entre nós dois. Assim como o outro, ele usava o mesmo uniforme, seu corpo também era coberto por tatuagens, deixando todo o ar mais carregado e sua postura mais intimidante.
  – Vocês devem ser os humanos que vieram para cá ontem, não estou certo? – o garoto de topete sorri, se inclinando em minha direção, me fazendo dar um pequeno passo para trás. Eve aperta minha mão, tentando passar um pouco de confiança.
  – Eu sou . – ele endireita sua postara em seguida. – E esse é meu amigo . – ele indica o garoto alto ao seu lado.
  – Eu sei. – e antes que eu possa controlar minhas palavras, elas saltam para fora de minha boca.
  – Sabe? – o garoto de topete tomba sua cabeça para o lado, me encarando de forma confusa. O que me faz recordar de Angelina, ela também tinha essa mania. Talvez seja uma característica das pessoas daqui. – Oh, não pode ser. – ele volta a sorrir, parecendo subitamente satisfeito com algo. – Será que você conhece a versão humana do ? – pergunta, dando um passo em minha direção, me fazendo recuar outra vez. 
  Fico em silencio, enquanto aperto a mão de Eve, sentindo que logo ambas começariam a suar de nervoso.
  – O que foi? Esqueceu como se fala? Eu te fiz uma pergunta. – apesar de sua voz ser intensa, e propositalmente intimidante nesse momento, ele mantém aquele sorriso estranho.
  Desvio o meu olhar para o ambiente ao redor, olhando em todas as direções em busca de uma saída, e por um segundo meu olhar se cruza com o de , que ainda me encarava, parecendo curioso a respeito de minha resposta.
  – Será que ele era seu familiar? – volta a pergunta, dando mais um passo para frente, e eu, mais um para trás. – Um amigo talvez? – ele faz uma expressão pensativa, dando mais um passo para frente, e eu, mais um para trás. – Ou será que era seu namorado? – seu sorriso aumenta, e ele para, quase encostando seu corpo no meu.
  – Nem mais um passo. – Eve se coloca entre nós dois, e me espanto com a confiança em sua voz. Ela não transparecia estar com medo dele.
  – Você é a irmã dela? – se afasta. – Vocês se parecem. – ele volta para o lado de . – Você vai dizer nada, ? Ela pode ser a namorada da sua versão humana. – empurra de leve pelo ombro.
  – Vocês não deveriam estar aqui. – e essa foi a primeira vez que escutei sua voz em dois anos. Ela não mudou nada. 
  – Não é como se quiséssemos estar aqui. – Eve rebate, me fazendo ficar surpresa outra vez.
  Minha voz parecia que havia sumido outra vez, eu não sabia o que fazer, e Eve apenas tomou sua posição de irmã mais velha, me fazendo relembrar de nossa infância, quando ela me protegia de qualquer um que me incomodasse. 
  – Você deveria tomar cuidado com as palavras. – dá uma risada. – Primeiro, que nem está no seu mundo, então é melhor ficar quieta. – o mesmo sorriso sombrio que vi no rosto de , pinta o rosto do mais alto.
  – Então seja um pouco mais hospitaleiro. – Eve rebate pela terceira vez. E mesmo que eu não diga nada, eu puxo sua mão, atraindo sua atenção para mim, e troco um olhar sério com ela.
  Não é hora para arrumar uma briga.
  – Elas não são muito legais, você não acha, ? – pergunta para , que assente. – Você sabe o que fazemos com visitantes indesejados. 
  E antes que eu possa entender o teor da conversa deles, parte para cima de mim, me segurando pelo tronco, e vejo fazer o mesmo com minha irmã. Desesperada e sem saber o que fazer, começo a me debater nos braços do mais alto, que me levava para direção contrária pela qual arrastava Eve.
  – O que você vai fazer? – pergunto totalmente apavorada. – Me leve de volta para Eve! – tento a todo custo argumentar, mas apenas me ignora, enquanto me carrega pelos corredores da escola, fazendo com que todos os alunos nos olhem, ou melhor, riem de mim. Eles parecem felizes com o que estava prestes a me acontecer, me deixando em total estado de pânico.
  Eu não sei quem é esse cara que está me arrastando pelos corredores, mas com certeza não é o que eu conheci a dois anos atrás.
  Ele me leva por mais alguns corredores, depois, sobe uma escada chegando no secundo andar. Entra em mais um corredor, esse vazio, e simplesmente me joga no chão, com toda sua força, em frente a uma porta.
  – Aproveite seus últimos segundos em Setealém, querida. – ele diz, antes de se virar e sumir pelo corredor, me deixando estirada no chão, com uma tremenda dor de cabeça pela colisão com o chão.
  Fico alguns minutos deitada no chão tentando conter toda a dor que corre meu corpo. Ele realmente me jogou com muita força no chão, eu me sinto esmagada.
  Levo a mão até o local da pancada na tentativa de amenizar a dor, mas a única coisa que sinto é um pequeno corte em minha cabeça. Afasto minha mão vendo ela manchada pelo vermelho vivo, em seguida limpo ela no meu uniforme e me sento sobre o chão gelado. Meus olhos falham por alguns segundos, se fechando sem o meu comando. Respiro fundo algumas vezes, tentando controlar os meus sentidos, até que eu voltasse ao normal. Em meio a uma expressão de dor, me coloco de pé, me concentrando para manter o equilíbrio. 
  Respiro fundo mais uma vez e olho além do corredor, não enxergando uma mísera alma, eu estava sozinha agora, ele realmente me deixou aqui. Ou pelo menos foi o que eu pensei, já que uma sombra preta logo aponta no final do corredor, me fazendo apertar os olhos para tentar enxergar melhor, mas bastou alguns barulhos para que eu reconhecesse.
  Aquela criatura. Aquela mesma criatura que vi atrás do banco da praça e no porão. A mesma criatura que parecia me perseguir estava parada no final do corredor.
  Meu coração volta a soltar em meu peito, e sem pensar muito, eu apenas corro até a porta atrás de mim, agradecendo por ela estar aberta. Mesmo com dor no corpo, atravesso a porta de forma rápida, me trancando do lado de dentro de uma sala pequena escura. 
  Fico em total silêncio, enquanto olho em volta, notando que a sala era ainda mais estreita do que parecia. Não havia nada aqui dentro, era completamente vazio, se não fosse pelo corpo jogado no fundo da sala. Um corpo sentado, ensanguentado, e aparentemente sem vida. E o pior, eu reconhecia aquele corpo.
  Era o garoto do trem… .

Capítulo 4

  Sinto o desespero tomar conta de todo meu corpo. Tudo o que eu não precisava nesse momento era estar presa em uma sala escura com um possível cadáver, enquanto aquela coisa estranha está do lado de fora me esperando.
  Mesmo estando receosa e com medo, começo a me aproximar de forma cautelosa em direção ao corpo desacordado de . Me agacho em sua altura, e com as mãos incertas, as levo até seus ombros, chacoalhando de forma leve seu corpo.
  – Ei, ! – chamo a primeira vez, não obtendo nenhuma resposta. – Vamos, acorde! – elevo um pouco o tom de minha voz, mas tentando ser mais discreta possível, pois sei o que está do lado de fora dessa sala.
  Solto um longo suspiro ao ver que ele não reage a nenhum dos meus estímulos. 
  Em seguida levo minha mão direita até seu rosto, colocando ela em diferentes posições, ficando um pouco mais aliviada ao sentir que sua pele estava quente. E isso acaba me dando uma ponto de esperança para tentar acordá-lo outra vez.
  – Vamos, . Você precisa acordar. – desta vez tento dar leves tapinhas em seu rosto, tomando total cuidado para não o machucar mais do que já está. 
  Vibro internamente quando seu corpo reage pela primeira vez, o vendo se contorcer levemente enquanto seu rosto é estampado pela dor. Meus olhos rapidamente correm até seu torso, onde através do branco encardido do uniforme, eu posso ver uma grande quantidade de sangue minando.
  Com cuidado, abro os botões do meio de sua camiseta vendo um grande corte em seu tórax. Sem ter muito o que fazer, acabo tirando meu blazer rasgado e colocando sobre sua ferida, tentando estancar o sangue, e ao fazer isso automaticamente me lembro da noite passada, onde aquela mesma criatura que está do lado de fora desta sala, acabou machucando meu pé direito enquanto eu tentava fugir do porão. Isso é estranho, eu realmente me machuquei feio, mas ao acordar essa manhã eu simplesmente esqueci e não me lembrei deste detalhe. 
  Mantendo minha mão esquerda estancando a ferida de , uso a direita para retirar meu sapato, também, do pé direito, e fico completamente chocada ao ver através da meia branca que não havia nenhum sinal sequer de algum machucado ali. A única coisa que consigo pensar sobre isso é Angeline e Jack, os dois me levaram junto com Eve de volta para aquela casa, nos apagaram, e não sabemos o que aconteceu dali em diante. Essa era a explicação mais plausível, ambos fizeram alguma coisa. 
  Mesmo assim, não deixa de se chocante, já que a ferida em meu pé realmente era profunda e não parecia que se curaria em menos de algumas semanas.
  Em seguida acabo levando minha mão até o canto de minha cabeça, ainda sentindo o sangue ali, me fazendo firmar ainda mais minha teoria. Se o machucado que fiz há pouco tempo ainda está aqui, então não sou eu que me curei, e sim alguém que fez isso por mim.
  Minha atenção muda completamente quando sinto se mexer outra vez, rapidamente olho para o garoto loiro que continua se remexendo, até que por fim começa a abrir os olhos de forma lenta. Isso realmente parece um trabalho difícil para ele, provavelmente se sente muito fraco pela perde de sangue.
  Com esforço, ele luta em manter os olhos abertos, até que de fato, consiga fazer isso. Ele fica algum tempo parado apenas encarando um ponto qualquer do chão, provavelmente, também, tentando assimilar tudo que estava acontecendo. Sua concentração é quebrada quando seu rosto se retorce em uma careta de dor, e nesse momento ele levanta seu olhar até o meu.
  Ele fica apenas me encarando, até que eu me sinta desconfortável, e tente quebrar esse clima tenso. 
  – Hm... você se lembra de mim? – ele apenas assente. – Que bom. Estou feliz que você esteja bem. – sorrio minimante de forma sem graça. 
  – O que está acontecendo? – sua voz sai extremamente baixa, enquanto ele tenta se sentar melhor sobre o chão frio, sentindo uma fisgada em seu tórax, e involuntariamente levando sua mão sobre a minha. – Obrigado, pode deixar que eu seguro. – assinto e retiro minha mão, deixando que ele estanque o próprio sangue. 
  – Eu não sei muito bem. – suspiro. – Depois do acidente no trem e eu e minha irmã acordamos em uma casa estranha, com pessoas estranhas dizendo que eram nossos novos pais. Falaram coisas como esse lugar é Setealém e que logo nos tornaremos daqui de verdade. – examinando a expressão de nesse momento, percebo que ele está tão perdido quanto eu. 
  – Eu também acordei em um lugar estranho, uma mulher me disse coisas parecidas. – ele diz, enquanto seus dedos apertam meu blazer sobre sua ferida. – Setealém, isso é loucura, certo?! – seus dedos se apertam outra vez, e ele me olha entre um riso descrente.
  – Como você se machucou? 
  – Essa mulher me trouxe até essa escola. Eu estava perdido e com medo, por isso comecei a vagar pelos corredores procurando um lugar para ficar sozinho... as pessoas desse lugar estavam me assustando muito. – ele desvia seu olhar para o chão outra vez. – Eu acabei entrando nesse corredor, mas eu não sei, havia uma coisa estranha aqui, um monstro talvez, ele era grande e escuro, tinha garras e dentes afiados. – engulo em seco quando ele faz uma pequena pausa. – Ele tentou me atacar, e como você pode ver, conseguiu. – ele indicou o machucado ensanguentado em seu tórax. – Eu me arrastei até esse lugar e me escondi aqui. Por alguma razão ele não tentou entrar, mas como pode ver, perdi muito sangue e acabei desmaiando. – ele suspira com dificuldade. – Você disse que veio para cá com sua irmã, onde ela está? – mudando de assunto, e notando a falta de Eve, pergunta.
  – Eu não sei. – sinto meu corpo se arrepiar de pavor quando confesso. – Dois caras nos separaram, um deles me jogou aqui e eu acabei vendo essa criatura também, por isso me escondi aqui e te achei. O outro cara levou Eve para outra direção. – responto pesadamente ao pensar no que pode ter acontecido com minha irmã. – Mas eu vou atrás dela. – completo, enquanto calço meu sapato de volta. – Você consegue se mexer? Precisamos te levar até algum lugar que te ajude com essa ferida. – por fim, me coloco de pé. 
  – Mas e aquela coisa lá fora? – consigo sentir o desespero na voz de .
  – Eu não posso abandonar minha irmã, . E você também não pode mais ficar aqui, já perdeu sangue demais, é perigoso. – o vejo engolir em seco, mas assentir. – Vem. Eu te ajudo. – digo, enquanto me curvo e passo um de seus braços ao redor de meus ombros, e o ajudo a se levantar de forma cuidadosa. 
  – Se aquela coisa ainda estiver lá fora, o que vamos fazer? – já de pé, me olha aflito.
  Apenas fico em silêncio, pois não sei o que responder. Não podemos morar aqui dentro, mas também tem aquela coisa lá fora. 
  – Vamos ficar bem. – tento tranquilizá-lo mesmo que no fundo eu não acredite em minhas próprias palavras. 
  Andamos até a porta. Respiro fundo antes de girar cuidadosamente a maçaneta. Coloco meu corpo à frente do de e espio por entre uma brecha aberta, vendo o corredor totalmente vazio. Abro mais a porta, agora, dando espaço para que nossos corpos atravessem através dela.
  Receosos e amedrontados, saímos da sala escura. Fecho a porta atrás de nós, e encaro com bastante atenção todos os lados, sempre atenta para qualquer movimentação estranha. 
  Começo a caminhar com pelo corredor, porém seguindo uma direção contrária para evitar contato com aquela criatura. 

***

  Eu já nem sei a quanto tempo estamos andando e em quantos corredores entramos. Esse lugar é realmente maior do que parece. 
  Não achamos ninguém pelo caminho, parece que todos simplesmente sumiram, e para piorar, não faço a mínima ideia de que lugar dessa escola estamos, não sei como sair daqui, mas preciso parar em algum lugar, está cada vez mais fraco e precisamos de ajuda o mais rápido possível. 
  Acabo entrando em uma sala aleatória, percebendo ser uma destruída sala de aula. Sento em uma das cadeiras que não pareciam que iriam se partir ao meio, o vendo respirar ofegante e com dificuldade. 
  – O que vamos fazer? – pergunto desesperada. 
  Eu já não conseguia mais tranquilizar a situação. Não sei o que fazer, está quase morrendo e não tem uma mísera alma. Se pelo menos eu tivesse meu celular aqui, mas provavelmente perdi naquele acidente de trem. 
  – Mae, você pode me deixar aqui e procurar por ajuda. – entre os sôfregos suspiros de dor em busca de ar, diz. 
  – O quê?! – me viro espantada para . – Eu não posso te deixar aqui nesse estado. – me aproximo dele.
  – Tudo bem. É muito mais difícil andar comigo nesse estado, e desse jeito não vamos achar ninguém. Está tudo bem se você me deixar aqui e buscar por ajuda. – ele tenta soar calmo, mas posso ver o desespero através de suas íris azuis, e no final, isso é o que me motiva a buscar por ajuda. 
  – Eu prometo que vou trazer ajuda. Não vou demorar, está certo? – seguro uma de suas mãos e ele assente. – Continue estancando o sangue, eu já volto. – encaro sua mão já banhada pelo sangue de seu machucado, enquanto ele ainda tentava estancar o sangue. 
  Solto sua mão livre e me afasto dele, saindo da sala que não tinha ao menos uma porta para proteger . Tomada pelo desespero e sem tempo, começo a correr pelos corredores, refazendo todo o caminho, decidida a passar por aquele corredor onde aquela criatura me atacou. Não posso me dar ao luxo do medo, está morrendo, Eve sumiu, e se eu continuar apenas vagando por onde não conheço as coisas vão piorar. 
  Quase sem fôlego, continuo correndo até chegar onde queria, paro por um segundo vendo que o corredor ainda está vazio. Respiro fundo e passo rapidamente por ele, tentando me recordar do caminho que o falso fez para me trazer até aqui. 
  Tudo parece calmo, e ainda não tive contato com mais ninguém, todos pareciam ter ido embora, mas por sorte consigo retornar até o jardim  em que estive com Eve. Caminho até a parte aberta e encaro o céu vermelho que estava em um tom mais escuro, e no mesmo instante um forte trovão ecoa por todo ele, e uma inesperável chuva começa a cair, me pegando desprevenida e me molhando. 
  Volto para a parte coberta, me espantando com a intensidade da chuva, que começava a molhar todos os cantos da escola, minando água até mesmo para as partes cobertas. 
  Torço meu cabelo para tirar o excesso de água, e volto a vagar pelos corredores, tendo em mente a entrada da escola, eu iria buscar por ajuda fora dela. 
  Conforme caminhava pelos corredores eu conseguia ver a água da chuva invadir o chão, me espantando com a rapidez e me fazendo temer por . Com passos mais apressados que espirravam água por todos os lados, começo a correr até a entrada da escola, já avistando ela.
  Finalmente alcanço a mesma, sendo recebida pelo vento forte que trazia a chuva intensa. Levo a mão até o rosto tentando proteger minha visão, que se torna extremamente embaçada pela quantidade de água que me atingia. Sinto todo o uniforme grudar em meu corpo, assim como os fios do meu cabelo, me causando frio toda vez que o vento me acertava. Fico apenas parada esperando o vento mudar de posição, e quando isso acontece consigo abrir os olhos e tentar enxergar. Levo a mão esquerda acima dos olhos e forço minha visão, vendo entre a chuva forte uma silhueta parada na calçada da escola. 
  Demoro alguns segundos até conseguir reconhecer a silhueta de , que estava parado em meio a toda chuva, encarando a entrada da escola, mais especificamente, me encarando. 
  Me recordando de tudo que aconteceu e de como ele não é o que eu conheço, viro meu corpo para dentro da escola e começo a correr para longe dele. Olho sobre os ombros por um segundo, vendo que ele passava de forma calma a entrada da escola, e caminhava lentamente atrás de mim. 
  Totalmente desesperada, começo a correr de volta em direção a sala onde deixei , já sentindo a água cobrir os meus pés. Olho outra vez pelos ombros, vendo que eu me distanciava cada vez mais de , uma vez que ele não parecia ter pressa para vir atrás de mim. 
  Depois de alguns minutos eu finalmente despisto e chego até a sala onde deixei . Corro até a entrada, encontrando o mesmo caído desacordado sobre a água que cobria o chão, e tudo ao seu redor estava pintado com o seu sangue. 
  Me desespero ao ir até ele, tentando acordar o loiro que estava encharcado de água e sangue, mas para minha infelicidade, desta vez nada parecia acorda–lo, e sua pele estava extremamente fria. 
  Meus olhos começam a arder, e em meio a toda aquela água fria, minhas lágrimas eram as únicas coisas quentes. 
  Outra vez passo o braço de ao redor de meus ombros e tento levanta–lo, mas a tarefa de fazer isso com ele desacordado é muito mais difícil, ele era bem mais pesado do que eu e acaba me derrubando quando tento fazê-lo. Minhas pernas e roupas ficam ainda mais sujas pelo seu sangue aguado a chuva. 
  Com muito esforço e depois de inúmeras tentativas, finalmente consigo me levantar com ele. Começo a caminhar até a saída da sala, praticamente arrastando o corpo gelado de . 
  Enquanto atravesso a saída, uso uma das minhas mãos para secar as lágrimas em meu rosto, o que é totalmente idiota, uma vez que que estou completamente molhada pela chuva. Quando retiro a mão de meus olhos me assusto com o que vejo, me assusto tanto, que dou um passo para trás, tropeçando em meus próprios pés e acabo caindo com sobre o chão do meu quarto.
  – O que está acontecendo? – pergunto para mim mesma, em meio as lágrimas, enquanto encaro o quarto de minha casa.
  Como isso é possível? Como eu vim parar aqui de novo? Eu saí de Setealém? Mas como? Eu apenas atravessei aquela sala. 
  Mesmo que eu esteja totalmente confusa e sem entender o que acabou de acontecer, preciso fazer algo pelo corpo gelado ao meu lado. Por isso me levanto outra vez e arrasto até minha cama, não me importando se estava molhando tudo. Corro até um canto de meu quarto e ligo o aquecedor, e depois vou em direção ao banheiro atrás do kit de primeiros socorros. 
  Volto rapidamente até o quarto retirando as roupas que cobriam o tronco de , vejo que quase já não sai sangue de sua ferida, mas mesmo assim enrolo algumas bandagens ao redor de seu tórax. Depois o deixo deitado na cama, e corro pela casa buscando por alguém, mas percebo que estou sozinha e minhas esperanças de achar Eve desaparecem. 
  Tudo está exatamente igual a última vez, minha mãe ainda deve estar viajando, e aparentemente, só eu retornei ao nosso mundo. Por isso vou aproveitar e pedir ajudar, mas antes preciso chamar uma ambulância para .
  Vou até a sala em direção ao telefone, discando os números da emergia. 
  "Emergência de Hollow Grow, em que posso ajudar?" a voz suave entoa do outro lado da linha.
  – Meu amigo sofreu um acidente. Ele machucou o tórax e perdeu muito sangue, eu preciso de uma ambulância urgente. – respondo rapidamente. 
  –"Ok, tente ficar calma. Você pode me falar seu endereço?"
  – Simpkins Street, número 1590.
  "Ok. Estou enviando uma ambulância agora mesmo. Tente ficar ao lado do seu amigo, o socorro chegará em alguns minutos." Agradeço a moça do outro lado da linha e encerramos a ligação.
  Fico alguns instantes pensando se deveria ligar para polícia ou para minha mãe, e acabo optando por minha mãe, já que não sei se a polícia acreditaria na história de uma garota que foi parar em um outro universo. 
  Disco os números e escuto o telefone chamar algumas vezes, quase perdendo a esperança de que minha mãe atenderia.
  "Alô?" Respiro aliviada quando escuto a voz dela. 
  – Mãe. – digo, enquanto as lágrimas retornam.
  "Mae, meu amor. Tudo bem? Sua voz está estranha." 
  – Não, mãe. Está tudo errado. – minha voz sai embargada pelo choro.
  "Você está me assustando, Mae. O que aconteceu? Onde está Eve?" Sua voz transbordava preocupação. 
  – Eu não sei. Nós sofremos um acidente de trem e fomos parar em um lugar totalmente macabro, haviam coisas e pessoas estranhas que tentaram nos machucar, mas de alguma forma eu consegui voltar pra casa, e agora tem um corpo quase morto, ou morto, deitado na minha cama e estou desesperada, mãe. – falo tão rapidamente que tenho que respirar fundo ao final.
  Fico chorando em silêncio esperando a resposta de minha mãe, mas ela não diz nada por longos segundos, o que me deixa totalmente ansiosa e desconfortável. E eu preciso de mais alguns para perceber que não é ela que não diz nada, o telefone que ficou mudo.
  – Droga! – bravejo e volto a colocar o telefone no gancho e retirar inúmeraHarrys vezes, mas o telefone continua mudo. 
  Inclino a cabeça para trás sentindo minhas lágrimas escorrem em direção às minhas orelhas. Respiro fundo e resolvo voltar até o quarto e ficar com até que a ambulância chegue, vou ter que pedir ajuda para eles.
  Saindo da sala, caminho lentamente por minha casa, sentindo todo meu corpo gelado pela água. Encaro o chão que acabou molhado por minha conta.
  – O que está acontecendo? – pergunto baixinho para mim mesma até escutar um barulho vindo do meu quarto.
  Levanto meu olhar encarando o corredor de portas, supondo que deveria ter acordado, e torço com todas as minhas coisas que ele realmente esteja acordado. Mas à medida que me aproximo, consigo identificar os barulhos que vêm do meu quarto, fazendo todo meu corpo congelar no lugar e um arrepio cobrir toda minha espinha.
  Em passos totalmente trêmulos, começo a ir até a entrada do quarto, me virando para entrar e petrificando ao ver aquela coisa parada sobre o corpo de , e com a claridade do meu quarto eu podia ver com clareza cada detalhe amedrontador.
  Essa coisa se assemelhava muito com uma pessoa humana, porém com o corpo era alto e esguio totalmente coberto por um tom preto como o carvão, parecendo ter muitos cortes que vinham com ela de nascença, como se fizesse parte. Seus cabelos eram longos e de mesma cor, suas unhas e dentes eram amarelados e afiados, seus olhos eram, também, amarelados como os das criaturas de Setealém. Sua respiração era alta e irritante.
  Dou um passo involuntário para trás atraindo a atenção daquela coisa que vira sua cabeça em minha direção, e mostra todos os seus dentes como se gritasse comigo. Incapaz de fazer alguma coisa, fico ali parada, penso em correr, mas sei que não posso deixar sozinho com isso.
  – Bem-vinda de volta, Mae. – minhas pernas fraquejam quando escuto uma voz grave vir detrás de mim, junto de uma respiração quente que batia em minha nuca.
  .
  Sentindo meu corpo começar a tremer, mantenho meu olhar sobre a criatura sem saber o que fazer, a vendo voltar a prestar atenção em , aproximando seu rosto lentamente do dele, enquanto mostra seus dentes para o corpo desacordado. 
  – Vamos deixar Sammy cuidar do seu amigo. Tenho planos diferentes para nós dois. – volta a falar atrás de mim, passando um braço ao redor do meu tronco, e usando o outro para tapar minha boca, enquanto me puxa para longe do quarto onde é deixado sozinho com aquela criatura: Sammy.

Capítulo 5

  Não sei se estou mais desesperada pela menção do nome que me atinge dolorosamente, trazendo consigo recordações dais quais que gostaria de esquecer para sempre, ou se o fato deste estar me arrastando pela casa sem que eu possa me defender.
  Apertando cada vez mais suas enormes mãos em mim, estra no quarto vazio de minha irmã, me jogando rudemente sobre a cama, e depois trancando a porta, me deixando completamente sozinha com ele.
  Me encolho sobre a cama, temendo por minha segurança, enquanto vejo observar cada detalhe do quarto de Eve. Tento aproveitar seu pequeno momento de distração para pensar em alguma, já que está desacordado com aquela coisa, Sammy, no meu quarto.
  Sammy...
  Eu realmente não tenho tempo para me martirizar em memórias, preciso pensar em uma solução o mais rápido possível.
  Discretamente olho ao redor vendo que a única coisa acessível neste momento era o pequeno abajur branco sobre a cabeceira ao lado da cama. Lentamente me arrasto até a beirada da cama, tentando ser a mais silenciosa possível, e acabo por cessar meus movimentos toda vez que se movimenta bruscamente.
  Vejo sua figura alta se virar de costas por completo, e caminhar em direção ao grande mural de fotos que Eve mantinha ao lado da penteadeira. Ele se inclina para enxergar melhor as fotos, e aproveito esse momento para retirar o abajur da tomada, para em seguida pega–lo.
  – realmente estava certo. – paro abruptamente, prestes a pegar o abajur, quando escuto sua voz grave. Me endireito sobre a cama, como se nada tivesse acontecido, assim que ele se vira em minha direção com uma foto em mãos.
  Me mantenho calada não entendo o que ele dizia. E como resposta, se aproxima lentamente, ficando a poucos passos da cama onde eu estava. Ele encara a foto em sua mão mais uma vez, antes de virar em minha direção.
  Meus olhos se arregalam minimamente com a imagem que vejo, e o amargo gosto das memórias enterradas me atingem dolorosamente. 
  Ele segurava uma foto antiga, uma foto que foi tirada em um passeio até o parque da cidade. Eve e me acompanhavam na imagem esquecida. Minha irmã estava perto da lente da câmera fazendo uma careta de desgosto, enquanto mais para trás, e eu nos beijávamos. 
  – Então ele era seu namorado? – o homem alto a minha frente sorri debochadamente. – Esse cara realmente se parece comigo. – ele comenta, virando a foto outra vez para si.
  – Não. – digo antes que possa controlar minhas palavras.
  – Não? – ele me olha surpreso, tombando sua cabeça para o lado. Ele arqueando suas sobrancelhas, fazendo com que o piercing que tinha na mesma, acompanhasse seu movimento, assim como o preso em seu lábio inferior, que moldava seu debochado sorriso.
  – nunca me machucaria. Vocês não têm nada em comum. – mentindo para mim mesma, rebato, não aceitando que o meu fosse comparado com essa coisa parada na minha frente.
  – Oh, pobre Mae. – ele larga a foto, deixando que caia sobre o chão do quarto, antes de aproximar de mim. – Se está tão mal com a morte do seu namorado, eu posso te mandar para o mesmo lugar que ele. –  para em frente à cama, se inclinando sobre mim, enquanto me intimidava com aqueles olhos esbranquiçados em meio ao verde quase apagado.
  Sem pensar muito, apenas tento ser ágil ao pegar o abajur sobre a cabeceira, tentando acertar , mas ele consegue ser duas vezes mais ágil, pegando o objeto com apenas uma mão, me impedindo de acerta–lo. Sem desistir, tento empurrar o objeto com as duas mãos, forçando contra o rosto dele, mas também aplica força de seu lado, empurrando o objeto contra mim. Na verdade, ele não parece estar tendo um pingo de trabalho ao fazer isso, nem sequer pareço ser páreo para ele.
  – Sabe, Mae, te olhando tão de perto, até que você é bonita. Me lembra muito uma pessoa que conheci. – ele diz, enquanto mantenho minha batalha contra o abajur que estava quase em meu rosto. 
  Encaro sua expressão sádica, já me dando por vencida, e aplicando menos força sobre o abajur. Eu nunca iria conseguir vencê-lo em força, ele nem humano é, isso é inútil, talvez eu só devesse desistir de uma vez.
  Quando estava a ponto de desistir, já sentindo meus olhos arderem em lágrimas, escuto um barulho extremamente alto do lado de fora do quarto, captando não só a minha atenção, como a de , que solta o abajur e se afasta de mim, encarando a porta.
  – Acho que Sammy está acabando com o seu amigo. – comenta, encarando a porta branca, me fazendo engolir em seco ao pensar em .
  Outro barulho alto, seguido de uma batida na porta. 
  Encaro a expressão confusa de , que faz menção de se aproximar da porta. Mas antes que o faço, a mesma é arrombada em um baque agressivo, relevando a imagem de uma menina alta, de cabelos loiros escuros, que segurava um taco de beisebol nas mãos.
  – Sempre causando problemas, em . – a garota estreita os olhos, enquanto sorri para ela. 
  – E você sempre se metendo onde não deve, Valerie. – ele assume uma posição de defesa, mas mantém seu sorriso.
  – Ei, você. – a loira desvia seu olhar para mim, me assustando por um segundo – Sua irmã está com no outro quarto. Vá ajudar ela. – mesmo confusa com essa situação, apenas obedeço. Passando receosa ao lado de , que para minha surpresa não tenta nada.
  A última coisa que vejo antes de sair correndo do quarto, é a garota de cabelos loiros indo para cima de com o taco de beisebol.
  Vou apressada até meu quarto, encontrando Eve na beira de minha cama, aparentemente protegendo , que ainda estava desacordado.
  – Eve! – chamo exasperada, entrando no quarto de uma vez.
  Ela se vira em minha direção, relevando seu rosto machucado, com alguns pequenos arranhões e sangue seco.
  – Você está bem? – ainda mais exasperada que antes, levo minhas mãos até seu rosto, checando a gravidade de seus machucados.
  – Estou sim, apenas me ajude a tirar ele daqui. – ela tenta me acalmar, e desvia seu olhar para um ponto específico do quarto, e quando acompanho o mesmo, vejo aquela criatura jogada no chão com um líquido preto ao seu redor.
  Meu corpo fica tenso, mas a única coisa que a criatura faz é grunhir em nossa direção antes de desaparecer como mágica, deixando apenas o rastro do líquido escuro.
  – O que está acontecendo, Eve? – pergunto, no mesmo segundo em que o barulho de algo quebrando ecoa do lado de fora do quarto.
  – Não temos tempo agora. Vamos sair daqui, depois eu te explico tudo. – nunca vi minha irmã agir tão seriamente antes, por isso apenas assinto.
  Com o seu auxílio, puxamos o corpo gelado e úmido de para fora da cama. Eu fico responsável por segurar seu tronco, enquanto Eve segura suas pernas. Cuidadosamente, mas de forma apressada, caminhamos em direção à saída do quarto, atravessando a porta e me fazendo, involuntariamente, soltar o corpo de com o que vejo.
  Me sinto perplexa ao encarar o quarto destruído do qual acordei está manhã, o mesmo quarto que fica na velha casa de Setealém.
  Nós voltamos para o inferno.
  – O que é isso? – sussurro incrédula, encarando tudo ao meu redor, e não entendendo como voltei para esse lugar.
  Escuto Eve suspirar, antes de começar a arrastar o corpo de até a velha cama.
  – Vamos dar um jeito nele primeiro. – com certa dificuldade, minha irmã joga o corpo dele sobre a cama, ajeitando em seguida. – Ele está muito gelado, isso não é bom. – ela me encara sem saber o que fazer. 
  – E–Eu vou ver se tem alguma coisa aqui que possa ajudar. – ainda atordoada com tudo que estava acontecendo, corro até a porta do quarto, abrindo–a com rapidez e me deparando com Angeline parada do lado de fora. 
  Dou um passo para trás devido ao susto de ser pega desprevenida.
  – Ora, vocês já chegaram? – ela franze o cenho, e depois olha para dentro do quarto. – O que é isso? Quem é esse? – passando por mim sem que possa fazer nada, ela caminha até a cama.
  O rosto de Eve se torna uma carranca, e a mesma se mantém em silêncio quando Angeline se aproxima.
  – Ele é um amigo de vocês? – ela encara Eve que não responde, e depois se vira para mim.
  – S–Sim... – respondo temente – Ele se machucou. Você pode nos ajudar?  – receosa, me aproximo de volta até eles.
  – Claro. – ela sorri, mostrando todos os seus dentes amarelados. – Esperem só um segundo. – ela se afasta, voltando até a porta e sumindo pelo corredor.
  Penso em questionar Eve, mas sei que ela prefere não se comunicar com as pessoas daqui, então apenas vou respeitar sua decisão. Porém, penso que se vamos estar aqui, iremos precisar de alguns deles. 
  Ficamos em silêncio até que Angeline retorne com uma cuia velha de madeira em mãos. Ela se aproxima da cama, nos deixando ver um líquido cor de vinho dentro da cuia. 
  – Se você não quer morrer em Setealém, precisa se alimentar com as coisas de Setealém. – ela sorri para mim, antes de levar a cuia até a boca de , despejando o líquido, que, em sua grande parte escorria por seu rosto e pescoço.
  – E agora, o que fazemos? – pergunto, ainda encarando que não demonstram nenhuma reação.
  – Esperamos. – ela afasta o objeto de . – Seu amigo vai ficar bem, não se preocupe. – ela começa a se afastar do quarto outra vez. – Vocês também deveriam se alimentar, estão cheias de machucados. – sem nos olhar, ela diz, saindo outra vez do quarto.
  Corro até a porta me certificando de que estávamos sozinhos, e quando não vejo sinal nenhum, fecho a porta e volto a me aproximar da cama, me sentando aos pés de .
  – Agora você pode contar o que aconteceu? – encaro a figura pálida e machucada de minha irmã, parada ao lado da cama velha.
  Seu uniforme parecia ainda mais rasgado, e em alguns pontos haviam manchas de sangue, seu cabelo estava desgrenhado e seu rosto machucado. Não sei o que aconteceu com ela, mas talvez tenha sido pior do que foi para mim.
  – Aquele garoto, , ele me arrastou até uma sala vazia. – ela encara o chão por alguns segundos. – Ele começou a me assustar. Me prendeu em uma carteira com cordas velhas. Não sei que tipo de coisa que eles guardam nessas salas de aulas, mas parecia mais uma sala de tortura. – ela suspira pesadamente. – Depois começou a me machucar com uma lasca de madeira quebrada de uma das cadeiras. Eu achei que ele iria me matar. Começou a gritar que aqui não era lugar para humanos nojentos. – sinto um arrepio tomar conta de meu corpo à medida que escuto as palavras de Eve. – Eu realmente acho que ele iria me matar se não fosse por Valerie. – arregalo os olhos em surpresa.
  – A menina de antes? – pergunto, e ela apenas assente. 
  – Ela nos achou e começou a brigar com , depois me tirou dali. Eu contei tudo que havia acontecido para ela e depois fomos atrás de você. – ela explica, soando totalmente apática, parece até cansada desse assunto. – Entramos em várias salas, até que uma delas nos levou até nossa casa no mundo real. Valerie me contou que qualquer passagem de porta, viagens de transporte ou elevadores podem te levar do mundo real até Setealém e vice-versa, que não é algo que controlamos, apenas acontece, e não podemos prever quando isso acontecerá. 
  – Então é aleatório? – pergunto, e ela assente.
  Engulo em seco ao pensar que elas aparecerem para me ajudar foi algo totalmente aleatório, e que isso poderia não ter dado certo, e que neste momento e eu poderíamos estar mortos.
  – E aquela coisa... Sammy? – lanço a próxima pergunta, vendo o corpo de Eve ficar tenso. Ela me olha por um segundo e depois desvia.
  – Esqueça isso. O nome é apenas uma coincidência. – ela se afasta da cama e caminha até a janela, encarando a grande cortina preta da janela.
  – Mas Eve, aquelas garotinhas no trem disseram que para vir pra cá precisávamos escrever alguma coisa ruim que já fizemos... e eu escrevi Sammy, e sei que você também. – disparo, me levantando e indo até onde minha irmã estava.
  – Esqueça isso, Mae. – ela me encara seriamente. – Esqueça essa merda. – vejo–a agarrar a cortina preta com uma de suas mãos, demostrando o quão irritada ela estava com esse assunto.
  Ficamos nos encarando por alguns segundos, enquanto penso se devo ou não insistir nesse assunto. Eu realmente não quero brigar com ela depois de tudo que passamos, mas também podemos simplesmente eliminar isso de nossas vidas. 
  No final, Eve é salva pelo pequeno barulho de algo acertando a janela ao nosso lado, do qual nos tira a tensão por um segundo. Minha irmã arrasta a longa cortina preta para o lado, em tempo de vermos uma pequena pedra acertar o vidro. Assim como a cortina, ela também arrastar a janela para o lado, nos relevado a imagem de Valerie escondida entre a grama alta do jardim malcuidado.
  Quando nos vê, a garota se aproxima, não tendo dificuldades nenhuma, uma vez que a casa não tinha segundo andar. Valerie faz um gesto para que saíssemos do quarto. Encaro minha irmã por um momento, que sem pensar duas vezes pula a janela, me obrigando a fazer o mesmo, mas não sem antes checar , que estava do mesmo jeito.
  Uma vez do lado de fora, no jardim, Valerie aponta para um lugar afastado, mais especificamente uma enorme árvore. Ela sugere que nos sentemos, assim a grama alto poderia cobrir qualquer vestígio de nós três.
  – Vocês estão bem? – ela pergunta, uma vez que estávamos sentadas em círculo.
  – Sim. Obrigada, Valerie. – Eve responde por nós duas, tendo um pequeno sorriso em responde da garota loira.
  – E você, está bem? – agora foi minha vez de pergunta, assim que noto um grande corte em seu braço esquerdo.
  – Isso não é nada. Eu vou ficar bem. – ela tapa o corte com sua mão, e sorri.
  – Prestem atenção, vocês precisam ter cuidado com as pessoas daqui. Elas vão fazer de tudo para matar qualquer humano que for mandado para Setealém. – Valerie diz séria, retirando sua mão do seu machucado.
  – Mas não estamos aqui porque queremos, umas garotas nos fizeram uma brincadeira. Nem acreditávamos nesse lugar. – explico.
  Valerie suspira pesadamente.
  – Escutem, o mundo real tem uma ligação com Setealém, e todas as pessoas do mundo real tem uma versão não–humana em Setealém. – ela ajeita sua postura, sentando sobre suas pernas. – Mas não se pode coexistir duas pessoas iguais, por isso, uma das versões precisa morrer, a humana ou a versão de Setealém.
  – Existe algum tipo de seleção para isso? – Eve pergunta, e Valerie nega.
  – Não. Apenas alguém precisa morrer. As duas versões podem até chegar a coexistir juntas por algum tempo, mas eventualmente alguma delas virá a morrer. Dizem que é uma forma de equilíbrio, já que seria muito problemático existir duas versões de você mesmo.
  Automaticamente me lembro do meu , e não posso evitar de sentir raiva por ele ter morrido para que esta versão deturpada dele exista aqui.
  – O que acontece é que alguns moradores de Setealém começaram a perder parentes e amigos por conta disso, e por este motivo, eles estão indo até o mundo real pegar a versão humana de pessoas que já morreram aqui para trazê–las até Setealém e transformá-las em moradores desse lugar. – as coisas parecem clarear em minha mente à medida que Valerie explica toda essa confusão.
  Nesta casa em que estamos sendo obrigadas a viver, me lembro de ver quadros com garotas que mostravam uma semelhança enorme comigo e Eve. Será que elas eram filhas de Angeline e Jack? E que por isso eles nos trouxeram até aqui alegando que eram nossos novos pais?
  – E como fazemos para ir embora? – me inclino em direção a Valeria, colocando minhas mãos sobre os joelhos.
  – Eu não sei direito. As viagens dos humanos para Setealém são aleatórias, você pode ir e voltar a qualquer momento sem saber quando. Já os moradores de Setealém, podem fazer isso a hora que quiserem com total controle, então mesmo que vocês voltem para o mundo real, quem os trouxe até aqui podem buscá-las outra vez. – a garota suspira profundamente, e eu a acompanho.
  – Eu também sou do mundo real, e tenho vivido nesse inferno por quatro anos, tive muito tempo para pensar em uma solução e eliminei quase todas. No final, só restou uma, talvez a mais óbvia, mas também a mais cruel para nós humanos. – Valerie nos encara apreensiva, e por um momento troco um olhar tenso com Eve que apenas se mantem calada. 
  – O quê? – incentivo. 
  Estou nesse lugar a quase um dia e já não aguento mais. Sinto que sou capaz de tudo para dar o fora daqui.
  – Os moradores de Setealém abominam os humanos, a não ser aqueles que buscam quando perdem alguém aqui. Ou seja... – Valerie abre um mínimo sorriso, fazendo uma pausa dramática. – Precisamos matar quem nos trouxe para esse lugar, e assim não teremos ninguém para nos buscar outra vez no mundo real. – meus olhos se arregalam no mesmo momento.
  – Só precisamos fazer isso? – Eve pergunta determinada, e eu a encaro incrédula.
  – Eve, estamos falando de matar alguém. – a repreendo.
  – Não é como se nunca tivéssemos feito isso antes. – sem me encarar ela rebate, fazendo um silêncio pesado pairar sobre nós.
  – Hm... talvez você devesse escutar sua irmã. Ou é vocês, ou são eles. – percebendo o clima tenso, Valerie tenta amenizar a situação.
  – Isso parece simples, por que não tentou antes? – ignorando tudo, Eve muda de assunto.
  – Não é tão simples quanto parece. Não estamos lidando com humanos. Tudo precisa ser muito bem calculado. Se os moradores de Setealém souberem que humanos estão matando sua própria espécie, pode ter certeza que terão muitos atrás de nós. E você também viu hoje, eles não são nada fracos. – Valerie responde. – Eu sempre estive sozinha nesse lugar, era difícil pra mim, mas agora com vocês, tendo ajuda, eu acho que podemos dar o fora desse lugar de uma vez por todas.
  – Eu estou dentro. – Eve aceita sem pestanejar.
  – E você? – Valerie se vira para mim.
  Eu realmente não queria fazer isso, mas também não quero morrer, e muito menos ficar nesse lugar, tendo que ver a imagem do homem que eu tanto amei ser deturpada por uma cópia sombria sua.
  – Ok. – totalmente derrotada, acabo por aceitar.
  – Então conversamos mais amanhã na escola, já está ficando tarde. E eles podem dar falta de vocês. – Valeria se levanta, e fazemos o mesmo.
  Encaro o céu por um segundo, vendo o tom de vermelho ainda mais escuro do que mais cedo. Isso é estranho, já é de noite? Passou tão rápido assim?
  – O tempo em Setealém não é como no nosso mundo. – e parecendo ler minha mente, Valerie responde.
  – Obrigada por tudo, Valerie. Vamos conseguir sair daqui. – Eve agradece, apertando a mão da garota de cabelos loiros escuros.
  – Me chame de apenas de Val. – ela sorri – Eu vou indo agora. Até amanhã. – ela acena, se afastando de nós.
  Sem esperar muito, dou as costas e refaço o caminho até a janela, pulando para dentro do quarto outra vez. E indo em direção à cama, me sentando perto de , que se mantinha desacordado.
  – Mae... – Eve chama assim que entra no quarto também, mas mantenho meu olhar em . – Mae, por favor, me desculpe. Eu só estava desesperada. – ela se aproxima.
  – Todos estamos, Eve. – a encaro, me mantendo firme.
  – Eu sei, eu só... eu só não queria te perder. – posso sentir a dor em suas palavras, o que me faz suspirar.
  – Vai ficar tudo bem. – pego sua mão por um segundo, tentando confortá-la.
  Sinto uma leve movimentação na cama, me fazendo desviar minha atenção para , que se remexia lentamente, me fazendo ficar atenta. Ele enruga seu cenho em uma careta de dor, e lentamente abre os olhos, à medida que leva sua mão até seu torso.
  – ! – falo exasperada em alívio – Graças a Deus! – praticamente pulo em cima dele, o abraçando tão desesperadamente que ele geme de dor. – Me desculpe. – me afasto de seu corpo, dando espaço para ele se sentar sobre a cama.
  – O que aconteceu? – totalmente confuso, ele olha de mim para Eve.
  Respiro fundo antes de respondes sua pergunta, totalmente decidia e confiante em minhas palavras.
  – Vamos fugir de Setealém.

Capítulo 6

  Noite passada tentamos explicar tudo para , que se mostrava cada mais descrente sobre esse lugar e as pessoas. Ele não pestanejou ao aceitar se juntar a nós, depois de quase ter morrido. Passamos algum tempo conversando até que a mulher que se dizia sua "mãe" de Setealém veio o buscar, de alguma forma sabendo que ele estava aqui. Tentamos transparecer normalidade para que ninguém desconfiasse do que nos aconteceu, mas a verdade é que essas "pessoas" de Setealém não parecem se importar. Angeline sequer questionou o estado em que Eve e eu retornamos, ela simplesmente agiu como se nada tivesse acontecido, ou talvez só não ligasse mesmo, aqui não é mundo real e as coisas não funcionam da mesma forma.
  Mas um dia se passou nesse lugar, e ainda não consigo acreditar em tudo que aconteceu e em tudo que teremos que fazer para ir embora. Setealém está fazendo com que coisas do nosso passado retornem, e isso não é nada bom. Aquela coisa, Sammy, eu realmente quero entender o que isso é, e por que de alguma forma sinto que tem alguma ligação com Eve e eu.
  – Meninas, já estão prontas? – Angeline abre a porta de 'nosso' quarto. Me fazendo trocar um olhar significativo com Eve, que acena em resposta.
  – Sim. – Eve responde, antes de se levantar da cama em que estava sentada. Assim como ontem, fomos obrigadas a vestir outro uniforme, e a única diferença é que agora temos alguns machucados acompanhando o conjunto. Eve com alguns arranhões e eu com um pequeno corte no canto de minha cabeça.
  – Hm, Angeline por que temos que ir pra escola? Já somos maiores de idade. – pergunto, me levantando também.
  – Ora, querida, essa escola não tem nada a ver com educação fundamental, vocês precisam ir para aprenderem a conviver com pessoas como nós, e eventualmente se tornarem um de nós também. Nada melhor do que uma reedução convivendo com moradores de Setealém. – ela sorri, mostrando todos o amarelado de seus dentes. – Agora sem mais conversas, precisamos nos apressar, hoje será um pouco diferente. –  ela aperta os olhos, olhando especificamente para mim, fazendo um mau pressentimento percorrer meu corpo.
  Conto mentalmente, tentando me acalmar antes de seguir com Angeline e Eve. Nós saímos do quarto, e seguidos por um pequeno corredor de madeira – como tudo na casa –, dobramos a esquerda, dando de cara com a familiar sala de estar, e assim como da primeira vez que estive aqui, ela continuava suja e destruída. Mas nada disso importava, pois a única coisa que me importava nesse momento era a pessoa sentada sobre o sofá velho da sala.
  – Bom dia, Mae. – sorri assim que me vê. Ele estava sentado, com os cotovelos apoiados sobre seus joelhos, enquanto se inclinava para frente, parecendo estar conversando com Jack, que estava a poucos metros dele.
  Meus passos cessam no momento que ele fala comigo, me deixando totalmente sem reação, não entendendo o que ele  estava fazendo aqui. Olho aflita para Eve, que estava tão perdida quanto eu.
  – O que ele está fazendo aqui? – me viro para Angeline, deixando que toda minha aflição se aflore para que ela entenda.
  – cuidará de você de agora em diante, querida. 
  – O quê? – dou um passo para trás, sentindo Eve segurar minha mão, tentando me passar um pouco de calma.
  – Isso é alguma brincadeira? Ele tentou machucar ela. – Eve toma a frente, transbordando irritação, enquanto lançava um olhar carregado para , que não se importava.
  – Ninguém está brincando, Eve. – Jack diz seriamente, dando alguns tapinhas no ombro de . – Tenho certeza que ele vai cuidar muito bem da Mae.
  – Não, por favor, não. – sinto meus olhos arderem, enquanto encaro Angeline.
  – Não se preocupe, querida. – ela segura minha mãe, me puxando para longe de Eve. – Você ficará bem. Passar um tempo com só irá te ajudar a se encaixar em Setealém mais rápido. – ela praticamente me arrasta para perto dele, e mesmo que eu tente relutar, é em vão, Angeline é bem mais forte do que eu.
   se levanta do sofá, se colocando a minha frente, e me fazendo encolher no lugar.
  – Vamos? – ele sorri outra vez, estendendo a mão para mim. Fico parada, sem responde–lo, até que ele parece ficar impaciente, agarrando minha mão. – Estamos indo. – ele acena para Jack e Angeline.
  Tendo me soltar de perto dele, mas tudo parece tão estúpido, eu soou completamente mais fraca que qualquer um aqui dentro.
  – Mae! – olho sobre os ombros, vendo Eve tentar chegar até onde estou, mas ela é barrada por Jack.
  – Não atrapalhe sua irmã. – essas são as últimas palavras que consigo escutar antes de me puxar para fora da sala, e consequentemente, depois para fora da casa.
  – Você pode ficar quieta um pouco? – me repreende quando tento me soltar outra vez.
  – Isso é uma piada? – pergunto irônica.
  Isso é realmente horrível. Eu não quero ficar com ele e ter que lembrar do meu namorado que já morreu. Eu sinto como se ele corrompesse aos poucos a imagem e as memórias que um dia eu construí com o que realmente conheço.
  – Isso será muito mais fácil se você colaborar. – ele começa a me puxar pela rua deserta, cercada de casas destruídas.
  Em nenhum momento desisto de me soltar de , mas já estou começando a ficar cansada, ele não me dá uma brecha para que eu possa fugir, e todo lugar que passamos não mostra um sinal de vida, e não aparece ninguém que possa me ajudar.
  Depois de muito andarmos por ruas estranhas, e ao mesmo tempo similares com Hollow Grow, começo a perceber que as casas iam desaparecendo, e a apenas mato e mais mato surgiam.
  – Ei! Onde estamos indo? Esse não é o caminho da escola! – tento puxar minha mão para mim mesma, forçando a parar de andar.
  – Só agora você percebeu isso? – ele pergunta debochadamente, antes de voltar a andar.
  Nesse momento posso avistar ao longe uma velha construção caindo aos pedaços, ela parecia abandonada já que não havia ninguém transitado por ali. E isso foi o suficiente para fazer meu coração acelerar.
  – O que você vai fazer? – minha voz se torna totalmente exasperada.
   me olha totalmente entediado, antes de avançar em minha direção e me jogar sobre os seus ombros, começando a correr em direção à construção. Começo a gritar e me debater desesperadamente, já pensando nas piores coisas que poderiam me acontecer.
  Ele desacelera seus passos quando atravessa a entrada do lugar, que era completamente escuro e cheio de escombros. Depois, ainda comigo sobre seus ombros, ele sobe uma escadaria que só faltava cair, chegando no segundo andar, que era um espaço vazio com várias vigas de madeira e algumas janelas abertas que mal iluminavam o ambiente.
  – Que gritaria toda é essa?
  Assim que me coloca no chão, procuro o dono da voz, temendo por ela quando vejo o garoto do dia passado, , sentado em um canto afastado do lugar, escorado sobre uma das vigas de madeira.
  – Oh! Olha só quem veio nos visitar hoje. – ele muda sua entonação assim que me vê, parecendo subitamente animado.
   se afasta de mim e vai até onde estava, se sentando perto dele, enquanto eu me mantenho parada no mesmo lugar calculando quando seria a hora certa para correr.
  – Se você tentar fugir nós cortamos as suas pernas. – como se pudesse ler meus pensamentos, ameaça, me fazer temer.
  Eu realmente sei que eles são capazes disso, por isso preciso ser mais cuidadosa. Ainda sem saber o que fazer, continuo ali parada apenas encarando o ambiente. Tudo ao redor das vigas de madeiras era de uma completa escuridão, me impossibilitando de ver muitas coisas, eu só conseguia enxergar e por contas da fraca luz que vinha das janelas abertas, e mesmo assim um forte sombreado cobria parte do corpo deles.
  Abraço meu próprio corpo quando sinto o vento gelado entrar pelas janelas, trazendo consigo um leve barulho de assovio. Me aproximo da janela tendo uma ampla visão de onde eu estava, no meio do nada, só havia vegetação malcuidada, sem sinal de algum lugar pelo qual eu pudesse pedir ajuda.
  Escuto alguns passos atrás de mim, me fazendo virar na defensiva, olhando diretamente para e , que continuavam em seus lugares. de costas pra mim, e me observando de forma curiosa. Franzo o cenho encarando ao redor, mas devido a grande escuridão, tenho a impressão de ver uma sombra se esgueirando de uma viga para outra. Não sei se isso foi uma alucinação de minha mente, ou se de fato havia uma sombra ali, mas sei que foi o bastante para me fazer correr até onde os dois estavam sentados, me juntando a eles.
  Tento me sentar o mais afastada possível de ambos, mas perto o suficiente caso tenha alguma coisa estranha aqui.
  – O que há com essa cara assustada? Você parece um gatinho medroso. – caçoa, me encarando com olhos estreitos. – Você vai mesmo ficar com ela? – apoia seu cotovelo na perna dobrada e o rosto na palma da mão, mostrando total desinteresse. – Pensei que fosse matá–la. – me encolho em meu lugar, como uma forma de me auto proteger. me olha de canto de olho, o que me deixa ainda mais desconfortável com tudo isso.
  – Eu andei pensando sobre isso. – suspira. – Vai ser muito mais divertido fazer ela sofrer lentamente. Quem sabe assim ela não se mata sozinha? – ele dá de ombros, fazendo rir.
  – Péssima escolha vir para Setealém, Mae. – diz, ainda rindo.
  – Como se eu quisesse vir pra esse lugar, ficar cercada por um bando de loucos feito vocês. – rebato, vendo virar sua cabeça em minha direção, me fazendo ficar tensa.
  – Mas você está aqui do mesmo jeito, não está? – mesmo com a má iluminação eu ainda podia ver arqueando uma sobrancelha.
  Opto por ficar calada, sei que nada do que eu disser vai fazer com que eles pensem diferente, afinal, moradores de Setealém não gostam de humanos.
  – É inevitável, sabe. – volta a falar. – Não tem como fugir disso. Você está aqui, então precisa pagar por isso. – ele dá de ombros. Suas palavras soam totalmente naturais como se fosse algo normal de se dizer.
  Esse cara realmente consegue me irritar, como ele pode dizer isso? Eu ainda nem posso esquecer o que ele fez com a minha irmã, e agora está aqui na minha frente agindo como se não fosse grande coisa.
  Desvio meu olhar deles por um momento, não aguentando toda essa situação. Foco minha visão na escuridão por trás das vigas, divagando em meus devaneios e imaginando se um dia eu realmente vou voltar a minha vida normal. Eu me sinto como uma grande refém nesse lugar, eu mal posso acreditar, acho que porque achamos que nunca irá nos acontecer, e sim, sempre aos outros.
  Em meio a todo essa bagunça dentro de mim mesma, tenha a impressão de ter visto, outra vez, uma pequena sombra entre as vigas. Fico um pouco mais atenta. Da primeira vez podia ser apenas minha imaginação, já que presa nesse lugar eu tenho várias fantasias macabras o tempo todo. Mas agora que vi uma segunda vez, sei que não estamos sozinhos.
  Forço minha vista contra a escuridão, querendo enxergar melhor o que poderia ser, mas parece inútil, está realmente escuro demais e a sombra não caminha até as partes iluminadas pela janela aberta.
  O que quer que seja, parecia não ser tão grande, e também parecia ter uma espessura magra. E com uma leveza hipnotizante ela passa de uma viga para a outra, me dando a impressão de estar observando diretamente a mim. A mesma sensação que temos quando imaginamos algo se esgueirando na escuridão de nossos quartos depois de assistirmos um filme de terror, e se tratando deste mundo, isso com certeza é possível.
  Penso em alertar e , que não notaram até agora, mas um barulho que vem do lado de fora acaba por interromper minhas ações. rapidamente se levanta e caminha até a janela aberta.
  – Parece que temos visitas. – ele nos olha sobre os ombros, com um enorme sorriso no rosto.
  Me levanto também, tentando ver pela janela, e quando avisto as três pessoas que se aproximam, um fio de esperança surge dentro mim. Pronta para gritar por eles, sinto tapar minha boca e me puxar para longe da janela.
  – Esconda ela. Eu vou mandá-los embora. – diz para , que começa a me arrastar para o outro lado por um corredor que levava até outra escadaria.
  E contra minha vontade me arrasta por outras escadarias até que chegássemos no terraço. Uma forte ventania nos atingia do lado de fora, contratando com o céu avermelhado.
  – É bom que você fique quietinha. – diz, se afastando e indo até a beira do terraço. Mas essa era a minha chance, eu não podia ficar quieta.
  Corro até a beira do terraço também vendo , Eve e Valerie se afastarem da construção.
  – EVE! – grito por minha irmã, que rapidamente se vira, me procurando a tempo de me ver sobre o topo da construção, fazendo os três correm para dentro da mesma.
  Não tenho muito tempo depois de gritar, pois me puxa rudemente, me jogando contra a parede ao lado da porta, me segurando pelos pulsos.
  – Eu mandei você ficar quieta. – ele fala entre os dentes, me assustando com sua expressão de irritação. Seus olhos esbranquiçados em meio ao verde apagado, seus piercings e pele pálida só contribuem para que ele fique ainda mais intimidante.
  Ele aperta fortemente meu pulso direito, tão forte que eu quase sinto a circulação presa no local. Depois ele simplesmente vira meu pulso com toda força, me fazendo soltar um grito de dor.
  – Eu não estou brincando. – ele aproxima seu rosto do meu, encarando diretamente meus olhos, enquanto aperta ainda mais meu pulso.
  – ? – a voz feminina faz com ele se afaste de mim no mesmo segundo, e suspiro aliviada por isso. 
  Levo minha mão esquerda até meu pulso direito, sentindo que por pouco não torceu ele, e mesmo assim ainda dói muito. Ainda segurando meu pulso para tentar amenizar a dor, olho para lado, vendo uma pequena garota de cabelo longos e castanhos, usando um longo vestido preto de mangas longas.
  – Sophie? O que você está fazendo aqui? – se aproxima dela.
  – Eu cheguei antes de vocês, estava no quarto andar. Comecei a escutar alguns barulhos, por isso vim ver o que era. – ela abraça o próprio corpo quando o vento gelado atinge seu corpo magro.
  – Entendi. – suspira, passando a mão pelo rosto de forma irritada.
  – O que está acontecendo, ? – ela se aproxima incertamente, olhando confusa de para mim. 
  – Nada. Só fique com ela por alguns minutos. Eu já volto. – diz, e ela assente.
  Em seguida ele vai até a porta do terraço, atravessando a mesma para o andar de baixo. A tal garota, Sophie, fica acompanhando seus movimentos com o olhar, e assim que a porta do terraço é fechada ela se vira para mim com uma expressão totalmente diferente.
  – Então você é a humana nojenta que veio pra cá? – ela pergunta com desdém, me fazendo ficar sem reação.
  A garota começa a se aproximar de mim, me deixando totalmente confusa com a sua mudança de personalidade. Ela me olha de cima a baixo, querendo pegar todos os detalhes.
  – Você realmente se parece com ela. – a garota me rodeia. – E mesmo assim ela morreu. Vocês humanos nojentos não se cansam disso? – ela me puxa me pulso, o mesmo que machucou.
  – Você é louca? – pergunto em meio a um grunhido, puxando meu pulso para mim. E como todas as criaturas de Setealém, ela é mais forte que eu.
  – Louca é você de estar viva. – ela começa a me arrastar para beira do terraço.
  O vento ia ficando cada vez mais forte a medida que nos aproximávamos do final da construção. Sophie me empurra para o chão, depois praticamente sobe em cima de mim, deixando metade do meu troco fora da beira do terraço. O desespero toma conta do meu corpo, enquanto ela me segura pelos ombros, a única coisa que me sustentava para não cair de seis andares. O vento balançava meu cabelo pendido para baixo, fazendo meu coração acelerar, e todo meu corpo se arrepiar em pavor.
  – Eu não vou deixar você estragar a vida do meu irmão outra vez. – ela diz entre os dentes, enquanto eu seguro suas mãos em meu ombro, tentando me apoiar nelas.
  Tento puxar seus braços, tentando impulsionar meu tronco para cima, mas ela faz pressão para baixo, fazendo minha cintura bater contra o concreto.
  – Você não sabe o quanto eu esperei por isso. – ela sorri de forma sádica antes de soltar suas mãos de meus ombros, fazendo meu corpo pender para trás e entrar em queda livre. E antes disso consigo agarrar nas mangas de seu vestido, a puxando junto comigo, virando seu corpo para baixo, e ficando por cima, enquanto ela me prende em um abraço.
  E assim, nós duas despencamos do terraço, enquanto o vento gelado nos embalava. As lágrimas em meus olhos voavam pelo ar a medida que o terraço ficava cada vez mais longe, não me impedindo de ver a figura esquia e escura que surge na beira do mesmo, Sammy. Ele acenava para mim, nos observando cair através daqueles olhos amarelos cheios de ódio e morte.
  Era isso, esse era o meu fim, eu finalmente iria pagar pelo que fiz. Acho que não poderia ser de outra forma. Essa é a lei da vida, um dia seus pecados voltam para você, e irão te matar. Eles se personificam das coisas mais assustadores enquanto te observam dentro da escuridão,  te acompanhando todos os dias. Eu não fui capaz de notá-lo antes, mesmo que ele sempre estivesse comigo, mas agora eu o vejo, mesmo que seja tarde demais.
  Antes de meus olhos se fecharem, a última coisa que escuto é o som de nossos corpos se chocando contra o chão frio, anunciando minha sentença.

Capítulo 7

  – Acorda! – minha cabeça tomba para o lado em reação à voz que me grita. – Anda, acorda de uma vez! – meu corpo é empurrado para trás, e sinto que ele faz um movimento de vaivém. 
  Todo meu corpo dói, sinto como se tivesse sido esmagada. Estou totalmente fraca e sem energia para sequer me mexer direito.
  – Eu falei pra você acordar! – sinto um grande impacto contra meu rosto, o que me faz abrir os olhos de uma vez quando a dor estridente corre por todo meu corpo.
  Minha visão fica totalmente turva, e a má iluminação do lugar onde estou não ajuda. Algo quente escorre por meu rosto, me causando uma grande aflição. Tento mexer meus braços, mas sinto-os pendidos para cima. Minhas pernas fraquejam e só não caio porque estou presa pelos braços.
  – Até que enfim! Já estava começando a perder a paciência. – a mesma voz feminina de antes diz.
  Com certa dificuldade levanto minha cabeça, vendo minha visão melhorar aos poucos. Tento identificar o lugar em que estou, mas é impossível, tudo está escuro demais. Será que eu realmente morri?
  – O que foi? Não vai dizer nada? – um pequeno vestígio de luz aparece atrás de mim, contornando meu corpo até parar na minha frente, relevando a imagem da garota de antes, Sophie, que segurava uma pequena lamparina.
  Seu vestido preto estava rasgado em várias partes, mostrando grandes machas de sangue por seu corpo e também rosto. E apesar de toda sua aparência, ela não me parecia machucada, apenas mais uma criatura de Setealém como outra qualquer. Eu pensaria assim se não tivesse a visto antes, pois sei que seu estado se dá ao fato de nossa queda.
  – Estamos mortas? – com um tom baixo, pergunto, recebendo uma risada sem humor de Sophie. 
  – Ainda não. – Sophie se aproxima um pouco mais de mim, e posso ver que com sua mão livre da lamparina, ela segura uma pequena adaga. – Você caiu por cima de mim, quase morreu, mas eu te salvei. Então me agradeça. – ela se inclina em minha direção, levando a adaga até meu rosto e encostando o objeto gelado contra minha pele.
  – Como você está viva? – recobrando os meus sentidos, pergunto um pouco mais alto.
  – Eu não sou humana, esse tipo de coisa não me mata. – ela responde com desdém, me fazendo recordar que Valerie disse que para matar uma criatura de Setealém é preciso usar algo do mundo humano.
  – Por que eu estou presa? – continuo com o meu interrogatório, tentando puxar meus braços, sem sucesso. Só consigo escutar o barulho de correntes. – E que lugar é esse? – olho em volta, tentando enxergar algo, mas continuava impossível. Apenas a fraca luz vindo da lamparina de Sophie não era o suficiente para me dar conhecimento desse lugar.
  – Quantas perguntas chatas. – a menina bufa, parecendo se irritar. – Eu te trouxe até aqui e não te deixei morrer, isso deveria ser o suficiente para você. – ela aperta a ponta da adaga contra minha bochecha, me fazendo sentir uma pequena fisgada.
  – Você é louca? Tentou me jogar de um prédio de cinco andares, e agora me prende em um lugar que eu nem sei o que é? – tomando toda minha consciência de volta, e tentando esquecer da dor por todo meu corpo, solto toda minha indignação de uma vez sobre ela.
  – Você deveria falar mais baixo, não está em uma boa posição aqui. Eu não ia te matar, só te machucar um pouco. – ela estreita seus olhos, descendo a adaga por minha bochecha, causando um corte no lugar.
  – O que você quer comigo? – pergunto, entre um gemido de dor causado pelo corte. Preciso lutar contra minhas próprias forças, minhas pernas ainda fraquejam um pouco.
  – Sabe, meu irmão costumava namorar um menina parecida com você. – ela afasta a adaga de minha bochecha, para segurar meu rosto de forma rude, o virando para os dois lados. – Na verdade, vocês são iguaizinhas. Ou como vocês humanos nojentos costumam dizer: ela era a sua versão de Setealém. – ela examina cada detalhe do meu rosto.
  Tento mais uma vez me soltar, para poder afastar essa louca de perto de mim, mas meus pulsos estão presos firmemente nessas malditas correntes, e eu não tenho forças para me livrar disso.
  – Mae odiava humanos tanto quanto eu. Na verdade, nunca conheci ninguém que odiasse mais os humanos quanto ela. – Sophie vira meu rosto em direção ao seu, dando um sorriso grande sorriso de escárnio. – Mas como pode imaginar, ela morreu, e morreu por sua culpa. Na verdade, nós só morremos por culpa de vocês. – seus dedos pressionam a pele de meu rosto, e propositalmente ela aperta o corte recém feito em meu rosto.
  Chacoalho os braços e pernas quando sinto a ardência em meu rosto, fazendo com ela aperte ainda mais.
  – Nossa culpa? Nenhum de nós pediu para ser assim. Não sei se você se lembra, mas os humanos também morrer por culpa de vocês! – me sentindo totalmente irritada com a situação, falo sem me importar com as consequências.
  É inevitável não lembrar do meu ex-namorado morto. Ele era alguém extremamente bom, que não deveria morrer para que criaturas como Sophie estivessem vivas. 
  – Vocês não deveriam nem existir. – ela diz entre os dentes. – Mas não é algo que eu preciso me preocupar por muito tempo, já estou providenciando a morte de cada um de vocês. E você será a primeira. – ela solta meu rosto.
  – Vai me matara agora, é isso? – mesmo que eu sinta um grande calafrio percorrer meu corpo dolorido, tento não fraquejar em sua frente, pois era isso que ela queria.
  – Daqui três semanas, dia trinta e um de outubro, vai completar três anos que Mae morreu, e nesse dia eu vou te matar e trazer ela de volta. – meu coração dispara no mesmo instante.
  – T–Trinta e um de outubro? – minha voz sai totalmente tremida, enquanto meus olhos se arregalam.
  Dia trinta e um de outubro foi quando meu ex-namorado morreu pelas mãos de um procurado assassino de Hollow Grow. Não pode ser, essa garota de Setealém morreu junto com ele? Por isso me odeia tanto?
  – Exatamente, trinta e um de outubro. – ela balança a adaga em frente ao próprio rosto. – Durante esses dois anos eu vi meu irmão lidando com essa perda. E por mais que Mae só causasse problemas na vida dele, eu não quero mais vê-lo assim. – sua voz vai se tornando mais raivosa a medida que ela falava, me olhando como se eu fosse o centro de tudo isso. – Eu encontrei com uma antiga moradora de Setealém, ela é uma alma perdida que acabou se tornando uma usuária de magia negra para sobreviver. Ela me disse que se eu te oferecer como sacrifício no mesmo dia em que Mae morreu, eu posso trocar sua vida pela dela, e a trazer de volta para Setealém. – um grande sorriso surge em seus lábios, em meio a suas palavras odiosas.
  Meus olhos se arregalam outra vez, e posso sentir minhas mãos começarem a suar devido a tensão que corre por minha espinha.
  – Eu vou te deixar presa aqui até que o dia chegue, mas até lá quero que você sofra tudo o que a sua raça nojenta nos fez passar. – Sophie encara a lamparina, antes de soprar sobre a pequena chama, apagando a mesma, e fazendo com que imergimos em total escuridão. – Ah, quase me esqueci... – olho freneticamente para todos os lados, tentando localizar em qual parte da escuridão sua voz vinha – ...não estamos sozinhas aqui dentro.
  Caímos em um grande silêncio. Eu já não escuto mais sua voz, apenas a minha respiração que vai se tornando cada vez mais alta a medida que minha mente começa a criar imagens do que estaria conosco aqui dentro.
  Fico por alguns segundos sem me mexer, apenas tentando captar algum tipo de movimentação em forma de barulho, mas tudo está tão silencioso, nem mesmo Sophie sou capaz de escutar.
  Encarando a total escuridão, eu faço meu primeiro movimento, tentando soltar meus braços presos, mas só tenho como resposta o barulho das correntes.
  Mais alguns minutos no silêncio e sou capaz de captar a primeira movimentação de alguém dentro da escuridão. Viro minha cabeça imediatamente para direita, mas escuridão é avassaladora, eu não enxergo nada, o que começa a me assustar. Eu nem sequer posso ver o que está aqui dentro, e minha mente está me fazendo ter ideias muito perturbadoras do que possa ser.
  Prendo minha respiração tentando fazer silêncio para escutar melhor o que quer que seja. Meus olhos correm por toda escuridão, enquanto escuto a mesma movimentação vindo, agora, do lado esquerdo. Lentamente viro minha cabeça para direção contrária, esperando por outro movimento. Minhas mãos estão completamente suadas, e meu coração está batendo tão rápido que o escuto martelar em meus ouvidos.
  Uma brisa gelada passa perto de minhas pernas descobertas pela saia do uniforme, me fazendo juntá-las em uma resposta automática de meu corpo. Tento me encolher, mas as correntes me impedem, apenas criando barulho.
  – Sabe, Mae, é engraçado como os humanos têm medo de coisas idiotas como filmes de terror... – escuto a voz de Sophie que parecia estar distante de mim. – Mas vocês deveriam se preocupar com as coisas que realmente existem. – ela faz uma longa pausa, apenas para que eu sinta algo gelado agarrar meu tornozelo, era semelhante a uma mão bem grande e áspera, com enormes unhas que fisgavam minha pele.
  Balanço minha perna tentando afastar a mão, mas ela apenas se prende ainda mais a meia do meu uniforme, rasgando o tecido. Minhas pernas começam a tremer, me fazendo mergulhar em total desespero e medo por não enxergar o que era isso.
  – Se vocês soubessem das inúmeras coisas que ficam escondidas na escuridão, observando cada um de vocês, apenas esperando seu momento mais vulnerável. – Sophie volta a falar ao longe. – Me diga, Mae, você já sentiu como se estivesse sendo observada de noite? Já acordou assustada sem motivo algum? – ela baixa o tom de sua voz, a deixando totalmente sombria. – Isso nunca foi coisa da sua cabeça, essas coisas existem e estão com você cada segundo do seu dia, e principalmente, da sua noite.
  A mão se afasta de minha perna, dando lugar para o silêncio outra vez.
  – O maior erro de vocês humanos, é ficarem sozinhos na escuridão. – Sophie dá risada. – Espero que todos vocês sejam visitados hoje de noite. 
  Uma respiração pesada começa a surgir atrás de mim, paralisando todo meu corpo. A mesma mão áspera de antes agora toca meu pescoço, passando sua mão pelo local. Suas unhas me agarram, enquanto sua respiração se aproxima de meu ouvido, fazendo meu corpo tremer de dentro para fora.
  – P-Por favor, me tire daqui. – sussurro falhamente, sem receber uma resposta.
  Enquanto uma mão segurava meu pescoço por entre unhas afiadas e geladas, outra mão se estende até as correntes que me prendem, fazendo ambas chacoalharem de um lado para o outro. Fecho minha mão, quando sinto as unhas geladas traçarem a pele de minha mão.
  Tento impulsionar meu corpo para frente, mas sou puxada outra vez pela mão em meu pescoço, meu causando alguns cortes.
  A respiração pesada aos poucos vai desaparecendo, e a mão em meu pescoço muda de lugar, acompanhando sua outra mão até a corrente, e em um movimento forte, a corrente de meu braço direito é arrebentada. Automaticamente levo minha mão livre até meu pescoço, sentindo o sangue molhar meus dedos.
  As mãos ásperas desaparecem de perto de mim, me deixando sozinha por um segundo, apenas para que eu sinta um ar quente contra meu rosto. Meu corpo paralisa outra vez, e fecho meus olhos fortemente, mesmo que eu não possa ver o que estava parado na minha frente.
  Eu me sentia uma garotinha indefesa depois de assistir um filme de terror e não conseguir dormir. Aquela familiar sensação de que alguém está com você, te fazendo paralisar sobre a cama, enquanto você cobre todo seu corpo com um cobertor, na esperança daquilo ir embora. Mas no meu caso isso não vai embora, isso é real, e está bem aqui na escuridão comigo.
  Ainda de olhos fechados, eu sinto a respiração ficar cada vez mais perto, até o ponto de saber que ela estava a míseros centímetros do meu rosto.
  Tomada pelo pavor, tento a todo custo soltar minha mão esquerda, agarrando a corrente em um ato desesperado e a puxando para baixo. Meus olhos começar a lacrimejar, quando sinto as mãos ásperas tocarem meu corpo outra vez. E isso é o impulso que falta para o meu desespero, me fazendo, finalmente, arrebentar a corrente de meu braço esquerdo e despencar ao chão.
  Meu corpo fraco dói pelo impacto, mas tento ignorar, me levantando rapidamente e correndo para longe, em algum canto do lugar escuro. Bato contra uma parede, e me apoio nela enquanto tateio todos os lados em busca de uma saída.
  A respiração pesada fica mais bruta, e começa a ser acompanhada por passos, fazendo meu desespero aumentar cada segundo dentro desse lugar. Continuo tateando a parede e indo cada vez mais para o lado, até sentir uma maçaneta redonda. O alivio tomaria conta de todo meu corpo nesse momento, se não fosse pela mão que agarra meu tornozelo e me puxando para o chão.
  Sem ter aonde me segurar, simplesmente começo a chorar e me debater em pavor, até ver uma porta sendo aberta na minha frente, fazendo uma grande quantidade de luz invadir o lugar, e a mão que me arrastava sumir de perto de mim.
  – O que é isso? – a imagem de Zayn surge na porta, enquanto ele me olha caída no chão.
  – O que você quer? – escuto a voz de Sophie, me fazendo olhar sobre os ombros e vê-la de braços cruzados escorada ao lado direito de uma parede.
  O lado esquerdo ainda continuava escuro, mas eu podia ver uma grande sombra se mexendo entre ela, automaticamente me fazendo encolher meu corpo.
  Agora com a luz percebo que se tratava de um cômodo completamente vazio, apenas com correntes ao centro dela, que estava pressas no teto.
  – Você estava se divertindo sozinha? Por que não me chamou? – Zayn volta a perguntar.
  – Como me achou? – Sophie se não responde sua pergunta, se mantendo parada no mesmo lugar.
  – e eu nos separamos para procurar vocês duas. Eu o mandei para o outro lado, porque sabia que você estava aqui. Você é muito previsível, Sophie – Zayn debocha, me encarando por um momento – Ela pegou pesado com você, hein. – ele arqueia suas sobrancelhas para mim.
  Sem respondê-lo escuto, outra vez, o que se esconde na escuridão respirar pesadamente, fazendo todos os pelos do meu corpo se arrepiarem. Me levanto com dificuldades, encarando Sophie e depois Zayn.
  – Você quer fugir? – ele pergunta para mim, abrindo a porta – Pode ir, só não tente morrer. – Zayn sorri, me dando espaço para sair.
  Sem pensar duas vezes corro porta a fora, dando de cara com uma densa floresta escura. Não havia nada em volta, apenas mato, tornando ainda pior do que aquele prédio que me levou.
  Corro sem destino, corro por entre as árvores, olhando sobre meus ombros algumas vezes para ver se algum deles me seguida, e por sorte não vejo nada.
  Quando estou afastada o suficiente da cabana em que Sophie me levou, sinto minhas pernas fraquejarem, me fazendo cair sobre a terra batida. Encaro o céu avermelhado acima de mim, indicando que a noite já havia chego. Cercada por matos, árvores e o barulho dos insetos, volto a chorar, sem saber o que fazer e para onde ir.
  Fico algum tempo jogada sobre o chão de terra, apenas checando a gravidade de meus machucados e esperando que meu corpo se recupere pelos menos um pouco. Não acho que vou aguentar correr, mas não faço ideia do que há aqui nesse lugar. Podem existir outras criaturas como aquela que me atacou na cabana, ou Zayn e Sophie simplesmente podem vir atrás de mim.
  Eu estou ferrada.
  Seco minhas lágrimas e me levanto outra vez, olhando atentando em qual das direções eu deveria seguir, acabando por optar pelo sul.

***

  Depois de muito andar sem rumo, acabo encontrando um pequeno lago, do qual paro para limpar meus machucados e tomar um pouco de água. Meu corpo inteiro grita para que eu me alimente, estou fraca demais, e não tem nada nesse lugar, por isso vou ter que me sustentar apenas com água.
  Retiro o casado surrado de meu uniforme, o molhando no lago e limpando os machucados pelo meu corpo. Começo por meus joelhos ralados pela terra batida, depois subo até um de meus cotovelos que também foi ralado em uma das minhas quedas. Vou até meu rosto, gemendo de dor quando o tecido de pano encosta no corte em minha bochecha, e por fim aperto firmemente o casaco contra o corte na lateral de minha cabeça; certamente do machucado que eu já havia feito antes, e ele apenas abriu outra vez.
  Quando termino, coloco o casaco de lado, me sentando na beira do lago antes de dobrar as mangas de minha camiseta até os cotovelos. Em seguida, apoio minhas mãos sobre a terra, para poder encarar o meu reflexo na água, e a imagem que vejo é totalmente miserável, nem mesmo quando meu ex-namorado morreu eu estive nesse estado, era de dar pena.
  Um pingo de água cai sobre o lago, fazendo minha imagem desfocar por alguns segundos, me fazendo perceber que se tratava de mais lágrimas minhas. Era inevitável não chorar estando nessa situação. Eu só queria ir embora daqui, queria minha vida antiga...
  Eu queria meu ex-namorado comigo.
  Eu preciso tanto dele, preciso da minha irmã, preciso ser salva de tudo isso. Eu não aguento mais esse lugar.
  Choro até que meu corpo se acalme, tento colocar para fora tudo que estou sentindo nesse momento. Por mais que eu não goste disso, preciso me recompor, pois tenho que dar um jeito de sair daqui e encontrar Eve e os outros.
  Respiro fundo, me inclinando sobre o lago e formando uma concha com as mãos. Depois mergulho ambas na água, pegando uma quantidade significativa antes de levar até meu rosto, tentando tirar qualquer resquício de choro.
  Ainda de olhos fechados, apoio minhas mãos outra vez na terra, enquanto sinto a água escorrer por todo meu rosto. Acalmo meus pensamentos antes de abrir os olhos, encarando a água dançando embaixo de mim devido aos pingos que caiam de meu rosto. Procuro meu reflexo outra vez, mas a única coisa que me chama a atenção são os olhos verdes refletidos na água. Por um segundo meu coração se acelera, pensando que finalmente o grande amor do meu passado retornou para me encontrar outra vez, mas ao cair na realidade percebo que os olhos verdes que me encaram nesse momento através do reflexo da água estão prestes a me engolir.

Capítulo 8

  – H-? – minha voz sai totalmente falha, me obrigando a virar de frente para sua figura alta, de pé atrás de mim.
  – Te achei. – ele diz, totalmente inexpressivo. – O que aconteceu com você? Por que está assim? – coloca as mãos dentro dos bolsos de sua calça, enquanto encara cada parte machucada de meu corpo.
  Penso em dizer o que a maluca da irmã dele fez, mas se tudo que Sophie disse for mesmo verdade, então não é muito inteligente dizer que tem como ele recuperar a namorada morta, apenas acabando com a minha vida.
  Sem uma boa desculpa para dar a ele, apenas opto pelo silêncio, enquanto seus olhos não desviam de mim um minuto sequer.
  – Não quer falar. – ele dá uma curta risada nasalada. – Vamos embora daqui, vem. – faz um gesto de cabeça para que eu o siga, em seguida, se virando para começar a andar.
  Fico de pé, deixando meu casaco molhado na terra.
  – Você acha mesmo que eu vou com você? – pergunto irônica, o vendo parar de andar. – Para começar, eu nem estaria desse jeito se você não tivesse aparecido hoje de manhã.
  Ele mantém suas mãos dentro dos bolsos, virando sua cabeça para me olhar sobre os ombros.
  – E você vai ficar sozinha nessa floresta esperando alguma criatura te achar e te comer viva? – ele sorri de lado, antes de virar sua cabeça para frente e voltar a andar.
  Agarro na barra de minha saia, sentindo meu corpo se arrepiar com suas palavras. Olho para os lados por um momento, enxergando as árvores e matos de maneira ameaçadora, os barulhos dos insetos se tornam cantigas assustadoras, e o céu escuro parece ter ficado mais sombrio do que antes.
  Não sabendo qual das opções era a pior, acabo optando por correr até , temendo que sua irmã louca me ache no meio dessa floresta e me arraste de volta para a cabana, com aquela criatura assustadora.
  Me mantenho a três passos de distância de , que continua caminhando tranquilamente entre as árvores, sempre sendo atenta a tudo ao meu redor depois das palavras dele.
  Apesar de Setealém parecer muito com Hollow Grow, há muitas coisas nesse mundo que não conheço, e não posso me dar ao luxo de andar por ai como se soubesse de tudo, ou posso acabar morrendo. Já não basta os moradores desse lugar serem ameaças para mim, por isso é melhor não fazer desse universo uma ameaça também.
  – O que vocês estão fazendo aqui? – salto em meu lugar, olhando assustadamente para o lado e vendo uma velha senhora de estatura baixa e cabelos longes e esbranquiçados. Ela tinham muitas tatuagens por seus braços, que mais pareciam com símbolos de rituais, mas com certeza seus olhos castanhos eram os mais marcantes em sua aparência. Apesar de ser uma cor muito comum, eles eram penetrantes, se diferenciando de tudo que vi até agora em Setealém.
  – Quem é você? – perguntando, se virando para a senhora. E involuntariamente caminho para mais perto dele, sentindo uma estanha sensação com a presença da velha senhora.
  – Não sou ninguém, apenas mais das muitas almas perdidas desse lugar. – ela sorri, olhando de para mim.
  Um arrepio corre por meu corpo, me fazendo passar as mãos pelos braços.
  – Vamos embora, . – sussurro perto dele, querendo sair de perto dessa senhora o mais rápido possível.
  – Escute ela, meu jovem. Essa floresta está infestada de coisas ruins até mesmo para moradores de Setealém. – a velha senhora diz, antes de passar por nós dois e seguir seu caminho por entre as árvores.
   fica parado no mesmo lugar, observando a senhora se afastar. Com certeza eu não fui a única que fiquei incomodada com a presença estranha da velha.
  – Vem. – por fim ele diz, voltando a se mexer. E me apresso para ficar perto de , temendo pelo que mais poderíamos ver nessa floresta.

***

  Nós dois já andávamos por muito tempo, e o frio e cansaço faziam todos os meus machucados ficarem mais sensíveis, mas sabia que não poderia reclamar disso, pois não ligaria, e provavelmente me deixaria para trás. Eu já passei por coisas ruins demais para apenas um dia, não quero ficar largada em algum canto desse universo macabro.
  – Que lugar é esse? A casa da Angeline não fica por aqui. – pergunto quando finalmente saímos daquela extensa e cheia floresta, agora vendo uma rua de pavimento com algumas poucas casas destruídas a beira.
  – Porque essa é a minha casa. – ele me olha.
  – Sua casa? – meu coração dispara apenas por pensar na possibilidade de encontrar sua irmã.
  – Foi o que eu disse. – ele debocha, se aproximando de mim e me puxando pela mão. E como sempre, é inútil lutar contra ele, então apenas deixo que ele me arraste pela rua de pavimento, enquanto rezo para todos os deuses que me protejam.
   segura minha mão com mais força quando chegamos até a porta vermelha de sua casa. Ele gira maçaneta e abre a porta, revelando o interior deteriorado da casa. Depois de entrarmos, solta a minha mão para fechar porta e se certificar de que eu não fugiria. Em seguida, antes que ele pudesse me levar para outro lugar, uma mulher alta e de cabelos longos e escuros, aparece no final do pequeno hall de entrada que se dividia em duas bifurcações.
  – Quem é sua amiga, filho? – a mulher vestida em um longo vestido branco encardido, leva suas mãos para trás do corpo, se esgueirando em seu lugar. – Espere. Ela se parece muito com a Mae. – a mulher estreita os olhos para mim – Qual o seu nome, querida?
  Encaro por alguns segundos, buscando por alguma ajuda, mas ele apenas me observa com divertimento, parecendo gostar de toda a situação.
  – Mae. – incertamente, respondo de maneira baixa, vendo a mulher alta arregalar os olhos por um momento, antes de sorrir.
  – Você é humana... – ela divaga para si mesma, me olhando com curiosidade, como se eu fosse um ser anormal. – Muitas pessoas de Setealém não gostam de humanos, mas acho que as coisas começaram a mudar de uns tempos para cá. Se meu filho está com você, então é bem-vinda em nossa casa. – ela sorri uma última vez, antes de entrar na bifurcação da esquerda.
  Outra vez, sem a minha permissão, segura em minha mão, me obrigando a segui-lo pelo hall de entrada e depois virar na bifurcação da esquerda, passando pela sala de sua casa, e indo em direção a um correr repleto de portas, e com a última pessoa que eu gostaria de ver nesse momento.
  – Onde estava? Eu te deixei no terraço vigiando ela e vocês duas sumiram. – questiona Sophie, que estava parada ao lado de uma porta que ficava no meio do corredor do lado direito.
  Em uma reação automática, vou para o lado, tentando me esconder atrás do sem que ele perceba, tendo o olhar de Sophie sobre mim.
  – Desculpe, mas eu não queria ficar com ela, então a deixei sozinha lá e fui para escola. – ela dá de ombros, me fazendo ficar totalmente chocada com a sua cinidez.
  Olho totalmente descrente para Sophie, que faz uma falsa expressão de culpa para , o tentando convencer de suas mentiras.
  – Da próxima vez que eu te pedir para fazer alguma coisa, você faz. – o tom de voz de é desconfiado, mas ele acaba deixando o assunto para lá.
  – Sim. Desculpe por isso, irmão. – Sophie mantém sua expressão mentirosa de culpa, até que volte a andar pelo corredor, me levando junto. – É melhor você tomar cuidado por aqui. – a garota sussurra quando passo ao seu lado. E ao olhá-la por cima dos ombros, a vejo sorrir maliciosamente para mim.
  Eu preciso sair desse lugar. Acabei vindo com , pois achei que ele fosse me levar embora daquela floresta, e por ter medo do que podia encontrar lá. Mas fui tirada de uma armadilha, para entrar em outra antes mesmo que eu pudesse me recuperar.
   para na última porta do corredor, uma pintada em preto, com uma grande X vermelho desenho sobre a madeira escura. Ele abre a porta, revelando seu quarto, um típico quarto de um garoto de sua idade, apesar de estar totalmente deteriorado.
  As paredes estavam pintadas em tons escuros, o que ajudava a disfarçar as rachaduras por toda parte; Alguns pôsteres estranhos também estavam colados nas paredes. Havia uma grande cama no canto direito, com um lençol preto cobrindo cada parte. E ao lado da cama havia uma cabeceira repleta de porta-retratos com os vidros trincados. Um grande guarda-roupa ocupava a parede contrária, ao lado de outra porta pintada em preta. E por fim, um pouco afastada da cabeceira, havia uma janela com cortinas, também em tom preto.
  A iluminação no cômodo era forte, e presumo que o motivo seja todos os tons escuros presentes no quarto.
   retira seu blazer o jogando sobre a cama, antes de caminhar até a porta dentro do quarto, abrindo ela e entrando para o outro ambiente que eu deduzo ser o banheiro. Ele me deixa sozinha, parada no meio do seu quarto sem saber o que fazer, apenas tentando pensar em uma maneira de fugir desse lugar sem que eu fosse pega. E antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, alguém dá leves batidas na porta de seu quarto, fazendo todo meu corpo ficar tenso ao pensar na possibilidade de ser Sophie.
  – , querido, posso entrar? – a voz familiar de sua mãe soa do outro lado, me fazendo respirar um pouco mais aliviada. E em passos incertos caminho até a porta, a abrindo para a mulher pálida de olhos fundos, que segurava um copo transparente em suas mãos.
  – Acho que ele está no banheiro. – respondo, enquanto mantenho meu corpo rígido.
  – Tudo bem. Eu trouxe isso para você, Mae. – ela sorri, estendendo o copo transparente para mim.
  Me mantenho parada, apenas segurando na maçaneta da porta, enquanto encaro o líquido vermelho dentro do copo.
  – Não é veneno. – ela sussurra, dando uma curta risada em seguida. – Humanos são frágeis demais, e para sobreviverem aqui precisam se alimentar com as coisas desse mundo. Você está muito machucada, tome isso e melhore logo. – ela empurra o copo em minha direção, me obrigando a pegá-lo. Depois de me entregar o copo, ela sorri e dá as costas, se afastando.
  Não demoro ao fechar a porta do quarto, sabendo que não poderia dar brecha para a maluca da Sophie. Depois fico encarando o líquido vermelho dentro do copo, cogitando se eu deveria beber ou não.
  Eu preciso escapar dessa lugar, mas em minhas condições atuais isso será um pouco mais difícil. Eu não queria precisar da ajuda de nada desse mundo, mas se que quiser sair de Setealém, pelo jeito vai ser me moldando a esse universo e suas coisas. Não tem forma melhor de acabar com seu inimigo, do que o conhecendo muito bem.
  Respiro fundo antes de levar o copo transparente até minha boca, hesitando um pouco antes de dar o primeiro gole no líquido vermelho, que era espesso e, para minha surpresa, doce.
  Estranhamente me sinto um pouco melhor depois de beber todo o líquido vermelho. Meus machucados ainda estão aqui, mas sinto que minha vitalidade está um pouco melhor. O cansaço de antes parece sumir aos poucos, e toda fraqueza de meu corpo se despede rapidamente.
  Depois de beber todo o líquido vermelho, me recordo de ver Angeline dando a algo semelhante, o que fez com que ele acordasse totalmente curado de seus machucados. Eu não sei o que é isso, mas certamente está além das compreensões e remédios humanos.
  Ainda extasiada, caminho até a cabeceira ao lado da cama, deixando o copo vazio sobre ela. Aproveito o momento para reparar em todas as fotos que estavam sobre ela também: algumas de , Sophie e seus pais, outras de e Zayn, e a maioria de com uma garota extremamente parecida comigo.
  Mae.
  Era tão estranho pensar dessa maneira, que existia alguém exatamente idêntica a mim vivendo em um universo diferente. Alguém que aparentemente eu não gostaria de conhecer, e que acabou morrendo, de certa forma, por minha causa.
  Pego um dos porta-retratos, onde estava ao lado dessa outra Mae, a abraçando de lado, enquanto ela sorria para a lente da câmera. Eles pareciam um casal. É ainda mais estranho pensar que as pessoas desse universo têm relacionamentos ou coisas semelhantes ao mundo real, mas com certeza, de um jeito mais macabro e muito duvidoso.
  Isso até me faz lembrar do meu falecido namorado. Nós costumávamos tirar muitas fotos assim também. E vendo esse porta-retratos, até me dá a impressão de que somos nós nessa foto, fazendo coisas dais quais não nos lembramos, é um sentimento de nostalgia estranho de algo que nunca aconteceu.
  A porta do banheiro é aberta, revelando a imagem de com a camisa dobrada até os cotovelos, deixando amostra todas suas tatuagens. Os primeiros botões da camisa encardida estavam abertos, revelando um irônico colar de cruz em seu pescoço. Seus cabelos estavam um pouco mais bagunçados, e alguns fios estavam molhados, assim como o canto de seu rosto.
  Ele me encara com o porta-retratos em mãos, vindo em minha direção rapidamente e o tirando de perto de mim, o colocando de volta sobre a cabeceira.
  – Não mexa nas minhas coisas. – ele me olha seriamente, franzindo as sobrancelhas e fazendo com o que piercing sobre uma delas se mexa.
  – Você também mexeu nas minhas coisas quando estávamos na minha cama. – rebato, o vendo me encarar intimidantemente, o que me faz dar um passo para trás, sentindo a cama bater contra minhas pernas, me fazendo sentar sobre ela.
  – Não estou brincando, Mae. – alerta, nos fazendo cair em um breve silêncio, enquanto ele encara os porta-retratos em sua cabeceira.
  Fico imersa em meus próprios pensamentos, me sentindo tocada depois de ver suas fotos, que acabaram trazendo todo o meu passado de volta, e até mesmo o meu presente, já que tudo está ligado, e essa é a razão pela qual estou presa nesse universo agora.
  – ... – o chamo, não muito segura se deveria perguntar o que se passava em minha mente nesse momento. Ele desvia sua atenção dos porta-retratos para me olhar – Você gostava muito dela? – lanço a pergunta, me sentindo curiosa a respeito de como os sentimentos funcionavam para as pessoas de Setealém.
   arqueia as sobrancelhas com uma expressão entediada ao me encarar.
  – Isso não é da sua conta. E também não importa, afinal, ela está morta. – ele sorri ironicamente, fazendo suas palavras me acertarem em cheio. Com certeza me odeia pelo que aconteceu com sua namorada.
  – Você não foi o único a perder alguém, sabia. – mesmo que não seja uma boa escolha, rebato suas palavras outra vez, me sentindo totalmente mexida com a situação que estamos agora.
  A verdade é que estar perto dele não me traz só medo, mas recordações também. Recordações das quais eu não quero lembrar. Esse parado bem à minha frente é igual ao garoto que mais amei em toda minha vida, e isso é torturante, é como estar com o meu namorado depois de sua morte, mas em uma versão totalmente desconhecia por mim.
  – Você quer dizer que a culpa é minha? – ele debocha, vindo em minha direção e se inclinando para ficar à minha altura, enquanto seus olhos transbordam raiva. fica tão perto de mim que posso sentir sua respiração contra meu rosto, e ver nitidamente suas íris verdes me engolirem.
  – S-Se é minha culpa que a sua namorada tenha morrido, então é culpa sua que o meu namorado tenha morrido. Você está aqui, não está? – mesmo me sentindo intimidada, tomo coragem para dizer a verdade. Não é justo ser culpada o tempo todo por algo que eu não tenho controle, e que me afeta tragicamente também.
   agarra rudemente meu pulso, o mesmo que ele machucou quando me levou até o prédio abandonado. Ele o aperta e me puxa para frente, me obrigando a curvar o corpo para trás devido à proximidade.
  – Não me compare com a sua raça. Vocês não deveriam existir. Por culpa de vocês, nós continuamos morrendo. – diz entre os dentes, enquanto aperta ainda mais meu pulso, me fazendo gemer de dor.
  – Nós também estamos morrendo. – quase sussurro, levando minha mão livre até a sua, na tentativa de me livrar de seu aperto. Ele fica em silêncio, apenas me encarando com aquele olhar que parece engolir cada parte da minha alma. Eu não gosto disso, é intenso demais, e não de uma maneira boa.
  Também me mantenho em silêncio, aperto minha mão sobre a sua, tentando tirá-la de perto de mim, enquanto sou obrigada a olhar para seu rosto irritado. E estando tão perto dele, sou capaz de vez com clareza cada mínimo detalhe de seu rosto, desde a pele pálida, até os piercings que destacavam seu rosto, e os olhos em um verde apagado e que mesmo assim ainda eram extremamente penetrantes. Seus lábios comprimidos em uma fina linha reta, que vez ou outra moviam o piercing preto ao canto de sua boca. E por fim, seu cabelo bagunçado que moldava aquele rosto que eu conhecia melhor do que ninguém.
  Ele era assustadoramente lindo, mesmo estando desta maneira.
  Sinto as batidas do meu coração aceleraram ao encontrar nesse bem à minha frente, a pessoa pela qual eu perdi. Eu não sei o que está acontecendo comigo, mas é desesperador.
   afrouxa o aperto em meu pulso, não me machucando mais, e acabo fazendo o mesmo com a mão que coloquei sobre a sua. Minha respiração se torna um pouco instável à medida que vejo sua expressão suavizar e seu olhar correr por cada parte de meu rosto. E basta mais alguns segundos de trocas de olhares para que se aproxime mais de meu rosto, e por mais que minha mente saiba o quão errado isso é, meu corpo grita o contrário, se aproximando dele também. Seus olhos caem sobre minha boca quando estamos perto o suficiente para sentir nossas bocas se rosarem pela primeira vez, o que causa uma ansiedade por todo meu corpo.
  – , o papai chegou e quer conversar com você. – a porta do quarto é aberta de uma vez só, fazendo com que e eu nos separemos rapidamente. – O que vocês estão fazendo? – Sophie nos encara com desconfiança, enquanto continua parada na entrada da porta.
  – Nada. – bufa irritado, e se levanta, puxando Sophie para fora do quarto, fechando a porta em seguida.
  Solto todo o ar em meus pulmões, levando as mãos até meu rosto e pensando no que eu quase acabei de fazer. Ele não era o 'meu' , não era é o garoto pelo qual eu me apaixonei, e eu preciso colocar isso na minha cabeça. Esse foi apenas um momento de confusão, eu apenas me deixei levar por todas as memórias que me atingiram, mas não é algo que eu vou deixar se repetir, eu apenas preciso me manter longe dele.
  Totalmente cansada dessa situação toda, e desse dia longo que nunca termina, me levanto da cama, olhando ao redor do quarto procurando uma maneira que sair daqui. E a janela perto da cabeceira é como uma fraca luz no fim do túnel.
  Corro até ela, afastando as cortinas para os lados e vendo o vidro sujo e transparente, que refletia os fundos da casa. Por sorte a janela não está tranca, então levanto o vidro, o colocando sobre os suportes das extremidades. Checo uma última vez a porta do quarto, antes de colocar meus pés sobre o batente da janela, saltando para fora e caindo sobre o quintal dos fundos.
  Rapidamente me coloco de pé, olhando para frente e vendo a rua de pavimento, a minha única escapatória, pois mesmo sem saber onde ela me levaria, eu iria correr por cada metro do afasto escuro. Não posso ficar aqui.
  – Pensa que vai aonde? – a voz feminina que só atrás de mim, faz meu corpo congelar no lugar. – Eu sabia que você iria tentar fugir quando tivesse uma oportunidade. Por isso dei um jeito de tirar meu irmão do quarto. – olho sobre os ombros, vendo Sophie sorrir em minha direção, antes de se aproximar.
  – Fique longe de mim. – digo exasperada, dando alguns passos para longe dela.
  – E quem vai me impedir? Você? – ela debocha.
  – Não, Sophie. Eu vou. – outra voz conhecida entra em cena, atraindo nossa atenção. E ao me virar para a rua, posso ver Valerie se aproximando da casa.
  – Valerie... o que você está fazendo aqui? – Sophie pergunta, com uma expressão nada feliz no rosto.
  – Isso é ridículo. Eu estive procurando ela por todo canto, e esse era o último lugar da minha lista. – Valerie cruza os braços ao se aproximar de mim. – O que você fez com ela, Sophie?
  – Eu? Nada. Por que acha que eu fiz alguma coisa? – Sophie usa a mesma falsa de inocência que usou contra .
  – Porque eu te conheço, diabo. – Valeria ri sem humor. – Escute, Sophie, eu não quero você perto dela ou então sua briga será comigo.
  – Tudo bem. – Sophie levanta as mãos em sinal de rendimento.
  – Vem, Mae. Vamos embora. – Valerie faz um gesto de cabeça, dando um último olhar intimidando para Sophie.
  Sem dizer mais nada eu apenas a sigo, querendo sair desse lugar de uma vez por todas.
  – Desculpe por ter demorado tanto, mas essa cidade é enorme. – Valerie diz quando nos afastamos da casa de , e começamos a seguir pela sua de pavimento.
  – Tudo bem. Obrigada por vir. – abraço meu próprio corpo, me sentindo totalmente vulnerável nesse momento, mas agradecida por ter sido arrancada daquele lugar caótico.
  – Sem problemas, eu viria de qualquer jeito. – ela me olha de canto de olho, dando um pequeno sorriso.
  – Hm, Valerie... e a minha irmã?
  – Eu pedi que ela ficasse esperando na casa de vocês, ela estava nervosa demais para vir. também está ajudando, ele foi procurar perto da casa dele. – ela responde e eu apenas assinto.

***

  Nós andamos por muito tempo, parece que a casa de ficava bastante afastada da de Angeline, o que me conforta muito. Quando mais longe eu ficar daquela família, melhor será para mim.
  Neste momento eu já conseguia enxergar a casa da qual estou sendo obrigada a morar. E à porta dela, mas especificamente sentada sobre o chão, estava Eve, que se agita ao nos notar, vindo correndo minha direção e me envolvendo em um abraço apertado e desesperado.
  – Graças a Deus você está bem. Eu estava louca pensando no que poderia ter acontecido. – ela funga em meu pescoço, e posso sentir algumas de suas lágrimas molharem minha roupa.
  – Eu estou bem. – me afasto dela, secando as inúmeras lágrimas que escorriam por seu rosto.
  – Bom, ela está entregue em casa agora. Eu não perguntei nada porque queria que Eve estivesse junto, mas agora você pode nos contar tudo que aconteceu, Mae? – Valerie pergunta, e eu respondo com um aceno de cabeça.
  Nós três caminhamos até a entrada da casa, e nos sentados perto da porta como Eve havia feito antes. Eu respiro fundo inúmeras vezes antes de contar tudo que passei ao longo desse pesadelo de vida, enquanto observo as expressões incrédulas das duas garotas comigo.
  – Eu não sabia que algo desse gênero podia ser feito por aqui. – Valerie divaga para si mesma a respeito do ritual que Sophie pretendia fazer.
  – Eu sinto muito que tenha passado por tudo isso. – Eve segura minhas mãos, me olhando com um olhar triste.
  – Agora está tudo bem, não se preocupe. – tento confortá-la.
  – Mais do que nunca precisamos ser rápidas. Se esse plano de Sophie chegar até os outros moradores de Setealém, será o fim para todos nós. Em vez de sequestrarem humanos para preencherem o lugar daqueles que morrerem, eles vão começar a fazer de todos nós sacrifícios para trazer os mortos de volta a vida. – Valerie suspira pesadamente.
  – Você está certa. – Eve concorda, com uma expressão preocupada.
  – Você disse que talvez teríamos que matar alguns moradores daqui para não deixar pistas, certo? – pergunto para Valerie, a vendo assentir. – Eu estive pensando sobre ... será que eu poderia fazer o mesmo com o meu namorado? – Eve arregala os olhos ao escutar minhas palavras.
  – Você quer dizer, dar o como sacrifício para trazer seu namorado de volta a vida? – Valerie pergunta.
  – Sim.
  – Isso é loucura. – Eve interrompe.
  – Na verdade, eu acho que é possível. Só precisamos achar essa tal velha que Sophie mencionou. – Valerie dá de ombros. – Eles tiraram pessoas importantes para nós também, e ainda agem como se a culpa de tudo fosse nossa. Se eles se acham no direito de fazer isso, nós também podemos. É só você escolher um dia, e nós iremos atrás dessa mulher, Mae.
  – Isso é sério? – Eve pergunta incrédula.
  – Olhe para mim, Eve! Eles vão fazer pior do que isso, e não só a mim. E se no meio dessa bagunça toda eu tiver uma oportunidade de trazê-lo de volta, eu vou fazer. – respondo firmemente.
  – Então está decidido. Vamos atrás dessa velha, enquanto começamos a mexer os pauzinhos para nossa fuga dar certo. E o primeiro passo é tirar as nossas famílias da jogada. – Valerie sorri, fazendo Eve e eu trocarmos um olhar tenso.
  – Eu faço qualquer coisa para dar o fora desse lugar. – me contrariando e me sentindo totalmente diferente da primeira vez que escutei essa ideia, eu me coloco dentro. Depois de passar por esse inferno, não posso me dar ao luxo de choramingar pelas ações que teria que fazer para escapar.
  – Eu também. – Eve suspira ao meu lado, ao mesmo tempo em que porta de entrada é aberta, fazendo com que todas nós entrássemos em um quase estado de atonia por sermos pegas.
  – Eu posso ajudar. – o garotinho nomeado de Mark, apresentado como nosso "irmão", mas novo, diz. O garoto de cabelos loiros e pele pálida fecha a porta atrás de si, se juntando a nós.
  – Do que você está falando? – Eve tenta desfaçar.
  – Eu escutei tudo atrás da porta. Vocês querem se livrar dos nossos pais, e eu posso ajudar. – ele diz, totalmente sem emoção, me fazendo ficar totalmente chocada com suas palavras.
  – E por que deveríamos acreditar em você, Mark? Você já se esqueceu que é daqui? – Valerie pergunta.
  – Eu não ligo para eles. – o garoto dá de ombros. – Não ligo para quem entre, e nem para quem sai desse lugar. Tudo isso é chato, e o plano de vocês parece ser divertido. Eu também posso descobrir quem é a velha que vocês querem achar.
  – E como você vai fazer isso? – Valerie pergunta outra vez.
  – Eu posso pergunta na escola. As crianças inventam muitas lendas, eu saio perguntando pra saber se alguém sabe de alguma coisa. – ele continua parado com sua expressão de tédio.
  – Você sabe que não será fácil confiar em você, quem garantirá que você não está mentindo? Mas de qualquer forma... – Valerie suspira – ... você escutou tudo, então tem a vantagem aqui, então... bem-vindo ao time. – ela estende sua mão para o garotinho, que a recebe com um aperto que selava nossa união com Setealém para sua própria ruína.

Capítulo 9

  Ontem, depois de encurraladas por Mark, nosso irmão mais novo, e sermos obrigadas a colocá-lo em nosso plano, resolvemos que começaríamos agindo de acordo com este mundo. Nós teríamos, aos poucos, que começar a fingir – principalmente para nossos pais – que estávamos entrando, de fato, em Setealém. Nossa relutância não seria muito boa neste momento, por isso temos que começar a condizer com o plano deles, mesmo que de maneira falsa; eles não precisavam saber que era tudo uma grande mentira.
  Quando todos os detalhes já tinham sidos acertados, Eve, Mark e eu entramos para casa, e aparentemente Angeline e Jack não desconfiaram de nada, na verdade, nem com os machucados por todo meu corpo eles pareceram se incomodar. Eu apenas um fui tomar um banho para tirar todo sangue seco, me surpreendendo por ter água limpa nesse mundo. E depois desse banho demorado e "renovador", fui capaz de perceber que, o que a mãe de me deu já estava fazendo efeito em todos os cortes espalhados por meu corpo. Angeline ainda complementou, me dando outro copo do mesmo líquido vermelho, alegando que desta maneira o processo de cura seria intensificado. 
  Eve e eu passamos mais algumas horas conversando sobre todos os pontos principais do nosso plano, em especial sobre o que eu gostaria de fazer para trazer meu ex-namorado morto de volta à vida. Eve ainda parecia relutante com esta ideia, talvez porque isso é algo que foge de nossa compreensão e nosso mundo, mas é como Valerie disse, os moradores de Setealém estão constantemente tirando pessoas importantes de nós, e agem como se tudo fosse culpa nossa, então por que não podemos fazer o mesmo? 
  Quando Eve parecia um pouco mais conformada com isso, nós finalmente decidimos dormir, já que o dia seguinte, ou no caso, hoje, seria longo e intenso. E depois de tudo que passamos, principalmente eu, um bom descanso talvez ajudasse, nem que fosse minimamente.
  – Você está pronta? – Eve pergunta, parando de pé ao lado da cama de nosso atual quarto.
  – Sim. – solto todo ar preso em meus pulmões, tomando coragem para tudo que nos aguardava.
  Me coloco de pé, passando rapidamente a mão sobre o "novo" uniforme que Angeline me deu, enquanto checo meu corpo para ter certeza que todos os machucados do dia anterior haviam sumido.
  – Eu acabei de falar com o Mark e ele sugeriu que fossemos para escola antes de irmos atrás da velha, ele falou que assim ninguém desconfiaria de nós. – Eve explica, levando uma de suas mãos até sua cintura sobre o tecido velho e rasgado de seu uniforme encardido.
  – Tudo bem. Eu só espero que consiga sobreviver a mais um dia naquele lugar. – suspiro rapidamente, sentindo Eve repousar sua mão sobre meu ombro.
  – Vai dar tudo certo. – ela me olha confiante. – Agora temos um plano, e sabemos exatamente o que fazer, então não se preocupe, Mae, logo nós iremos embora desse lugar. – ela sorri sem mostrar seus dentes.
  – Ok, então é melhor irmos agora. Valerie já deve estar chegando.
  Eve assente, antes de começar a me guiar até a porta do quarto. Damos de cara com o pequeno corredor, pelo qual passamos até chegar na destruída sala onde Angeline, Jack e Mark estavam.
  – Tenha um bom dia na escola, querido. – Angeline sorri abertamente para o pequeno garoto perto dela, e Jack faz o mesmo. Já Mark apenas assente para ambos, antes de nos dar um rápido olhar e seguir para fora da sala.
  – Vocês não vão com ele? – Jack pergunta ao notar nossa presença.
  – Hoje não. Estamos esperando dois amigos. – Eve responde, tentando soar o mais normal possível.
  – Isso é ótimo. – Angeline volta a sorrir. – Vocês estão fazendo amigos aqui, isso significa que logo serão como nós. – ela apoia suas mãos sobre os ombros de Jack, olhando para o mesmo.
  – Nós estamos criando muito bem nossas filhas. – ele retribui o sorriso para a mulher, e não posso me deixar de sentir incomodada. Eu nunca vou me acostumar com isso, o sorriso deles não parece nada genuíno, e ainda é estranho e sombrio.
  Eve e eu apenas ficamos em silêncio, enquanto forço um sorriso em meu rosto tentando não estragar nosso plano. E por sorte, o barulho de batidas na porta de entrada interrompe esse momento desconfortável.
  – Acho que eles chegaram. Estamos indo. – Eve logo quebra o silêncio, se virando para ir sair da sala.
  – Mae, pode vir aqui por um segundo? – Angeline pergunta assim que me viro para acompanhar Eve.
  Minha irmã para de andar e olha disfarçadamente preocupada, eu a dou um leve aceno de cabeça e sigo para perto de Angeline.
  – Sim? – tento soar o mais calma que consigo.
  Angeline se afasta um pouco de Jack, e se inclina em minha direção.
  – Eu quero que você não se preocupe com . – ela leva uma de suas mãos até meu rosto, passando os dedos pela lateral. – Quando você se tornar uma de nós, vai agradecer por estar com ele, querida. – ela sorri outra vez.
  Sinto uma enorme vontade de rir por puro nervosismo, já que estar com é como o inferno, não apenas porque ele já me machucou, mas porque se parece com quem mais eu quero reencontrar. 
  – Tudo bem. – forço um sorriso em meu rosto, antes de me afastar dela e ir atrás de Eve.
  – Tenha um bom dia, querida. – a voz da mulher que deixei para trás é a última coisa que escuto antes de caminhar até a porta de entrada, encontrando Valerie e junto com Eve, me esperando do lado de fora.

***

  Durante nosso trajeto até a escola, contamos para ambos o que Mark sugeriu. Valerie achou a ideia do garoto inteligente, já que não deveríamos gerar desconfianças, e ainda completou dizendo que seria bom para que pudéssemos resolver alguns últimos detalhes, ganhando, assim, mais tempo. Ela relevou que escondia algumas armas de defesa pessoal em um lugar da escola para que sua família de Setealém não desconfiasse de suas intensões, e como ela passa grande parte do dia neste lugar infestado de criaturas desse mundo, ela sempre precisara se defender. Mas para que não levantássemos suspeitas, Valerie sugeriu que nos separássemos em duplas, enquanto duas pessoas iriam para as salas de aula, a outra dupla iria checar as armas e separar o que usaríamos. Devido aos últimos ocorridos, Eve pediu que eu fosse para a sala de aula com , enquanto ela iria com Valerie atrás das armas escondidas.
  Decidindo não me opor à minha irmã, sabendo que ela está apenas preocupada comigo, sigo para das dessas salas de aula junto de .
  – Que tipo de coisas será que eles vão nos ensinar aqui? – pergunto para o garoto ao meu lado, me aproximando dele quando chegamos na sala de aula lotada por criaturas com Angeline e Jack, que direcionam todos os seus olhares para nós.
  – Eu não sei, talvez como ter esses dentes amarelos e olhos fundos. – tenta descontrair, me fazendo soltar uma fraca risada.
  Ainda tendo o olhar de quase todos sobre nós, caminhamos para duas carteiras vagas ao fundo da sala do lado esquerdo da parede. Nós acabamos sobre as cadeiras rachadas que davam a impressão de que iriam se partir a qualquer momento. Tudo isso me traz uma sensação estranha. Já faz anos desde que eu não entro em um sala de aula, e para piorar essa nostalgia sombria, essa sala é totalmente destruída, com rachaduras espalhadas pelas paredes, carteiras sujas e um quadro negro totalmente riscado bem ao meio. Estar aqui também me traz memórias do dia em que quase perdi para esse mundo, e por este motivo tenho certeza que ele deve se sentir tão apreensivo quanto eu, apenas está tentando se manter calmo.
  Todos os alunos dentro dessa pequena sala nos encaravam por entre rabo de olho, enquanto cochichavam coisas inaudíveis, ora rindo, ora nos olhando seriamente. Tento ignorar os olhares pesantes, voltando minha atenção de volta a sala, notando, apenas agora, sobre a mesa que eu julgava ser do suposto professor, uma lona preta de plástico cobrindo algo que estava posto sobre ela, e pelo formato parecia ser algo grande que eu não conseguia identificar ao certo o que era.
  – O que será aquilo? – pergunta, notando a lona também.
  – Não sei. – dou de ombros, soltando um suspiro em seguida. – Eu só espero que isso não demore, eu quero ir logo atrás daquela mulher. – confesso.
  – Calma, Mae. Não vamos apressar as coisas, nós iremos atrás dela. – diz calmamente.
  – Certo. – digo, mais para mim mesmo do que para ele.
  Os alunos se agitam quando a imagem de um homem extremamente alto e de aparência mais velha cruza a porta de entrada da sala.
  – Bom dia, meus queridos alunos. Estão prontos para uma aula divertida hoje? – o homem sorri abertamente, parando atrás da mesa de madeira, enquanto aponta para a lona preta abaixo de si.
  Os alunos soltam alguns murmurinhos, à medida que vão tomando seus assentos pela pequena sala. Era tão estranho me referir a eles dessa maneira, já que a maioria aparentava ser da minha idade, e estão aqui provavelmente apenas para ajudar na "transição" dos humanos.
  – Eh... Olha só o que temos aqui. – o homem alto direciona seu olhar para o fundo da sala, encarando de mim para  – Vocês devem ser os novos humanos. Eu estive esperando por vocês durante dois dias. – ele sorri – Qual o nome de vocês?
  Troco um rápido olhar com sem saber o que fazer, e ele discretamente leva sua mão até a minha, dando uma leve apertada como se dissesse que está tudo bem.
  – . – o garoto responde, e depois aponta em minha direção – E Mae. – e ao falar meu nome, posso ver grande parte dos alunos da sala voltarem a cochichar. 
  – Interessante... – o professor sorri outra vez – Sejam bem-vindos os dois. Espero que aproveitem a aula de hoje. – ele junta as mãos parecendo animado. – E sem mais enrolações, vamos começar a aula. – o professor separa suas mãos e as leva sobre a lona preta. – e Mae, vocês já sabem o motivo que os trás para essa escola especial? – ele apoia o peso de seu corpo nas mãos sobre a lona. 
  – Sim. – responde por nós dois.
  – Isso é ótimo. – ele sorri de novo – Então agora deixe-me explicar outra coisa para vocês. – ele se afasta suas mãos do meio da lona, levando-as até a ponta para puxá-la e finalmente relevar o conteúdo oculto.
  Meus olhos se arregalam ao encarar o corpo desacordado sobre a mesa de madeira, preso e amordaçado por algumas correntes enferrujadas. Era um garoto com vários machucados visíveis por todo seu corpo. Sua pele quase tão pálida quanto as dos alunos, brilhava devido ao suor que emanava. E mesmo desacordado, a expressão em seu rosto parecia sofrida. 
  – Este aqui é Joshe, e assim como vocês, ele também já foi um humano. – o professor se aproxima do garoto, parando perto de seu rosto desacordado – Ele também não é um morador de Setealém, ainda está em transição, mas está quase lá. – o homem de cabelos esbranquiçados toca a testa do garoto, parecendo checar sua temperatura. – Infelizmente, a família que adotou ele acabou morrendo, e não pudemos mandá-lo de volta ao mundo humano, porque ele não era mais um humano... mas também não é um de nós, então o que fazer? – o professor nos encara por longos segundos, tão profundamente que tenho que desviar. – É por isso Joshe se tornou parte dessa escola; enquanto ele não completar sua transição, servirá de cobaia para que eu possa dar todas as minhas aulas, explicando para humanos como vocês, como vai funcionar suas transições. – mesmo não o encarando, sinto o pesar de suas palavras, que eram tão incômodas quanto seu olhar.
  Ainda chocada com o que escutei, seguro nas bordas da mesa suja, querendo me apoiar em algo, como se eu pudesse cair a qualquer momento apenas por escutar essas palavras. Temente e receosa, levanto meu olhar arrastadamente de volta a mesa onde Joshe estava.
  – Quando um humano se machuca aqui em Setealém, ele precisa ingerir alimentos desse mundo para que não morra. – o professor começa a vasculhar por algo em uma das gavetas acopladas na parte de trás de mesa, logo tornando visível um pequeno canivete – Mas digamos que não é bem um alimento. – ele meche as sobrancelhas rapidamente, antes de aproximar o canivete de um dos pulsos do garoto desacordado.
  Aperto fortemente as bordas da carteira suja, quando o vejo fazer um grande corte sobre a pele pálida de Joshe, que aos poucos é manchada pelo vermelho de seu sangue. O garoto reage no mesmo instante, abrindo os olhos de forma exasperada, enquanto tenta falar alguma coisa, mas é impedido pela mordaça enferrujada em sua boca. Seus olhos assustados correm até o homem alto parado ao seu lado, e no momento em que ele parece reconhecer o professor, seu semblante se entristece, como se já estivesse conformado com a situação em que se encontra.
  – Vejam, Joshe tem um grande corte em seu pulso agora e, se não formos rápido, ele pode morrer. – o professor afasta o canivete do garoto, voltando a vasculhar por mais alguma coisa dentro das gavetas, retirando, agora, um frasco com o familiar líquido vermelho e viscoso que Angeline e a mãe de já me deram. Em seguida ele afasta a mordaça enferrujada da boca de Joshe, deixando a amostra todo a sujeira que o ferrugem causou em sua pele. – Vamos, Joshe, beba tudo e fique bem logo. – o professor começa a despejar o líquido vermelho pela boca do garoto, o fazendo engasgar por várias vezes.
  Fico tão perplexa com a cena à minha frente que nem consigo desviar minha atenção de para saber como ele está. Mas julgando pelo seu silêncio, deduzo que ele deve estar tão atônico quanto eu.
  – Pronto. Acabamos de salvar nosso querido Joshe. – o professor afasta o frasco de perto de Joshe, que respira ofegante. – Alguém sabe me dizer o que tinha nesse frasco? Que além de salvar a vida de Joshe, também vai acelerar sua transição. – o de cabelos esbranquiçados, passa seus olhos por toda sala, parando sobre uma garota de cabelos curtos que levantou sua mão – Melissa. – ela aponta para ela.
  – Sangue. – ela responde rápida e objetiva, e todos os pelos do meu corpo se arrepiarem no mesmo instante.
  – C-como? – sem que eu pudesse controlar, as palavras saem de minha boca, atraindo a atenção de todos sobre mim.
  – Sangue, Mae. Para que um humano sobreviva nesse mundo, ele precisa se alimentar com o sangue de algum morador de Setealeam durante todo o seu período de transição. – o professor responde, me fazendo apertar com mais força as bordas da mesa, sentindo uma pequena ardência já.
  Minha respiração começar a ficar instável à medida que seu sinto todo meu estômago se revirar e uma bile ameaçar subir por minha garganta. Eu nunca me senti tão suja e nojenta como agora, e mesmo que eu não soubesse o que estavam me dando, não posso deixar que todas as minhas crenças vividas até agora desabassem por entre os meus dedos.
  Eu não conseguia mais passar um segundo sequer nesse sala com todos eles, escutando e vendo essas coisas deturpadas e perturbadoras. Eu não conseguiria escutar que estava fazendo parte de todas essas coisas erradas, mesmo que indiretamente. E apenas seguindo os meus instintos, me levanto da cadeira tão desesperadamente que acabo a derrubando no chão, antes de correr em direção a saída daquela sala.
  Olho exasperadamente para o corredor, corro por ele, não dando tempo para que algum deles viesse atrás de mim. Com a bile queimando minha garganta, vou até o mesmo jardim em que fiquei com Eve na primeira vez que estivesse nessa escola, me jogando sobre a grama alta. Apoio minhas mãos sobre o chão, enquanto minha respiração está totalmente irregular. Fico esperando a bile sair por minha boca, mas nada acontece, apenas aquela constante sensação ruim que me agoniava a cada segundo.
  – Mae! – escuto a voz de me gritar, mas não me viro para encara-lo. Continuo parada sobre o chão, torcendo para que eu conseguisse colocar tudo aquilo para fora – Mae, você está bem? – ele pergunta preocupadamente, se agachando ao meu lado.
  Suas palavras são o suficiente para desencadear as minhas lágrimas, que começavam a pingar de meus olhos diretamente para a grama alta.
  – Eu deveria ser forte... nós começamos um plano agora... – começo a falar em meio ao choro – ... mas eles continuam fazendo essas coisas com a gente... sangue... sangue, . Eles nos deram sangue. Você viu o que eles estavam fazendo com aquele garoto? – aperto a grama entre meus dedos, quase as arrancando do solo seco.
  – Mae... eu sei. – coloca uma de suas mãos sobre as minhas costas – Angeline também me deu isso, lembra? – sua voz é baixa e arrastada. Ele estava tentando ser imparcial para não me deixar pior.
  Aperto a grama em minhas mãos por mais alguns segundos antes de me afastar e me sentar sobre o chão. rapidamente se dispõe a secar as minhas lágrimas de forma cuidadosa, e não consigo resistir ao abraça-lo, buscando por um pouco de consolo. Ele repousa uma de suas mãos em minhas costas, enquanto a outra afaga meu cabelo.
  – Tudo vai ficar bem. Nós vamos ficar bem. – ele começa a retirar as mesmas palavras como se fosse um mantra que deveria entrar em minha mente.
  Aos poucos a bile e o choro começam a desaparecer, me fazendo sair do abraço de e agradecê-lo por me ajudar com o meu surto.
  – Eu não deveria fazer esse tipo de coisa, isso pode estragar todo nosso plano. – fungo, secando os últimos vestígios de lágrimas por meu rosto.
  – Não se preocupe com isso, você tem todo direito de se sentir assim. – ele segura minhas mãos, fazendo um pequeno carinho com os polegares. 
  – Obrigada. – me forço a sorrir para , mesmo que fosse quase imperceptível. Fico encarando seu semblante acolhedor por mais alguns segundos, até reparar na figura alta parada a poucos metros atrás dele.
   nos encarava com uma expressão totalmente séria, enquanto suas mãos ficavam juntas ao próprio corpo fechadas em formato de punhos.
  – Por que você fugiu? – sua voz sai completamente carregada, fazendo me olhar assustado antes de encarar sobre seus ombros o vendo.
  – Mae, é melhor irmos embora. – se vira outra vez para mim, sussurrando para que apenas eu escute.
  – Vá chamar as meninas. – digo, soltando suas mãos.
  – E você vai ficar aqui com ele? – me olha exasperado.
  – Ele não vai nos deixar ir embora, . Então vá chamar as meninas depressa. – por mais que eu tremesse por dentro, tento convencê-lo.
  – Eu não vou demorar. – totalmente relutante se levanta do chão, e sai correndo na direção contrária atrás de Valerie e Eve.
  Me mantenho sentada no mesmo lugar, sentindo os olhos de me queimarem à medida que ele se aproxima em passos pesados. 
  – Eu estou falando com você. – sua voz é totalmente irritada. Sua figura alta se agacha à minha frente, me direcionando um olhar totalmente carregado.
  – E você queria que eu ficasse lá? – ainda me sentindo afetada sobre o que me aconteceu, tomo coragem para falar – Você já me machucou antes, se lembra? Eu não iria ficar presa em uma casa com você. – meus olhos correm desesperadamente por cara centímetro de seu rosto, fazendo tudo ser tornar pior ao ter a sensação de estar discutindo com meu ex-namorado. Ficar perto de é totalmente destrutivo para mim.
  – Você não tem noção do quanto me deixou irritado. – ele franze suas sobrancelhas de forma raivosa – Se eu te levar em algum lugar, você fica e não tenta fugir. É o mínimo que você tem que fazer depois de toda merda de sua raça.
  Mesmo que eu estivesse visivelmente abalada com tudo que vi, suas palavras tem o poder de despertar a irritação em meu corpo. Eu já estava farta de toda essa situação, estou à beira do precipício pronta para pular.
  – Chega, ! – falo mais alto do que planejei, mas não sou capaz de me conter nesse momento – Chega de agir como se você e todos desse lugar fossem os únicos que sofrem perdas! Nós também tivemos pessoas importantes tiradas de nós... eu também tive! – minha respiração voltar a se descompensar outra vez. – Eu não sei como você lida com isso, mas eu odeio ficar perto de você. – seus olhos verdes se arregalam minimamente com as minhas palavras – Você tem noção do quão difícil é ficar com você, quando se parece exatamente em cada pequeno detalhe com ele? – sinto as lágrimas retornarem aos meus olhos, mas me contenho não querendo chorar – Eu me sinto como se estivesse revivendo tudo de novo com ele, mas em uma versão que só me machuca por fora e por dentro. – outra vez corro meus olhos por todos os detalhes de seu rosto, sentindo meu coração apertar de dor e saudades.
   fica em silêncio, enquanto sua expressão de raiva vai sumindo, dando lugar a uma de total surpresa e choque. E tomada por toda essa situação, não consigo me conter ao levar minha mão até seu rosto, passando a ponta dos dedos por sua pele pálida, sentindo cada detalhe que eu conhecia tão bem.
  – Por que você tem que ser tão parecido com ele? – sussurro apenas entre nós dois, antes de me inclinar para frente e juntar minha boca a sua, sentindo a pele gelada de seus lábios.
  Ele parece entrar em um choque ainda maior, se mantendo imóvel por alguns segundos, antes de corresponder ao meu beijo desesperado pelo passado que nos foi tirado.
  Ao contrário do que pensei ou imaginei, sua boca não tem um gosto estranho como a sua aparência sombria, e apesar de ser fisicamente parecido ao meu ex-namorado, seu beijo não era nem de perto igual ao dele. O de meu passado sempre foi alguém cuidadoso e gentil comigo, e já este que estava levando sua mão até a minha cintura, enquanto me puxava para si, era totalmente denso e nublado.
  Nossas línguas se encontram em um ato desesperado parecendo se encontrarem depois de longos anos de saudades, se encaixando de forma perfeita e harmoniosa fazendo meu coração acelerar em meu peito.
  Enquanto repouso uma de minhas mãos sobre a lateral de seu rosto, ele aperta minha cintura com seus dedos, como se quisesse sentir que eu realmente estava ali. me puxava constantemente para perto de si, mas devido a posição que estávamos sobre o chão, não conseguíamos ter muita proximidade. 
  O meu corpo vibrava a cada movimento sincronizado de nossos lábios, enquanto sinto o piercing preso em sua boca, fazendo uma ansiedade sem tamanho tomar conta da boca de meu estômago. Eu estava nervosa, me sentia extremamente nervosa estando à mercê de seus toques e beijos outra vez, era como se eu fosse puxada de volta ao passado, sentindo o gosto de beijos mais escuros.
  A mão de escorrega de minha cintura, indo para o chão e encontrando os meus dedos sobre a grama alta. Ele entrelaça nossas mãos, me fazendo apertála de leve, querendo senti-lo conectado a mim neste momento.
  – MAE!!! – a voz alta de Eve grita ao longe, fazendo com que eu me afaste de , encarando seu rosto como se fosse a primeira vez.
  Seus olhos verdes me fitavam de maneira intensa, e pela primeira vez, calma. Os seus lábios pálidos estavam levemente mais avermelhados e suas pupilas dilatadas. não disse nada, apenas ficou parado próximo ao meu rosto esperando que eu quebrasse o silêncio, talvez. E é exatamente nesse momento que o peso da realidade me atinge dolorosamente.
  – Você não é ele. – sussurro, afastando lentamente minha mão da sua, me levantando e indo para longe dele, assim como eu deveria ter feito desde o primeiro momento em que o vi.

Capítulo 10

  Vou em direção a Eve e , que vinham afobados pelo corredor, e agradeço mentalmente por eles não terem visto nada.
  – Você está bem? Ele não fez nada com você, fez? – Eve começa a me examinar da cabeça aos pés exasperadamente.
  – Eu estou bem, ele não fez nada. – suspiro, tentada a dizer que quem fez alguma coisa aqui foi eu.
  – Que alívio. – solta o ar pesadamente.
  – Onde está Valerie? – tento mudar assunto ao notara ausência dela.
  – Quando foi atrás de nós pra contar que você estava com o , ela foi atrás do Mark para gente poder ir logo, já que ficar aqui também é perigoso. – Eve suspira.
  – Mas o que ele queria, Mae? – se aproxima de mim com um olhar culpado.
  – Só estava irritado porque eu fugi ontem. E você não precisa me olhar dessa forma, eu estou bem, nada aconteceu. – tento confortá-lo.
  – Só vamos embora daqui logo, eu já tive emoções demais nesse lugar por hoje. – Eve solta outro suspiro, visivelmente cansada de tudo isso. E sem questionar, e eu apenas a seguimos.
  Não me permito olhar para trás durante nosso caminho, e fico feliz por não ter vindo atrás de mim, já que isso foi o ápice do meu desespero. Ele não é meu ex-namorado e eu preciso parar de enxerga-lo em como se fosse.
  Nós passamos pelos corredores vazios e as salas lotadas, mas ninguém parecia se importar de fato se estávamos matando aula ou não, o que era um ponto positivo para nós. Acabamos por nos encontrar com Valerie do lado de fora da escola, e Mark já estava ao seu encalce, ajeitando sua mochila sobre os ombros.
  – Ei, você está bem? – a de cabelos loiros escuros pergunta assim que nos juntamos a ela.
  – Sim. – assinto.
  – Hm... Bem... me contou sobre a aula de hoje... – ela começa meio sem jeito – Eu deveria ter falado antes sobre isso, mas se eu contasse talvez você nunca tomasse o líquido vermelho, e assim poderia acabar morrendo aqui. – ela me olha com pesar – Acredite, eu também não gosto disso, mas é nossa única forma de sobreviver nesse lugar. – ela passa a mão pelo braço de maneira nervosa.
  – Mas aquele homem disse que tomar sangue ajuda na transição, então não é muito perigoso? – interrompe.
  – Perigoso é, mas você prefere morrer? – Valerie rebate.
  – Vocês só precisam tomar em casos extremos, assim não vai afetar tanto. – para nossa surpresa, Mark interrompe, me fazendo sentir como se falasse com um adulto – Se não querem morrer, então tomem quando realmente precisarem. – o garotinho dá de ombros, nos encarando apaticamente – Vamos agora? – ele aponta para a rua deserta, antes de se virando e começar a caminhar para longe da escola.
  Nós quatro trocamos um olhar compartilhado em puro espanto, antes de seguir o garoto. De longe, ele era a criatura mais estranha que conheci nesse lugar.

***

  Já fazia algum tempo que havíamos adentrado a floresta, e todo o percurso que estávamos fazendo era silenciosamente guiado por Mark. E imersa na ausência de qualquer tipo de conversa, foi inevitável não repassar a cena de meu beijo com várias e várias vezes dentro de minha cabeça. Eu até mesmo conseguia sentir o seu toque alguma vezes, o que era bastante desconfortável, diga-se de passagem. Era cada vez mais difícil não me sentir tocada quando estou perto dele, mas no fundo eu sei que estou apenas me iludindo em uma mentira. Ele não é o que fez parte do meu passado, então por que meu coração não podia perceber isso também?
  Continuo andando, imergida em decisões, até sentir meu corpo trombar com o de , que havia parado subitamente.
  – O que foi? – coloco minhas mãos sobre seus ombros, e me inclino para o lado, procurando por seu rosto. apenas aponta para frente, onde a pouco metrôs de nós havia um pequeno cervo parado.
  Voltando ao mundo real, olho em volta vendo que todos haviam de parado de andar por conta do animal que nos encarava com curiosidade.
  – Estamos quase chegando, vamos! – Mark volta a andar, passando pelo animal que o observa atentamente.
  Eve e Valerie fazem o mesmo, e assim como foi com Mark, o animal também as acompanha com o olhar.
  – Vamos, . – empurro de leve suas costas, o fazendo andar. Ele passa receosamente ao lado do animal, que agora nos encarava.
  – Esse cervo é estranho. – resmunga baixo.
  – Ele é só um animal da floresta, . Não deve estar acostumado com pessoas. – tento acalmá–lo.
  Nós continuamos nosso trajeto até que Mark nos mostrasse uma enorme caverna no meio da floresta, alegando que depois de fazer algumas perguntas na escola, alguns de seus colegas de classe disseram que era nesse lugar que a velha ficava.
  A cada passo que dávamos em direção à caverna o ar ficava mais gelado e denso, e essa mudança de drástica de temperatura vinha de dentro da caverna. Mas deve ser algo normal, afinal, caverna costumam ser frias.
  Parando em frente à construção de pedra, ela parecia ser dez vezes maior e intimidante. E apesar do seu interior parecer escuro, uma fraca luminosidade transcendia a escuridão.
  – Acho que é melhor dois entrarem com o Mark, enquanto os outros dois ficam aqui do lado de fora vigiando. – Valerie sugere, e todos concordam.
  – Vão vocês duas então. – aponta para Eve e eu.
  – Certo, então vamos. Não iremos demorar. – aviso.
  – Qualquer coisa é só gritar. – Valerie diz, se escorando ao lado da caverna.
  Nós assentimos, antes de finalmente começarmos a caminhar caverna adentro. Mark, apesar de ser uma criança, sempre estava tomando a frente, mostrando não temer nada, era até curioso o fato de um garoto de doze anos se portar desta forma.
  Nós seguimos em linha reta, virando em alguma direção sempre que necessário, a caverna não tinha nenhuma bifurcação, então não foi tão difícil achar um caminho.
  Devido a fraca iluminação dentro da caverna pude perceber os detalhes das paredes em pedras pontiagudas e brutas, todas em cor cinza. Alguns morcegos estavam pendurados pelo teto, pareciam dormir, e por isso passamos tentando fazer o mínimo de barulho possível. No chão, muito insetos se arrastavam em várias direções. O ar se mantinha denso e gelado, me obrigando a abraçar o próprio corpo para me aquecer. De longe essa caverna era um lugar confortável de se estar.
  – Acho que chegamos. – Eve aponta para frente, em direção a uma grande abertura que emanava uma luz forte.
  Nos aproximamos de uma vez, entrando direto em um espaço aberto ainda coberto pela caverna. Mais morcegos pendiam no teto, e muitas velas estavam espalhadas pelas pedras pontiagudas, sendo as responsáveis pela iluminação. Alguns ossos e crânios de animais decoravam a parede ao fundo da caverna, assim como as escritas em vermelho com palavras das quais eu não compreendia.
  – O que é isso? – sussurro para mim mesma, totalmente espantada com as coisas que estava vendo. Me aproximo de Eve que estava tão surpresa quanto eu, enquanto Mark se mantinha o mesmo.
  – Eu não esperava receber tantas visitas hoje. – uma voz arrastada e falha ecoa por todos os cantos da caverna, fazendo com que alguns dos morcegos acordassem.
  Olho assustada em todas as direções, vendo uma sombra surgir detrás de uma grande rocha fincada ao fundo da caverna. A sombra parecia ser uma mulher de estatura baixa, seu corpo também parecia ser um pouco mais cheio.
  – Não tenha medo, Mae. Eu já sabia que em algum momento você viria até mim. Sophie e também me procuraram hoje, eles falaram muito sobre você. – ainda sem se revelar, a velha diz, fazendo com que todos os pelos de meu corpo se arrepiassem em pura tensão.
  Ela é ainda mais estranha do que todos os moradores desse lugar.
  Eve segura em meu braço, tentando me passar um pouco de confiança, e Mark apenas me observa esperando por minha próxima reação.
  – Mas me diga, por qual dos motivos você me procurou hoje? – sua sombra se movimenta, mas ela ainda fica escondida atrás da rocha.
  Eve me olha, dando um leve aceno de cabeça para que eu fale.
  Respiro fundo, sentindo a ansiedade e medo me corroerem.
  – Sophie já me contou o que ela planeja fazer... – aperto as mãos, sentindo-as suarem, enquanto corro meus olhos por partes do chão – ... E–eu também posso fazer isso? Se eu te der uma alma, você pode trazer alguém importante para mim? – pergunto exasperadamente, me aproximando de solavanco da sombra.
  – Pare! – sua voz engrossa e soa alta – Não de nem mais um passo, fique parada. Não está na hora de nos conhecermos ainda. – suas palavras fazem meu corpo todo congelar, e acabo parando na posição em que fiquei, com o pé direito na frente e o esquerdo atrás.
  Olho sobre os ombros, vendo minha irmã fazer um sinal para que eu me acalme e continue falando.
  – Você pode fazer isso por mim? – pergunto outra vez, recebendo um longo silêncio em resposta.
  O seu silêncio estava me consumindo e me deixando cada vez mais nervosa. Será que por ser humana eu não posso pedir-lhe isso? Talvez eu não devesse ter vindo até esse lugar.
  – Eu faço. – me pegando de surpresa, ela quebra qualquer ansiedade palpável no ar – Traga-me uma alma, e eu te darei uma vida. Se isso é tudo, você já pode ir. – sua sombra mergulha dentro da rocha, deixando qualquer vestígio sumir entre a iluminação das velas, apenas para que, no lugar, um objeto fosse lançado em nossa direção.
  Era uma faca. Ela havia caído perto de Mark, que não demora ao pegá-la para si, e guardá-la em sua mochila de escola. Ficamos em silêncio por um tempo, todos curioso a respeito do gesto da velha, mas ela não parecia disposta a nos contar nada.
  Expiro fortemente me sentindo ainda mais nervosa. Eu estava mesmo prestes a fazer isso, entregaria para ter o meu ex-namorado de volta, isso é algo bom, eu o quero de volta, então por que escutar as palavras dessa velha não me trazem nenhuma sensação boa?
  – Você quer isso, não quer? – me espanto com a voz de Eve, ela estava parada atrás de mim, eu nem sequer a senti se aproximar.
  Me viro de frente para Eve, apenas assentindo em resposta.
  – Então o que há com essa expressão? Você está com medo? Se for isso não se preocupe, todos nós estamos com você. – minha irmã sorri fracamente, e me forço a fazer o mesmo para que ela não se preocupe mais ainda.
  – Vamos. – falo baixo, incentivando-a a andar na direção contrária. Tendo Mark ao nosso encalce. Ele foi alguém tão quieto que mal se notava sua presença nessa caverna.
  – Lembre-se, Mae! Eu te darei uma vida, mas este não será o único fantasma do passado que você irá reencontrar. – a voz da velha ecoa uma última vez pela caverna quando eu estava me afastando de lá, e outra vez meu corpo paralisa no lugar.
  Quero questioná-la sobre suas palavras, mas sei que muito provável ela não me responderá. Eve percebendo o meu estado, apenas me puxa pelo braço na tentativa de me tirar dali o mais rápido possível.
  Quase sem perceber, totalmente imersa em meus sentimentos, sou levada para fora da caverna, mal me dando conta dos passos que andei para chegar até o lado de fora.
  – E ai, como foi? – Valerie pergunta animada ao nos ver – O que foi? Por que está com essa cara? Aconteceu alguma coisa? – ela franze o cenho em minha direção, e depois olha para Eve, buscando por uma resposta.
  – Deu tudo certo, ela só está um pouco preocupada. – Eve responde por mim, fazendo Valerie voltar a me olhar.
  – Não se preocupe, Mae. Vai dar tudo certo. – também se aproxima, me lançando um sorriso reconfortante.
  – Sim. – Valerie reforça – Tudo vai dar certo. Agora vamos voltar antes que desconfiem. – ela faz um gesto de cabeça, e todos concordam.

***

  Outra vez voltamos a caminhar pelas árvores da floresta, e como entrei, agora estou ainda mais confusa em relação a tudo que irá me acontecer daqui para frente. Por que eu simplesmente não posso me sentir aliviada por ter quem amo de volta? Por que eu sinto como se tudo dentro de mim se corroesse desta forma deteriorada?
  Todo meu interior se esmaga em ansiedade fazendo meu sangue ferver e meu coração acelerar, estava com uma sensação ruim que me cobria da cabeça aos pés. Eu estava tão tomada que não pude evitar de tropeçar em um pequeno ganho pelo caminho, que quase me levou para o chão.
  – Tome cuidado, Mae. – me segura, mesmo que eu consiga manter meu equilíbrio – Você está tão distante, precisa prestar mais atenção por ande pisa. – ele me olha preocupado.
  – Sim, eu só... – tento falar, mas a ansiedade que me dominava, trava minhas palavras, e eu nem sequer consigo terminar minha fala – Eu vou prestar mais atenção. – solto um longo suspiro. mantém seus olhos em mim por mais alguns segundos, antes de me soltar e voltar a andar. 
  A sensação ruim continua fluindo por todo meu corpo, fazendo a boca de meu estômago se revirar, era ainda mais forte do que quando vi o que fizeram com Joshe na escola. Eu estou prestes a pirar se isso não fosse embora logo.
  Deixo que todos continuem andando e me escoro em uma árvore, respirando fundo algumas vezes, enquanto fecho meus olhos. Aos poucos as batidas de meu coração vão se acalmando, mas a sensação de estar sendo observada é o novo alvo a me atacar. Abro os meus olhos de uma vez, olhando tudo ao meu redor, e sentindo toda minha ansiedade se multiplicar quando vejo parado a alguns metrôs de onde eu estava. Ele estava entre as árvores da direção contrária com seus sombrios olhos verdes direcionados a mim.
  Me viro para o outro lado, me cerificando que ninguém o viu, e proveito para acelerar meus passos até eles.
  – Ei! – chamo, e quando eles se viram, passo correndo para frente, para que eles não olhem para trás – Vocês podem ir na frente, eu queria voltar na caverna e conversar mais um pouco com a velha. – tento estabilizar meu tom de voz.
  – Eu vou com você. – Eve se prontifica, fazendo minhas mãos suarem.
  – Eu queria fazer isso sozinha, vocês podem ir, eu vou ficar bem. – insisto, vendo Eve me olhar desconfiada.
  – Isso é perigoso, Mae. Por que quer isso agora? – Eve se aproxima.
  – Isso é algo que eu preciso fazer, Eve. Estamos falando do meu , eu queria resolver as coisas. – continuo insistindo, e procuro Valerie com o olhar, pedindo ajuda. Ela franze o cenho em minha direção, mas acaba soltando um suspiro derrotado.
  – Eve, não podemos impedi-la, isso é algo que ela precisa resolver sozinha. Vamos dar um voto de confiança. – Valerie se aproxima, levando uma mão sobre o ombro de Eve, que a olha descrente.
  – Eu confio nela, não confio é nas coisas desse mundo. – Eve rebate.
  – Eve... – Valerie solta outro suspiro – Você deve imaginar que não está sendo fácil para sua irmã fazer isso. Ela precisa entender os próprios sentimentos, deixe que ela passe por isso sozinha. E de qualquer forma, nós sempre conseguimos achar ela. Nenhum deles irá fazer nada drástico contra ela até o dia marcado.
  Eve fica me encarando por longos segundos, enquanto todos a fitam com curiosidade sobre o que ela iria falar.
  – Por favor, não demora. Conversa com ela e volte para casa o mais rápido que puder. – a expressão séria de Eve dá lugar a uma de preocupação.
  – Eu vou fazer isso, Eve. Obrigada por entender. – seguro sua mão por um instante, dando um leve aperto, antes de passar por ela e seguir na direção pela qual vim.
  Caminho lentamente até escutar os passos deles outra vez. Olho sobre os ombros e fico esperando até que a imagem dos quatro sumam de vista. Quando qualquer vestígio é apagado e me vejo sozinha, sinto as batidas do meu coração voltarem a se intensificar. Minhas mãos continuam suando, e meu corpo é apenas ansiedade e sentimentos ruins.
  Lentamente volto a me virar para direção contrária, ainda vendo parado no mesmo lugar, me encarando. A expressão em seu rosto era intensa, e sua postura era intimidante. Ele não dizia nada, e eu não me atrevo a quebrar o silêncio, muito pelo contrário, a única coisa que ele faz é começar a se aproximar de mim, em passos que começam lentos.
  Ainda receosa, começo a me aproximar dele também, sentindo todas as sensações de mais cedo voltarem à tona, todas aquelas que eu mais queria esquecer. As cenas da escola me atingiam como flashes dolorosos, o que só fez com que eu aumentasse a rapidez de meus passos, fazendo me acompanhar. E assim continuamos, até que todo meu corpo se descontrole e corra em sua direção, onde sou recebi por suas mãos e seus lábios que não demoram ao entrar os meus.
   envolve seus braços ao redor do meu tronco, enquanto levo minhas mãos até seu rosto, sentindo todo meu corpo vibrar pela sensação de tê-lo perto de mim. Sua língua invade minha boca, trazendo todo aquele gosto amargo do errado que não sou capaz de controlar.
  Ele começa a me fazer andar para trás, e acabo tropeçando nos próprios pés até sentir todo meu corpo se chocar contra uma grande árvore, de forma totalmente bruta, despertando uma leve ardência em minhas costas. Em seguida, separa nossas bocas e me olha por alguns segundos, deixando todo desejo transbordar através de suas íris verdes.
  Ele precisava disso, e eu também.
   inclina seu rosto em direção ao meu pescoço, distribuindo beijos gelados por toda extensão, me obrigando a fechar os olhos enquanto sinto cada parte do meu corpo se arrepiar. Totalmente desesperada por esse momento, seguro em seu casaco preto e o puxo para baixo, tirando ele de seu corpo. E seguindo meu exemplo, também tira o meu antes de voltar a me beijar outra vez. Nossos lábios eram apressados, e nosso beijo não era nenhum pouco suave, raiva e desejo transcendiam de um para o outro.
  Sem delicadeza nenhuma, leva suas mãos até meu busto, começando a desabotoar minha camisa, me fazendo contrair a barriga quando seus dedos gelados roçam contra minha pele quente. O caminho de seus dedos continua mesmo depois que minha camisa foi internamente aberta, deixando meu sutiã exposto; seus dedos traçam as laterais de meu corpo e param na barra de minha saia, indo para parte de trás de minhas coxas para impulsioná-las para cima, onde enlaço-as em torno de sua cintura. Ao fazer isso, ele pressiona ainda mais meu corpo contra a árvore, me fazendo sentir sua ereção que começava a crescer.
  Os ombros de minha camisa escorregam por meus braços, levando junto as alças de meu sutiã que pararam no meio do caminho, mas o suficiente para fazer com que meu seio direito acabe saindo para fora do sutiã, roçando contra a camisa de . A sensação do tecido em minha pele sensível era irritante, então assim como fez antes, começo a desabotoar sua camisa também, quebrando nosso beijo para apreciar seu trompo definido e exposto, que elevava minha excitação.
   deixa seu olhar cair até meu busto exposto, ele os encarava como se fosse me atacar a qualquer momento, deixando toda sua falta de pressa aparecer, e confirmo isso quando o vejo levar uma até a o cós de sua própria calça, a desabotoando de uma vez, para depois enfiar a mão dentro da própria cueca, colocando seu membro para fora, fazendo-me soltar um suspiro ansioso. volta a me encarar, me obrigando a manter contato visual com aqueles sombrios olhos verdes que não me deixam desviar nem por um mísero segundo.
  Outra vez, ele aproxima seu rosto do meu, chegando perto o suficiente para roçar sua boca na minha, mas sem me beijar. Enquanto me segura com uma mão, ele leva a outra até o interior de minha coxa, e o sinto afastar minha calcinha para o lado, com seu membro em mãos. Ele passa seu membro por toda extensão de minha intimidade, me fazendo morder o lábio inferir, enquanto ele observava cada reação que eu tinha. Sinto minha intimidade molhar seu pau, enquanto seu pré-gozo se misturava com a minha excitação. E, sem aviso prévio, ou qualquer preparo para tê-lo, simplesmente posiciona seu membro em minha entrada, me penetrando de uma vez só, arrancando um grito de prazer e dor de minha garganta.
  Outra vez ele roça seus lábios contra o meu, enquanto mantenho minha boca entreaberta, começando a soltar vários gemidos de excitação. passa a ponta de sua língua sobre meu lábio inferior antes de me beijar, abafando os meus gemidos. Suas duas mãos são posicionadas atrás de minhas coxas, apertando minha pele com força, e em resposta levo minhas mãos até seus cabelos, puxando os fios em desespero por mais.
  O ritmo de não era nada calmo, muito pelo contrário, ele era rude e sem pretensão de demonstrar qualquer vestígio de delicadeza, eu nunca fiz isso dessa maneira antes, era surreal.
  Meu tronco descia e subia com rapidez escorado contra a árvore, o que fez com que meu sutiã pendesse para baixo de meus seios, que roçavam freneticamente contra o tronco nu de . Eu queria poder tirar essa saia e nossas camisas, eu queria poder tirar tudo e me entrar por completo para ele.
  Seguindo o ritmo desesperado de suas estocadas, me contorço contra ele, causando a reação de quebra de nosso beijo. retira uma de suas mãos de minha coxa, e apoia ao lado de minha cabeça, na árvore, apenas para poder ir mais fundo para dentro de mim. Ele também enterra sua cabeça na curva de meu pescoço, soltando vários gemidos baixos e roucos perto de minha orelha, fazendo meu corpo todo tremer.
  Minhas mãos caem até seus ombros, onde o puxo para mais perto de mim, agora, observando a floresta a minha frente, enquanto minha boca entreaberta soltava inúmeros gemidos altos. Eu simplesmente não podia acreditar que estava fazendo isso no meio de uma floresta.
  Aperto minhas pernas ao redor de sua cintura quando sinto que estava perto de meu ápice, e parece entender, aumentando, ainda mais, o ritmo de suas penetrações. Meus dedos do pé se contorcem dentro de meus sapatos quando aquela deliciosa sensação preenche cada parte de meu corpo. afasta sua cabeça de meu pescoço, e volta a trazer para perto de meu rosto, me olhando profundamente enquanto se derramava dentro de mim, e a visão era algo assustadoramente excitante.
  Aos poucos ele vai desacelerando seus movimentos, até parar por completo. Nossos troncos subiam e desciam freneticamente, enquanto nossas respirações altas se misturavam, sendo o único barulho presente dentro da floresta silenciosa. E ficamos assim por longos minutos, apenas encarando um ao outro, e aproveitando os resquícios finais desse momento.
  Olho para cada parte de seu rosto, caindo no real e vendo o quão diferente ele era de quem eu estava procurando. Aperto minhas mãos em seus ombros, e o empurro levemente para trás, descendo de seu colo, e começando a arrumar minha roupa e minha situação. me acompanha e faz o mesmo. E quando já estamos devidamente apresentáveis, volta a me fitar, esperando que eu diga alguma coisa.
  – Isso não voltará a acontecer. – sem o encarar e em um tom extremamente baixo, essas são as únicas palavras que saem de minha boca.
  Não espero por uma resposta, apenas me viro para ir embora, mas sou impedida por sua mão que segura meu pulso fortemente para me virar para si.
  – E por que você? Você vai fazer igual fez quando me beijou mais cedo? – sem paciência e totalmente transtornado, as palavras de soam totalmente desesperadas – Em, Mae! Por quê?! Por que não podemos ficar juntos?! – ele quase grita, enquanto aperta meu pulso.
  – Porque eu não sou ela! – não conseguindo conter minhas emoções depois de tudo que fizemos, então deixo que as palavras transbordem para fora de mim – Eu não sou ela... – o aperto em meu pulso se afrouxa, e de forma lenta puxo meu pulso para longe dele – Eu não sou ela, e você não é ele, então por que vamos continuar nos enganando desse jeito, ? – fito diretamente seus olhos, enquanto sinto as lágrimas preencherem os meus.
  A expressão de é de choque, ele finalmente parecia ter caído em realidade.
  – Não é de mim que você gosta. – agora sentido as lágrimas rolarem por todo meu rosto, começo a me afastar de , que dessa vez não me impede.
  Corro para longe dele, querendo ficar o mais distante possível. Ele não me faz bem e eu não faço bem para ele, isso tudo está errado. Hoje eu estava prestes a conseguir alguém importante de volta, e acabei transando com o , qual o meu problema?
  Limpo as lágrimas em meu rosto que pareciam não cessar nunca, enquanto me forço a continuar correndo por entre as árvores, até que eu finalmente encontrasse a saída.

Capítulo 11

  Eu já havia voltado para a cidade, já conseguia enxergar minha casa de onde eu estava e, como de costume, tudo estava deserto. Estou um completo caos, faz apenas alguns minutos desde que consegui parar de chorar, e com certeza meus olhos estão inchados e vermelhos. E o pior de tudo, eu ainda podia sentir todas as sensações de ter comigo, e era horrível, eu só queria esquecer toda essa bagunça que fiz.
  Me arrasto por toda rua e pela calçada, lentamente caminhando até a entrada da minha casa, agradecendo por estar aberta. Tudo do lado de dentro estava escuro e silencioso, parecia que não havia ninguém em casa, e se isso realmente for verdade, eu posso até tentar sorrir agora, a última coisa eu não preciso é de um interrogatório por parte de Eve.
  Sinto gelado o caminho que as lágrimas fizeram por meu rosto, e por isso passo a mão tentando me desvincular de todo esse turbilhão massacrador. Respiro profundamente e fecho a porta atrás de mim, começando a andar pelo chão de madeira, checando cada canto da casa para me certificar de que estava sozinha.
  Escuto o barulho de algo caindo contra o chão, e vinha diretamente da sala, fazendo com que eu desviasse meu trajeto e fosse até o cômodo. E ao colocar meus pés para dentro do novo ambiente, sinto tudo ao meu redor desmoronar. Sentada sobre o sofá da sala, estava Eve coberta de sangue da cabeça aos pés, suas mãos agarradas ao estofado sujo tremiam sem parar, enquanto ela encarava a grande poça no chão da sala que era preenchida pelo líquido vermelho vibrante. Mark estava próximo, sentado ao lado da poça de sangue, a encarando com curiosidade, ele parecia não entender o motivo de Eve estar daquela forma.
  Ao notar minha presença, os olhos de Eve correm até os meus, me fazendo sentir todo medo e escuridão que emanavam de suas íris azuis que acabaram de ser corrompidas pela morte.
  – Eve, o que aconteceu?! – totalmente desesperada pelo que vejo em minha frente, corro até minha irmã, me ajoelhando à sua frente – Você está bem? – levo minhas mãos até seus joelhos, checando cada parte de seu corpo com os olhos.
  – E–Eu... E–Eu... m–matei... e–eu m–matei. – os olhos assustados de Eve começam a lacrimejar, enquanto ela me olhava ainda mais assustada.
  – O quê?! Do que você está falando? – pergunto espantada com suas palavras. Olho sobre meus ombros vendo Mark parado no mesmo lugar, ainda com seus olhos sobre Eve. Em seguida, volto a encarar minha irmã, esperando por uma explicação lógica.
  Eve fica em silêncio, apenas chorando em sua bolha de medo. Suas mãos ainda tremiam e seus olhos iam em várias direções, demonstrando todo seu nervosismo. Eu estava ficando aflita sem saber o motivo daquele sangue todo que parecia não ser dela, já que não encontrei nenhum machucado em minha irmã.
  – Eve, se acalme e me conte o que aconteceu. Você quer que eu pegue um pouco de água? – sem esperar por uma resposta sua, me levanto, pronta para ir até a cozinha, mas Eve agarra meu pulso, me impedindo e me olhando ainda mais assustada.
  – Não! Fique aqui comigo, por favor. – minha irmã leva sua outra mão até meu pulso, me puxando para perto dela, até que eu me sentasse ao seu lado no sofá.
  – Então me conte o que aconteceu aqui. Que história é essa de que você matou alguém? – pergunto, sentindo todo meu corpo mergulhar em tensão, me trazendo memórias que eu me esforçava para esquecer.
  Eve desvia seu olhar, puxando todo ar que pode para dentro de seus pulmões. – Quando nós chegamos aqui... – mesmo sem me olhar Eve procura por minha mão, a segurando com força, enquanto sinto o sangue fresco de sua mão sujar a minha – ... bem... – ela continua puxando todo ar que pode, mal estava dando conta de falar.
  – Quando vocês chegaram? – a incentivo a continuar, tentando me manter o mais calma possível para não a assustar ainda mais.
  – Eve... – ela finalmente procura o meu olhar, me encarando, agora, com culpa – Quando nós chegamos, Mark atacou o Jack... ele morreu. – sua confissão me faz procurar pelo garotinho, que se mantinha da mesma forma.
  – A–Atacou? Morreu? – solto a mão de Eve, me levantando de solavanco do sofá – O que está acontecendo aqui? Por que você fez isso, Mark? – olho para seus olhos esbranquiçados que não transpareciam qualquer emoção.
  – Vocês não tinham que matar eles? – o garotinho tomba sua cabeça para o lado, com uma expressão confusa – Aquela velha não nos deu aquela faca à toa. Ela era do mundo humano, por isso Jack morreu. Eu queria testar para ver se funcionava mesmo. – Mark fala com calma e clareza, como se não entendesse, agora, os meus motivos para estar desta forma chocada.
  – E como você sabia que era uma faca do mundo humano? – pergunto, sentindo todo meu corpo vibrar em tensão.
  – Por que ela nos daria uma faca desse mundo? – Mark me encurrala com outra pergunta, deixando-me totalmente atônica e sem saber o que responder – Ela sabe de muitas coisas, não sabe, Mae? – o garotinho sentado sobre o chão e madeira continua com sua armadilha – Com certeza já sabia o que estávamos planejando, ela queria que fizéssemos isso. – suas palavras vão me deixando cada vez mais chocada, ele sequer demonstrou qualquer tipo de remorso ao falar sobre a morte de seu pai.
  – Eu tenho outra coisa para te contar, Mae... – Eve interrompe o silêncio que criei, obrigando-me a virar em sua direção, sentindo cada célula de meu corpo se agitar ao imaginar o que ela diria agora. E só de ver o estado em que está, eu já posso imaginar o que vem pela frente.
  – O quê? – pergunto, mesmo que meu corpo quisesse correr para longe e não escutar o que ela tenha para me dizer.
  – Depois que Mark matou Jack... – outra vez minha irmã desvia o olhar, segurando as próprias mãos enquanto mexe os dedos de forma frenética – Nós ainda tínhamos Angeline, se ela descobrisse estaria tudo acabado, por isso tivemos que matá-la também. – com esforço, Eve volta a me encarar.
  – N-Nós? – as palavras saem de minha boca em um tom totalmente temente.
  – Eu matei ela, Mae.
  O chão parece se abrir debaixo de meus pés e me engolir assim que escuto a confissão de minha irmã. Eu mal podia acreditar em suas palavras, eu estava completamente desnorteada, sentindo meus olhos se arregalaram enquanto meu coração saltava em meu peito.
  – V-Você matou ela, Eve? – dou um passo involuntário para trás, escutando minha pulsação martelar em meus ouvidos.
  Eve encara as próprias mãos, assentindo quase imperceptivelmente.
  – Não sei o que aconteceu comigo, eu estava nessa situação... algo tinha que ser feito, e quando eu percebi já havia matado ela, Mae. E eu me senti tão... tão viva. – ela para de mexer seus dedos, deixando seu olhar totalmente vibrado.
  – O que você está falando, Eve?! Está se escutando?! – levo as mãos até meu rosto, a encarando totalmente descrente.
  – Eu não sei o que aconteceu comigo. – ela me olha culpada, apesar de suas palavras.
  – Isso é loucura! – começo a andar de um lado para o outro sobre o chão de madeira – Isso é loucura! – eu estava prestes a entrar em pânico.
  Como isso foi acontecer? Por que eu não voltei com eles? Por que eu fiquei naquela maldita floresta com o ? Isso é tudo culpa minha.
  – Mae, se acalme, por favor. – Eve diz temente.
  – Me acalmar? – paro de andar bruscamente, a encarando desacreditada – Como você quer que eu me acalme depois de descobrir que vocês mataram eles? – olho de Eve para Mark.
  – Nós teríamos que matá-los uma hora. – Eve encolhe os ombros.
  – Eu sei, mas não assim, dessa forma... Eu não estava preparada. – expiro alto.
  – Mas você não fez nada, nós dois quem matamos.  – Mark diz.
  – Como você consegue estar tão calmo? Eram os seus pais. – pergunto, já sendo tomada pelo nervosismo de toda essa situação.
  – Eu já disse que não me importo. Eu só quero fazer coisas legais, esse lugar é um tédio. – ele se levanta do chão, me olhado através de seus olhos inexpressivos. 
  – E matar é algo legal? – minha voz sai mais alto do que o planejado.
  – Calma, Mae. – Eve também se levanta, vindo para o meu lado – Você foi falar com a velha? – ela tenta mudar se assunto, ainda me olhando culpada. E a última coisa que eu não preciso é falar sobre o que aconteceu comigo.
  – Isso não importa agora. – a encaro duramente, fazendo ela se encolher no lugar – Onde eles estão agora? – pergunto.
  – No banheiro do nosso quarto. – Eve responde de forma baixa. E não demoro nem mais um segundo para ir até o local indicado.
  Volto para o corredor, agora seguindo por um caminho diferente, que fazia toda a tensão emanar dentro de mim. Minha pulsação acompanhava meus passos apressados, me dando a sensação de que qualquer um podia escutá–los.
  Eu já conseguia ver a porta aberta do quarto, o que fez com que minhas mãos começassem a suar em puro nervosismo. Penso em parar de andar para tomar fôlego e coragem, mas estou muito nervosa, e se fizer isso não conseguirei ir até o final.
  Reunindo todos os resquícios de coragem que eu ainda tinha quebro a distância que faltava, entrando de vez no local que fez todos os pelos do meu corpo se arrepiarem. Olho ao redor, vendo um grande rastro de sangue sobre o chão, que se arrastava até a porta, também aberta, do banheiro. Inspiro e expiro diversas vezes antes de começar a seguir o caminho pintado de vermelho, sabendo que não encontraria um pote de ouro no final e sim a escuridão da morte.
  Quando paro em frente à porta do banheiro, sinto que meu coração literalmente podia rasgar meu peito de tão desenfreadas que as batidas estavam. A temperatura do meu corpo subiu, e meu sangue parecia ferver em minhas veias, enquanto tudo dentro de mim se revirava, eu queria vomitar, mas não conseguia, o que tornava a sensação continua e torturante.
  Com as pernas fracas, dou passos lentos e arrastados para dentro do banheiro, pouco a pouco, me aproximando da banheira cheia de água, onde o corpo de Jack estava submerso, fazendo sua imagem ficar desfocada em meio a água que o cobria, enquanto seu sangue se diluía em meio ao líquido transparente que ia ganhando um tom avermelhado.
  Na outra ponta da banheira estava Angeline com metade de seu tronco para dentro, e a outra metade para fora. Sua cabeça estava pendida para trás, com os olhos aberto que pareciam observar tudo. Toda a cor de seu corpo havia sumido, a deixando ainda mais pálida do que já era, a não ser pelo sangue que pingava de pulso pendido para fora da banheira, formando uma poça no chão, onde ao lado estava uma faca totalmente suja pela vida perdida.
  O banheiro que já era originalmente sujo, estava ainda pior, havia sangue pelo chão e paredes, uma verdadeira tela de arte pintada com brutalidade. Era a cena mais horrível que já havia visto em toda minha vida, eu certamente não seria capaz de esquecê-la nunca.
  – Mae... – escuto a voz de Eve me chamar da porta, e quando me viro, vejo ela e Mark parados a poucos passos de mim – O que vamos fazer agora? – minha irmã agarra o batente da porta com a mão esquerda, o apertando em puro nervosismo.
  Ainda tendo sensações ruins, respiro fundo, tentando colocar meus pensamentos em ordem.
  – Precisamos nos livrar desses corpos, não podemos correr o risco de sermos descobertos. – respondo.
  – Acho que seria arriscado demais tentar sair com os corpos daqui. – Eve diz.
  – Vocês são humanas e precisam do nosso sangue para sobreviver aqui. Então podemos deixar eles aqui no banheiro enquanto vocês tiram um pouco de sangue, e depois levamos eles para o porão antes que comece a cheirar mal. – Mark toma a frente nas ideias, me fazendo ficara cada vez mais espantada com as coisas que diz.
  – Não podemos fazer isso com eles, vocês já os mataram. – rebato.
  – Ele está certo, Mae. – Eve dá um passo para frente, entrando para dentro do banheiro – São eles ou a gente. E agora mais do que nunca vamos precisar ficar bem, não podemos correr nenhum risco, nosso plano já começou.
  Mesmo sabendo que eles estão certos, isso parece tão errado. Depois de tudo que eles fizeram, ainda vamos nos aproveitar de sua morte, nós vamos profanar seus corpos.
  – Enquanto vocês pesam sobre isso, eu vou pegar mais água e algumas esponjas para limparmos toda essa sujeira. – Mark anuncia, ainda do banheiro com uma leve assustadora.

***

  Eu mal não podia acreditar que aceitei essa ideia. Mas eu não tive escolha. Não posso jogar tudo para o alto agora. Eles estavam certo, uma hora nós iriamos fazer isso, eu só queria ter me preparado antes.
  Encaro os corpos despidos e sem vida sobre minha cama, Angeline e Jack.
  Estava encarregada de secá-los e vesti-los, enquanto Eve limpava o banheiro e Mark a sala. Eu já havia arrumado Jack com as roupas que Mark trouxe, e agora teria que fazer o mesmo com Angeline. Muitos cortes estavam espalhados por seu corpo, complementando o rasgo em sua barriga, o golpe da faca. Eu não entendia por que os corpos estavam tão cortados, apenas um golpe seria o suficiente para matá-los, mas temia encontrar a resposta para minha dúvida, por isso apenas fiquei quieta ao analisar o estado do casal em minha cama.
  Eu já havia tapado os seus machucados, e agora passava um pano velho e sujo por seu corpo nu, tentando tirar qualquer vestígio de sangue e água. Seus longos cabelos loiros molhavam todo o travesseiro, talvez os que dessem mais trabalho para secar. Inspiro desesperadamente, deslizando com delicadeza e temor o pano pelos braços machucados de Angeline, seguindo para o seu tronco despido, contando quantos curativos precisei fazer em seus seios cortados. Foram muitos. Em seguida, tiro alguns vestígios de sangue de sua barriga, indo até suas partes intimas, o único lugar livre de cortes. Já em suas pernas, fora impossível cobrir todos os cortes, o que me deixava totalmente assustada toda vez que passava o pano sobre a pele vermelha da camada escondia. Quando termino tudo, pego o vestido que Mark trouxe, vestindo seu corpo gelado, e por último tento secar um pouco mais seu cabelo, não me impedindo de encara seu rosto sem vida. De alguma maneira seus olhos não fechavam, e nenhum de nós foi capaz de fazê-lo, o que era atormentante, pois parecia que Angeline estava observando cada ação nossa.
  – Eu sinto muito. – sussurro, querendo que ela pudesse escutar minhas palavras.
  Solto um longo suspiro, colocando o pano sujo sobre a cabeceira, depois indo em direção ao banheiro, vendo Eve ajoelhada ao lado da banheira, a limpando por dentro.
  – Terminei. – digo, vendo seu corpo dar um pequeno sobressalto em susto.
  – Eu também. – ela para de limpar a banheira e se vira para mim, ainda ajoelhada. Eve encara a parede a sua frente, soltando um longo suspiro – Desculpe por ter apresado as coisas, Mae. Mas eu me desesperei com essa situação. – ela apoio suas mãos sobre os joelhos.
  – Esqueça, Eve. Como vocês disseram, uma hora teríamos que fazer isso mesmo. Estou aliviada que ninguém descobriu. – falo sincera.
  – Vamos ver se Mark terminou, já está tarde. – ela se levanta, indicando a porta. Apenas assinto e a acompanho.
  Ficamos todo o resto da tarde e começo da noite limpando esse lugar, tentando apagar todo rastro do que aconteceu nessa casa.
  Em silêncio sigo Eve até a sala, onde encontramos Mark sentado sobre o chão enquanto encarava o sofá.
  – Você acabou. – Eve diz, fazendo com ele nos olhos e assinta – Já que terminamos tudo, acho melhor irmos dormir. O dia foi muito longo hoje.
  – Eu não quero ficar naquele quarto com duas pessoas mortas. – falo.
  – Vocês podem dormir no quarto deles. – Mark fala, se levantando do chão e passando por nós, que o seguimos em direção ao corredor. 
  Outra vez, em silêncio, voltamos para o corredor, onde Mark nos guiaria até o quarto que ficaríamos, se não fosse pela batida na última porta do corredor. O porão.
  – Vocês escutaram isso? – pergunto, mesmo sabendo a resposta, já que todos pararem de andar.
  Eve fica tensa ao meu lado, e Mark mantém se olhar sobre a porta de madeira. Nenhum deles me responde, pelo contrário, a única resposta que tenho é outra batida na porta, essa mais violenta, que parecia querer derrubar a porta.
  – Mae, você se lembra daquela coisa que encontramos no porão? A que está nos seguindo para todos os lados. – ela me olha exasperada, fazendo meu corpo entrar em alerta.
  – Nossos pais não me falaram o que era que estava no porão, mas que eu deveria apenas ignorar que uma hora iria embora, e que ele deveria estar aqui só porque vocês eram novas em Setealém. Eles disseram que era normal, e que eu não deveria me preocupar. – Mark diz, ainda mantendo seus olhos sobre a porta.
  – Eu também não sei o que pode ser aquela coisa, mas com certeza ela não vai embora. – Eve fala exasperada – Nós precisamos nos esconder. – ela me olha assustada, e antes que eu tenha a oportunidade de responde, outra batida na porta, essa mais forte que as outras.
  – Andem! Vamos entrar aqui! – aponto para a porta mais próxima de nós, o meu quarto.
  Depois de entrarmos Eve logo tranca a porta no me instante em que um estrondo alto ecoa do outro lado da porta. Minha irmã se afasta da parta, e todos nós ficamos em silêncio enquanto encarávamos a porta. Mesmo que a luz do corredor fosse fraca, nós ainda conseguíamos ver uma sombra se formando do outro lado da porta. Alguém estava parado do lado de fora.
  – A–A faca, onde está? – sussurro para Eve.
  – No banheiro. – ela tenta ser a mais discreta possível.
  – Pegue ela. – digo e ela assente, se afastando lentamente e cuidadosamente de nós, indo em direção ao banheiro.
  Olho sobre os ombros, vendo os corpos de Jack e Angeline sobre a cama da exata forma que eu deixei.
  – Mark, vamos nos afastar da porta. – sussurro, e faço um gesto de cabeça para que ele me siga.
  Caminhamos para perto da cama, onde Mark se senta perto dos pés descalços de Angeline. Eve não demora ao sair do banheiro e se juntar a nós, com a faca em suas mãos nervosas. Nós três ficamos em silêncio, apenas encarando a porta e a sombra do outro lado dela, e o estranho era que a sombra se manteve parada; sem mais batidas, sem ruídos ou qualquer outro indício do que possa ser. E mesmo sem vê-lo, eu sabia exatamente o que era.
  Aquela criatura nos esperava do lado de fora. Sammy.

Capítulo 12

  Já havia amanhecido, e fazia pouco menos de alguns minutos desde que aquela sombra desapareceu do outro lado da porta. Nós três permanecemos trancados em meu quarto com os corpos de Angeline e Jack, e não ousamos colocar o pé para fora deste lugar. O estranho mesmo foi que a sombra, ou o que eu julgava ser Sammy, não tentou nada contra nós; Nenhuma batida na porta, nenhum barulho, apenas permaneceu parado ao outro lado.
  – Isso é ridículo! Já amanheceu e nós continuamos presos dentro desse quarto com dois mortos. – Eve diz sem paciência, enquanto passa uma de suas mãos pelo rosto.
  Sentada sobre a ponta da cama, olho de relance para Angeline e Jack, que se mantêm da mesma maneira que os deixei ontem.
  – Talvez possamos sair, parece que a sombra foi embora. – suspiro.
  – E se for só um truque? – Mark pergunta, enquanto leva seu dedo indicador até a perna descoberta de Angeline  – Está duro. – ele diz depois de tocar a pele de sua, agora morta, mãe. 
  Contorço o rosto e desgosto. Ainda é desconfortante saber o que aconteceu com eles.
  – Mas nós não podemos ficar aqui dentro para sempre, uma hora vamos ter que sair. – respondo sua pergunta.
  – Eu vou dar uma olhada. Vocês fiquem aqui. – Eve se desencosta da parede onde estava, e passa ao lado da cabeceira, pegando a faca que havia deixado sobre ela.
  Lentamente e silenciosamente, ela caminha em passos pequenos até a porta, segurando na maçaneta de forma quase imperceptível, esperando alguns segundos para girá-la de forma sutil, tentando fazer o mínimo de barulho possível. Antes de abrir a porta ela nos olha sobre os ombros com uma expressão de alerta, Eve queria que ficássemos atentos nesse momento.
  Ajeito meu corpo sobre a cama, ficando levemente tensa, não desviando meu olhar de Eve um segundo sequer. Cautelosamente ela finalmente empurra a porta abri-la, colocando sua cabeça para fora do quarto e checando os dois lados. Ela intercala algumas vezes entre as direções opostas antes de endireitar seu corpo e sair por completo do quarto. Eve fica parado por alguns segundos no corredor antes de seguir pela direita. 
  Agarro a barra de minha saia, tentando conter minha tensão, e agora meu nervosismo por minha irmã. Fito rapidamente Mark, que continua sentado sobre a cama, apenas encarando o ponto pelo qual Eve sumiu. Ele também parece um pouco tenso, o que chega a ser surpreendente, já que Mark quase nunca demonstra alguma emoção. Talvez o fato de Sammy ser algo totalmente desconhecido por ele, o deixe temente.
  Continuamos no mais absoluto silêncio, apenas esperando o retorno de Eve. Ela transita de um lado para o outro, e seus passos são os únicos presentes na casa engolida pela falta de som. 
  Depois de mais alguns minutos perambulando pelos cômodos, Eve retorna para o quarto, parando rente a porta.
  – Eu acho que foi embora. Não o vi em lugar nenhum da casa, eu até olhei no porão, mas não tem nada lá, só coisas queimadas. – o tom de voz de Eve sai em puro alívio, fazendo meu corpo relaxar.
  – E o que fazemos agora? – pergunto, me levantando da cama.
  – Vamos esperar. Como ontem, provavelmente Valerie e passarão aqui para irmos até a escola, e quando eles chegaram contamos tudo que aconteceu.
  – É, você está certa. Valerie com certeza vai saber o que fazer. – solto outro suspiro, vendo Eve assentir.
  – Eu estava pensando... – Mark divaga atraindo nossa atenção para ele. O de cabelos loiros encarava os corpos sobre a cama – É melhor vocês tirarem o sengue deles agora... – assim como antes, ele encosta seu indicador sobre a perna de Angeline – O sangue vai começar a apodrecer aqui dentro. – o pequeno garoto cutuca a pele esbranquiçada, fazendo a perna de sua mãe balançar.
  – Você falou que a pele dela está dura, os músculos devem ter enrijecido, então é melhor esperamos, daqui a pouco volta ao normal e será melhor para cortar. – Eve responde, fazendo um arrepio correr por minha espinha.
  Ouvi-la falando desta maneira é realmente desconfortável. Me sinto cada vez pior, parece que foi eu quem os matou, essa sensação é horrível.
  – Certo... – Mark arrasta sua fala, se levantando da cama – Vou procurar alguns baldes para vocês usarem mais tarde. – calmamente o garotinho começa a andar pelo quarto, indo em direção à porta e seguindo pelo corredor, sumindo de nossas vistas em questão de segundos.
  – Ele é tão estranho. – comento de forma baixa, fazendo Eve esboçar um pequeno sorriso.
  – Vamos sair daqui e esperar Valerie e na cozinha, você já passou a noite toda trancada nesse quarto com esses dois, e eu percebi o quão desconfortável você estava. – Eve estende sua mão para mim, e quando a pego, ela me leva para fora do quarto, mas não sem antes fechar a porta.
  Apesar de tudo que veem nos acontecendo, sou grata por ter Eve comigo, ela sempre sabe o que fazer e o que dizer, parece mais minha mãe do que irmã mais velha. Sempre me embalando em proteção e me deixando como uma garotinha indefesa, e de fato é isso que eu sou quando estou com ela.

***

  – É tão estranho não sentir fome. – comento com Eve que estava sentada em minha frente, do outro lado da mesa.
  – Talvez aquele sangue que nos deram seja mais eficaz do que comida. – ela dá de ombros.
  Me encolho sobre a cadeira de madeira.
  – Eu não gosto disso. – encaro minhas próprias mãos.
  – Eu sei. – Eve expira pesadamente – Logo tudo isso vai acabar, não se preocupe. – ergo meu olhar até ela outra vez, a vendo sorrir na tentativa de me confortar.
  – Eles chegaram. – a voz de Mark invade de supetão a cozinha, me fazendo saltar minimamente sobre a cadeira. 
  Ele estava parado na entrada da cozinha com sua habitual expressão de volta. Seu uniforme estava perfeitamente alinhado em seu corpo, apesar das condições serem deploráveis, e seu cabelos loiros estavam bem alinhados, fio por fio. Seus olhos estavam mais fundos e esbranquiçados do que de costume, e sua pele parecia cada dia mais pálida.
  Era como olhar para alguém que já morreu, mas ainda se mantém de pé.
  – Eu vou lá. – Eve se voluntária, levantando-se de sua cadeira, e saindo da cozinha.
  Mark permanece parado, direcionando seu olhar para mim.
  – Algum problema, Mark? – pergunto, querendo acabar com essa hipnose estranha dele.
  – Você está com medo? – sua boca se movimentando é a única a se mexer em seu rosto apático.
  – De você? – franzo o cenho.
  – Do que fizemos.
  Permaneço calada por alguns segundos, antes de formular alguma resposta.
  – Mark, eu sou uma humana, esse tipo de coisa não é normal para mim. – falo sincera.
  – Eve não pareceu ficar tão chateada quanto você. – o garoto rebate instantaneamente, me fazendo ficar sem palavras. O que eu poderia dizer para ele? Eve realmente estava estranha com toda essa história, e isso é preocupante já que eu pareço ser a única a demonstrar humanidade.
  Não o respondo, apenas fico em meu silêncio, esperando pela volta de Eve, que não demora, por sorte. e Valerie veem logo atrás, ambos com expressões confusas, e sei que minha irmã já deve ter dito alguma coisa.
   se senta no lugar anteriormente ocupado por Eve, enquanto Valerie se encosta contra a mesa, tendo minha irmã ao seu lado e Mark no mesmo lugar.
  – Bom, o que vocês têm de tão importante para dizer? Estão sozinhos hoje? – Valerie pergunta, olhando ao redor.
  – Não exatamente. – Eve responde.
  – O que quer dizer com isso? – franze o cenho mais uma vez me meio a sua pergunta.
  Eve suspira profundamente antes de começar.
  – Se lembram daquela faca que a velha da caverna nos deu? – sua pergunta é respondida por dois acenos de cabeça – Pelo jeito parece que não era uma faca normal, e sim uma faca do mundo humano.
  – Do mundo humano? – Valerie se desencosta da mesa, vendo Eve retirar a faca do cós de sua saia, e joga sobre a superfície de madeira, causando um pequeno barulho.
  – Sim. 
  – E como você sabe que é do mundo humano? – pergunta, cada vez mais confuso. E Eve troca um rápido olhar comigo, fazendo Valerie nos fitar desconfiada.
  – Ontem, depois que vocês dois nos deixaram aqui, Mark simplesmente pegou a faca e atacou Jack. – minha irmã desvia seu olhar para o garotinho ainda parado na entrada da cozinha.
  – Atacou? Por que ele atacou? – acompanha o olhar de Eve, se mostrando totalmente surpreso.
  – Aquela velha não ia dar nada que fosse normal. Não foi difícil pensar que poderia ter vindo do mundo humano, qualquer idiota poderia ter esse raciocínio. Eu apenas testei a faca. – deixando todos – menos Valerie – completamente chocados com sua resposta, Mark continua apático, como alguém incapaz de ter sentimentos. 
  Como uma criança de doze anos pode ter esse tipo de personalidade? Eu sei que ele é de outro mundo, mas é como falar com um sociopata em sua fase adulta.
  – E–E ele está bem? – pergunta totalmente exasperado e tenso.
  – Ele morreu, . – Eve solta outro suspiro.
  – E Angeline? – Valerie pergunta, transparecendo totalmente calma em relação ao que ouviu.
  Eve fica em silêncio e encara a faca sobre a mesa de madeira.
  – Você a matou, não foi? – Valerie se inclina em direção a Eve, esboçando um sorriso miserável. Eve ergue seu olhar para encontrar o de Valerie, apenas assentindo em resposta.
  Posso ver o corpo de  enrijecer ao meu lado.
  – Então esse é o motivo de todos vocês estarem assim? – Valerie cruza os braços, fitando um por um – Todos aqui já sabiam que esse momento ia chegar. Nós não planejamos uma data e ninguém sabe, então não há nenhum problema nisso, apenas vamos continuar seguindo com o plano. – sua voz era calma e compassiva e despreocupada.
  – Eu não consigo me acostumar com isso tão fácil quanto vocês. – dá uma risada nervosa, enquanto apoia a cabeça em uma das mãos escoradas sobre a mesa.
  – Mas é melhor se acostumar, porque essa é a única forma de sairmos desse lugar. Os pais de Eve e Mae já se foram, agora faltam os nossos, . E não vamos poder enrolar por mais tempo. – mesmo o tom de Valerie se mantendo calmo, a seriedade em suas palavras era algo quase palpável.
  – Eu sei... – responde de forma baixa.
  – Eu posso fazer isso antes de você, . Vou levar a faca para minha casa e cuidar das coisas por lá, isso de dará algum tempo para se preparar. – o rapaz ao meu lado desvia o olhar, apenas assentindo. 
  Eu consigo me identificar muito com , ele parece estar tendo os mesmos processos que eu. Somos os únicos ainda chocados com as coisas que acontecem nesse lugar.
  – Agora me conta como você fez isso? – Valerie se vira para Eve, a fazendo ficar um pouco desconfortável com a conversa.
  Surgindo como uma fuga, o barulho de leves batidas ressoa por toda cozinha, indicando que havia alguém na porta de entrada. E mesmo que fosse estranho, me levanto antes de todos, dizendo que atenderia, quando na verdade queria apenas escapar da resposta que Eve daria para Valerie, tudo que eu não preciso é reviver a noite de ontem.
  Caminho apressadamente para fora da cozinha, entrando e seguindo pelo corredor que me levaria até a porta de entrada da casa, e como a mesma já havia sido destrancada por Eve, apenas tenho o trabalho de abri-la, relevando a imagem de quem eu menos esperava encontrar do outro lado.
  – Eu acertei a casa! – a mulher de longos cabelos escuros sorri animadamente – Ainda bem que você ainda não foi para escola. – ela leva uma mão até o tórax, fingindo um falso suspiro.
  – Hm, Sra. ... o que veio fazer aqui? – seguro na porta, enquanto a fito com confusão e curiosidade.
  – Desculpe vir sem avisar. Mas seus pais estão em casa? – a mulher se esgueira sobre meus ombros, me fazendo ficar tensa e levar minha outra mão até o batente da porta, barrando sua entrada.
  – N–Não. Eles não estão. – sorrio nervosamente – Vão passar alguns dias fora, eles foram até o meu mundo. – digo a primeira coisa que vem em mente.
  – Oh. – ela me olha surpresa – E foram fazer o que lá?
  – Eu não sei. – encolho os ombros – Disseram que tinham alguns assuntos por lá. – tento suavizar minha voz para não estragar com tudo. 
  – É uma pena, eu queria convidá–los para um jantar lá em minha casa. Agora que você e estão juntos, acho que seria bom se as famílias se conhecessem melhor. – suas palavras me fazem agarrar com mais força sobre a porta.
  – Sinto muito, Sra. . – mantenho meu sorriso nervoso.
  – Me chame de Ada, querida. Não precisamos dessas formalidades. – ela sorri – Mas você ainda pode ir. Hoje é aniversário de Sophie, e gostaria muito que pudesse jantar conosco esta noite. Leve seus irmãos também. – ela ajeita suas mãos em frente ao corpo.
  Bato meus dedos contra a porta, tentando conter toda a tensão que me percorrer.
  – A–Acho que não vai dar. Os meus amigos estão aqui, e vão passar algumas noites com a gente, você sabe, para não ficarmos sozinhos. – solto uma falsa risada.
  – Ora, não seja por isso. – ela se inclina em minha direção – Você pode levá-los. Quanto mais pessoas, melhor. Sophie não tem muito amigos mesmo, na verdade, ela não tem nenhum. Isso pode ajudá-la um pouco. – ela volta a sua posição inicial.
  – Então estaremos lá. – a voz de Valerie confirma atrás de mim, fazendo-me ficar ainda mais tensa. A garota de cabelos loiros escuros apoia sua cabeça em meu ombro.
  – Perfeito! Estejam lá em casa às oito horas. – Ada sorri outra vez, antes de acenar em minha direção, se afastando em seguida.
  Quando sua silhueta começa a seguir pela calçada, fecho a porta, confrontando Valerie que mantinha um sorriso em seu rosto.
  – Não me olhe assim. – ela dá uma curta risada.
  – O que foi isso, Valerie? Por que temos que ir até a casa daquela maluca? – pergunto exasperada.
  – Ei, ei, calma. – ela levanta as duas mãos, as colocando em frente ao corpo – Eu tenho um plano. 
  – Que plano, Valerie? – suspiro pesadamente.
  – Eu já pedi que me chamasse de Val, quando você diz meu nome parece que está zangada.
  – Mas eu estou. – falo sarcasticamente, a fazendo revirar os olhos.
  – Os seus pais morreram, e eu logo vou fazer o mesmo com os meus, nosso plano já começou. – ela explica.
  – E o que isso tem a ver? 
  – Tem a ver que precisamos ser cauteloso e espertos agora. Vamos aproveitar que a família de gosta de você, e vamos nos aproximar e vigiar os passos da Sophie.
  – Acontece que a Sophie não gosta de mim. Ela já tentou me matar, se lembra? – meu tom de voz é totalmente desacreditado.
  – Ela não tentou te matar, só assustar. – Valerie rebate calmamente – Vamos estar todos com você, Mae, não tem motivos para se preocupar. Nós somos os humanos, nós é que estamos em desvantagem aqui, então vamos aproveitar todas as oportunidades.
  – Além do mais, isso é uma ótima oportunidade para você ver se realmente quer dar a alma do em troca do seu ex–namorado. – ela arqueia as duas sobrancelhas.
  – Do que você está falando? 
  Um sorriso lascivo que pinta seus lábios.
  – Talvez sua irmã e sejam desatentos o suficientes para não notarem o que está acontecendo aqui. Mas eu não sou.
  Meu corpo inteiro se torna tenso outra vez, meus batimentos cardíacos até começavam a acelerar.
  – Não se preocupe, eu não vou contar nada. Mas se decida de uma vez. – ela dá alguns tapinhas em meu ombro, antes de me deixar completamente estática no mesmo lugar.
  Eu venho reprimindo todos os pensamentos idiotas que tento em relação às minhas escolhas, mas nunca pensei que deixasse isso transparecer. O quanto será que ela sabe?
  Sinceramente, prefiro manter essa questão apenas para mim. O que aconteceu com é algo que eu devo esquecer, por isso não há motivos para conversar com outras pessoas sobre ele. Minha decisão já está tomada, eu apenas preciso seguir firme nela.

***

  Valerie acabou contando para todos sobre sua ideia, e assim como eu, e Eve relutaram no começo, mas acabaram cedendo, já que a vontade de sair desse lugar é maior. E no fim, combinamos de nos encontrar aqui por volta das sete da noite, para irmos até a casa de . Eu não poderia estar mais nervosa, mas não por vê-lo, e sim por estar no mesmo ambiente que sua irmã maluca. Aquela garota se tornou meu pior inimigo nesse lugar, e temo até onde sua insanidade possa chegar.
   e Valerie foram embora no final da tarde para se aprontarem. Eve, Mark e eu já estávamos devidamente arrumados, e precisamos pegar algumas das roupas guardadas no velho guarda–roupa em nosso quarto. Angeline e Jack provavelmente as deixaram para nós, e como nunca saímos para outro lugar que não fosse a escola, nunca tivemos a oportunidade de checá–las antes.
  – Nós já podemos ir? – Mark pergunta, enquanto se mantinha sentado sobre minha cama balando os pés, ao lado de seus pais mortos.
  – Precisamos esperar Valerie e o . – respondo, cruzando os braços e me escorando contra a cabeceira.
  Em seguida, Eve entra no quarto com uma pequena faca de cozinha em mãos. Ela caminha até a cama, e se senta ao lado de Angeline.
  – O que você vai fazer? – pergunto, me aproximando dela.
  – Já faz um dia desde que eles morreram, o sangue já deve estar coagulando, precisamos tirá-lo do corpo deles depressa. – minha irmã segura o braço de Angeline, estendendo seu pulso.
  – Mark, trouxe o balde que eu pedi? – Eve olha em direção ao garotinho que assente e salta da cama, pegando o balde que estava no chão, dando a volta pela cama e o levando até ela.
  Eve posiciona o balde embaixo do pulso esverdeado de Angeline, levando a lâmina da faca até a pele morta e lentamente, ela traça um pequeno corte pela extensão do pulso, fazendo o vermelho da carne escondida saltar aos nossos olhos. O sangue pinta em meio a pele dividida, antes de começar a pingar para dentro do balde de alumínio.
  Em seguida, ela solta o braço de Angeline dento do balde e se levanta, caminhando até Jack. Eve pega outro balde escondido debaixo da cama e repete todo o processo de antes, me deixando um pouco horrorizada com sua calma para fazê-lo. Mark se manteve perto o tempo todo, sempre atento a cada movimento de minha irmã mais velha.
  – Pronto. Vamos deixá-los aqui.  – Eve se afasta dos corpos e faz um gesto para que a seguíssemos até a porta do quarto.
  Mark não pestaneja ao copiar seus passos, e relutantemente acabo fazendo o mesmo. Chego até a porta, segurando na maçaneta para fechá-la, dando uma última olhada em Angeline e Jack que estavam sendo profanados mesmo após sua morte.
  Eu mal posso acreditar que já faz um dia que estou convivendo com dois corpos mortos. Isso é loucura e provavelmente um crime. Mas talvez eu não devesse me preocupar, já que os meus pecados serão pagos essa noite.

Capítulo 13

   e Valerie não demoraram ao chegar, por isso não tive muito mais tempo para me preparar para a grande noite. Com todos reunidos, acabamos por pegar um caminho mais deserto, pelo qual Valerie fez questão de nos mostrar. Ela disse que seria melhor evitar qualquer tipo de contato com o resto dos moradores, mas a verdade é que não vi nenhum deles até agora, pelo menos, não fora daquela escola estranha. Setealém era como uma grande cidade fantasma. E tendo uma pequena amostra de como eles são, eu realmente prefiro continuar não os vendo.
  A noite era densa, assim como a costumeira cor do céu. O vento gelado balançava meu longo vestido preto de um lado para o outro. Foi surpreendente ver quais eram as roupas que Angeline e Jack separaram para nós, tudo parecia perfeito para um velório, mas nada que fugisse do padrão de Setealém. De qualquer forma, é bem melhor do que aquele uniforme escolar destruído.
  – Acho que chegamos. – Valerie para de andar e aponta para a casa do outro lado da rua. Tudo ao redor daquela casa era escuro, sendo assim, a única que se destacava entre as poucos que a cercavam, já que algumas luzes emanavam das janelas.
  Fora Mark e Valerie, ninguém realmente parecia querer estar aqui hoje. Então, o silêncio era quase algo palpável.
  – Todos já entenderam quais são os nossos motivos está noite. Então vamos indo. – Valerie nos dá uma última olhada, enquanto tem seus cabelos levados pelo vento gelado.
  Ela faz um gesto de mão para que a seguíssemos, e assim acabamos por fazer. Sem pressa, atravessamos a rua, indo em direção a outra calçada. Passamos pelo caminho de pedras, chegando assim, na porta de cor vermelha. Valerie, que ainda estava à frente, dá três batidas na porta de madeira, esperando até que fossemos atendidos. O que, para minha infelicidade, não demora a acontecer.
  Logo a imagem sorridente de Ada preenche nossos campos de visões. A mulher alta estava com os cabelos presos e um avental branco – ou quase branco – amarrado em sua cintura.
  – Vocês vieram! – A mulher leva as mãos até o quadril. Parecendo bastante satisfeita em nos ver. – Por que está tão escondida, Mae? – Ela se esgueira em seu lugar, tentando me fitar melhor.
  Dou um sorriso forçado, me colocando para mais perto de Ada, querendo evitar qualquer reação estranha de minha parte para que não suspeite de nada.
  – Você me convidou e eu aceitei. – Mantenho o sorrido forçado que parece a convencer.
  – Isso me deixa muito satisfeita. – Ada segura a maçaneta da porta, a empurrando para trás e dando mais espeço. – Vamos, entrem. – Ela indica o interior da casa com as mãos.
  Todos se mantêm parados, esperando que eu faça o primeiro movimento. E depois de um suspiro mental, sou a primeira a entrar na casa, dando de cara com o pequeno hall que já vi antes.
  Quando todos já estão do lado de dentro, Ada fecha a porta, caminhando por entre nós e tomando a frente. Nós cinco a seguimos pelo pequeno hall, parando em frente a uma bifurcação, da qual ela indica o lado esquerdo que levava para uma grande sala de estar, um tanto quanto similar à de minha casa.
  Sentados sobre o sofá de estofado escuro estavam e Sophie; ele, com um sorriso de escarnio em seu rosto, enquanto ela estava de braços cruzados e com uma expressão fechada.
  – Nossos convidados chegaram. – Ada anuncia, atraindo a atenção dos dois que estavam sentados no sofá.
  Sophie é a primeira a demonstrar alguma reação ao nos ver, parecendo estar totalmente desacreditada com o que via. Já pareceu empolgado, deixando que seu sorriso tomasse proporções maiores.
  – Por que eles estão aqui? – Sophie pergunta enquanto encara seriamente sua mãe.
  – Porque eu os convidei, Sophie. Por isso, tente ser um pouco menos chata. – A mulher imita o gesto de sua filha, cruzando os braços e estreitando os olhos para a garota mais nova, que logo desfaz sua carranca, parecendo temer Ada. – Fiquem todos à vontade, o jantar logo será servido. – Voltando seu olhar para nós, Ada indica o sofá. – Hoje teremos um belo bolo que encomendei da loja do pai de . – Ela junta as mãos mostrando empolgação.
  – Hum, e onde está o ? – Valerie pergunta sem rodeios, enquanto caminha até o sofá, sentando-se propositalmente perto de Sophie, que a encara com irritação.
  – costuma sair no início da noite. – Ada responde em meio a um sorriso, literalmente, amarelado.
  – Sair para onde? – Valerie insiste nas perguntas, me fazendo repreendê-la através do olhar. Estamos tentando ser discretos, e não acho que ela esteja sendo.
  – Na verdade, eu não sei. – Ada faz uma expressão pensativa. – De qualquer forma, logo ele estará aqui. – A mulher de cabelos escuros dá um rápido aceno de cabeça, antes de se virar de costas e sair da sala de estar.
  – Vocês vão continuar de pé? – pergunta, com uma expressão curiosa e divertida em seu rosto, divertida pelo menos para ele.
  Solto um longo suspiro, antes de caminhar em direção ao sofá, me sentando ao lado de Valerie. Logo sou seguida por Mark, Eve e , que também se acomodam sobre o estofado escuro.
  O silêncio é o próximo e tomar conta do ambiente, devorando cada um de nós. O que me deu a oportunidade de observar um pouco mais da sala de estar, sendo a única coisa da qual eu poderia fazer neste momento.
  Assim como eu já havia reparado antes, este ambiente se assemelhava muito com a sala de minha casa. Uma estante de madeira ocupada o canto esquerdo; Retratos e objetos desconhecidos por mim ocupavam cada prateleira protegida por um vidro sujo. Uma grande televisão estava ao centro da parede de fundo, mas julgando por suas condições, não tenho certeza se ela ligaria. Já um pouco mais perto de nós, havia uma pequena mesa de centro sem nada sobre ela.
  – Quem é esse garoto? – A voz desagradável de , interrompe minha tediosa analise.
  Viro meus olhos em sua direção, vendo que ele fitava Mark, que sustentava o mesmo olhar.
  – Irmão delas. – Valerie responde, me fazendo ficar admirada com a sua capacidade de ser calma em qualquer situação.
  – Irmão, huh. – estreita seu olhar. – Você é daqui, não é? – O que cabelos escuros apoia seus braços sobre o sofá, enquanto cruza as pernas.
  – Sim. – E como sempre, Mark se restringe a dar respostas objetivas, sem se estender.
  Depois de respondê-lo, o garotinho de cabelos loiros desvia seu olhar, fitando fixamente a televisão ao fundo da sala.
  Esse garoto é um mistério. Mesmo que ele me explique seus motivos para entrar em toda essa loucura, eu não posso entendê-lo, e gostaria muito de saber como ele pensa. Mark tem apenas doze anos, mas às vezes age como se fosse muito mais velho do que eu. Uma verdadeira incógnita.
  E quase que imperceptivelmente, vejo Sophie agarrar o tecido de seu vestido, também preto, apertando o pano escuro entre seus dedos, demonstrando toda sua irritação com a situação. Se ela soubesse que não é a única desconfortável com tudo isso...
   é o próximo a demonstrar desconforto, se remexendo sem parar ao meu lado, obrigando-me, discretamente, a segurar em sua mão, dando um leve aperto na tentativa de acalmá-lo. Ele sempre é o mais assustado em situações como essa, e não posso culpa-lo por isso. Estou apavorada com tudo que veem nos acontecendo e, ao contrário de , apenas estou fingindo controlar a situação.
  Eve, ao lado de , se mantinha claramente tensa. Seu corpo parecia em alerta, pronto para reagir caso fosse necessário. Depois do que passamos ao chegar neste mundo, minha irmã assumiu uma postura totalmente protetora e dura, com certeza não querendo repetir os mesmos acontecidos. E claro, sempre que está por perto, tudo isso se aflora. Eve com certeza guarda um grande rancor em relação a ele.
  – E você, Sophie, não vai dizer nada? É o seu aniversário, deveria aproveitar mais. – insiste em continuar a falar, agora tendo a garota ao seu lado como alvo.
  A garota de longos cabelos escuros e pele pálida vira sua cabeça para o lado, me impossibilitando de ver qual seria sua reação, mas não preciso vê-la de fato, para saber que ela estava com uma grande carranca pintada em seu rosto.
  – Não me olhe assim, eu estou tentando animar as coisas por aqui. – dá de ombros. Depois, apoia sua cabeça sobre a parte de trás do sofá, enquanto fecha os olhos. – Sabe o que te animaria? – Ele continua com seu monólogo. – Um relacionamento. Não tem ninguém de quem você goste? Talvez uma pessoa de quem sinta falta? – Ele abre um de seus olhos, espreitando a garota que fica visivelmente tensa, já que seu corpo se torna rígido.
  – Cale a boca. – A voz de Sophie é alta, assustando todos nós, não por seu tom, e sim pela forma como conseguiu a deixar irritada. Eu conseguia ver suas mãos tremerem, enquanto ela agarrava – cada vez com mais força – o tecido de seu vestido.
  – O que foi? Eu só fiz uma pergunta. – abre o outro olho, a encara como se não entendesse o motivo de sua extrema irritação. – É só uma pergunta idiota, por que não pode me responder, Sophie? – Seus olhos castanhos fitam com atenção a garota rígida ao seu lado. Ele estava visivelmente tentando pressioná-la, e eu só queria entende o motivo disso.
  – Já chega, . – A voz alta e severa de Ada preenche cada canto da sala de estar, pegando todos desprevenidos.
  A mulher estava parada na entrada da sala, com uma bandeja em mãos e vários copos sobre a mesma, todos cheios por um líquido viscoso e vermelho que eu passei a conhecer muito bem.
  A expressão de Ada não era das melhores, na verdade, dava medo. Sua grande altura a deixava mais intimidante, enquanto sua pele pálida em contraste com os olhos carregados por olheiras escuras complementavam o visual horripilante.
  Ela caminha em passos apressados até a mesa de centro, deixando a bandeja em cima dela. Em seguida, se desloca até onde estava, parando ao seu lado e cruzando os braços, enquanto o lança um olhar carregado.
  – Por que você não vai checar se o bolo já está pronto? – Ela mantém seu olhar. E como quem não se intimida nenhum pouco, se levanta do sofá.
  – Ok. Ok. – Ele leva as mãos até os ombros de sua calça jeans, com uma postura totalmente relaxa.
  Ada continua parada, sustentando seu olhar na espera de que se vá.
  – Você pode me ajudar, Mae? – Os olhos castanhos de desviam até se encontrar com os meus. E agora, era o meu corpo que se tornava rígido. – Eu não quero ir sozinho. – Ele dá de ombros, tentando parecer normal.
  – Ela não vai. – Eve se levanta de supetão do sofá, se colocando à frente de .
  , mesmo assustado com a situação, segura na mão de minha irmã, tentando acalmá-la a todo custo.
  – Eu vou com vocês. – Valerie é a próxima se levantar do sofá, tendo Sophie como sua fiel espectadora, já que agora ela não parecia mais irritada, e sim interessada na situação.
  – De novo com isso, Valerie? Ela não vai. – Eve se vira para Valerie com uma expressão de poucos amigos.
  Valerie não deixa sua postura fraquejar, ela apenas aproxima-se de Eve, se inclinando sobre seu ombro e cochichando algo em seu ouvido. Em seguida, a postura de Eve muda drasticamente, e ela parece ceder aos poucos, mesmo que seu tendo seu rosto torcido em um olhar sério.
  – Vamos. – Valerie se afasta de Eve, e faz um gesto para que a siga.
  Continuo sentada sobre o sofá, fitando cada pessoa dessa sala, com um olhar assustado. Depois de tudo que passei, eu não quero mais "agito", e tenho certeza que sair com e Valerie não será nada calmo.
  – Vamos, Mae. – Valerie para perto de mim, estendendo uma mão para me ajudar a levantar.
  Encaro rapidamente cada um por um, tendo Eve, que não protesta, apenas espera que eu faça algo. continua tão assustado quanto eu, e Mark parece curioso quanto a cena que se estende nesse cenário tenso, assim como Sophie.
  Ainda que receosa sobre está ideia, acabo segurando na mão de Valerie e me levanto do sofá.
  – Vão logo e não demorem, ou perderão o jantar. – A empolgação de Ada retorna, enquanto ela praticamente nos empurra para fora da sala de estar.
  Está noite já começou mal.

***

  O trajeto até a loja do pai de foi silencioso, assim como o caminho que fiz para chegar até a casa de . andava um pouco afastado de nós, e Valerie ao meu lado, completamente imune aos olhares estranhos que recebemos pelo caminho.
  Hoje mesmo, eu pensava sobre não ter visto muitas pessoas desde que cheguei em Setealém, mas ao ir para uma área de comercio, tive o desprazer de conhecer mais pessoas do que eu gostaria. Todos os moradores pelo caminho demonstravam sua insatisfação em nos ver transitando pelas ruas. Valerie apenas ignorava, talvez ela já estivesse acostumada com isso, mas eu não estava. Eram tantos olhares carregados que chegavam a dar medo, eles realmente não gostavam de humanos e deixavam bastante evidente em seus cochichos e linguagem corporal.
  E, por este motivo, suspiro aliviada quando finalmente chegamos na loja do pai de .
  A fachada era feita de madeira escura, com algumas letras pintadas em brando. A parte da frente era estampada por uma grande vidraça que refletia alguns tipos estranhos de comidas, algumas que eu já havia visto na casa de Angeline e Jack.
   segue até a porta de madeira, enquanto Valerie e eu o acompanhamos. E ao passarmos pela mesma, o barulho de um pequeno sino anuncia nossa entrada, e posso dizer que do lado de dentro era ainda mais bizarro. Prateleiras e mais prateleiras empunhavam o que pareciam ser doces em tons frios, enquanto algumas flores mortas enfeitavam o local por dentro.
  – Venham por aqui. – diz, antes de caminhar até uma pequena porta escondida ao canto da loja, que se não fosse por ele mesmo, eu nem teria notado.
  Ainda em silêncio o seguimos, acabando por entrar em um pequeno e estreito corredor escuro que dava acesso para uma segunda loja escondida. Essa totalmente mais bizarra e tenebrosa que a primeira. Todo e qualquer tipo de gancho estava pendurado pelas paredes, enquanto outros instrumentos metálicos pontiagudos ficavam guardados dentro de um balcão de vidro. Todos eles pareciam ser usados para torturas, já que não posso imaginar outra utilidade para essas coisas.
  – ! Veio buscar o bolo? – Um homem alto e calvo que estava atrás do balcão de vidro, pergunta.
  – Sim. – se limita a responder.
  – Quem são suas amigas? – O homem sai de trás do balcão, se apoiando ao lado do mesmo. – Espere. Eu conheço você. – Ele aponta em minha direção, fazendo-me encolher no lugar. – Você é a Mae, certo? – Ele estreita seus olhos, me analisando. – Não, não é. Você é uma humana. – Por fim ele dá um pequeno sorriso. – A versão humana que matou Mae. – Sua risada sobressai o silêncio que faço.
  – Sim, ela é. – o acompanha, me fazendo enxergar a sua semelhança com o homem calvo.
  – A vida é assim. Para que uns vivam, outros precisam morrer. – O homem dá de ombros, soltando um longo suspiro, mesmo não parecendo chateado ou irritado. – Sabe, Mae humana, essa minha loja é a perfeita representação disso. Tudo que você vê aqui vem diretamente do seu mundo. – Ele aponta para os ganchos nas paredes. – Todo tipo de pessoa compra minha mercadoria, desde os moradores de Setealém, até os humanos como vocês. – Ele sorri outra vez.
  – E-e por que você vende coisas do mundo humano? – Mesmo amedrontada com o ambiente, pergunto, não contendo minha curiosidade.
  – Oras, você nunca ouviu nada do que eu disse? – Ele apoia seu cotovelo sobre o balcão de vidro, e o rosto em sua mão, enquanto espera uma resposta minha com um grande sorriso no rosto.
  – Para que uns vivam, outros precisam morrer. – Valerie é quem acaba respondendo a pergunta do homem calvo.
  Meu olhar sobre a garota ao meu lado é assustado, à medida que as coisas começavam a fazer sentido dentro da minha cabeça.
  – Exatamente. – O sorriso no rosto homem fica cada vez maior, assim como o de , que se mostrava bastante interessado em ver aonde tudo isso iria chegar.
  – E mesmo assim você vende essas coisas para eles? – Valerie continua firme, também se mostrando curiosa a respeito desse local.
  – Não é da minha conta o que eles fazem com as minhas mercadorias. Contanto que gastem seu dinheiro aqui. – O ombro se monstra tranquilo.
  – Isso não é um pouco suspeito? – Acabo me intrometendo na conversa, atraindo a atenção de todos. – Itens humanos matam moradores de Setealém, e você sendo um morador desse mundo, não deveria vender isso para outros iguais a você. Na verdade, eu não sabia que existiam pessoas de Setealém que matavam outras pessoas de Setealém.
  – Você é realmente ingênua. – O homem dá uma curta risada. – Acha que matar é algo que só existe no seu mundo? – Ele arqueia uma sobrancelha. – Isso acontece em todo lugar, independente do mundo. Não é algo exclusivo de humanos versos Setealém. Como eu disse, não em importo com nada disso, desde que todos gastem seu dinheiro comigo. – Suas palavras finais foram o bastante para me calar.
  De fato, onde houver vida, sempre será dessa forma. Chega a ser deprimente pensar assim, mas é a realidade.
  – Garotinha ingênua, tenho algo para você. – O homem diz, se desencostando do balcão e mexendo na parte de trás do mesmo, retirando de lá um grande taco de baseball alumínio coberto por arame. – Esse era o preferido de Mae. Ela sempre o alugava. – O homem calvo colocado o taco sobre o balcão. – Aquela garota era meio louca. Eu sempre me perguntava o que ela fazia todas as vezes que alugava esse taco. – Ele dá uma risada sem humor. – Já que ela adorava muito esse taco, e você é a versão humana de Mae, pode ficar com ele agora. Estou dando de graça para você.
  Meus olhos se agarram, enquanto sinto Valerie me fitar, esperando por alguma resposta minha.
  – Uh, e o que você fará com ele, Mae? – se virá para mim com um sorriso idêntico ao do homem.
  Os três olhares pesam sobre mim. E, estranhamente, sinto como se meu corpo fosse atraído para o objeto sobre o balcão de vidro, onde paro rente a ele, encarando cada detalhe do taco revestido por alumínio.
  – Pode admira-lo à vontade. Irei pegar o bolo de vocês. – Mesmo estando completamente enfeitiçada pelo objeto, percebo o homem calvo se afastando e entrando em outra porta escondida, assim como na sala anterior.
  – Você gostou? – se aproxima, me fitando com curiosidade, o que me faz afastar do taco de alumínio.
  – Não. – rebato.
   ri nasalado.
  – Vocês são mais parecidas do que eu imaginei. – Ele cruza os braços, se escorando no mesmo lugar que o homem calvo estava a segundos atrás. – Ao contrário de Sophie, eu vou ser direto com você, Mae. Sem rodeios, já que isso aqui não é nenhuma historinha idiota. – Ele estreita os olhos.
  – Estamos ouvindo. – Valerie logo se junta mim, ficando ao meu lado.

Capítulo 14

  Confesso que me sinto mais segura todas as vezes que Valerie se aproxima. Ela emana confiança, sempre sabendo o que fazer.
  – Eu só estou ajudando Sophie nessa ideia estúpida porque eu pretendo matar com as minhas próprias mãos aquela grande vadia da Mae. – Ele confessa, fazendo meus olhos saltarem e meu cenho se franzir.
  Viro rapidamente em direção a Valerie, e até mesmo ela se mostra surpresa com a revelação de .
  – Vamos colocar as cartas na mesa, . Nos explique isso direito. – Apesar de surpresa, Valerie não perde a oportunidade de saber o que se passa pelas entrelinhas.
  – Sophie, aquela maldita garota pentelha diz que está fazendo tudo isso pelo , mas a verdade é que ela sempre foi apaixonada pela Mae. Ela pensa que me engana. – dá uma risada sem humor.
  Olho outra vez para Valerie, não sabendo como reagir as confissões de .
  – Ela quer trazer aquela vadia de volta para ter uma chance, e não para ajudar o .
  – E por isso você pretende matar ela? – Valerie pergunta, parecendo controlar suas expressões agora.
  – Sim. – sorri. – Ela morreu porque nossa humana Mae nasceu depois. Mas isso não impede que ela possa ser ressuscitada. Agora, se ela for morta ou cometer suicídio, então todas as suas chances de viver outra vez são exterminadas. – Seus olhos castanhos fitam especificamente a mim. – Por isso, quando Sophie te matar e trouxer aquela vadia de volta, eu vou me certificar que ela faça o caminho de volta para inferno e nunca mais volte.
  "Nós não contamos nada disso ao , você sabe, Sophie não poderia dizer ao irmão que está apaixonada por sua namorada morta."
   sai de perto do balcão e começa a se aproximar de nós duas.
  – E nem eu poderia dizer que vou matar ela. Então tudo será uma grande surpresa para ele. E sugiro que você mantenha seu bico fechado, porque se o souber dessa possibilidade, não pensará duas vezes em te matar para trazer aquela vadia de volta. Por isso, vamos evitar que ele se irrite e ferre com tudo. – Ele para em minha frente, mantendo seu rosto a centímetros do meu.
  Valerie estende sua mão, o empurrando de leva para trás, fazendo com que o garoto de olhos castanhos se afaste de mim.
  – Nós já entendemos, . – Ela diz firmemente, enquanto ele sorri.
  – Eu só estou dizendo isso para o bem de vocês. – Ele ergue as mãos em sinal de rendimento. – Vocês não conhecem o . E sabe, Mae, se você soubesse das coisas que ele já faz, com certeza nunca se envolveria com ele.
  – Nós já sabemos como vocês são. Obrigada por nos avisar. – Valerie interrompe outra vez.
  – é diferente de nós, assim como a Mae era. Vocês não têm ideia das coisas que eles já fizeram juntos. – Sua fala ganha um tom sombrio, apesar do sorriso em seu rosto.
  Do que será que ele está falando? Eu sei que as criaturas desse lugar não são nada confiáveis ou hospitaleiras, mas o que tão horrível pode ter feito?
  Já essa outra Mae, todos dizem coisas ruins sobre ela. De fato, não parece ter sido a melhor moradora de Setealém. Às vezes tenho medo de descobrir mais sobre ela.
  – Mas me diga, . – Valerie volta a dizer, e de canto de olho posso ver um sorriso surgindo em seu rosto. – Você disse que Sophie gostava da Mae. Mas ela não parece ser a única apaixonada por alguém aqui.
  Viro minha cabeça em sua direção, não entendo onde ela queria chegar com esse assunto.
  – Acho que você também não gosta da Mae. – Ela continua, em seguida, cruzando seus braços e mantendo o sorriso.
  Volto a virar minha cabeça em direção a , que havia mudado sua postura, se mostrando tenso e com uma expressão mais séria.
  – Nos responda, ... sabe que você está apaixonado por ele? – E como em uma cartada final, Valerie lança a pergunta final, que me faz arregalar os olhos em total surpresa.
   fica em silêncio por alguns segundos, mas logo seu habitual sorriso volta a moldar seu rosto.
  – E por que você acha que eu gosto do ? – tentava voltar com sua postura imponente, mas era visível o nervosismo em seu corpo tenso.
  – Acho que você contou mais do que devia hoje. Talvez você deveria se perguntar como ainda não percebeu isso, já que está muito perceptível. Afinal, por que você quer tanto tirar as duas Mae's da vida dele? Bem conveniente, não acha? – Valerie se torna cada vez mais confiante em suas perguntas, atacando nos pontos certos.
  – Você na verdade quer fazer o mesmo que Sophie, não é? – Apesar da pergunta vir de mim, meu tom é completamente surpreso, enquanto começo a fazer todas as ligações sobre as informações que recebi.
   continua com seu sorriso nervoso, mas não diz absolutamente uma palavra. Pela primeira vez, ele parece não ter uma resposta esperta para as coisas que lhe são impostas. O seu ponto fraco foi atingido, e talvez eu não esteja tão surpresa com essa revelação quanto deveria. Mas não posso dizer que as coisas ficarão mais fáceis depois de saber sobre isso. e Sophie não vão perder uma oportunidade sequer de me trocar pela outra Mae, e por isso preciso ficar cada vez mais atenta.
  Valerie continua esperando por uma resposta de , mas a única coisa que rompe o silêncio, é o barulho de uma das portas da loja sendo aberta. Mas especificamente, a porta que nos trouxe até esse lugar escondido.
  Um homem alto e pele pálida, com os cabelos longos e quase brancos, para na entrada da loja, enquanto segura um grande gancho em mãos.
  – Eu vim devolver isso. – O homem se dirige até , mas acaba parando no meio do caminho quando olha em direção a Valerie e eu.
  Meu corpo fica automaticamente tenso com seu olhar, fazendo-me chegar mais perto de Valerie, que, discretamente, me puxa pelo vestido, me colocando para o lado enquanto toma a frente.
  – Humanas... – Os olhos esbranquiçados do homem arregalam quase que imperceptivelmente.
  – Sim, humanas, Rony. Agora me entregue isso. – estende a mão para o homem, esperando que ele lhe dê o gancho.
  O homem alto aperta os dedos em volta do gancho, à medida que seu rosto vai se contraindo em uma expressão irritada.
  – Vocês... – Ele volta a andar, agora em passos lentos e pesados. – Vocês são a nossa desgraça. Sempre matando o nosso povo. – Ele continua, até ficar perto o suficiente para fazer com que Valerie dê dois para trás. – Por que estão aqui?! – Ele praticamente grita, erguendo o gancho em suas mãos para o ar na tentativa de acertar Valerie, que por sorte consegue desviar.
  Um grito de pavor rasga minha garganta, devido ao susto que levei. Encaro desesperadamente , mas ele não parece interessado em interromper o surto desse homem louco.
  Sem saber o que fazer, olho exasperada em todas direções, avistando o taco alumínio que havia sido deixado sobre balcão de vidro. E, sem pensar duas vezes, corro em sua direção, sentindo uma estranha sensação ao segurar o objeto em minhas mãos.
  Já com a pose do objeto, me apresso ao voltar para perto de Valerie, que tentava a todo custo desviar de outro ataque do homem de pele pálida.
  – Mae! – Valerie grita desesperada quando é acertada de raspão.
  Sentindo meus batimentos acelerarem e minhas mãos suarem, seguro firmemente no taco de alumínio e fecho os olhos antes de acerta-lo contra o homem de pele pálida. Permaneço nesta mesa posição por alguns segundos, até tomar coragem para abrir os olhos, vendo as farpas do arame enroladas contra a ponta do taco, cravas na pele do pescoço do homem, que já não tentava acertar mais Valerie. 
  Uma grande quantidade de sangue começa a escorrer de seu pescoço, e leva apenas alguns instantes até que ele solte o gancho que segurava.
  Minhas mãos suavam cada vez mais, enquanto começavam a tremer. Minha respiração se torna irregular, e meu coração parece que vai rasgar meu peito a qualquer momento.
  Ainda sentindo a adrenalina pulsar em minhas veias, puxo o taco de alumínio, o retirando do pescoço do homem de pele pálida, o que causa um barulho agoniante em sua carne. Em seguida, seu sangue começa a jorrar para fora, fazendo com que o homem caia de joelho sobre o chão, enquanto leva suas mãos até o lugar atingido. Ele parece buscar por ar, mas começa a se engasgar com o próprio sangue vibrante, e não demora até que seu corpo cai por completo.
  Valerie olha assustadamente em minha direção, e a única coisa que sou capaz de fazer é encarar o taco ensanguentado em minhas mãos.
  – Quem diria. Parece que você acabou de manchar o seu futuro nesse lugar. Você mal tem noção do que te aguarda daqui pra frente, Mae. – se aproxima, encarando o corpo estendido sobre o chão como se fosse apenas um simples pedaço de carne sem vida.
  E de fato, ele era agora.
  – Você matou ele... – Valerie também se aproxima, ainda tendo uma expressão assustada.
  – Não a olhe assim, ela te salvou. Você deveria agradecer. – diz, enquanto leva suas mãos até os bolsos de sua calça. Ele não estava levando nada disso a sério, para ele era sempre divertido ver humanos em situações assustadoras.
  – O-Obrigada, Mae. – E pela primeira vez vejo um vislumbre de medo no rosto de Valerie.
  – O que aconteceu aqui? – Salto em meu lugar ao escutar a voz do homem calvo retornar. Ele estava parado ao lado balcão de vidro, enquanto segurava uma caixa preta. Seus olhos corriam pelo corpo sem vida no chão, indo de encontro com o taco de alumínio em minhas mãos.
  – Nada com que você deva se preocupar. – caminha tranquilamente até o homem, pegando de suas mãos a caixa preta. – Você pode dar um jeito nessa bagunça?
  – Claro. Não se preocupe com isso, filho. – O homem se desloca do balcão de vidro, até o corpo morto, abaixando-se perto do mesmo. – Só espero que esse maldito Rony não tenha danificado meu precioso gancho. – Ele pega o objeto prateado que agora estava manchado de sangue.
  – Parece que isso te lembrou dos velhos tempos. – Para minha surpresa, o homem calvo olha em minha direção, soltando uma curta risada entusiasmada.
  – T–Tome. – Assim que ele se levanta, eu acabo por empurrar o taco de alumínio em sua direção.
  – Oras, eu te dei ele. – O homem pega o taco de minha mão, encarando-me de maneira confusa. – De qualquer forma, quando precisar, pode vir buscá-lo. É seu agora. – Ele dá um leve aceno de cabeça antes de se virar e seguir em direção a mesma posta escondida onde havia passado segundos atrás.
  – Acho melhor voltarmos, Mae já nos proporcionou diversão demais por uma noite. – debocha, iniciando uma risada de escárnio.

***

  Todo caminho de volta foi preenchido pelo assovio repetitivo de , enquanto, por outro lado, Valerie estava entorpecida em seu próprio mundo. Eu não sei como me sentir em relação a tudo isso, não acho que queira falar sobre o que aconteceu, até porque não me sinto tão mal, o que é assustador.
  Eu matei alguém, mesmo que para defender Valerie. E não me sinto tão culpada quanto deveria. Certo que meu corpo ainda tem alguns pequenos espasmos causados pela adrenalina e nervosismo do momento. Mas não me sinto tão mal quanto foi encontrar Angeline e Jack daquela forma, por exemplo.
  Eu não sei o que está acontecendo comigo e com todos os outros ao meu redor. A cada dia que sou obrigada a viver nesse lugar, sinto que estou me perdendo, perdendo a minha essência humana, e perdendo todos.
  No final, talvez eu não devesse me preocupar tanto. Me sinto no limbo durante esses dias que se arrastam, e todas essas ideias e sensações devem estar sendo causadas pelos acontecimentos mais recentes. Eu não deveria me martirizar tanto.
  Solto um longo suspiro cansado quando finalmente avisto a casa dos . Aperto os próprios braços ao redor de meu tronco, na tentativa de amenizar o frio causado pelo vento gelado da noite. continua sua monóloga canção através do assovio, enquanto nos direciona pela calçada que levaria até a entrada da casa. Com cuidado, ando sobre o caminho de pedras, passo a passo até chegar a porta vermelha. Como anteriormente, é o primeiro a cruzá-la, e nem ao menos se deu ao trabalho de nos esperar.
  – Mae, podemos conversar antes? – As palavras de Valerie cessam minha ação futura, onde eu estava prestes a seguir os passos de .
  Sentindo meu estômago se revirar, assinto levemente para ela.
  Os olhos de Valerie não encontram os meus, pelo contrário, ela olha em diversas direções, parecendo nervosa.
  – Me desculpe por mais cedo. – Ela expira pesadamente.
  – Pelo que você está se desculpando, Valerie? – Pergunto, sentindo meu estômago dar voltas e mais voltas. Essa conversa que mal começou, já estava me deixando completamente nervosa.
  – Eu só estava... assustada. – Ela começar a mexer os dedos. – Eu sempre estou por aí agindo como se pudesse defender todo mundo, mas a verdade é que a morte me dá medo. Ainda não tive coragem de fazer nada contra minha família deste mundo. – Ela confessa, erguendo seu olhar até o meu de forma envergonhada.
  – Acho que está tudo bem se sentir assim, ninguém gosta de pensar sobre algo que não nos dá certeza do que virá depois. – Solto outro suspiro. – Eu também fiquei assustada, Valerie. Não me sinto tão mal por ter matado aquele homem. – Também confesso.
  Valerie me olha compreensiva, mas com certo pesar.
  – As coisas estão loucas por aqui, só espero conseguir sair bem no final de tudo isso. – Ela comprime os lábios em um sorriso triste.
  Era completamente angustiante vê-la desta forma. Ver sua verdadeira face.
  – Eu também. – Falo sincera.
  Valerie inspira e expira profundamente.
  – Deixando toda essa situação de lado. Eu queria conversar com você sobre outra coisa, Mae. Na verdade, foi algo que eu tenho pensado muito por hoje, e depois do que aconteceu e das coisas que nos disse, eu tenho certeza que preciso compartilhar isso com você. – Ela tenta deixar seu lado "fraco" de lado, tornando seu semblante um pouco mais sério.
  – O que foi, Valerie? – Estranhamente todo o nervosismo que se aflorava em meu estômago parece não querer me abandonar.
  – Nós sabemos dos planos de e Sophie, mas ainda temos , e ele pode ser um problema no meio do nosso caminho, Mae. – Valerie cruza os braços, também tentando se proteger do frio. – Se desconfiar de tudo que ou Sophie planejam, será mais um contra nós. E estamos no mundo deles. Já é difícil sobreviver neste lugar, nós não precisamos de mais inimigos em um mundo onde eles simplesmente odeiam humanos.
  – No que você está pensando? – Pergunto, sentindo a ansiedade se juntar ao meu nervosismo.
  – Eu estou aqui há cinco anos, mas não conheço nenhum deles de maneira profunda, os moradores de Setealém escondem muitas coisas dos humanos. Não sei se realmente gostava da Mae que veio antes de você... – Ela faz uma pequena pausa, comprimindo os lábios outra vez. – Mas acho que podemos tentar usar isso ao nosso favor. Você poderia se aproximar do . Tentar mantê-lo sempre por perto, Mae. Talvez assim pudéssemos controlar e vigiar as coisas que ele faz, sem deixar que ou Sophie interfiram.
  – Você quer que eu me envolva com o ? – Pergunto surpresa, sentindo meu estômago se revirar outra vez.
  – Não, Mae. Eu quero que você se aproxime dele. A maneira pela qual você vai escolher fazer isso não importa. – Ela aperta os dedos contra os próprios braços.
  – Você não pode me pedir isso... – Dou um passo para trás, me mantendo surpresa com seu pedido.
  – Eu sei que não tenho direito algum de te pedir isso, afinal, ele é como seu namorado que já morreu... mas, Mae... – Seus olhos castanhos me olhavam com desespero, e sua voz soava como súplica. – Em cinco anos eu nunca tive esperanças de que pudesse sair desse lugar, mas com vocês aqui, com você, eu finalmente enxergo um vislumbre de luz. – Valerie avança em minha direção, retirando suas mãos de seus braços para segurar as minhas. – Você escutou , nós não conhecemos o , e muito menos sabemos das coisas que ele já fez. E agora que estávamos cada vez mais pertos de dar o fora desse lugar, não podemos deixar que ninguém tira essa esperança de nós. – Sua voz era completamente exasperada, enquanto suas mãos nervosas apertavam as minhas. Eu podia enxergar o desespero através de seus olhos assustados.
  Mas do que qualquer outra pessoa, eu quero ir embora deste mundo. Não posso ser egoísta a ponto de deixar que as coisas desabem. Estar em Setealém me faz confrontar o que mais dói dentro de mim, e talvez esse seja o caminho. Se eu quiser encontrar a liberdade outra vez, eu devo deixar todos os meus tormentos do passado para trás.
  – Tudo bem, Valerie. Eu posso fazer isso, mas não irei me envolver com ele. – Solto um longo suspiro, sentindo que a qualquer momento eu poderia ser engolida pela ansiedade.
  – Certo. Essa é uma decisão sua. – Ela sorri minimamente. – Nós poderíamos deixar essa conversa apenas entre nós? Não acho que sua irmã ficaria feliz em saber disso. Nós duas podemos dar um jeito nisso. – Ela solta as minhas mãos, parecendo estar um pouco mais calma agora.
  – Eu não contarei nada para ela, se você prometer não contar sobre o que aconteceu na loja. – Encolho os ombros.
  Valerie me olha compreensiva, em seguida, erguendo sua mão no ar e estendendo seu mindinho em minha direção.
  – Um segredo pelo outro.
  Copiando seus gestos, também estendo minha mão, enroscando meu mindinho ao seu.
  – Um segredo pelo outro... Val.
  Ela sorri abertamente ao finalmente me ver usando o apelido que ela tanto queria.
  – É melhor entrarmos de uma vez. Eve já deve estar surtando. – Ela afasta sua mão da minha, me fazendo acompanha-la em uma breve risada que é interrompida pela chegada de alguém inesperado.
  – O que vocês estão fazendo aqui? – Meu corpo se arrepia em pavor ao escutar aquela voz.
  Olho sobre os ombros, vendo a imagem alta de surgir detrás de sua casa. Ele estava parado ao fundo, nos olhando com seriedade.
  Volto meu olhar para frente, vendo Valerie acenar significativamente, antes de se virar e entrar na casa, me deixando sozinha do lado de fora com . Eu sei o que deveria fazer agora, mas esse não era o momento. Acho que já tive conversas o suficiente por um dia.
  – O que vocês estão fazendo aqui? – repete sua pergunta, enquanto se aproxima. E mesmo estando de costas para ele, eu era capaz de escutar seus passos pesados e rápidos.
  – Sua mãe nos convidou para o aniversário de Sophie. – Solto um longo suspiro ao escuta-lo parar atrás de mim, obrigando-me a virar em sua direção. Assim, notando que camisa preta que ele vestia, estava manchada em diferentes partes por um líquido escuro que parecia estar úmido. – Acho melhor entrarmos. – Digo, pronta para ir até a porta vermelha, e como eu já imaginava, não deixa, acabando por segurar meu pulso. – O que foi, ? – Pergunto, o encarando derrotada.
  – Nós deveríamos conversar, Mae. – Ele responde seriamente, me fazendo expirar alto.
  – Conversar sobre o quê, ? – Pergunto cansada, o que acaba soando um pouco rude.
   arqueia as duas sobrancelhas, abrindo em seguida, um sorriso de escárnio.
  – Você quer as coisas desse jeito? – solta meu pulso, levando sua mão até meu rosto, segurando meu queixo. – Nós iremos nos divertir um pouco então. Só não se esqueça de que tudo que acontecer daqui pra frente, é culpa sua, porque eu tentei ser bonzinho e conversar com você. – Ele aperta seus dedos contra meu rosto, antes de solta-lo rudemente, entrando em sua casa em seguida.
  Levo as mãos até meus cabelos enterrando meus dedos entre os fios loiros, enquanto inspiro e expiro diversas vezes, na tentativa de acalmar meu nervosismo e mandar toda minha ansiedade embora.
  Essa "festa de aniversário" ainda nem começou, e eu já fui capaz de irritar . E sinceramente, tenho medo de saber quais serão as minhas consequências.

Capítulo 15

  Respiro fundo inúmeras vezes antes de voltar para dentro da casa de porta vermelha, outra vez sendo recebida fervorosamente por Ada.
  – Mae, querida, se apresse. O jantar está já será servido. – Ada leva suas mãos até meus ombros, me impulsionando a andar para frente.
  Ela me guia pelo pequeno hall de entrada, passando pela sala e indo em direção à cozinha.
  – Espere. – Ela cessa seus passos, me obrigando a parar também. 
  A mulher de longos cabelos escuro se inclina para frente, olhando-me.
  – Acho que Sophie está no quarto dela, você pode chamá-la para mim? – Seus olhos com tons esbranquiçados me fitam em busca de uma resposta.
  Eu deveria negar, dizer que ela mesma deveria chamar a filha, mas algo dentro de mim me fez assentir, aceitando seu pedido.
  Com um sorriso no rosto, ela retira suas mãos de meus ombros e passa ao meu lado, indo sozinha para cozinha.
  Sem me importar muito com o que podia acontecer, e sem entender os meus motivos para isso, apenas caminho lentamente em direção ao corredor com algumas portas. E logo me recordo – na primeira vez que vim até essa casa – de ver Sophie em frente a porta que ficava no meio do corredor. 
  Me encontrando sozinha no corredor de portas, vou em direção a que eu julgava ser a dela, parando em frente a uma porta de tom roxo claro repleta por marcas pretas de sujeira. E sem cerimônia alguma, apenas seguro na maçaneta, a girando e empurrando a porta para dentro, revelando o ninho do pequeno diabo de cabelos longos.
  O quarto era pintado em rosa claro com várias rachaduras pela tintura; algumas bonecas de porcelanas ocupavam as prateleiras na parede. O chão não era coberto por nada a não ser o assoalho gasto de madeira, as mobílias faziam contrate com o assoalho marrom e a janela e cama eram cobertas por cortinas e lençóis de cores claras.
  Sophie estava parada perto de sua cama, de costas para mim, talvez ainda não tivesse me notado, o que me deu tempo para dar uma rápida examinada em seu quarto. 
  Perto da porta onde eu me encontrava parada, havia uma pequena cômoda com alguns produtos sobre ela, assim como uma tesoura pontuda manchada por sangue seco.
  Eu realmente posso imaginar mil coisas sobre o que Sophie faz em seu tempo livre, envolvendo essa tesoura.
  Ainda sem ser notada e de forma discreta, me aproximo ainda mais da cômoda, pegando o objeto manchado sobre ela e o escondendo atrás de meu corpo.
  Alguns segundos depois, Sophie finalmente parece notar minha presença, me olhando sobre seus ombros e formando uma grande carranca ao pregar seus olhos contra minha imagem.
  – O que você está fazendo aqui? – Ela se vira totalmente em minha direção.
  – Sua mãe pediu que eu viesse te chamar. O jantar está pronto. – Dou um passo falsamente receoso em sua direção.
  – Não me importo. Agora saia do meu quarto antes que você se arrependa. – Ela aperta os olhos e enrugando o nariz, enquanto assume uma postura intimidante.
  – E por que eu me arrependeria? – Pergunto calmamente, enquanto brinco sutilmente com o objeto escondido atrás de meu corpo.
  – Você já se esqueceu de tudo que eu te disse? É melhor não me fazer te matar antes da hora. – Sophie fecha as mãos em punhos, dando alguns passos em minha direção, até ficar cara a cara comigo.
  – Escute bem, Sophie, hoje eu tenho algumas coisas para você... – Abro um sorriso quase imperceptível, a vendo estreitar seus olhos. – Não pense que eu sou uma pobre coitada amedrontada. Eu sei exatamente os motivos por trás do seu plano... – Mesmo que estejamos cara a cara, dou mais um posso contra ela, obrigando Sophie a recuar. – Você acha que eu manteria minha boca fechada, já que se soubesse a razão do seu plano, provavelmente te ajudaria, certo? – Dou mais um passo, a encurralando contra sua própria cama. – E isso até funcionaria, se eu não soubesse das suas reais intenções por trás dessa mentira. Então eu sugiro que você seja uma boa garota daqui pra frente, já que eu tenho certeza que o não ficaria nada feliz em saber que sua irmãzinha é apenas uma traidora egoísta. – Me inclino para frente, enquanto ela se curva para trás.
  Revelo a tesoura escondida atrás de meu corpo, o que faz Sophie arregalar os olhos e agarra meu pulso direito com ambas as mãos, me impedindo de levar a ponta da tesoura até a pele de seu colo. 
  Uso o auxílio de minha mão livre para poder empurrar com força o objeto manchando em sua direção, conseguindo fazer com que a ponta afiada da tesoura tocasse sua pele pálida, logo pintada por pequenas gotas de sangue.
  – Agora é a minha vez de ditar as regras por aqui. – Fito diretamente os seus olhos raivosos, me sentindo muito bem por neste momento conseguir ser mais forte do que Sophie. 
  Eu sentia toda essa energia me consumindo por dentro e me dando coragem e força física para ser superior a ela. Era inebriante.
  Sem muita dificuldade, giro lentamente a ponta da tesoura contra sua pele, arrancando de Sophie um pequeno gemido de dor, algo que fez todo meu corpo vibrar com a sensação de controle.
  Sentindo cada fibra de meu corpo afundar nesta nova descoberta, apenas sou levada de volta para superfície racional, quando sinto meu corpo ser puxado brutalmente para trás, me fazendo derrubar a tesoura em minhas mãos.
  – O que você está fazendo? – Os olhos verdes de me engolem neste momento totalmente cobertos pela confusão e descrença.
  Fico em silêncio e Sophie também.
  – Eu quero saber o que está acontecendo aqui? – Sua voz se torna mais autoritária, e agora ele encara a irmã, que fica instantemente desnorteada. 
  A fito de canto de olho, esperando por sua resposta. Eu adoraria saber como Sophie explicaria tudo isso.
  Os olhos de Sophie correm por todo seu quarto, enquanto ela leva sua mão até o colo, tampando o lugar machucado.
  – Não é nada. Agora saiam do meu quarto, eu já vou. – A garota empurra e consequentemente eu, até margem de sua porta, a fechando em seguida.
  Fico parada ao lado de fora, tendo os olhos verdes de me pressionando a dar alguma resposta.
  – Por que você estava tentando machucar ela? – Sua figura alta parece se tornar ainda maior à medida com que sua voz se torna mais intimidante.
  – Eu só estava me defendendo. Vocês não gostam de humanos, se esqueceu? – Penso na melhor desculpa que surge em minha mente nesta hora. E para minha sorte, não me questiona, apenas estreita seus olhos antes de se virar, dando as costas para mim e seguir pelo corredor em direção à cozinha no mais absoluto silêncio.
  Ainda me sentindo estranha com tudo que aconteceu, acabo o seguindo até a cozinha também, onde alguns olhares mistos nos recebem. Todos já estavam sentados em volta da mesa, agora, tendo um novo "visitante", o provável pai de , que por sinal era muito parecido com o filho.
  – Onde está Sophie? – Ada nos olha confusa, procurando ao redor pela filha.
  – Ela já vem. – responde, antes de se sentar em um dos lugares vagos, mas especificamente ao lado de .
  Acabo por me sentar entre Mark e Eve, essa última que me olha com preocupação, mas lhe dou um pequeno sorriso para dizer que estava tudo bem. Valerie estava sentada do outro lado da mesa bem à minha frente, entre um lugar vago e outro ao lado de , que se sentava perto de . Já os pais de estavam ao seu lado.
  A grande mesa coberta por uma toalha branca estava repleta de comidas estranhas que eu nunca havia visto antes, algumas eu até reconhecia do mundo humano, mas a aparência era totalmente diferente, deixando tudo nada apetitoso.
  – Acho que já esperamos demais, podem comer, não precisam esperar por Sophie. – Ada faz um gesto de mão indicando a comida à nossa frente.
   e são os primeiros a se servirem, seguidos por Ada e pelo pai de . Valerie, parecendo ter recobrado toda sua postura relaxada de sempre, ser serve de algumas coisas também.
  Mark, ao meu lado, olha toda comida com curiosidade.
  – Você pode me ajudar? – Seu olhar se vira em minha direção.
  – Eu? – Pergunto por espanto, e ele assente. – Certo... o que você quer? – Pego o seu prato, enquanto ele aponta algumas das coisas postas sobre a mesa.
  Depois de ajudá-lo a por sua própria comida, devolvendo o prato para o garoto, que sorri em agradecimento, me fazendo ficar com o corpo tenso sobre a cadeira.
  Essa é a primeira vez que o vejo sorrindo assim. E não sei se me sinto bem com isso.
  Eve se mantém quieta ao meu lado, parecendo não querer comer nada. Ela estava bastante série e desconfortável com tudo isso. O que faz Valerie a encarar significativamente, já que nosso plano nesta noite era descobrir sobre os pontos falhos do plano de Sophie e não atrair suspeitas. E de fato, já conseguimos isso, agora precisamos manter toda nossa descrição até o final deste jantar.
  E contra sua vontade própria, Eve se serve de um pequeno pedaço de pão de cor duvidosa. E sendo comovido pelo gesto de Eve, faz o mesmo.
  – E você, não vai comer nada? – A voz alta e de timbre maduro do pai de , faz com que todos sentados ao redor da mesa me olhem. E sem saber o que fazer, acabo pegando uma pequena vasilha de porcelana trincada, e enchendo de uma sopa escura com algumas coisas estranhas misturadas a ela.
  Ada sorri satisfeita, e todos voltam suas atenções para o que comiam.
  – Eu já sabia sobre humanos que substituem um dos nossos, mas estou surpresa em ver como você é idêntica a ela. – O pai de volta a falar, me olhando com bastante curiosidade.
  – Ela até se chama Mae também, querido. Isso não é fascinante? – Ada encara os olhos de olhos verdes ao seu lado.
  Percebo outro par de olhos verdes pesar sobre mim, e discretamente noto me encarando, mas ao fitá-lo de volta, ele simplesmente volta a prestar atenção no que comia.
  O barulho dos talheres passa a ser os únicos que preenchem o silêncio que se formou entre todos ao redor da mesa. E isso se perpetua até que Sophie apareça.
  – Filha, por que demorou tanto? – Ada pergunta.
  – Eu já estou aqui. – Sophie responde sem encarar qualquer um aqui dentro, se sentando ao lado de Valerie. E percebo que em seu colo não há qualquer sinal de machucado.
  Provavelmente a tesoura que estava em seu quarto pertence a esse mundo, e por isso, não é algo capaz de machucá-la tão gravemente.

***

  O jantar se estendeu tranquilamente, Ada e Ryan, que descobri ser o nome do pai de e Sophie, tentaram puxar algum assunto comigo algumas vezes.
  Parece que a Mae desse mundo realmente foi alguém marcante dentro desta família.
  Minha irmã se manteve calada durante todo o jantar, e Mark e Valerie também, mesmo que estes dois parecerem tranquilos em relação a tudo; parecia assustado o jantar todo, enquanto ponderou muito de deveria comer ou não o que colocou em seu prato; Sophie nem ousou me olhar, e e trocaram algumas poucas palavras durante.
  A comida não era tão ruim quanto parecia, mas ainda assim preferia a que eu estava acostumada no meu mundo. Por isso, não foi um problema tomar toda a sopa escura e de aparência estranha. 
  Em seguida veio o bolo de aniversário, onde não houve um parabéns ou qualquer ritual. Ada apenas cortou o doce em fatias e o serviu. E agora me sinto aliviada por tudo isso ter acabado. Não vejo a hora de ir embora deste lugar.
  – Eu preciso usar o banheiro. – Ainda sentados em volta de mesa, Mark diz outra vez para mim. Encaro o garoto de cabelos loiros sem saber o que fazer, eu não conheço esse lugar.
  – Você pode levá-lo. É a porta ao lado do quarto de Sophie no corredor. – Ada diz, enquanto recolhe utensílios sujos.
  Aviso os três que vieram comigo que levaria Mark até o banheiro. E sem esperar por qualquer protesto da parte de algum deles, apenas me levanto da cadeira, seguida por Mark, enquanto saímos da cozinha e vamos em direção ao corredor com as portas.
  Sigo todas as instruções de Ada, achando o banheiro. E fico do lado de fora esperando Mark usar o banheiro.
  Me sinto um pouco estranha por essa atenção que o garoto está voltando para mim. Talvez fosse assim que Mark era tratado por Angeline e Jack, e agora que eles se foram, o garoto precisa de alguém para ampará-lo em algumas coisas.
  Que irônico. Quem diria que eu acabaria assim.
  Mark não demora ao usar o banheiro, e logo sai dos mesmos secando suas mãos molhadas contra a própria roupa.
  – Mark, posso te pergunta uma coisa? – O garoto assente, com os olhos curiosos. – Você tem doze anos, certo? – Ele assente outra vez em resposta. – Por que me pediu para te ajudar hoje? Não acho que você precise de mim para poder sua própria comida ou para te levar ao banheiro. – Me contenho para não comentar sobre o sorriso "agradecido" dele.
  – Hm, você me lembra ela. – Ele responde firmemente.
  – Ela? – Franzo o cenho.
  – Minha irmã. – Ele responde, me fazendo arregalar os olhos minimamente. 
  Às vezes me esqueço Mae era filha de Angeline e Jack.
  – Ela costumava ser legal comigo. Acho que é por isso que quero ficar perto de você. – O garoto de pele pálida dá de ombros.
  – Você quer ficar perto de mim? – Pergunto surpresa e ele assente outar vez.
  De certo, sei que existe uma versão de Setealém de Eve também, e depois de tudo que escutei sobre a Mae deste lugar, eu nunca acreditaria que ela fosse ligada a alguém aqui que não fosse . Talvez a outra versão de minha irmã sim, mas não a minha.
  Fico alguns segundos encarando Mark, querendo perguntar mais coisas sobre a outra Mae, mas ele parece notar e por isso dá um jeito de me distrair. Virando-se de costas para mim, ele encara uma das portas pelo corredor, mas especificamente a última que estava entreaberta.
  – É um quarto? – Ele aponta para o lugar. E antes que possa responder sua pergunta, ela dispara em passos até o quarto de .
  – Ei, Mark! Não entre ai. – Me apresso ao segui-lo para impedir que ele entre no quarto de , pois sei que isso não será nada bom.
  Em passos rápidos, Mark empurra a porta e liga a luz, me fazendo soltar um longo suspiro.
  – Mark, vamos sair daqui logo. – Alerto, quando chego na porta do quarto.
  – Oh!... É um quarto legal. – O garoto para em meio ao ambiente que eu já conhecia, olhando com curiosidade tudo ao seu redor.
  – Mark, vamos sair daqui. – Acabo entrando dentro do quarto, para tentar tirar o garoto de pele pálida.
  – Você vai invadir todos os quartos dessa casa agora? – Fechos os olhos e expiro profundamente ao escutar a voz de soar atrás de mim.
  Mark olha além de mim encarando , antes de passar correndo por nós dois e sair do quarto.
  – Eu não gosto que entrem no meu quarto sem serem convidados. – Pela altura de sua voz sei que ele está mais perto de mim do que eu gostaria.
  – Eu já estou saindo. – Me viro, vendo que estava a apenas três passos de distância.
  – Você está saindo? – Ele sorri com escarnio. – Nem deveria ter entrado aqui. – começa a se aproximar lentamente, o que me faz recuar até que eu me encontrasse entre ele e a cama, exatamente como foi comigo e com Sophie.
  – Eu disse que já estou saindo. – Responde firmemente.
  – Então sai. – Ele diz no mesmo tom, mas sou incapaz de me mexer.
  Fico estática no mesmo lugar, apenas o fitando. Era realmente horrível a maneira como eu sempre acabo presa a , e tudo isso pelo fato dele se parecer com alguém que amei. O que me faz cair em contradição contra as minhas próprias palavras e vontades.
  E mesmo sabendo que iria me arrepender depois, acabo me aproximando de , me aproximando o suficiente para beijá-lo, se o mesmo não tivesse me segurado pelos braços e me parado
  – Eu pensei que isso nunca mais iria se repetir. – se aproxima, dizendo lentamente bem perto de mim, mas sem me dar vez para tocá-lo.
  Ele estava apenas usando minhas próprias palavras contra mim neste momento, apenas uma diversão torturante, que me faz sentir uma completa idiota.
  – O que vocês estão fazendo aqui? – A voz de quebra todo meu arrependimento, me arrastando para longe dessa situação onde me coloquei como uma perfeita idiota.
  – Nada. – responde, ainda me fitando, enquanto me afasta com seu sorriso de escarnio.
  Apressadamente saio de perto de , indo em direção à porta.
  – Eu pensei que já tivesse deixado as coisas claras. – sussurra de forma baixa assim que passo por ele, me fazendo parar por um momento, mas logo volto a andar, querendo ficar longe desses dois.
  Eu agi como um idiota que não consegue manter as próprias palavras. E até mesmo me esqueci que gosta de , mas não imaginaria que depois de me contar isso, ele se portaria desta forma.
  Volto para a cozinha anunciando que todos nós precisávamos ir embora, e depois de algumas tentativas falhas de Ada para nos manter ali mais um pouco, finalmente estávamos nos aprontando para ir embora.
  Sophie havia desaparecido, mas não em importei com isso. e ainda estavam no quarto e por isso não os vi antes de ir embora. Por fim, Ada e Ryan foram os únicos que se despediram, dizendo que deveríamos voltar mais vezes.

***

  Durante o caminho de volta, Eve tentou saber sobre tudo que aconteceu quando Valerie e eu saímos com e, por sorte, Valerie conseguiu inventar boas desculpas, ocultando todos os detalhes sombrios daquele começo de noite.
  Antes de nos separamos, foi decidido que Eve e eu deveríamos ir para a escola no dia seguinte e tentar manter nossa "rotina" para não atrair a atenção de ninguém. E que também, Valerie e deveriam ser rápidos em cumprir suas partes no plano, já que por mais que Eve e eu tentássemos manter tudo escondido, uma hora dariam falta de Jack e Angeline neste mundo.
  Me surpreendi quando Valerie disse que seria a primeira a dar um fim em seus pais deste mundo, tendo em vista que ela havia me relevado mais cedo que estava temente em fazer isso. Mas depois dos recentes acontecidos e de nossa conversa onde formamos uma aliança secreta, ela parecia bem mais confiante agora. E sei que Valerie também estava fazendo isso por , já que ele precisava de mais tempo para se preparar do que ela. De longe, é o mais amedrontado e inseguro de nós.
  Depois de nossa breve conversa, Valerie e foram embora, alegando que passariam para nos buscar na manhã seguinte. E finalmente estávamos de volta para nossa casa, deixando para trás todos os acontecidos de uma noite que não deveria ter acontecido.
  Assim que retornamos, Eve foi direto até nosso quarto checar os corpos de Angeline e Jack, vendo que os mesmos transbordaram os baldes que foram deixados ali para coletar seus sangues. Os corpos estavam ainda mais pálidos e rígidos, e até pareciam mais magros depois dessa pequena sangria mortal.
  Minha irmã pediu que eu me acomodasse no quarto deles, se voluntariando para dar conta de toda a sujeira que havia se formado em nosso quarto. Ela com certeza está querendo me deixar de fora, já que eu estava muito abalada com toda a situação... mas isso foi antes, agora não me sinto mais mal, estranhamente, não me sinto.
  Vou até o quarto de Angeline e Jack, me sentando sobre a grande cama coberta pelo lençol escuro.  Fico ali, apenas sentada e pensando sobre tudo que fiz durante aquele dia, enquanto me pergunto se ainda posso ter uma vida normal quando tudo isso acabar.
  – Muitos dilemas, querida? – Seguro fortemente no tecido de meu vestido, enquanto cada músculo de meu corpo fica rígido. Lentamente viro minha cabeça em direção a porta, vendo o corpo alto de Angeline parado ao lado do batente.
  Meus olhos já nem piscam mais, eu não conseguia, parecia irreal. Como eu posso estar vendo ela?
  – Você não está morta? – Sendo preenchida pela adrenalina, salto da cama, perguntando exasperadamente.
  – Eu estou. Eve está cuidando do meu corpo nesse momento. – Angeline aponta para o próprio pulso, onde havia um grande corte em sua pele.
  Com calma, ela desloca seu corpo até onde eu estava, parando bem perto de mim.
  – Não fique com medo, querida. Pessoas mortas não machucam ninguém, pelo menos não aqui em Setealém. – Ela solta uma curta risada.
  – Se Eve está com seu corpo, então é a sua alma que está falando comigo? – Pergunto, ainda assustada.
  – Mais ou menos. – Ela solta outra risada. – Só você pode me ver. – Angeline diz como se fosse um segredo nosso.
  – Por quê?
  – Porque minha adorável filha está precisando de sua mãe. – Ela sorri, pegando uma de minhas mãos, fazendo meu corpo ficar rígido outra vez ao sentir seu toque como se ela estivesse viva. – Você passou por muitas coisas hoje, huh? – Angeline usa sua mão livre para levá-la até meu rosto. – Fez sua primeira vítima. – Seu polegar fazia um leve carinho em meu rosto. – As coisas ficarão um pouco difíceis daqui para frente, Mae.
  – Do que você está falando? – Pergunto, confusa e assustada.
  – Quando um humano mata uma criatura de Setealém, ele absorve algumas de suas características. Você não acha estranha o fato de não ter se sentido mal por não ter matado alguém? Ou a forma estranha com que atacou Sophie daquela forma? Isso não era você, minha adorável Mae nunca faria aquilo. Eu senti como você estava mal quando nos viu mortos, mas tudo isso foi embora depois que você matou aquele homem hoje.
  Meus olhos se arregalam com cada palavras que Angeline me dizia, assim como minha respiração se tornavam irregular.
  – Eve me matou por desespero e você viu como ela se tornou depois... Sem arrependimentos. Quanto mais vocês matarem, mais longe ficarão de quem são. – Os olhos esbranquiçados de Angeline me engoliam neste momento. – Você está me vendo porque toda sua mente está em colapso neste momento, mesmo que você não perceba. Mas não se sinta ansiosa por isso, Mae. Se você quer mesmo voltar para o seu mundo, antes terá que imergir em Setealém. Essa é sua única saída. – Sua imagem se desfragmenta diante os meus olhos, junto com suas últimas palavras. Me deixando sozinha e com um grande problema. Eu estava me tornando a Mae deste mundo sem nem ao menos perceber: suas vontades, sua maldade, sua falta de empatia. Eu nem a conheço, mas por tudo que dizem, eu sei que ela não era alguém que eu gostaria de ser.
  Tudo que senti ao chegar aqui se intensificou depois do que aconteceu hoje, eu estava me perdendo, e talvez eu devesse me perder para sair de Setealém.

Capítulo 16

  Depois de tudo que me aconteceu na noite passada, eu mal pude dormir. Fechar os meus olhos se tornou uma tarefa quase impossível. Não quando eu sabia que o corpo morto de Angeline estava em um quarto próximo, enquanto sua "alma" vinha me assolar. Não quando eu descobri que apanharia para mim um pedaço de cada pessoa que eu matasse. Não quando minha outra metade de um mundo cruel e paralelo estava tomando conta de meu corpo.
  Eu já estava devidamente arrumada para passar mais um dia na escola da qual sou obrigada a frequentar, mesmo que eu nem tenha mais idade para isso. E julgando pelo estado mórbido e cansado que eu me encontrava nesse momento, eu facilmente poderia me passar por qualquer morador de Setealém.
  Valerie e passaram aqui em minha casa como de costume. Pouco se foi falado durante todo o caminho, mas acho que nada fora do comum para eles, já que vivemos um dia após o outro dentro do próprio limbo de nossos medos. Talvez Valerie fosse a única capaz de captar alguma coisa, já que se mantém a mais tempo dentro deste universo, e com certeza passou por muitas coisas que lhe permitem aperceber algo estranho no ar.
  Bastou que colocássemos nossos pés para dentro da velha construção entorpecida de pessoas de pele pálida e olhos esbranquiçados, para que o anúncio de que deveríamos ir para as salas de aula fosse ressoado por cada um de nós.
  Impossível não lembrar do que foi me relevado na última vez em que estivesse dentro de uma dessas salas. Eu já estou engolindo cada gota de escuridão que rodeia este mundo, não acho que me lançar ao "ensinamento" do que pode me acontecer em Setealém ajude de alguma forma. Eu preciso escapar disso, nem que fosse por um único momento.
  – Alguém sabe onde tem um banheiro? – Pergunto, assim que vejo Mark se afastar de nós.
  – Eu não sei. – Eve responde em um dar de ombros. E apenas observa o fluxo de pessoas entrando na sala ao nosso lado.
  – Acho que tem um seguinte reto e virando à direita. – Valerie responde, e dou um aceno de cabeça antes de me virar de costas e começar a me afastar.
  A verdade era que eu não queria usar o banheiro, apenas precisava me manter longe dessas salas de aulas e dos professores que poderiam me revelar o que eu não gostaria de saber.
  Faço todo o caminho que Valerie indicou, mas sem me dar ao trabalho de procurar por um banheiro, apenas seguindo minhas pernas, deixando para trás todo o fluxo de pessoas.
  Apenas deixando para trás.
  – Mae! – Olho sobre meus ombros vendo Valerie me alcançando.
  – O que veio fazer aqui? – Pergunto, e ela se aproxima em poucos passos.
  – Vim te perguntar exatamente a mesma coisa. – Ela cruza seus braços abaixo dos seios, me fitando seriamente.
  – Eu disse que precisava usar o banheiro. – Tento soar convincente.
  – Eu percebi que você estava mais calada do que de costume. Até posso sentir a sua aura um pouco mais carregada. Aconteceu alguma coisa? – Os seus olhos castanhos correm por cada centímetro de meu rosto, querendo desvendar o mistério por trás de minha feição cansada.
  Solto um longo suspiro com muito pesar.
  – Eu não quero conversar agora. É só esse lugar que me deixa abatida. – Sou parcialmente sincera, já que esse, de fato, era um dos motivos de todo meu sofrimento interno.
  – Entendo. – Ela também suspira, agora, desviando seu olhar do meu, fitando ao seu redor, parecendo buscar pelas palavras certar para continuar. – Hoje eu vou começar a minha parte. 
  Valerie não precisa dizer muito mais para que eu entenda que ela está se referindo ao fato de ter que matar seus "pais".
  – Eu sempre quis sair daqui. Sempre estou tomando a frente de tudo. E até mesmo dei a ideia desse plano, mas agora... agora que tenho que fazer com minhas próprias mãos, isso meio que me assusta um pouco. – Val solta outro suspiro.
  Seus olhos vagam pelo ambiente que nos rodeia mais um pouco, até que voltasse a encontrar os meus.
  – Você não poderia me ajudar nisso? – Seu semblante sério de antes, é totalmente engolido pelo desespero e temor que varem suas íris banhadas pelo castanho claro.
  Me mantenho calada, sem saber o que te responder, já que o fato de eu ter matado uma pessoa é algo que está me assombrando até agora. 
  Ceifar uma alma fez com que eu absorvesse toda sua maldade para mim. E agora, bem diante de mim, Valerie me faz um convite para mergulhar de encontro com esse sentimento outra vez.
  – Acho que foi um convite meio ridículo da minha parte, ainda mais depois de tudo que aconteceu. – Ela sorri tristemente, fazendo uma pequena mexa de tom loiro escuro, cair para frente de seu rosto. – De qualquer maneira, eu vou estar na entrada em alguns minutos, e espero que você me encontre lá. – Desviando seu olhar em uma despedida, ela me acena rapidamente com a cabeça, se virando e voltando pelo caminho que veio.
  Fico parada no mesmo lugar, apenas vendo sua imagem sumir, enquanto suas palavras continuam transitando pelo ar.
  Expiro profundamente, fazendo um barulho alto.
  Valerie foi alguém que me acolheu e ajudou assim que fui trazida para este mundo. E me sinto até mal por não a ajudar neste momento, mas não sei se sou capaz, eu estou tão amedrontada quanto ela. Eu preciso de um tempo para acertar as coisas dentro de mim mesma.
  Em um suspiro culpado, volto a movimentar meu corpo, continuando assim, o meu caminho pelos corredores daquela escola abandona.
  Sou completamente tomada pelo sentimento de estar aqui a primeira vez, trazendo-me as memórias na primeira vez em que estive nestes corredores, quando fui arrastada e largada sozinha.
  Nem ao menos pude me dar conta de que meus pés me levaram até o segundo andar, mais especificamente, para o corredor onde me largou para que Sammy me encontrasse.
  – Eh, o que você faz aqui sozinha, querida?
  Sobressalto no lugar ao sentir dedos gélidos percorrerem pela parte detrás de meu pescoço.
  – Você não deveria ir ajudar sua amiga? – A imagem alta de Angeline rodeia meu corpo, parando a minha frente enquanto se inclina para ficar a minha altura.
  – Eu não quero me sentir daquela forma outra vez. Se eu matar mais alguém, vou acabar me perdendo dentro de mim mesma. – Confesso, soltando o nó que havia se formado em minha garganta.
  – Ora – Angeline inclina sua cabeça para o lado, fazendo os fios loiros, quase brancos, de sua cabeça acompanhassem o movimento –, você se lembra do que eu te disse ontem sobre aparecer porque você precisava de mim? – Suas grandes orbitas brancas me olham intensamente, esperando por minha resposta. 
  Apenas assinto.
  – Eu estou aqui de novo porque minha querida filha precisa de sua mãe outra vez. – Angeline sorri, me mostrando aqueles dentes amarelados. – Escute, Mae. Eu sei que você está com medo do que pode te acontecer se fizer mais alguma coisa. Mas parece que você ainda não entendeu... – Ela leva seus dedos gélidos agora para o meu rosto, segurando suavemente meu queixo. – Se você quiser sair deste mundo, vai ter que fazer muitas coisas. Não é uma opção ficar longe, se o fizer, vai passar a eternidade aqui. – A ponta de seu dedo traça levemente minha pele quente.
  – Por que está me falando isso? Só estou aqui porque vocês queriam, então agora me diz para sair? – Sinto minha cabeça fervilhar em pensamentos que me assustavam.
  Ela abre ainda mais seu sorriso amarelado, como se fosse possível.
  – Oras, nós já estamos mortos, querida. Não há mais nada que te prenda aqui. Lembre-se disso. – Essas são suas últimas palavras antes que seu corpo, ou melhor, alma, suma junto com o vento.
  Outra vez me vejo estagnada no lugar, agora com suas palavras que martelavam em meu interior, me deixando cada vez mais incomodada e me impulsionando a fazer coisas das quais eu só queria me manter longe. Mas já era tarde demais.
  Todo meu corpo me traía, e minhas pernas se mexiam sem que eu consentisse obrigando-me a seguir pelo caminho contrário. Atravessando os corredores e dobrando em todas as entradas enquanto tomava cuidado para não ser vista por ninguém, principalmente por Eve e .
  E por fim, vejo a imagem pequena e magra de Valerie parada na entrada da escola, enquanto seu corpo é embalado pelo vento que balançava de um lado para o outro.
  Com o corpo tenso e totalmente inquieta por dentro, caminho sorrateiramente até onde ela estava, tocando de leve em seu ombro, a fazendo me olhar com espanto. Acho que ela realmente achou que eu não viria.
  Sem dizer uma palavra sequer, Valerie desce os pequenos degraus de cimento, indo em direção a calçada, e eu apenas a sigo.

***

  Nosso caminho foi quieto e ensurdecedor pelos pensamentos escondidos. Sabíamos o que deveríamos fazer assim que chegamos em frente a pequena casa branca com as paredes machadas de lodo e sujeira.
  Valerie apenas me lançou um último olhar em alerta, e com um quase imperceptível aceno de cabeça, eu consenti com o que estava prestes a acontecer.
  Ela tomou a frente, e caminho em passos trêmulos até a porta de entrada, girando a maçaneta lentamente, depois empurrando a porta para dentro, relevando o ambiente pesado e mal iluminado.
  Valerie dá espeço para que eu entre primeiro, e preciso contar mentalmente até dez antes de entrar. Sentindo todo meu corpo imergir em uma horrível sensação assim que coloquei os pés para dentro da casa onde deixaria minha permanente marca de morte.
  A casa estava silenciosa e escura, como se fossemos as únicas presentes. Mas Valerie sabia que não, por isso, ela me guia pelos cômodos de forma silenciosa, antes de entrar em uma porta marrom e lascada, retornando em questão de segundas com um objeto reluzente em mãos: a mesma faca que a velha da floresta nos deu.
  Eu podia ver suas mãos tremelicarem enquanto ela apertava a faca em seus dedos. A garota de cabelos longos me olha atentamente, fazendo um pequeno gesto de cabeça, indicando uma porta a nossa frente.
  Outra vez a sigo, tomando cuidado para que meus passos não fossem descobertos pela nossa "presa". Com movimentos invisíveis, Valerie espalma sua mão sobre a porta de marfim escuro, empurrando-a de forma imperceptível, não deixando que qualquer barulho nos entregasse.
  Sobre uma grande cama de casal bem ao centro do quarto, uma mulher de longos cabelos brancos estava deitada, trajando uma camisola de seda azul.
  Havia uma outra porta dentro do quarto, está que estava rodeada de uma fraca luz que parecia vir do lado de dentro, acompanhado de um baixo barulho de água corrente.
  Ainda sorrateiras, caminhamos em direção à cama de casal, parando uma ao lado da outra, bem de frente ao corpo desacordado da mulher deitada. Valerie a encara profundamente, correndo seus olhos castanhos por cada parte do corpo dela, enquanto suas mãos tremelicavam cada vez mais, e seus dedos tamborilavam pelo cabo de madeira da faca. 
  Ela pisca os olhos de maneira frenética, antes de usar uma das mãos para limpar uma fina camada de suor que começava a se formar no topo de sua cabeça. Valerie chega a fazer uma primeira menção de aproximar a faca da mulher deitada, mas não consegue, seus movimentos travam e sua pele se torna pálida.
  Sentindo a ansiedade corroendo a boca de meu estomago, tomo coragem para retirar a faca de sua mão, deixando Valerie surpresa e espantada com o meu gesto, mas sem questioná-lo.
  Agora em posse da faca, encaro o tronco da mulher deitada, observando como o mesmo subia e descia lento e tranquilo. Sua expressão estava calma, e seus cabelos espalhados pelo travesseiro furado. Os braços estavam repousados um em cada lado do corpo, e as pernas juntas e coberta pela seda azul escura.
  Inspiro e expiro cinco vezes, agarrando o cabo da faca com as duas mãos, os ajeitando em torno de meus dedos. Pisco várias vezes, querendo deixar minha visão a mais nítida possível. Olho sobre os olhos rapidamente, escutando a água corrente vindo do banheiro, agradecendo por ainda ter algum tempo. Volto a encarar o corpo sem vida da mulher deitada, aproximando lentamente a ponta da faca em sua direção. Paro a ponta cortante bem acima de seu peito, sobre o ar, vendo minhas mãos tremerem de forma frenética. Viro minha cabeça para o lado, vendo Valerie me olhar de volta com temor e ansiedade.
  Inspiro e expiro mais uma vez, antes de abaixar a faca de uma única vez, golpeando a mulher desacordada. Seus olhos se abrem em um passe de mágica, e suas orbitas brancas parecem que vão saltar para fora de seu corpo. Seu olhar encontra o de Valerie, mostrando completo espanto ao notar a garota, que sem pestanejar, leva suas duas mãos sobre a boca da mulher deitada, abafando qualquer barulho que ela possa fazer.
  A mulher deitada agarra as mãos de Valerie, tentando a todo custo tirá-las de perto de si. Valerie me olha exasperada pedindo para que eu me apresse.
  Inspiro e expiro outra vez, em seguida fecho os olhos, sentindo o corpo da mulher deitada se debater embaixo da minha faca. E a deslizo – com dificuldade – para baixo, traçando uma longa linha reta que paro só quando sinto o corpo da mulher parar de se mexer.
  Amedrontada, abro os olhos, encontrando o grande rasgo em vermelho pulsante que fiz até o meio de sua barriga. Seus olhos estavam arregalados e vidrados, e suas mãos voltaram a repousar ao lado de seu corpo.
  Aos poucos, Valerie afastou suas mãos da boca da mulher deitada, vendo que as mesmas haviam se manchado de sangue, já que uma pequena quantidade fluía da boca de sua, agora, falecida mãe.
  O grande rasgo em sua carne emanava sangue sem cessar, manchando sua camisola de seda azul rasgada, assim como os lençóis claros e sujos.
  Fito Valerie, que estava completamente hipnotizada pela cena à sua frente, voltando à realidade apenas quando escutou a água corrente que vinha do banheiro silenciar toda casa.
  Ela devolve o meu olhar, ainda amedrontada, mas com um tom diferente, algo mais carregado e intenso. Algo parecia ter mudado nela.
  Valerie estende sua mão até a minha, tomando a faca de mim, para em seguida, se virar e caminhar em direção a porta do banheiro. Ela para por alguns segundos quando fica de frente para o marfim escuro, mas só por alguns segundos. 
  Ela abre a porta, entrando dentro do novo ambiente, e fechando a porta e me impossibilitando de ver o que iria acontecer.
  Fico alguns minutos no escuro, na ansiedade e no receio, temendo pelo que poderia acontecer. Mas seu corpo logo ressurge, coberto por sangue e água. Suas mãos tremiam incessantemente, e suas olhos não paravam de piscar freneticamente em questão de segundos.
  Ela procura desesperadamente meu olhar, junto com sua respiração que se tornava cada vez mais ofegante.
  Valerie havia sentido. Ela havia encontrado. Tudo que eu carreguei para mim, agora ela carregava para ela. Neste momento, ela sabia que Setealém estava a engolindo da mesma forma que fazia comigo a cada dia e a cada noite.

***

  Não sei quanto tempo passei na casa de Valerie, mas foi tempo o suficiente para escurecer mais do que eu gostaria. E nem ao menos me importei de voltar para casa no escuro, traçando cada rua deserta e coberta pela escuridão moribunda desta cidade.
  Recusei cada pedido de Valerie para que ela me acompanhasse. Eu precisava disso, queria sentir o ar pesado deste lugar enquanto pisava pela escuridão deste mundo. Queria afundar meus pensamentos em tudo que fiz antes que retornar para casa, quando teria que inventar uma desculpa qualquer para Eve, que deveria estar se descabelando para saber onde eu havia me enfiado.
  Eu tentei. Tente. E tentei.
  Uma, duas, três, quatro... Um milhão de vezes.
  Mas a minha cabeça não parecia funcionar direito, tudo me levava para o momento em que eu golpeava a mulher deitada sobre a cama. Eu fiz isso. Fiz isso repetidas vezes. Em um grande loop infinito em minha mente. Eu só conseguia ver a faca, o sangue e a expressão espanto.
  Eu não pensava em mais nada. Eu não conseguia pensar no remorso ou na dor de arrancar uma vida. A faca, o sague e a expressão de espanto, isso era tudo que eu tinha agora.
  Eu já conseguia enxergar a minha casa, e esse foi o único momento em que a faca, o sangue e a expressão de espanto não nublavam meus pensamentos.
  Eve brigou comigo. Não. Na verdade, ela gritou comigo, se desesperou, disse que havia pensando que eu estava com problemas, que estava machucada ou até mesmo morta. Ela chorou enquanto gritava que odiava esse mundo, e que se sentia estranha desde que matou Angeline e Jack, ela disse que não queria que o mesmo acontecesse comigo e me fez prometer que sempre ficaria perto dela.
  Eu prometi.
  Quando tudo já estava mais calmo, coloquei Mark em sua cama, dei uma rápida olhada nos corpos de Angeline e Jack, que estavam começam a esverdear e soltar um odor desagradável. E por fim, apenas fui me deitar ao lado de minha irmã, querendo apenas descansar, nem que fosse por uma única noite.
  Esperei até que Eve estivesse completamente tomada pelo cansaço e dormisse, para que eu pudesse fazer o mesmo. Mas eu não conseguia. Não havia sono, não havia cansaço, meu corpo ainda vibrava e toda ansiedade fluía por cada poro de meu corpo.
  Deitada na cama de Angeline, fico encarando a cortina preta que cobria a janela. Passo segundos, minutos, talvez horas, apenas encarando o grosso tecido preto que cobria a janela escondida, enquanto minha mente retorna para a faca, o sangue e a expressão de espanto.
  A faca, o sangue e a expressão de espanto.
  A faca, o sangue e a expressão de espanto.
  A faca, o sangue e a expressão de espanto.
  Era como um mantra só meu, um mantra que vagava por cada canto da minha mente, assim como o barulho que vagava do lado de fora do quarto.
  Ergo minimamente minha cabeça, agora encarando a porta fechada do quarto, enquanto ainda escuto alguém barulho vindo do lado de fora. Em seguida, repouso minha cabeça outra vez no travesseiro, talvez fosse apenas Mark.
  Ou não.
  O barulho fica cada vez mais alto, e é estridente, me lembrava um amolar de facas sobre uma pedra carrancuda e grossa. Ele é repetitivo e se estendia por longos minutos, acompanhando os passos que pareciam transitar pelo corredor ao outro lado da porta que me escondia.
  Automaticamente encolho meu corpo debaixo da fina coberta marrom, puxando o mesmo para cima, até que todo meu rosto estivesse coberto. Estico um pé para trás, sentindo o corpo desacordado de minha irmã.
  Todo meu corpo esquenta, e minha respiração quente começa a bater contra a coberta, deixando tudo ainda mais abafado dentro de meu casulo improvisado.
  O amolar de facas some, mas os passos não. Eles batem imponentemente no chão de madeira, antes de acompanhar o ranger da porta de meu quarto, que lentamente estava sendo aberta.
  Tento controlar toda minha respiração, quase que segurando a mesma. Impeço meu corpo de se mover, mas o mesmo tem alguns espasmos, me entregando.
  A porta range por mais alguns segundos, e depois os passos lentos e suaves começam a se aproximar de mim. As batidas de meu coração estavam tão altas, que eu poderia jurar que quem quer que fosse, poderia ouvi-las de qualquer canto do quarto.
  Eu sentia, com certeza sentia. Alguém havia parado de frente para mim. E mesmo que meu rosto estivesse coberto, é impossível não fechar os olhos com força e segurar minha respiração, torcendo para que quem estivesse parada à minha frente, fosse embora de uma vez.
  A sensação de ter alguém parada perto de mim se prolonga até o momento eu que eu não conseguisse mais segurar a respiração, inspirando forte e alto. Meu corpo já estava coberto de suar pelo calor e pelo temor.
  Isso parecia que não iria se afastar tão cedo, e todo meu corpo ardia em ansiedade revirando minhas entranhas de forma desesperada.
  Engulo em seco e agarro firmemente contra a coberta marrom, a puxando lentamente para baixo, relevando, pouco a pouco, a imagem de quem estava parada perto de mim.
  Cabelos loiros, olhos esbranquiçados, estatura baixa, corpo magro, olhar apático, pele pálida, roupas sujas e rasgadas.
  – O que você está fazendo aqui? – Sussurro, com a respiração ofegante. – Você me assustou. – Mesmo que em sussurro, minha voz era irritada.
  Mark não diz nada, apenas faz um gesto para que eu o siga. Ele se vira e sai do quarto outra vez.
  Me sento sobre a cama, esperando minha respiração se instabilizar. Franzo o cenho, não entendendo o que estava acontecendo, mas acabo, por fim, me levantando e saindo do quarto.
  O corredor estava escuro e vazio, mas logo é preenchido por uma por uma luz fraca e pela presença de Mark, que havia ido até seu quarto e retornado com um grande objeto em mãos; um taco alumínio envolto de uma arrame enferrujado e manchado de sangue seco.
  – Onde você conseguiu isso? – Pergunto, totalmente espantada ao rever o objeto que tinha uma grande ligação com a Mae desse mundo. – Ele deveria estar na loja do pai do . – Maneio minha voz, e olho de solavanco para o lado, vendo além da porta, o corpo deitado e desacordado de minha irmã.
  Mark não diz nada, apenas entende o objeto em minha direção e permanece assim até que eu o tome de suas mãos. E quando o faço, ele simplesmente se vira e volta para seu quarto, me deixando para trás no meio do corredor mal iluminando.
  – Eh, olha só o que temos aqui... – Uma voz feminina e conhecida sopra em meu ouvido, e nem preciso me virar para saber que era Angeline. – Isso me faz lembrar de minha pequena Mae. – Ela me sopra uma curta risada. – Você não sabe o que fazer agora, querida? Eu irei te ajudar. Troque de roupas, iremos sair. – E como se suas palavras fossem comandos programados diretamente ao meu corpo, retorno ao meu quarto, buscando por alguma roupa. Sempre tomando cuidado para não acordar Eve.
  Depois de me trocar, pego o taco outra vez e sigo com Angeline para fora da casa, onde ela me guiava pela noite escura e gelada, por um caminho mórbido que nunca percorri antes.
  Eu queria poder dizer que estava com medo, ou que queria correr de volta para casa, mas eu não queria. Meu corpo apenas seguia Angeline. Eu não parecia mais ter controle algum, na verdade, nem mesmo dos meus pensamentos.
  Eu ansiava por aquilo, mesmo que não soubesse o que era. Meu corpo imergia em nostalgia, mesmo que eu nunca tivesse vivido aquele momento. Meus dedos agarravam o taco de alumínio como se ele fosse um velho amigo de anos, mesmo que não fosse.
  E assim seguimos, com Angeline dançando pela noite, e soprando palavras pelo vento, enquanto meu corpo a acompanhava até um grande e velho galpão no meio do nada.
  – Chegamos, querida. Agora eu irei retornar, Mark precisa de mim. – A mulher de longos cabelos loiros sorri amarelo e depois desaparece como uma brisa em um dia quente.
  Fico parada há alguns metros do galpão, tentando descobrir o que eu deveria fazer ali. E talvez o garoto sentado ao lado do galpão – o de cabelos puxados para trás e olhos verdes, fumando um cigarro preto, enquanto limpava sua mão suja de sangue contra sua blusa branca – pudesse me explicar.

Capítulo 17

  Fico alguns segundos apenas o encarando, aproveitando do fato de que não havia notado minha presença ainda, o que dura poucos segundos, apenas o suficiente para que todo líquido vermelho de sua mão fosse transferido para sua blusa, agora, manchada.
  Seus olhos em tom de verde escuro encontram os meus, apenas sustentando um olhar apático e sem qualquer vestígio de surpresa. Ele retira o cigarro de cor preta de sua boca, soltando lentamente a fumaça por entre seus lábios, enquanto espera que eu diga alguma coisa.
  Eu não sei por que estou aqui, e nem que lugar é este, apenas segui Angeline e meu corpo, que me controlaram e me puxaram até onde estou agora. Eu não sei o que falar, muito menos o que o que fazer.
  – Que lugar é esse? – Pergunto a primeira coisa que percorre minha mente, ainda me mantendo distante de .
  Ele traga seu cigarro outra vez, sem pressa de responder a minha pergunta, apenas o fazendo quando volta a soltar a fumaça cinza.
  – Você não sabe? Então como veio até aqui? – Ele arqueia as duas sobrancelhas, e depois dá mais uma longa tragada no cigarro, antes de jogado sobre o chão de terra batido e grama ao seu lado.
  Comprimo os lábios em uma linha fina e aperto o taco de alumínio contra meus dedos. O que eu deveria lhe responder? Eu não posso contar a verdade.
  – Não sei. – Desvio o olhar para o lado, olhando o matagal vazio, na esperança de que não me pegasse em minha mentira.
  Escuto-o se mexer, e quando retorno meu olhar para , vejo que ele se levanta, saindo de perto do galpão velho para vir em minha direção. Ele leva suas mãos para dentro de sua calça preta, e caminha sem pressa.
  – Você se machucou? – Lanço outra pergunta quando o vejo parar em minha frente, não dando chances para que ele sustente o assunto que me trouxe até este lugar.
  – Esse sangue não é meu. – Ele aperta os olhos, nãos os desviando de minha direção por um segundo sequer. E mesmo na noite escura, posso ver um quase imperceptível sorriso pintar seus lábios.
  Sem aviso prévio, sinto meu coração se acelerar por um momento ao pensar no dono do sangue mancha a blusa branca de , e todo o caminho que ele fez até chegar nas mãos do garoto parado a minha frente.
  – Por que você está aqui? – Continuo com as minhas perguntas que camuflavam tudo que eu estava sentindo agora.
  Antes de responder, passa sua mão direita – que ainda continha alguns vestígios de sangue – pelos fios de seu cabelo, suavemente.
  – Por que você está aqui? – Ele tomba sua cabeça para o lado e me responde com a minha própria pergunta.
  Outra vez comprimo os lábios em uma linha fina, tentando encontrar uma resposta convincente para lhe dar.
  – Você não respondeu a minha pergunta, então eu não preciso responder a sua. – Mexo de forma discreta meu pé esquerdo sobre a terra seca, sentindo algumas pedrinhas contra o solado de meu sapato.
  – Você não precisa saber o que eu vim fazer aqui. Achei que queria ficar o mais longe possível de mim. – Seu sorriso que antes era quase imperceptível, agora era totalmente visível. Ele queria me mostrar isso, mostrar todo o seu sarcasmo.
  Ele está certo, eu quero mais do que tudo me manter longe dele, mas isso não significa que eu consiga. Em momento estou gritando e negando que o que fizemos deve ser esquecido, e que não vai se repetir, mas no momento seguinte estou buscando por ele desesperadamente. Isso é uma droga. Literalmente uma droga, quando ele se parece com a pessoa que mais amei. Uma destrutiva droga, quando eu tento buscar nele qualquer vestígio do meu ex-namorado, na tentativa desesperada de ainda tê-lo para mim, mesmo sabendo que ele já se foi há muito tempo.
  Eu me sinto mal, me sinto completamente mal por estar fazendo tudo isso para trazer meu ex-namorado de volta, e mesmo assim eu ainda me envolvo com o garoto parado à minha frente. É como trair todo amor que eu construí com o meu , trair tudo que vivemos com alguém que apenas se parece com ele fisicamente.
  Sou fraca demais para tirar de perto de mim, sou fraca demais para entender de uma vez por todas que ele não é a pessoa que eu amo, e que eu não sou a pessoa que esteve com ele no passado. 
  Eu não sei o que pretende com tudo isso, não sei se ele realmente não se importa de ficar comigo mesmo sabendo que eu não sou ela. Mas eu me importo, porque isso me corrói e me machuca quando estou com ele e quando percebo que não é ele.
  – Você está certo. – Respondo de forma baixa, criando um silêncio desconfortável entre nós.
  O sorriso sarcástico em seu rosto aumenta, e o verde de seus olhos se torna mais sombrio. Eu nem precisava dizer mais nada para que entendesse o que se passava em minha mente neste momento.
  – Por que você está com isso? – Ele deixa seu olhar cair sobre o taco de alumínio que eu segurava, depois estende sua mão direita, batendo a ponta do dedo sobre o topo com taco de baseball.
  Pondero alguns segundos antes de responder.
  – O pai do . – Talvez mentir não fosse a melhor escolha, e são amigos, ele provavelmente já sabe disso.
  Ele continua encarando o objeto por mais alguns segundos, talvez tendo algumas recordações da sua antiga dona?
  – Combina com você. – Ele sorri, erguendo seu olhar de volta até o meu.
   se aproxima de me mim, fazendo todo meu corpo ficar atento e ansioso, mas ele apenas passa ao meu lado, me deixando para trás, sozinha com aquele enorme galpão.
  Me viro rapidamente, vendo seu corpo alto e magro se afastar cada vez mais.
  – Aonde você vai? – Preciso perguntar um pouco mais alto, já que ele se afastava muito rápido.
  – Para casa. – Ele responde sem me olhar, levando suas mãos de volta para seus bolsos.
  Penso em correr atrás dele para não ficar sozinha aqui no meio do nada, mas ainda não sei por que Angeline me trouxe até esse lugar, e sinto que a resposta está dentro do galpão atrás de mim. E por mais que seja uma ideia terrível, eu vou ficar e tentar entrar.
  Espero até ver a silhueta do seu corpo sumir pela noite, para que eu possa virar de volta para o galpão, sentindo o vento gelado nos embalar. Respiro fundo e estreito os olhos para a construção de madeira, me aproximando lentamente. 
  Paro bem aonde estava sentado minutos atrás, vendo uma grande corrente enrolada em torno dos puxadores de madeira, com um cadeado prateado ao centro impedindo qualquer passagem.
  Seguro o taco de alumínio apenas com a mão esquerda, e uso a direita para tentar abrir as portas do galpão. Chacoalho os puxadores de madeira, mas apenas a corrente se mexe. Solto um longo suspiro, percebendo que não conseguiria nada está noite.
  Penso na hipótese de tentar destruir o cadeado com o meu taco, mas certamente faria um grande estrago e logo deduziria que eu fui a responsável pela bagunça, e sei que não posso fazer nada para estragar o plano que comecei com Valerie.
  Tive que me contentar em divagar o que poderia haver dentro do galpão enquanto fazia o caminho de volta para casa, que com estranheza, lembrei como se fosse um caminho já conhecido por mim. 
  No final não tive muito o que fazer, apenas fui até aquele lugar, ou talvez não, Angeline com certeza queria me mostrar algo, e talvez eu descubra.

***

  Eve não suspeitou de minha saída e Mark se manteve quieto. Noite passada retornei para casa e voltei para cama – mesmo sem conseguir dormir –, e agora estava sentada ao redor da pequena mesa de madeira da cozinha, enquanto olhava para a janela que mostrava a rua, esperando pela chegada de e Valerie.
  – Você vai contar para Eve? – A voz de Mark arrasta meu olhar até sua figura sentada ao meu lado. Desde que vim para a cozinha, ele se manteve em silêncio ao meu lado.
  – Não. – Encaro sua figura apática. Ele estava usando seu habitual uniforme escolar, e seus cabelos loiros, quase brancos, estavam penteados para trás.
  Mark não diz nada, apenas assente, entendendo perfeitamente que eu queria manter tudo em segredo.
  – Não deixe que ela veja aquele taco, vamos mantê-lo escondido. – Digo, e assim como fez anteriormente, ele assente.
  Assim que retornei para casa noite passada, fui diretamente até o quarto de Mark e o acordei, pedindo que escondesse o taco de alumínio com ele para que Eve não o encontrasse de forma alguma, caso contrário eu teria que lhe dar uma bela explicação sobre o mesmo.
  – Como você conseguiu aquele taco, Mark? – Encaro seus grandes olhos esbranquiçados.
  – Uma mulher alta e machucada me deu ele ontem de noite e pediu para que eu te entregasse.
  – Você não conhece ela? – Pergunto, e ele nega com a cabeça.
  – Ela tinha cabelos escuros, mas eles estavam cobrindo o rosto dela. – Sua resposta faz meu corpo ficar tenso por um momento. – Acho que ela me disse o seu nome, talvez seja Sammy.
  – Sammy? Sammy te deu isso? – Pergunto exasperada e ele assente.
  Levanto abruptamente da cadeira velha, e pego na mão de Mark, o puxando para fora da cozinha.
  – Precisamos ir até um lugar. – Sem esperar por uma resposta sua, saio exasperada pela casa, arrastando Mark comigo até a porta de entrada, onde saímos praticamente correndo pelas ruas de Setealém.

***

  – Foi aqui que você veio ontem à noite? – Mark pergunta ao meu lado, enquanto mantém seus olhos grudados no grande galpão à nossa frente.
  Agora, sob a luz do dia, mesmo que essa luz seja diferente aqui em Setealém, sou capaz de observar com mais clareza os detalhes da construção de madeira. Sua estrutura estava pintada em um vermelho escuro e descascado, assim como as telhas inclinadas pretas que cobriam o teto. A corrente e o cadeado em cores prateadas se destacavam em meio as cores apagadas e desgastadas do galpão.
  A brisa do dia era suave e balançava com maestria o mato alto ao redor de todo galpão, fazendo um pequeno barulho. A terra seca era visível por todo o ar onde estávamos, levantando a poeira. E nada do que eu via combinava com o céu vermelho, e talvez nada seja capaz de combinar com este céu estranho do qual acabei de acostumando com o passar dos dias. Talvez isso aconteça no apocalipse, essa cor pintando a imensidão sob nossas cabeças.
  – Sim. – Respondo Mark, também mantendo meus olhos em direção ao galpão.
  – E o que tem aí dentro? – Mesmo que meus olhos estejam sobre a construção de madeira, posso perceber que o garoto ao meu lado desvia seu olhar até mim.
  – Eu não sei, não consegui ver nada ontem. – Solto um longo suspiro.
  Depois de saber que Sammy foi quem deu aquele taco de alumínio para Mark me entregar, eu senti uma necessidade enorme de voltar até esse lugar. A princípio eu pensei que poderia ser apenas Angeline querendo me mostrar algo, mas depois do que Mark me disse ontem à noite, com certeza as coisas são mais complexas que isso. Talvez quando Angeline aparecer outra vez, ela me conte o que está acontecendo, e se por algum motivo ela tem algo a ver com Sammy.
  Depois de tudo que Valerie e eu nos envolvemos, as coisas estão cada vez mais misteriosas e estranhas ao ponto de Sammy querer me mostrar algo. Apesar de temer o que possa ser, não posso controlar minha ansiedade. Eu sei que Sammy e eu temos algo que não pode ser esquecido, um passado do qual eu venho tentando deixar para trás por quase quatro anos. E este é o grande motivo para minha curiosidade se aguçar dessa forma, eu preciso saber o que Sammy está planejando para mim.
  – Vamos ver então. – Mark dá um passo à frente, seguindo em direção ao galpão.
  O garoto de cabelos claros para em frete ao grande cadeado prateado, depois seu corpo cobre minha visão e só consigo escutar o barulho da corrente.
  – Está trancado. – Mark me olha sobre os ombros. – Podemos tentar quebrar.
  – Não. – Digo, e me aproximo dele. – estava aqui ontem, talvez ele tenha algo a ver com esse galpão. Ele me viu. Se tentarmos quebrar o cadeado, ele com certeza vai saber que fui eu. – Paro ao seu lado. – Eu vou pensar em outra maneira de descobrir o que tem nesse galpão. – Falo confiante mais para mim do que para Mark.
  O garoto ao meu lado assente, logo em seguida, inclinando sua cabeça para frente em direção a madeira do galpão, onde ele encosta a lateral do seu rosto na mesma, tentando escutar algo.
  Seus olhos ficam fixos no chão de terra batido e grama, enquanto sua expressão se torna concentrada.
  – Acho que tem alguém aqui dentro. – Mark diz, sem me olhar.
  Franzo o cenho, depois me inclinando também em direção a porta do galpão. Apoio minhas mãos na madeira vermelha gasta, e tento me concentrar o máximo que posso.
  Demoro alguns segundos até conseguir captar o primeiro barulho que não sei identificar ao certo o que possa ser.
  Encaro Mark que, agora, estava me olhando de volta. Sua expressão era séria e concentrada, mas acho que ele também não sabe o que tem do outro lado do galpão.
  – Acho que são correntes. – Mark indaga.
  – E gemidos? – Falo incerta.
  Eu acho que consegui escutar alguns gemidos, talvez de dor. Eu não sei ao certo.
  – É melhor irmos agora, antes que nos descubram. Eu vou voltar outra hora. – Mark assente, se afastando do galpão, e faço o mesmo. – Mark, se aquela criatura aparecer de novo ou falar alguma coisa com você, me avise na mesma hora. Eu não sei o que ela quer, mas com certeza não é coisa boa. E não podemos deixar Sammy estragar nosso plano, entendeu? – Falo série e temente.
  – Sim. – Ele assente outra vez, antes de nos caminharmos para longe do galpão.

***

  Depois de nossa breve visita até o galpão no meio do nada, Mark e eu seguimos para a escola. É um pouco estranho a maneira como tudo aconteceu, acabei me tornando mais próxima de Valerie e Mark em todo esse plano, do que de Eve e , que foram os que vieram comigo até este mundo.
  Eu não faço de propósito, as coisas parecem que estão vindo apenas para nós três, Mark e Valerie se envolvem mesmo sem querer. Sei que minha irmã quer me proteger de tudo que possa me acontecer aqui, eu sei que Eve teme que meu passado volte a me assombrar e tudo se repita outra vez. Eu também temo. Na verdade, eu relutei mais do que ela no começo, mas depois de passar pelo inferno neste mundo, eu sinto que não há outra maneira de sair daqui sem me afundar em meu passado escondido. Talvez tudo que venha me acontecendo seja algo premeditado, tudo está ligado, tudo chegou na sua hora. As cobranças vêm e uma hora temos que pagar pelo que fizemos, parece que a minha hora chegou.
  Eu apenas não quero envolver mais Eve nisso, eu sei o quanto tudo mexeu com ela e sei como o meu passado mudou toda nossa vida. E também temos agora, ele de fato é o mais assustado em tudo isso, me sinto até mal por ver envolvido em toda essa bagunça, por isso é melhor poupar Eve e ele.
  O caminho até a escola foi calmo, pelo menos até o momento em que encontramos Eve, e Valerie nos esperando na entrada do lugar destruído em quase ruinas velhas.
  Minha irmã tinha uma expressão preocupada estampada em seu rosto, expressão essa que logo mudou ao encontrar minha imagem se aproximando. Eve se torna furiosa, eu podia ver apenas na maneira como seus olhos se apertavam, acompanhando suas mãos fechadas.
  – Onde você estava? – Eve pergunta entre os dentes, descendo os pequenos degraus da entrada, de forma rápida e pesada.
  – Desculpe, eu precisada tomar um ar. – Paro de andar quando ela se aproxima, e Mark faz o mesmo ao meu lado.
  – Precisava tomar um ar? – Sua voz se torna alta e sarcástica. – Você está brincando comigo, Mae? Nós já conversamos sobre isso. – Seu rosto se torna vermelho.
  Não posso culpá-la, sei que está apenas preocupada comigo.
  – Desculpe, Eve. Minha cabeça anda cheia, eu só queria respirar um pouco. – Tento ser a mais calma possível para não a irritar ainda mais.
  Eve sorri sem humor, enquanto algumas veias de seu pescoço pulsam.
  – Só não se esquece que esse aqui não é nosso mundo. Você não pode simplesmente sair por ai quando bem entender, ou já se esqueceu que eles odeiam humanos? – E sem esperar por uma resposta minha, Eve me dá as costas e volta para entrada da escola, subindo os degraus e desaparecendo para dentro da construção.
  – Você está bem? – Valerie pergunta, se aproximando com .
  Ambos se ficaram longe durante nossa discussão.
  – Acho que dessa vez ela está mesmo irritada comigo. – Solto um longo suspiro cansado.
  – Ela estava preocupada, Mae. – diz, com uma expressão triste em seu rosto.
  – Eu sei. – Desvio meu olhar, me sentindo um pouco culpado por toda essa situação.
  Procuro Mark com os olhos, mas não o acho por perto.
  – Ele saiu quando você e Eve começaram a discutir. – Valerie explica, assim que nota.
  – Acho melhor entrarmos, não é bom deixar Eve sozinha lá dentro. E nós também precisamos frequentar algumas aulas de vez em quando para não levantar suspeitas. – avisa.
  Ele se vira e começa a seguir em direção à entrada da escola, Valerie e eu fazemos o mesmo. De forma discreta, sem que perceba, Val sussurra para mim que quer saber o que aconteceu, e eu respondo com um breve aceno de cabeça.
  Seguimos pelos corredores vazios, e Valerie nos direciona para uma das inúmeras salas, mas especificamente para a mesma que estive com durante nossa primeira e única aula. E não posso impedir de deixar um arrepio correr meu corpo ao lembrar o que vimos aquele dia, a forma como aquele garoto Joshe foi usado para nos explicar sobre como o sangue de moradores de Setealém ajudam na transição de humanos.
  Assim como da primeira vez, quando entramos, todos os alunos direcionam seus olhares em nossa direção, lançando cochichos abafados. Seguimos para o fundo da sala, indo nos sentar perto de Eve, que ainda mantinha uma expressão furiosa. Por hora, apenas deixo que ela lide com isso, sem querer chateá-la mais.
  Não demora até que o mesmo homem alto e velho entre na sala, o nosso professor, o mesmo que usou Joshe. Mas me sinto aliviada ao notar que sua mesa estava limpa e livre de qualquer corpo humano, e me pergunto aconteceu com Joshe depois daquele dia.
  – Bom dia, meus queridos alunos. – O professor saúda, indo para trás de sua enorme mesa, e colocando suas mãos sobre ela. – Estou vendo um novo rosto. – Ele sorri, estreitando seus olhos em direção de Eve. – Acho que nunca vi você por aqui antes. – Ele diz, mas Eve se mantém calada em seu lugar. – Certo, talvez você seja tímida.
  Seus olhos desviam de Eve e vão em direção a garota de cabelos loiros escuros ao meu lado.
  – Você não acha que falta muito, Valerie? – Suas sobrancelhas esbranquiçadas se arqueiam.
  – Achei que já estivesse acostumado, professor. – Ela responde calmamente, arrancando uma gargalhada do homem alto.
  – Mae, , fico feliz em vê-los aqui outra vez. – Para minha supressa, seus olhos fundos desviam outra vez, fazendo novos alvos.
   encolhe seus ombros em seu lugar, apenas assentindo, enquanto eu fico me perguntando como ele pode se lembrar de nós dois, sendo que só nos vimos uma única vez.
  – Eu tenho uma boa memória. – Seus olhos focam especificamente em mim, me fazendo ficar espantada em como ele conseguiu me ler tão indiscretamente. – E sem mais enrolações, vamos começar a nossa aula de hoje. – O professor anuncia, se virando de costas e indo até o grande quadro negro atrás dele. Ele mexe em algumas coisas, antes de começar a rabiscar sobre o quadro já rabiscado. – Na aula de hoje vamos aprender um pouco sobre almas perdidas e consequências. – Ele volta a se virar para a sala. – Nós sabemos que se um morador de Setealém tentar matar um humano, então ele simplesmente irá morrer. Mas alguém aqui pode me explicar o que acontece quando um humano tentar matar um morador de Setealém? – O homem de cabelos brancos olha atentamente para cada um de nós, esperando que alguém resposta sua pergunta.
  Um garoto sentado na fileira esquerda ao lado da parede levanta sua mão, me fazendo ficar um pouco desconfortável por sua resposta. Apensar de importante para nosso plano, as coisas que eles nos ensinam nessa escola não é algo que me agrada, talvez eu faça outra descoberta que me deixe completamente mal e com repudia de mim mesma.
  Por um momento encaro , Valerie e Eve, buscando algum contato que amenize meu desconforto, mas os três se mantêm quietos e concentrados no que está por vir através da resposta do garoto de cabelos escuros.
  – Humanos não podem matar moradores de Setealém. – O garoto responde, fazendo com o que o velho atrás da grande mesa escura, abra um sorriso empolgado e sádico.
  – Você está errado, Nicki. Humanos podem, sim, matar moradores de Setealém. – Sua correção faz com que um grande burburinho se espalhar por toda sala. – Com o instrumento certo, humanos também podem matar. Porém, existem consequências para isso. – Ele levanta seu dedo indicador no ar, o balançando de um lado para o outro.
  É impossível não me lembrar do que Angeline me disse sobre nós humanos absorvermos as características daqueles que nos matam. Algo que eu não compartilhei com ninguém, com medo de assustar ainda mais todos, principalmente Eve.
  – Se um humano mata um morador de Setealém, a alma desde morador pode passar a atormentar aquele humano pela eternidade. Porém, este morador escolhe se quer ou não aparecer para aquele humano, é opcional. – Ele explica, se virando outra vez para o quadro negro, fazendo mais rabiscos na tela escura. – Vocês são uma turma nova, e por isso não sabiam disso até agora. Falar sobre um humano matar um morador de Setealém é quase uma proibição, mas nós estamos implantando isso nas escolas atualmente, essa possibilidade existe e vocês precisam saber das consequências.
  "Já que estamos entendidos sobre isso, vamos prosseguir."
  Assim que termina de rabiscar coisas das quais não entendo, o professor retorna a se virar.
  – Todos aqui já devem saber que dois iguais não podem existir, ou seja, se um humano vive, um morador de Setealém precisa morrer e vice-versa. – Uma explicação breve sobre isso, a ordem natural é denominada pelo mais velho, aquele que nasce primeiro será o que continuará vivo, e aquele que nasce depois, está fadado a sua morte. O período de vida pode variar, não é algo estipulado, mas geralmente não passa dos vinte e cinco anos. E isso nos leva para o tópico em questão, nós já sabemos que alguém precisa morrer para que o outro viva, mas o que poderia acontecer se alguém morresse antes da sua versão nascer?
  – Eu não entendi. – A voz de Eve preenche os quatro cantos da sala.
  Me viro para olhá-la, mas ela está especificamente concentrada no homem de cabelos brancos.
  – Alguém morrer é algo natural, é o ciclo do equilíbrio, cara aluna. Isso é algo que precisa acontecer, ninguém pode interferir. Mas há casos onde uma pessoa nasce e acaba morrendo antes da sua outra versão nascer também, ou seja, ela acaba interrompendo esse ciclo, pois, não ouve uma morte do ciclo natural, e sim, um interrompimento deste ciclo, já que ele não chegou a se cumprir.
  "Humanos ou moradores de Setealém que acabam morrendo por fatalidades antes que suas outras versões nasçam, acabam virando prisioneiras de Setealém, mas não como moradores deste lugar, e sim como almas perdidas, geralmente aprisionadas nas florestas sobrevivendo de mágica negra. Essas almas perdidas acabam tendo o propósito de se vingar daqueles que as aprisionaram neste lugar, caso elas tenham morrido pelas mãos de alguém. E mesmo aquelas que morreram de outras formas, como um acidente, por exemplo, acabam virando almas amarguradas e sem ligação com qualquer humano ou morador de Setealém. Elas são almas perigosas das quais vocês precisam tomar cuidado, e por isso, todos advertem para que fiquem longe das florestas.
  – Professor, posso ir ao banheiro? – Me levanto de supetão da cadeira dura, atraindo a atenção de todos sobre mim, assim como a do velho de cabelos brancos.
  – Pode. – Ele assente, e indica a porta aberta.
  Sem pestanejar, saio apressada, passando por entre as carteiras e cadeiras de madeira. Alcanço a saída da sala e dou passos rápidos pelos corredores, indo até o jardim aberto do qual já estive algumas vezes, parando ao meio dele.
  Eu sabia, estava sentindo que assistir a mais uma dessas aulas me traria coisas ruins.
  Depois de tudo que vem me acontecendo, eu tenho certeza que Sammy deste mundo é a mesma Sammy que fez parte do meu passado. E desde que cheguei em Setealém, ela tenta fazer algum mal para mim. E ainda tem esta aula, ela me faz pensar que talvez Sammy possa ter morrido antes de sua versão de Setealém nascer, e que por isso ela virou aquela criatura presa neste mundo, e vive nos perseguindo desde que chegamos.
  Eu sempre soube que teria que pagar pelo que fiz um dia, mas não imaginava que seria desta maneira. Que viveria no inferno e seria perseguida por um fantasma do passado que está disposto a me arrastar para uma eternidade de julgamento.

Capítulo 18

  Fico mais alguns minutos parada em meio ao jardim aberto, apenas sendo atacada pelo turbilhão de más memórias que voltam para mim.
  As coisas estão ficando cada vez mais complicadas, e não acho que posso voltar atrás. Na verdade, não tem como voltar. Há quase três anos eu estive jogando tudo para debaixo do tapete, e tenho me enganado e fingido que nada aconteceu, mas isso não é verdade.
  – Mae, você está bem? – O som suave e calmo da voz de Valerie normalmente me assustaria por estar desprevenida, mas desta vez apenas olho sobre meus ombros, vendo sua figura alta parada na entrega do jardim enquanto coloca aqueles olhos castanhos para trabalharem tão bem nas minhas falsas desculpas.
  – Não, Valerie. Eu não estou bem. É impossível estar bem nesse lugar. – Dou um giro em meus calcanhares e paro de frente para ela, soltando um longo e pesado suspiro.
  – Estive aqui por quatro anos, sei muito bem disso. – Val solta uma risada nasalada. – Mas me diga – Ela se aproxima em passos curtos e arrastados. –, o que te incomodou naquela aula? Eu sei que não queria usar o banheiro. – Seus passos sessão quando ela fica a passos metros de onde estou.
  Chega a ser ridículo a maneira como Valerie e eu nos envolvemos tanto em coisas ruins que ela é capaz de ver através do meu desespero silencioso, enquanto Eve continua emburrada dentro de uma sala de aula estranha com um lunático no comando. Minha irmã está tão concentrada em se irritar com as coisas que faço, que não é mais capaz de ver através do que eu estou passando.
  Solto outro longo suspiro antes de continuar.
  – Valerie, eu tenho sido atormentada pela alma de Angeline desde que ela morreu. Eu não sei o que é isso, mas só Mark e eu vemos a vemos. Angeline costuma falar coisas estranhas ou tentar e mostrar coisas ainda mais estranhas, mas eu não posso entender, pelo menos não agora. Eu não a matei, e mesmo assim sou a única a ser atormentada por isso. E depois daquele incidente na loja do pai do , desde daquele dia me sinto ainda mais estranha, e você viu o que o professor disse.
  – Você acha que ter matado aquele cara está te afetando de alguma forma? – Valerie pergunta com as sobrancelhas arqueadas em surpresa. Eu apenas assinto.
  – E ainda tem aquela coisa estranha, Sammy, aquele que já tentou atacar todo mundo. – Comprimo os lábios em uma linha reta enquanto mordo o canto de dentro de minha boca.
  – Você sabe alguma coisa sobre Sammy? – Val remexe seu corpo no lugar, e quase posso sentir sua curiosidade fluindo pelo ar.
  – Eu tenho um palpite... – Engulo em seco, tendo os olhos de Val sobre mim, sem desviar por um misero segundo. –... ando pensando que talvez Sammy seja alguém do meu passado... alguém que eu fiz mal. E agora ela está prestes a acertar as coisas entre nós duas. Eu não sei muito sobre isso, apenas fiz uma suposição depois do que escutei na sala de aula.
  – Então Sammy é mais um que precisamos acrescentar na nossa lista de "tomar cuidado com..."? – Assim como eu, Val solta um logo suspiro.
  – Mas eu acho que você já sabia de tudo isso, não é? – Pergunto de supetão, a fazendo estreitar os olhos. – Você disse que tem estado aqui por quatro anos, acho que já deve saber mais do que nos contou até agora.
  Ao contrário do que deveria, Val não se mostra surpresa com as minhas palavras, talvez já estive esperando por esse momento.
  Eu andei pensando sobre muitas coisas ultimamente. Sei que os moradores de Setealém não falam muito com Valerie, mas se ela tem frequentado essa escola por quatro anos, já deve saber de tudo que descobri hoje. Eu só não entendo por que ela nunca disse nada antes.
  – Você está certa, Mae. – Ela solta outro suspiro, apesar de seus olhos manterem a seriedade. – Eu sei sobre as consequências de se matar alguém deste lugar ou sobre o que acontece com as pessoas que morrem antes do previsto. Vejo por meus olhos um pouco. Eu já te disse antes, eu tinha medo de contar certas coisas e você e sua irmã se desesperarem, e as duas eram minhas únicas esperanças nesse lugar. Se eu contasse que matar alguém de Setealém traria tamanha consequência, talvez vocês nunca fizessem nada, e toda nossa chance de fugir desse inferno iria embora junto com as minhas palavras.
  – Então você esperaria até que matássemos alguém para contar? – Cruzo os braços e me inclino para frente, a vendo desviar o olhar e ficar em silêncio. – De qualquer forma, não importa mais, o que está feito, está feito. Eu só quero dar o fora desse lugar. – Solto outro suspiro cansado.
  Não posso culpar Valerie desta forma, eu imagino o quão desesperada ela esteve por quatro anos. Não acho certo a maneira como ela nos conduziu, mas também não tem um caminho fácil para fugir deste mundo.
  – Por quanto tempo você precisa continuar nessa escola? Acho que quatro anos é um longo tempo. – Pergunto, vendo através de seus olhos uma pitada de alívio por eu não ter a condenado.
  – Essa escola tem o único objetivo de transacionar humanos para moradores de Setealém. Todos os humanos devem ficar aqui até que essa transição esteja completa. Você precisa entrar de um jeito e sair do outro, por isso assiste aulas, eles acham que isso ajuda, você precisa aprender sobre seu novo corpo e o lugar onde vai morar. Essa escola não tem um padrão de idade, o intuito é apenas transacionar, e este é o motivo pelo qual eles escolhem todo ano uma remessa de jovens de Setealém para frequentarem essa escola por um ano, para que eles ajudem nessa transição, já que teremos que conviver em todo sempre com as pessoas desse lugar. Eles são um modelo que devemos seguir.
  – Então esse ano eu tive a sorte de cair com e ? – Pergunto, e Val assente.
  – Talvez isso não seja apenas uma coincidência. – Ela dá de ombros.
  Com certeza não é.
  – Todos aqueles na nossa sala são humanos que já estão no seu estágio final de transição, por isso não sabiam de muitas coisas, os moradores não contam, a escola toma esse papel. E no meio disso tudo eu sou uma das piores alunas, eles esperam que a cada ano uma nova remessa de alunos transacionem, mas já estou aqui há quatro anos e não tive nenhum "progresso". São raros os humanos que conseguem se manter sóbrios a esse mundo. Eu tive muita sorte.
  – Isso tudo é loucura. – Digo, pasma,
  – Sim. – Val assente. – Mas vai dar tudo certo, nós ajudamos um ao outro e no final damos o fora desse lugar.
  – Eu espero que sim. – Outra vez mordo o canto interno de minha boca, sentindo o gosto amargo da dúvida. Eu queria acreditar que tudo daria certo, mas às vezes as coisas caminham por trilhas diferentes.
  – Hoje mais cedo, antes de passar na sua casa e chamar a Eve para escola, eu tive uma conversa com ... – Val faz uma pequena pausa, segurando o braço esquerdo com sua mão direita. – Ele está tão assustado com a ideia de matar sua mãe de Setealém, e você sabe, ele precisa fazer isso logo, não podemos perder tempo, não depois de tudo isso que está acontecendo.
  – No que você está pensado? – Pergunto, mesmo que no fundo eu já saiba resposta.
  Ela desvia o olhar outra vez antes de tomar coragem para me encarar. E são nesses pequenos momentos que sou capaz de captar a essência que Valerie tanto escondia atrás daquela grande camada grossa construída por longos quatro anos.
  – Nós deveríamos fazer isso por ele, Mae. Sei que quer sair daqui, mas acho que não tem coragem de matar.
  – Era o que eu pensava que você ia dizer. – Respondo.
  – E o que você acha? – Ela me olha com ansiedade.
  – Acho que já nos afundamos demais nesse lugar... vamos fazer logo. – Encolho os ombros e Val assente, forçando um mínimo sorriso.
  Em seguida, acabei contando para Valerie sobre o galpão e sobre , ela se mostrou bastante surpresa, pelo jeito isso era a única coisa que ela não sabia. Val sugeriu que tentássemos ir até lá para descobrir alguma coisa, eu avisei sobre o galpão estar trancado, mas ela acabou insistindo. E bem, era o que faríamos.

***

  Depois de minha conversa com Valerie, voltamos para a sala de aula sem levantar suspeitas. Nada de muito surpreendente foi dito pelo resto da aula estranha.
  Ao final de tudo, Valerie teve um breve conversa com , enquanto Eve ainda se mantinha emburrada e acabou indo embora na frente junto de Mark, que criaria álibis caso alguém fosse atrás de nós. Eu até pensei em ir atrás de minha irmã, mas neste momento tenho algo mais importante para resolver. Acho que posso aguentar seus surtos mais tarde, afinal, ela não sabe que irei ajudar com a mãe de .
  Seguimos da escola até a casa de Valerie para poder pegar a faca mortal que nos foi dada. Depois fizemos o caminho até a casa de , o qual foi extremamente silencioso, ele estava nervoso demais com tudo que aconteceria, e acabamos respeitando seu momento.
  – É aquela. – O de cabelos loiros cessa seus passos e aponta para uma pequena casa amarela com a pintura descascada.
  – Então vamos. – Val o encoraja, e faz um gesto de mão para que ele volte a andar.
  – Certo. – assente de forma nervosa e incerta.
  Em passos trêmulos e tementes ele toma a frente, traçando o curto caminho de pedras que parecia longo.
  Meu corpo começava a ser banhado pela ansiedade que fluía um pouco acima de meu ventre, parecendo fervilhar todas as minhas entranhas aos poucos. Fecha e abro as mãos em punhos inúmeras vezes, na tentativa de me acalmar um pouco. Controlo minha respiração que aos poucos parecia ficar alta.
  Olho de canto de rabo para Valerie, que estava ao meu lado, me possibilitando ver uma quase imperceptível e fina camada de suor preencher o topo de sua testa.
   para em frente à porta marrom de madeira, e agarra a maçaneta sem dizer uma palavra. Ele fica imóvel por alguns segundos antes de nos olhar sobre os ombros.
  – Eu vou entrar primeiro para distraí-la, esperem por três minutos e depois entrem. – Sua voz era tremula e baixa, transbordando todo o seu nervosismo.
  Nós duas assentimos vendo a imagem amedrontada de abrir a porta de sumir para dentro da casa.
  Val e eu ficamos quietas do lado de fora, apenas esperando o momento certo. E três minutos nunca pareceram tão demorados como agora. Eu já estava ficando agoniada com a espera, mas sei que era apenas a adrenalina se espreitando debaixo da minha pele.
  Quando finalmente tudo parecia certo, Val vai em direção à porta, girando lentamente a maçaneta, tentando fazer o mínimo de barulho possível. Ela dá espaço para que eu entre, fechando a porta sem seguida.
  Valerie retira do cós de sua calça, a faca escondida, a empunhando em ambas as mãos. Ela aperta o objeto contra os dedos e me olha por um segundo, pedindo permissão para prosseguirmos. Respondo ela com um aceno de cabeça, e este era o sinal que ela precisava para começar a andar sobre o assoalho de madeira.
  Os primeiros passos rangem sobre o chão, nos fazendo paralisar no lugar enquanto aguardávamos por alguns segundos.
  Respiro fundo e indico a bifurcação da esquerda para Valerie. Eu podia escutar, mesmo que baixo, uma conversa que se estendia por algum cômodo da casa.
  Sorrateiramente, Valerie e eu seguimos pelo assoalho de madeira, indo em direção à conversa. Ela se espreita com cuidado para o lado, tentando ver o que havia no cômodo. Em seguida, ela faz um gesto para que eu me aproxime, e vejo uma mulher alta e de cabelos brancos, usando um longo vestido xadrez, parada de costas para nós, ela estava de frente para uma grande pia de alumínio, e pelos movimentos de seus braços parecia secar algumas coisas. estava parado ao seu lado, conversando com ela, enquanto alternava seu olhar dela para nós.
  Os olhos de ficavam cada vez mais aflitos, e sei que precisamos ser rápidas ou todo o seu nervosismo vai entregar nosso plano.
  Me lançando um último olhar sério, Valerie começa a dar passos mudos até a mulher alta, parando atrás da mesma. A mulher parece sentir a presença de alguém, pois para seus movimentos com braços. Os olhos de se arregalam minimamente, alertando Valerie que o momento era aquele.
  Em um movimento rápido Valerie ergue a faca no ar, segurando a mesma com as duas mãos, antes de abaixar o objeto, golpeando a mulher de cabelos brancos pelas costas.
  Um copo e pano sujo caem sobre o chão. Os fragmentos do vidro se espalham por toda parte, causando um instantâneo barulho que indicava algo não muito bom.
  De onde estava eu podia ver o tronco de Valerie subir e descer com rapidez.
  A mulher de cabelos brancos faz menção de se virar, e é quando Valerie empurra a faca para baixo, criando um grande rasco no seu vestido xadrez e em sua carne pálida.
  O corpo da mãe de se torna fraco e suas pernas fraquejam. A mulher tenta se segura contra a pia de alumínio, mas não é o suficiente, estava fraca demais, o que resultou em uma batida violenta de sua cabeça contra a pia até o chão.
   leva as mãos até a cabeça em um ato desespero quando vê o corpo ensanguentado caído sobre os fragmentos do copo quebrado.
  O tecido do ombro esquerdo da mulher de cabelos brancos cai para baixo, expondo parte de sua clavícula e braço. Seus olhos esbranquiçados piscam freneticamente enquanto ela tentava dizer alguma coisa, mas acaba engasgando no próprio sangue.
  Uma grande poça vermelho começa a rodear todo seu corpo, manchando os pés de . O de cabelos loiros pula para trás, observando com puro pavor o corpo quase morto. Seus olhos tremiam nas órbitas.
  Muito sangue saia de seu nariz devido a batida contra a pia, assim como de a boca. E nem foi preciso golpeá–la outra vez, a mulher acabou morrendo engasgada com o próprio sangue, o que causava um barulho arrepiante.
  Valerie se afasta do corpo, com as mãos cobertas por sague. Depois joga sobre a mesa redonda de madeira, a faca suja e enferrujada. Seus olhos não desviam da mulher morta, ela nem ao menos piscava, estava em um grande transe, apenas observando o que havia feito.
  – E-ela está morta. – A voz tremula de preenche os cantos mórbidos da cozinha. Ele estava em completo pane, começaria a chorar a qualquer momento e suas mãos tremiam muito.
  Depois de matar a mãe de , fiz alguns cortes em seus pulsos, retirando um pouco de sangue para , assim como Eve fez com Angeline e Jack.
  Pedimos que permanecesse dentro da casa, enquanto íamos até os fundos para enterrar o corpo no jardim de trás da casa. O garoto encontrou alguns utensílios que nos ajudaram a criar uma cova rasa da qual jogamos o corpo de sua mãe. Não seria bom deixar esse corpo aqui com , ele está apavorado demais.
  E depois de todo trabalho sujo, limpar a bagunça e de ter se acalmado um pouco mais, nós três estávamos sentados sobre o assolhado de madeira do corredor que levava para a cozinha.
  Valerie estava ao meu lado e à nossa frente. Seus olhos azuis estavam apagados, enquanto ele encarava os próprios pés e abraçava os joelhos contra o tronco, totalmente encolhido.
  – Como vocês podem fazer isso? – Sua distante pergunta, mas ele não nos acha. – Digo, eu sei que precisamos fazer isso para dar o fora desse lugar, mas eu nunca seria capaz... de matar. – Ele se encolhe ainda mais sobre o assoalho.
  – Acho que não existe uma explicação para sua pergunta. – Valerie responde.
  – Talvez o desespero. – Digo, finalmente atraindo a atenção de , que me olha amedrontado.
  – É, talvez você tenha razão. – responde, antes de enterrar a cabeça contra os joelhos.
  Troco um rápido olhar com Valerie que solta um longo suspiro.
  – Escute , apenas descanse um pouco. Você vai ficar melhor. – A de cabelos loiros escuros, diz, antes de se levantar do assoalho de madeira. – Nós precisamos ir agora, que tal você dormir um pouco?
   retira sua cabeça de entre os joelhos, nos olhando aflito.
  – Vocês vão embora? Por favor, não me deixem sozinho. – Ele se levanta com rapidez, e faço o mesmo.
  – Vai ficar tudo bem, . Agora estamos cada vez mais próximos de dar o fora desse lugar. – Valerie tenta soar convincente.
  – Me deixem ficar com vocês, eu imploro. – As lágrimas começavam a se acumular na fina linha de seus olhos.
  – , você não pode. As pessoas suspeitaram, você precisa ficar aqui. – Valerie responde.
  As írises azuis que estavam encobertas pelo medo, me fazem seu mais novo alvo, e sinto todo meu corpo se virar por dentro.
  – Não se preocupe, nós iremos voltar aqui. Apenas descanse um pouco, tudo bem? – Sorrio amigavelmente para , que com os olhos prestes a transbordar em lágrimas, assente.
  Sem estender todo esse clima pesado e ruim, Valerie e eu damos as últimas instruções para , e acabamos por deixar a faca em sua casa para que ele se sentisse mais protegido e a usasse caso fosse necessário. E nos despedimos, deixando para trás um garoto que talvez nunca mais seja o mesmo depois do que viu hoje.
  Eu me sinto um pouco culpada, era como se tudo dentro de mim pesasse quando me lembro dos olhos aflitos de , mas isso é preciso, temos que sair deste mundo, e não há outra forma.

***

  Assim que saímos da casa de , Valerie disse que aquele era o momento perfeito para irmos até o galpão que mencionei. Ela estava curiosa. E confesso que não queria voltar para Eve neste momento, depois dessa longa tarde, eu realmente não posso encarar a expressão raivosa de minha irmã e suas palavras duras e altas, por isso acabei indo de volta ao galpão.
  Era um pouco distante da casa de , mas aproveitei o caminho para conversar com Valerie sobre o que pode haver no galpão, qual a ligação dele com e o motivo de Sammy e Angeline me levarem até o lugar.
  No final, tudo isso não passava de uma desculpa. Tanto eu quanto Valerie estávamos tentando encobrir mais uma morte. Esse galpão seria nossa distração para não lembrar que matamos mais uma pessoa. E talvez essa seja a única forma de não enlouquecer neste lugar, fingindo que nada aconteceu.
  Encarar tudo que fizemos até agora é o mesmo que dar as mãos à loucura e sucumbir a este mundo do qual queremos fugir.
  Depois de andar por um tempo, nós estávamos de frente para a grande e alta construção de madeira pintada em vermelho. O grande cadeado prata reluzia sob a luz vermelha do céu que começava a escurecer.
  – Ainda está trancado. – Falo, apontando para a corrente e o cadeado.
  – Você já olhou na parte detrás? – Valerie pergunta, enquanto toma a frente e começa a se aproximar do galpão.
  – Não. – Respondo, e a sigo.
  – Então é isso. – Ela me olha brevemente sobre os ombros. – Deve haver outra entrada. Se você só olhou a parte da frente, deve estar atrás.
  Seguindo pelo mato malcuidado e grama alta, contornamos o galpão velho que não tinha nada em suas laterais, mas na parte de trás uma janela não muito grande se destacava. Ela estava emoldurada por uma madeira quadrada e branca, e seu vidro era sujo, mas sem rachaduras.
  Uma grande quantidade de feno amarrado estava encostada contra o galpão de madeira lascada. E talvez pudéssemos alcançar a janela por ele.
  – Você não olhou direito, Mae. – Val repreende, arqueando uma sobrancelha.
  – Eu estava tão intrigada com tudo isso que nem pensei em vasculhar os outros lados. – Confesso, me sentindo um pouco ingênua, mas me sentindo aliviada por ter alguém comigo para fazer isso, de preferência Valerie.
  – Vamos então. – Ela faz um gesto de mão, e se apressa até o feno amarrado.
  Valerie segura na superfície do feno e pula para cima, estendendo a mão para que eu faça o mesmo. Me aproximo do feno e seguro em sua mão, tomando impulso e subindo para o primeiro nível do feno. Repetimos essa mesma ação até chegar no quarto nível do feno amarrado, onde somos recebidas por um vento gelado.
  Encaro minhas pernas descobertas, vendo alguns pequenos arranhões causados pelo feno, mas não é algo que me incomode.
  Valerie caminha até a ponta do feno, se inclinando para o lado e esticando a mão para empurrar a janela para dentro. Valerie precisa empurrar mais de uma vez até que a janela abrisse um pequeno espaço.
  – Vou entrar primeiro e depois você. – Ela anuncia, me olhando sobre os ombros, e eu apenas aceno.
  Com um pouco de esforço e força, Valerie toma impulso e se pendura na janela, lentamente arrastando seu corpo para dentro do galpão. Suas pernas ficam para fora antes de imergi-las para dentro da construção de madeira lascada.
  Seu corpo some por alguns segundos, e não demora para que Valerie coloque sua cabeça para fora da janela.
  – Vem. Sua vez, eu vou te ajudar. – Val diz.
  Olho uma última vez para o lado de fora vendo o terreno vazio onde o galpão ficava, respiro fundo e caminho até a ponta do feno, e faço os exatos movimentos de Valerie. Agarro nas bordas da janela e me impulsiono para cima. Val segura meus pulsos e começa a me puxar para dentro, arrastando meu corpo pela extremidade da janela emoldurada de madeira branca.
  Em apenas alguns segundos, sinto meu corpo ser jogado contra um fraco chão de tábuas espaçadas de madeira.
  Me sento sobre as tábuas espaçadas, observando que estávamos sobre um longo e largo andaime, também, de madeira, que ficava na parte mais alta do galpão.
  – Vamos ver o que tem aqui. – Valerie diz com uma pitada de exaspero.
  Me levanto das tábuas espaçadas, fecho a janela pela qual entramos, e começo a caminhar com Valerie pelo andaime.
  – Parece que isso aqui vai cair a qualquer momento. – Comento, observando a espessura fina das tábuas de madeira debaixo de nossos pés.
  Apertamos os passos e rapidamente chegamos ao final do andaime, onde havia uma grande escada que levava até o primeiro nível do galpão.
  O lugar por dentro era escuro e malcheiroso. Apenas alguns feixes fracos que vinham de lâmpadas em mal estado iluminavam o ambiente, assim como a luz que emanava da janela que entramos.
  Com cuidado e sem pressa, descemos os degraus das escadas de madeira do andaime, chegando ao primeiro nível.
  O lugar estava amontoado por mais feno e velharias enferrujadas por todos os lados, ocupando quase todo o espaço do galpão.
  – Acho que não tem nada por aqui. – Val comenta enquanto passávamos por algumas montanhas de fenos, indo em direção ao centro do galpão, onde o lugar havia um espaço maior.
  No centro, em um dos poucos lugares com espaço vago, correntes enferrujadas e de tom escuros estavam presas ao teto, elas pareciam projetadas para prenderem animais, mas o que estava na ponta de cada corrente não se parecia nada com qualquer animal.
  Três corpos estavam aprisionados contra as correntes que vinham do teto; duas mulheres e um homem, todos desacordados e de joelhos. Suas bocas estavam amordaçadas com um pano sujo de sangue, e seus tornozelos imobilizados com mais correntes.
  Os três corpos estavam pendidos para frente com as cabeças inclinadas para baixo. A pele era coberta de sujeira e machucados e os cabelos pareciam suados e pegajosos.
  – O que é isso, Valerie? – Pergunto completamente espantada antes de correr em direção aos corpos.
  O barulho dos meus pés sobre o chão de madeira desperta uma das mulheres, a de cabelos longos e loiros. Seus olhos se abrem lentamente, e sua cabeça se ergue de forma tímida, e quando seus olhos se encontram com os meus, vejo toda sua dor e medo eclodirem.
  Me apreço ao revirar o pano sujo de sua boca, abaixando o mesmo em direção ao seu pescoço.
  – Ei, você está bem?! – Pergunto exasperada, procurando por Valerie, que se aproximava de nós duas.
  – Por favor, me ajude! Me tire daqui! – Suas palavras eram mais aflitas que seus olhos acinzentados.
  – Quem fez isso com vocês? – Valerie pergunta assim que se aproxima, e antes que a mulher loira responda, a outra mulher, a de cabelos curtos e igualmente loiros, também desperta.
  Valerie vai ao seu encontro e espera até que ela esteja consciente para retirar a mordaça de pano de sua boca.
  – Q-quem são vocês? – A de cabelos curtos encara Valerie com medo.
  – Não se preocupe, não vamos fazer nada com vocês. – Val responde. – E ele? – Ela aponta para o rapaz que está à esquerda, na ponta, o único que ainda não acordou.
  – E-ele... – A garota do meio, a que estava na minha frente, desvia o olhar. – Ele morreu ontem. – Sua voz é baixa e falha, e mesmo com o rosto abaixado, posso ver alguns pingos de lágrimas encontrarem o chão.
  Olho para Valerie que parecia tão perplexa quanto eu, e pela primeira vez ela não tem uma solução alguma.
  Era isso que Sammy e Angeline queriam que eu visse? Mas por quê? Elas querem que eu descura quem fez isso com eles? Não acho que é uma ideia muito boa me meter em mais problemas, eu já tenho muitas coisas para me preocupar por aqui. Eu só espero que tudo isso não tenha a ver comigo e com o nosso plano.
  Eu definitivamente preciso conversar com Angeline sobre tudo isso e saber o que são essas coisas estranhas nesse galpão.
  Completamente confusa e atordoada com tudo que estava acontecendo, sinto minhas entranhas se revirarem quando escuto um barulho vindo do lado de fora do galpão, era algo como correntes.
  – Tem alguém entrando. – Valerie alerta tensa. – Nós precisamos nos esconder.
  – Não, não, não! Nos tirem daqui! – A garota a minha frente suplica.
  – Nós vamos, não se preocupe. Mas precisamos nos esconder agora. – Falo apressada, antes de colocar de volta em sua boca o pano sujo.
  De maneira rápida, me levanto do chão e corro com Valerie para trás dos fenos altos e gordos, deixando as garotas aprisionadas no mesmo lugar.
  Nos agachamos atrás do feno e ficamos em silêncio, apenas observando as grandes portas de madeira lascada do galpão se abrirem, relando algumas grandes e escuras sombras que pintariam cada parede daquele galpão com o mais vivo e vibrante vermelho.

Capítulo 19

  Espio as duas garotas acorrentadas que assumem as mesmas posturas de antes, elas estavam fingindo que ainda estavam desmaiadas, mostrando o medo eminente que elas tinham sobre quem se aproximava.
  À medida que as sombras adentravam o galpão, tudo vai ficando cada vez mais nítido e menos escuro, relevando de uma vez , e Sophie.
  Os três caminhavam vagarosamente, parando na entrada do galpão, onde cruza os braços e parece prestar atenção no que lhe diz, enquanto Sophie apenas encara os corpos acorrentados, por cima dos ombros de seu irmão.
  – Você está mesmo pegando pesado com eles. – dá uma fraca risada que ecoa por todo o galpão, em seguida, seus olhos castanhos param sobre as duas garotas falsamente desacordadas e o garoto morto.
  – Isso me lembra os velhos tempos – sorri, soltando um falso suspiro. –, você e Mae fazendo isso com os humanos que eram mandados pra cá. Vocês dois adoravam fazer isso juntos, apesar de Mae ser um pouco descontrolada. – apoia seu braço esquerdo sobre o ombro de , dando leve batidas com a palma de sua mão enquanto solta outra risada.
  Meus olhos se arregalam com a confissão – quase caio para trás quando tento me afastar involuntariamente – e se não fosse por Valerie que me segurou, eu teria revelado nossa presença neste momento.
  Os lábios de estavam comprimidos em uma linha fina enquanto seus olhos em um verde apagado, estavam fitando atentamente , não parecendo muito feliz com toda essa conversa entre eles.
  Sophie se manteve à parte da conversa entre eles dois, observar as vítimas e o galpão parecia algo muito mais interessante.
  – Eu vou indo agora, aproveite seu tempo. – retira sua mão do ombro de , indo para trás em direção à porta entreaberta do galpão de madeira. – Só não passe a noite toda aqui, sua mãe fica preocupada. – Ele acena, antes de deixar o galpão.
  Sophie olha para pela primeira vez depois que entrou.
  – Vai demorar? – Sua voz era calma e suave, muito diferente do tom que ela usava para falar normalmente.
  Eu já havia percebido como Sophie pode ser outra pessoa quando está perto do irmão.
  – Não. – se limita em uma resposta curta, fazendo Sophie entender que era hora de ir embora.
  Ela balança a cabeça algumas vezes para ele, antes de fazer o mesmo caminho que .
   fecha a porta do galpão e depois se vira, caminhando para o lado esquerdo do galpão, em direção à outra remessa de fenos altos e gordos.
  Ele vai para parte de trás dos fenos, parecendo procurar por algo, e em poucos segundos, ele surge com uma grande lança suja. O longo cabo era de madeira escura e a ponta parecia ser de metal coberta por sangue seco agora. Se assemelhava a algo usado apenas em batalhas antigas, mas também parecia o tipo de objeto estranho que você encontraria na loja do pai do .
   encara a lança em suas mãos por um momento, analisando meticulosamente os seus detalhes.
  Seu olhar corre da lança até os corpos acorrentados, com um ar completamente cansado, muito parecido com tédio.
  Seus passos pesados sobre o chão do galpão, fazem com que a garota loiro e de cabelos longos presa ao centro, trema em suas correntes, desmascarando seu falso desmaio.
  Seus olhos se apertam por alguns segundos antes que ela os abra, deixando que as lágrimas acumuladas fluam livremente em puro medo e dor.
  – Por favor, não faça isso. – Tendo o sentimento de qual poderia ser o seu fim, a garota implora, quase soluçando em suas palavras.
  A segunda garota, a da direita e com os cabeços curtos, abre seus olhos outra vez. Ela tenta desesperadamente se soltar das correntes, o que resulta em um baixo gemido de dor. A pele de seus pulsos já estava descamada, mostrando que ela está presa por algum tempo, e qualquer mísero movimento deve criar uma dor insuportável. Eu quase posso sentir.
   passa direito pelo garoto da esquerda, provavelmente percebendo que este já estava morto. E para ao centro, bem de frente para garota de cabelos longos e desgrenhados.
  – Não se preocupe, eu já estou de saco cheio de vocês. Serei rápido. – diz, manuseando a lança e suas mãos.
  A garota de cabelos grande tenta pedir por sua vida de novo, mas a única coisa que posso escutar dentro desse galpão é o grito alto e estridente da garota de cabelos curtos a direita, assim que , sem pestanejar, atravessa a grande lança contra a barriga da garota presa à sua frente.
  Os olhos da garota se arregalam e sua boca deixa escapar alguns suspiros engasgados e sôfregos. deixa a lança contra sua barriga, aumentando ainda mais sua agoniante e dolorosa morte.
  Completamente chocada com o que vi, tendo me afastar outra vez, caindo e levando Valerie junto, que estava atrás de mim. Por sorte não fazemos barulho algum, os fenos espalhados por perto abafaram o som.
  Valerie que estava por baixo, leva suas mãos até as minhas costas, e me empurra de leve para o lado. Ela se senta sobre o chão e me encara completamente séria, mas não com o que fiz, e sim com o que vimos.
  Me sento ao seu lado, engolindo em seco diante de sua expressão, antes de tomar coragem e voltar a espiar o que acontecia na frente dos fenos que nos escondiam.
   retira com brutalidade a lança que atravessava o corpo da garota de longos cabelos, e sua cabeça e corpo pendem para frente, fazendo uma quantidade significava de sangue sujar o chão.
  Ele vai até a segunda garota que estava completamente paralisada em seu lugar, ela não conseguia acreditar no que havia acontecido, e nem eu.
  Apesar de ter sido obrigada a fazer o mesmo alguma vez, ainda me sinto chocada, e talvez seja pela revelação do que faz e não pela morte sem si.
  Está última vida acorrentada dentro do galpão não tenta mais argumentar com ou suplicar o seu desespero. Eu sabia que ela sentia a sua morte, e isso não tem volta. A garota apenas para de gritar e fica estática em sua bolha de negação, esperando até que fizesse o mesmo com ela.
  E fazendo exatamente a mesma coisa de antes, retira aquela segunda vida de forma dolorosa. A expressão da garota de cabelos curtos não muda, nem mesmo quando a ponta da lança rasga sua carne, aparecendo do lado contrário de seu corpo.
  Ela apenas parecia conformada de seu final trágico.
   joga a lança ao lado do corpo que agonia até a morte, para depois caminhar até um feno perto de um estávamos, se sentando ao chão e escorando seu corpo contra as plantas ceifadas e secas. Ele enfia sua mão em um dos bolsos traseiros de sua calça preta, retirando um cigarro de mesma cor e um isqueiro. acende o cigarro, fumando vagarosamente enquanto aprecia o que acabou de fazer, ele nem ao menos pisca ao encarar os corpos mortos; e eu gostaria muito de saber o que se passava em sua cabeça neste momento.
  Ele ficou sentado contra os fenos observando atentamente os corpos no mais absoluto silêncio. Talvez tenha ficado desta maneira por uma hora, e em nenhum momento sua feição pareceu transparecer arrependimento ou coisa do tipo, ele apenas observava.
   acabo surgindo outra vez no galpão, e por um breve momento eu consegui enxergar a noite escura que caiu do lado de fora. Eve deve estar ainda mais irritada comigo agora, vou precisar de belas desculpas por estar demorando.
  – Sua mãe pediu que eu viesse atrás de você. Eu avisei sobre ela, . – cruza os braços em sua camisa branca encardida, e arqueai as sobrancelhas. – Você precisa começar a ser mais rápido ou devia simplesmente contar tudo a ela. – Seus olhos castanhos olham sugestivamente para os corpos sem vida.
   se levanta do chão, aproximando-se de , depois de apanhar a lança machada que usou, jogando-a sobre os fenos, no exato lugar onde havia pegado antes e, depois de soltar os corpos das correntes, deixando os recipientes vazios sobre o chão.
  – Não diga nada a ela, isso só vai ser preocupação desnecessária. – para ao lado de , levando sua mão até a boca e puxando o piercing preso em seu lábio inferior de forma irritada.
  – Eu não vou contar. – fita seriamente o rosto de . – Por que você continua fazendo isso? – Sua pergunta capta de volta a atenção de , que solta o piercing.
  – Do que você está falando? – As sobrancelhas de se enrugam.
  – Eu não me importo se alguns humanos morrem, mas se você está fazendo isso por causa da Mae, é melhor parar. Você sabe, , ela já morreu. Não precisa sair por ai fazendo o que costumava fazer com ela, isso é idiota.
  Eu nunca vi falar desta forma antes, isso é surpreendente, ele está mesmo empenhado em fazer esquecer minha outra versão.
  – E você se importa? – cerra os olhos, sorrindo com desdém.
  – Você sabe que sim. – bufa, começando a se irritar. – Você continua fazendo as coisas dela, e depois que aquela outra garota chegou aqui em Setealém, isso só piorou.
  Mordo o canto de dentro de minha boca e troco um rápido olhar com Valerie, e sei que ela pensa o mesmo que eu.
  Volto minha atenção para os dois, em tempo de ver continuar desdenhando , que se irrita cada vez mais.
  – Ela não é a Mae, . Coloca isso na sua cabeça. – levanta sua mão direita, batendo seu dedo indicador alguns vezes contra a teste de , que em um tapa, a afasta. – Ela é uma humana, exatamente como aqueles três que você matou. E matou porque os odeia.
  Os olhos de ferviam, ele estava jogando toda sua raiva e sua manipulação sobre , e eu sei exatamente por quais motivos.
   olha sobre seus ombros, os corpos por um momento, e me sinto nervosa com isso. Mais do que nunca eu gostaria de poder saber o que ele pensava.
  – Você sabe que eu estou falando a verdade. – continua, e se aproxima de assim que ele se vira outra vez.
   não diz nada, apenas fica em seu silêncio que confirmava cada palavras de . Ele não podia contestar isso, era o que ele fazia. E neste grande momento de fraquejo, depois de lançar sua grande isca, vê o momento perfeito para enfim relevar suas intenções ocultas.
  Tendo os olhos de sobre si, ele passa sua mão pelo pescoço do mesmo, parando em sua nuca, antes de empurrá-lo para frente, selando um surpreendente beijo.
  O corpo de parece ficar tenso com ação de por alguns segundos, mas pouco a pouco ele vai cedendo, colocando suas mãos em cada canto da cintura de para retribuir o beijo.
  Sinto a boca de meu estômago se revirar, enquanto mordo com mais força o conto interno de minha boca até sentir a uma fina camada de pele se desprender.
  Valerie segura a parte detrás de meu blazer preto, apertando o tecido entre os dedos. Ele provavelmente quer me dizer alguma coisa, mas não acho que esse seja o momento.
  O beijo entre e não dura muito, mas o suficiente para me fazer sentir mal. Era como ver o meu ex-namorado com outra pessoa, mesmo que não fosse ele ali.
  Ambos não dizem nada, apenas se encaram por mais alguns segundos, antes de com um aceno sugestivo de cabeça, indicar que eles deveriam ir embora.
  Os dois vão até a saída do galpão, e quando escuto o barulho de corrente e cadeado, sei que nos trancaram de novo aqui dentro.

***

  Valerie e eu permanecemos escondidas por mais algum tempo apenas para nos certificar de que eles já estavam longe o suficiente para que pudéssemos fugir.
  – Acho que agora está tudo bem. – Val diz, se levantando e saindo detrás do feno.
  Eu a sigo quando vejo ir até os corpos sem vida.
  Um longo suspiro escapa de sua boca, enquanto seus olhos pesam sobre aqueles que tanto sofreram.
  Tenho vontade de dizer para ela que deveríamos tirar esses corpos daqui de dentro, mas seria impossível, não conseguiríamos fazer isso.
  E mais importante do que tentar salvar o restante de dignidade dos corpos mortos, foi o barulho que escutamos vindo do lado de fora do galpão.
  As correntes. Alguém estava voltando.
  Valerie e eu corremos de volta para trás do feno alto e permanecemos em silêncio, vendo que o dono do barulho era Sophie.
  Ela havia retornado ao galpão, indo de encontro com os corpos sem vida, deixando que todo seu olhar de nojo corresse pelos três. Ela até cutuca um dos corpos com a ponta do pé.
  Sophie leva as mãos para trás das costas, e arrasta seus olhos escuros até o feno alto onde Valerie e eu estávamos escondidas.
  Ela sorri.
  – Vocês já podem sair. Eu sei que estão escondidas. – Sua voz ecoa pelo galpão, me fazendo trocar um olhar preocupado com Valerie, que por sua vez, se levanta e sai detrás do feno alto. Tento segurá-la e puxá-la para trás, mas não consigo.
  Acabo saindo também, vendo o sorriso de Sophie aumentar.
  – sabe que vocês estavam aqui? Ele não vai ficar nenhum pouco contente em saber disso. – Ela nos olhava como se tivesse tirado a sorte grande.
  – Ele também não ficaria nenhum pouco feliz em saber que você está tentando tomar sua namorada. – Val diz, mas Sophie não se mostra abalada com as palavras.
  – E quem vai contar? Vocês? – Ela levanta as sobrancelhas em surpresa, mas o seu grande sorriso continua em seus lábios. – Acho que estarão um pouco ocupadas para isso.
  – Eu vou dizer apenas uma vez. – Sophie vai até uma das correntes, segurando-a no ar, fazendo um pequeno barulho entre o galpão. – É melhor que vocês venham até aqui e me deixem prendê-las nessas correntes, ou eu darei uma ordem para que vá atrás dos seus amiguinhos.
  Olho rapidamente para Valerie, que transbordava raiva neste momento. Ela estava sem reação assim como eu.
  – Eu não estou brincando, andem logo ou ele vai matar todo mundo. – Sophie deixa seu tom de voz completamente ameaçador.
  Seguro na barra de minha saia, apertando o tecido como se pudesse rasgá-lo, eu estava nervosa em todos os sentidos. Nós não podemos colocar nenhum deles em risco, e sei que Sophie não me mataria até o dia previsto, mas não é o mesmo para Eve, e Mark, eles ainda podem se tornar alvos. me odeia tanto quanto Sophie, e ver minha miséria seria como um deleite para eles dois.
  Ainda apertando o tecido de minha saia, forço meus pés as darem os primeiros passos até Sophie.
  – O que você está fazendo, Mae? – Val me pergunta surpresa e exasperada.
  Paro de andar por um momento, olhando com pesar para Valerie.
  – Nós não podemos fazer isso com eles. – Falo e expiro profundamente, antes de voltar a andar.
  Quando já estou perto o suficiente, Sophie me puxa bruscamente pelo braço, prendendo-me no mesmo lugar onde a garota loira de cabelos longos estava antes de morrer.
  De joelhos sobre o chão do galpão, com os braços presos no alto e ao lado de um corpo sem vida, encaro Valerie, que sem escolhas, acaba se entregando a Sophie também, que a prende onde o único garoto estava quando entramos nesse lugar.
  – As coisas ficarão bem melhores dessa forma. – Sophie se aproxima, direcionando todo o seu cruel contentamento em minha direção.
  – As coisas não vão ficar assim, Sophie. – Digo, sentindo minha respiração acelerar.
  – Cale a boca! – Ela grita, acertando em cheio o lado direito de meu rosto com um forte tapa.
  Minha cabeça pende para a esquerda junto com os meus cabelos enquanto o gosto ruim do sangue enchia minha boca.
  – Você está louca, Sophie?! – Val também grita, e posso escutá-la tentando se livrar de suas correntes.
  Pisco meus olhos alguns vezes, esperando que toda dor ardente e formigante vá embora.
  Levando minha cabeça, sentindo o sangue escorrer pelo canto de minha boca, enquanto meus olhos marejam. Mas eu não iria chorar, eu não vou dar essa sensação para ela.
  – Apenas aproveitem, porque essa é apenas a primeira noite do castigo de vocês. – Sua risada preenche cada canto da minha mente, obrigando-me a mergulhar em toda sua satisfação ardilosa e sádica. Reverberando dentro de mim, neste momento, todas as coisas ruins que tentei reprimir desde que coloquei meus pés em Setealém.

Capítulo 20

  Uma noite e uma tarde já haviam se passado, e apenas sei disso porque Sophie faz questão de contar cada segundo que nos mantêm presas dentro desse galpão.
  O suor cobria todo meu corpo, principalmente na região da minha testa junto do sangue seco que se impregnava em toda minha pele, criando uma sensação de uma pequena crosta ali. Eu também podia sentir algum sangue escorrendo de meu nariz e ponta dos dedos das mãos, onde Sophie fez questão de apertar com um pequeno alicate enferrujado.
  Os meus cabelos estavam soltos e banhados por uma mistura de alguns de meus fluidos corporais expelidos durante uma nova sessão de tortura nesta manhã. Os fios loiros grudavam em torno de meu rosto, pescoço e costas.
  Os meus olhos pesavam, trazendo a avassaladora sensação de cansaço. Minha cabeça pendia para baixo, junto com as minhas mãos atadas por correntes. Os pelos do meu corpo estavam arrepiados, e meus joelhos ardiam sobre o chão de madeira e pouco feno que parecia se tornar mais áspero a cada minuto que passava.
  Minha respiração era curta e um pouco pesada, eu sentia meus pulmões queimarem toda vez que o ar era puxado com dificuldade para dentro. E como se isso não fosse o pior de tudo, o cheiro que os três corpos mortos soltavam era completamente horrível, às vezes embrulhando meu estômago enquanto o podre da morte invade os meus pulmões.
  Sophie manteve os corpos mortos atrás de nós, para que pudéssemos sentir o cheiro da putrefação que começava aos poucos.
  Eu não pensei muito em minha decisão quando Sophie nos ameaçou, apenas embarquei na minha própria tortura particular, mas o que eu poderia fazer? Eu sei o quão louca essa garota pode ser, e tem alguns motivos fúteis para não gostar de mim também. Eu acabei caminhando por onde não deveria, dentro de um grande ninho das cobras, e elas me cercaram, prontas para dar o bote. Não havia chance para mim.
  Todos que estão do lado de fora se mantêm aterrorizados com esse mundo, e não é nada certo que paguem pelos meus erros. Mas talvez se eu tivesse resistido, penso se poderia ter encontrado outra saída. De qualquer forma, agora está um pouco tarde para isso. Valerie e eu já estávamos presas até o pescoço dentro desse grande ninho, esperando que os predadores esmaguem nossos ossos até que virem pó. E eu sou a única responsável por isso.
  – Há tempos não me sinto tão bem assim. – Sophie diz, sentada sobre um pequeno monte de feno, enquanto segura o pequeno alicate.
  Ela balançava o objeto enferrujado de um lado para o outro, acompanhando o de suas pernas.
  Suas mãos estavam tingidas de vermelho, o meu vermelho e o de Valerie.
  – Às vezes eu me deparava com alguns humanos que tive que limpar do meu caminho, mas eram coisas tão vazias. Eu apenas recolhia o lixo de volta ao seu lugar. Mas fazer isso com vocês, e principalmente com você, Mae – Ela aponta o alicate em minha direção, com um grande sorriso que apertava até o canto de seus olhos. –, é prazeroso demais.
  Seu cabeça tomba levemente para o lado e seus olhos varrem cada parte do meu corpo miserável.
  – Não sei se vocês já tiveram esse tipo de sensação antes, mas é como ter o mundo em minhas mãos. Eu tenho vocês duas, e toda sua existência se resume a mim. Eu posso ser Deus agora. – Sua cabeça, que estava tombada para o lado, inclina para trás, seguida de uma alta gargalhada que arrancava até mesmo algumas lágrimas de Sophie. – Isso é mágico. Todos os humanos imundos estão em minhas mãos, eu posso acabar com a raça de vocês com pouco e divertido esforço. – Sophie seca o canto de seus olhos, e coloca o alicate enferrujado de lado, cruzando as pernas e mãos, apoiando seu rosto sobre elas. – Mas me conte, Mae, o que fez você acabar aqui? Depois de uma divertida tarde, acho que podemos ter uma boa conversa. – Sophie mantém o sorriso, olhando de mim para Valerie. E nem preciso procurar por minha amiga para saber que ela estava em um estado parecido com o meu, vê-la assim agora só me deixaria pior. – Eu sei que muitos idiotas daqui estão indo até o mundo humano atrás de imundos como vocês para substituir quem já morreu, mas também sei que você e sua irmã, junto com aquele garoto medroso, vieram antes do previsto, vocês procuraram Setealém antes que Setealém procurasse vocês. Não acho que vocês três acabaram aqui depois de passarem por uma porta. – O sorriso em seus lábios era de puro divertimento, e sua língua estala, pronta para soltar de uma vez o que eu não queria lembrar. – O que a humana Mae fez de tão ruim a ponto de conseguir vir até esse mundo?
  Sophie fica em silêncio, apenas apreciando seu próprio sorriso divertido junto dos seus olhos acusadores e sádicos.
  A respiração de Valerie se torna alta, e sei que ela está nervosa por isso também. Talvez ela queira apenas desviar o foco de todo esse monólogo de Sophie, mas é inevitável não me sentir corroída por dentro.
  Eu estava em uma situação complicada, meu corpo era completamente miserável e minha mente pouco lúcida, e Sophie quer trazer de volta algo que tenho deixado enterrado bem no fundo da minha alma manchada. Eu não posso controlar meus próprios pensamentos, e não posso impedir a barreira que criei durante três anos de ser derrubada por uma lunática perturbada como Sophie, que está usando meu momento de vulnerabilidade para fazer isso.
  – Será que a humana e frágil Mae não é tão inocente quanto parece? – Sophie se esgueira em seu vestido preto, saltando de cima do feno e caminhando em passos lentos até onde estou.
  Seu corpo magro e pálido se abaixa até ficar da altura do meu que estava ajoelhado. Ela leva sua mão direita até meu rosto, afundando seus dedos ossudos contra meu maxilar e bochecha, obrigando-me a encará-la.
  – Me diga, Mae. – Seus lábios se movem lentamente, enquanto seus olhos castanhos e esbranquiçados parecem engolir cada parte da minha existência dentro deste galpão.
  Sophie inclina seu rosto para frente, ficando perto o suficiente para que eu possa sentir sua respiração.
  – Me diga, Mae. Eu prometo guardar segredo sobre o quão manchada você é. – Ela sussurra as palavras, as atirando em minha direção como se fosse uma afiada lança que puxava tudo para mim outra vez.

***

  FLASHBACK

  TRÊS ANOS ATRÁS.

  – Você não pode ficar mais um pouco? – Pergunto pela quinta vez, enquanto me mantenho de bruços sobre a cama.
  – Você sabe que não, Mae. – me olha seriamente, fechando o único botão de sua calça jeans enquanto tenta calçar seus sapatos sem o auxílio das mãos.
  Bufo alto para que ele perceba meu descontentamento.
  – Pare com isso, Mae. Você sabe que esse é o meu trabalho. – me dá as costas, indo até sua camisa listrada, jogada sobre a cadeira preta que ficava a frente da minha escrivaninha marrom.
  – Você nem ao menos ganha para chamar isso de trabalho. – Resmungo para mim mesma, mas consegue escutar, me olhando sobre os ombros, antes de vir até onde estou.
  – Eu não ganho nada, mas gosto de ajudar. Agora pare de ser chata e me leve até a porta. – se inclina e deposita um rápido selar em meus lábios.
   era voluntário nos finais de semana em uma universidade do centro, ajudando em algumas aulas de reforço, e eu não gostava nenhum pouco disso. Todas aquelas garotas desocupadas do campus, que fazem questão de rodear o meu namorado o dia todo, isso me tira do sério.
  – E com certeza as garotas assanhadas da universidade também gostam da sua ajuda. Principalmente Sammy. – Contorço o nariz ao lembrar da garota de longos cabelos escuros, assim como seus olhos, que se tornou a pior de todas. Ela não conseguia disfarçar nem mesmo quando eu estava por perto.
  – Eu já pedi para parar com esse seu ciúmes sem motivos, Mae. – suspira, passando a mão pelos fios curtos de seu cabelo.
  – Não é sem motivos. – Apoio as mãos sobre o meu colchão e me levando, ficando de joelho na cama. – A garota te liga e manda mensagem durante a semana toda, e nem quando eu estou por perto ela para deixa de dar em cima de você. E não podemos esquecer que ela já tentou te beijar antes. – Cruzo os braços debaixo de meu sutiã cinza descoberto, e arqueio as sobrancelhas.
  – Já faz tempo isso, Mae. E ela apenas fez isso porque não sabia que eu namorava. – E como sempre, apenas arruma mais uma desculpa para proteger Sammy.
  – Não sabia? Como ela não sabia, se eu já tinha te acompanhado até o campus antes disso acontecer? – Aperto meus braços cruzados, e por um momento os olhos de caem sobre o meu busto.
  Ele se aproxima e coloca o joelho esquerdo sobre a cama, se inclinando em minha direção, e passando seu braço direito ao redor da minha cintura, trazendo meu corpo para mais perto do seu.
  – Você sabe que eu não estou interessada nela. – deixa seus olhos verdes, que eram quase brilhantes, percorrerem minha boca. – Eu amo você, Mae Edwards. E sempre será você, mesmo que eu tenha outra vida. – Ele aproxima sua boca da minha, roçando seus lábios rosados contra os meus, antes de iniciar um rápido mas delicioso beijo. – Você consegue entender isso? – pergunta sacana, enquanto sorri de lado. E sem conseguir formular uma resposta descente, sentindo meu corpo se tornar quente.
  Levo minha mão esquerda até a lateral do rosto de , fazendo um leve afago em seus cabelos castanhos, me sentindo a mulher mais sortuda do mundo por ter um amor como ele.
  – Vou te levar até a porta. – Mordo o interior de minha boca, tentando comprimir toda vontade que tenho de passar o resto da tarde com ele nessa cama.
  – Obrigado. – Ele mantém seu sorriso, antes de se afastar de mim.
  Solto um suspiro totalmente completamente apaixonado, em seguida, saindo da cama para ir atrás de uma blusa e dos meus chinelos.
  Quando já estou devidamente vestida, caminho de mãos dadas com para fora do meu quarto, passando pela cozinha onde minha mãe lavava a louça, e seguindo pela sala, onde encontramos Eve largada no sofá.
  – Já está indo? – Minha irmã pergunta, zapeando a televisão com o controle remoto em mãos.
  – Sim, preciso ir trabalhar na universidade. – responde ao meu lado.
  – E aproveitou bastante seu tempo com minha irmã? – Eve tira os olhos da tela da televisão para encara esperta, meu namorado.
  – S-sim. – responde sem jeito, enquanto coça a cabeça.
  Eve gargalha, completamente entretida pela vergonha do de olhos verdes. Ela adorava fazer isso com ele.
  – Até mais, . – Ela finalmente o deixa em paz, acenando um tchau com as mãos.
  – Até, Eve. – Ainda sem jeito, responde.
  Mostro a língua para minha irmã, antes de sair da sala com , o levando até a porta de entrada.
  Nos despedimentos brevemente e seu celular toca, ele não me deixa ver, mas consigo identificar mesmo que por segundos, o nome "Sammy" piscando no visor de seu aparelho. E para evitar qualquer tipo de briga, finjo que nada aconteceu e deixo que ele vá embora tranquilamente.
  Fecho a porta de entrada e volta para sala, me sentando ao lado de Eve no sofá.
  – O que foi? Que cara é essa? – Mesmo sem prestar atenção em mim, Eve pergunta, ainda zapeado pelos canais de televisão.
  – Sammy. – Respondo em um bufo irritado.
  – Essa garota de novo? – Eve me olha de rabo de olho.
  – Ela não para de mandar mensagens pro , e ela sabe que ele é meu namorado. – Mordo o interior de minha boca forte o suficiente para sentir o gosto metálico e forte. – Mas eu vou dar um jeito nisso. – Falo enquanto engulo o pouco sangue que invadia toda minha boca.
  – O que você vai fazer? – Eve para de zapear os canais de televisão, agora, prestando toda sua atenção em mim.
  Ela estreita os olhos, me fitando desconfiada.
  – Apenas vou dar um jeito para que ela nunca mais fale com o . – Sorrio fechado, me levantando do sofá.
  – Mae – Eve chama quando começo a andar em direção a saída da sala. –, não faça nada estúpido. – Ela alerta seriamente.
  – Eu não vou. – Sorrio fechado uma segunda vez, antes de deixar a sala de uma vez.

***

  Já faz um dia que deixou a minha casa, e apenas algumas horas desde que mandei uma mensagem pedindo que ele passasse aqui depois de sair da universidade.
  Eu tive uma longa noite e começo de manhã para pensar no que eu faria a respeito de Sammy, e resolvi que acertaria as coisas pessoalmente com ela. Sei que não posso contar com para isso, pois ele me daria mais um sermão fingindo que não vê o interesse de Sammy sobre ele, por isso é melhor deixá-lo de lado.
  Se essa garota ainda não tinha entendido que ama apenas a mim, hoje ela entenderia e se arrependeria muito. Mas talvez seja tarde demais para isso.
  Três leves batidas na porta me fazem voltar para a realidade no mesmo instante, e me sento sobre a cama, cruzando as pernas e esperando até que abrisse a porta do meu quarto.
  – Oi, Mae. O que queria falar comigo? – Com uma expressão de cansaço no rosto, meu namorado caminha até minha cama, se sentando na ponta direita.
  Engatinho para perto dele, levanto minhas mãos até seus ombros enquanto puxo seu casaco azul para baixo sobre os braços.
  – Não, Mae. Eu não posso demorar. – tenta me parar.
  – Não vou fazer nada. Você chegou da rua e está cansado, apenas estou tentando te deixar confortável. – Sorrio amavelmente, e ele acaba deixando que eu retire seu casaco azul.
  Jogo a peça de roupa sobre minha cadeira preta, notando um certo volume no bolso de sua calça, seu celular.
  – Então... – Ele incentivando que eu continue parecendo um pouco impaciente.
  – Eu não queria conversar sobre nada especifico, , só queria te ver. – Coloco meu corpo atrás do seu, levando minhas mãos até seus ombros outra vez, iniciando uma leve massagem.
   suspira.
  – Mae, eu estou cansado. – Seu tom de voz era baixo e arrastado.
  – Eu sei, e você pode descansar aqui, assim podemos ficar juntos. – Continuo apertando meus dedos de forma suave sobre os ombros de . Ele fecha os olhos, assentindo.
  Fico algum tempo massageando seus ombros tensos e cansados, até que nos deitássemos sobre a cama. Repousei minha cabeça sobre seu tronco, assim como minha mão direita, e esperei pacientemente até que ele dormisse.
  Permaneci por longos minutos encarando a parede com papel florido a minha frente, passando e repassando todo meu plano em minha cabeça, sem nenhuma pressa. Cada pequeno detalhe do que eu havia planejado fazer.
  Quando o fraco ressonar de preencheu cada canto do meu quarto, eu sabia que esse era o momento perfeito para colocar meu plano em prática.
  Ergo meus olhos para cima e encontro sua expressão serena e desacordada, então com cuidado, e tentando movimentar o mínimo possível, me levanto.
  Sentada sobre a cama, levo minha mão em direção ao bolso esquerdo de , retirando devagar e com cuidado o aparelho celular da sua calça.
  Olho de relance para o meu namorado que permanecia dormindo, antes de desbloquear seu celular e ir direto na lista de contatos, clicando em "Sammy" e procurando por qualquer vestígio da garota, mas simplesmente apagou tudo que ela possa ter mandado.
  Contenho um pesado suspiro, e envio a primeira mensagem para Sammy, me passando por . Peço que ela me encontre na biblioteca da universidade, pois tinha algo muito importante para lhe falar, ela questiona o motivo de eu não ter dito nada quando estavam em aula. Apenas respondo que não tinha coragem antes, e que agora estou pronto.
  E bastou isso para que ela ficasse completamente eufórica em suas mensagens, provavelmente pensando que nesta noite finalmente teria o que tanto quer, mas não sei se o que pretendo dar a ela seja o que deseja.
  Sammy diz que ainda está na universidade porque ficou depois da aula para estudar. E por fim, peço que ela me avise quando o local estiver vazio, já que quero ter uma conversa privada com ela. A garota responde que a universidade está quase vazia pelo horário tardio; e isso era perfeito.
  Ainda tendo cuidado, me levanto na cama, indo até meu guarda-roupas e retirando de lá qualquer peça de tom escuro que camufle manchas. Depois de estar trocada, me abaixo ao pé da cama, vasculhando embaixo da madeira em busca do velho taco de baseball que minha mãe guardava aqui em casa em casos de invasões e roubos.
  Com o taco de madeira em mãos, guardo o celular do em meu bolso traseiro, antes de caminhar até sua figura desacordada, me inclinando em sua direção para depositar um sutil beijo em seus lábios.
  Seguro o taco apenas com a mão esquerda, e uso a direita para afagar rapidamente os cabelos castanhos de .
  – Quando eu voltar, tudo estará resolvido. – Sorrio fechado para meu namorado que dormia profundamente, me afastando em seguida.
  Caminho para fora do quarto, fechando a porta sem fazer barulho. Passo em frente ao quarto de Eve e de minha mãe, ambos com as portas fechadas. Traço o caminho até a porta da frente de maneira silenciosa, agradecendo por do lado de fora já estar escuro, assim ninguém veria muitos detalhes do que carrego.

***

  Caminhei apressada pelas ruas que me levariam até a universidade de Hollow Grow.
  E finalmente, eu havia chegado.
  Ando ansiosa pelo grande campus deserto, parando em frente a construção amarela e branca. Checo uma última vez o celular de , vendo algumas mensagens de Sammy perguntando se eu já estava chegando e informando que todos já haviam deixado o local.
  Sorrio fechado para o visor acesso, desligando-o e guardando de volta no bolso traseiro de minha calça.
  Vou até a entrada e empurro a pesada porta de vidro, dando de cara com um extenso e escuro corredor. Em seguida, começo a vagar por ele, escutando apenas o eco de meus passos contra o chão lustroso.
  Seguro com firmeza o taco de madeira em minhas mãos, enquanto observo atentamente todas as direções para me cerificar que não havia ninguém assim como Sammy informou.
  Mais alguns passos depois e eu já me encontrava de frente a porta dupla de vidro da biblioteca, e através da transparência, eu enxergava uma fraca luz vinda do fundo do ambiente, onde um corpo de longos cabelos escuros estava sentado de costas para a porta.
  Com cuidado e sem fazer barulho, empurro um lado da porta dupla dando, mínima passagem para o meu corpo. Arrastadamente passo pela fresca aberta, fechando silenciosamente a porta, antes de começar a caminhar sobre a ponta dos pés até o corpo de costas.
  Sem pressa, e sentindo todo meu corpo arder em ansiedade, me aproximo de Sammy, que estava com a cabeça curvada para frente, provavelmente concentrada em algum livro. Seus braços estavam apoiados em cima da larga mesa de madeira que acolhia muitas folhas soltas de caderno.
  Apenas uma única lâmpada fraca iluminava o local onde ela estava, criando assim, uma enorme sombra escura à medida que eu me aproximava, mas Sammy estava tão concentrada que não notou, e esse foi seu erro.
  Paro atrás de seu corpo sentado, que estava coberto por um vestido rosa e casaco preto.
  Permaneço imóvel por alguns segundos, mas tempo o suficiente para que ela notasse minha presença.
  Sua cabeça se levanta, fitando a enorme sombra à sua frente, e posso sentir o exato momento em que seu corpo se torna tenso quando ela percebe que a sombra não se assemelhava nenhum pouco com a silhueta de . E antes que Sammy possa se virar e descobrir quem era o dono desta sombra, ergo o taco de baseball no ar, acertando em cheio a lateral esquerda de seu rosto, a levando violentamente para o chão junto com a cadeira de madeira em que estava sentada.
  Seu corpo se encolhe contra o piso gelado e alguns gemidos de dor escapam por sua boca, e com alguma dificuldade, ela vira seu corpo para cima, revelando o grande corte sangrento em sua cabeça. Seus fios de cabelos escuros estavam espalhados por todo seu rosto, mas sei que ela ainda pode me ver.
  – Então você queria se encontrar com o meu namorado? – Bato a ponta do taco contra a palma de minha mão, agarrando firmemente no local manchado pelo sangue quente. – Eu sinto muito, mas esteve dormindo esse tempo todo. Ele estava muito cansado por sua culpa. – Solto uma risada nasalada, me aproximando dela, agora, em passos nada silenciosos.
  – V–Você... – Sua voz sai falha e com completa dificuldade, enquanto Sammy tenta arrastar seu corpo para trás.
  – Sim, era eu. – Respondo, pisando sobre seu pé esquerdo, impedindo que ela continue se mexendo para trás. – Já estava na hora de colocar você no seu lugar. – Retiro meu pé sobre o seu, apenas para me abaixar, e me sentar sobre seu tronco tremulo.
  Levo o taco de baseball até o seu pescoço, pressionando a madeira com toda força que tenho. Seu corpo logo se agita embaixo do meu, e suas mãos agarram meus pulsos tentando afrouxar meu aperto.
  – Você sempre soube que era o meu namorado, e mesmo assim você continuou insistindo nessas suas investidas ridículas. – Empurro em um solavanco mais ainda o taco contra seu pescoço, e sinto suas unhas cravarem na pele de meus pulsos, mas não me importava com a ardência que isso causava, não agora.
  Suas pernas se debatiam, e seu rosto ganhavam um tom avermelhado assim como seus olhos arregalados e boca entreaberta.
  Eu podia sentir o sangue começar a escorrer por meus pulsos arranhados, mas isso não era o suficiente para me parar.
  – Eu sou a única que o ama, e sempre vai ser assim. – Falo entre os dentes, sentindo todo o meu corpo entrar em estado de fúria, me fazendo depositar tanta força contra o taco de madeira que quase penso que posso quebrá–lo.
  Sammy começa a derramar algumas lágrimas medíocres de arrependimento, enquanto falhamente, tenta sussurrar algum pedido de desculpas que não me comove.
  Seu corpo vai parando aos poucos de se debater e quando percebo que os olhos escuros de Sammy vão perdendo sua vida, afastado o taco de seu pescoço apenas para poder acertar o meio de seu rosto com a ponta do taco, e quando escuto o barulho do osso de seu nariz quebrando, sei que a deixei imóvel para sempre.
  Afasto o taco de seu rosto, vendo um seu nariz torto e uma grande quantidade de sangue escorrendo para fora dele.
  Permaneço sentada sobre seu corpo, escutado apenas minha respiração alta e descompensada. Olho para os meus pulsos ardentes, vendo alguns arranhões em carne viva, o último ato desesperado para viver de Sammy.
  Saio de cima do corpo sem vida, sendo observada por seus olhos escuros e mórbidos.
  Jogo o taco banhado em sangue sobre a mesa onde as coisas se Sammy estavam, sujando tudo que fosse em tom claro. Em seguida, pego o celular de e disco o número de Eve. Tenho uma breve conversa com ela, e conto tudo que fiz, pedindo que ela viesse me buscar. Minha irmã não disse uma palavra, apenas desligou o telefone quando terminei.

***

  Escuto passos pesados e altos vindos do corredor, e basta dez segundos contados, para que a imagem exasperada de Eve surja do outro lado da porta dupla de vidro da biblioteca.
  Seus olhos procuram com pressa por mim, e quando me acham, eles se arregalam, transformando todo seu rosto em uma expressão de descrença.
  Hesitante, ela empurra a porta de vidro, demorando algum tempo para entrar na biblioteca.
  – O que você fez, Mae? – Suas palavras eram baixas, e seu olhar estava em Sammy agora.
  – Fiz o que tinha que fazer. – Respondo, me levantando do chão, onde me sentei ao lado do corpo morto enquanto a esperava.
  Seus olhos descrentes voltam a encontrar os meus, e suas sobrancelhas se erguem.
  – Você a matou, Mae! Está maluca?! Você matou alguém! – Sua voz se torna alta, criando um por toda biblioteca.
  – Não deveria gritar aqui dentro. – Mordo o canto de dentro de minha boca, tentando me manter calma. Na verdade, eu já estava calma.
  – Você matou a Sammy! Matou! – Ela praticamente corre em minha direção, e quando está perto o suficiente, posso ver as lágrimas que escorriam por seus olhos.
  – É, Eve, eu a matei, mas não quero nenhum sermão. Eu tentei conversar com ela antes e você sabe muito bem. – Solto um longo suspiro cansado, querendo apenas ir embora e tomar um banho.
  – Olhe só pra você... – Minha irmã leva sua mão direita até a boca enquanto continua chorando em meio a sua expressão exasperada.
  E antes que mais alguma coisa fosse dita por alguma de nós, a porta da biblioteca volta a ser aberta, revelando um senhor baixo e grisalho que nos encarava com um grande esfregão em mãos.
  – Vá para o meu carro, ele está estacionado em frente à entrada. – Eve enxuga o nariz com as costas das mãos, e diz em um tom de voz sério.
  A encaro por um momento, e seus olhos levemente inchados pelas lágrimas me olham com raiva.
  – Agora, Mae.
  Me afasto de minha irmã e caminho até a porta da biblioteca, passando pelo zelador de uniforme azul escuro, que observava tudo com choque. E assim como Eve manda, vou para fora do prédio amarelo e branco, e entro em seu carro, me sentando no banco do carona enquanto espero pacientemente ela voltar.

***

  Depois de sete músicas ruins e duas músicas boas escutadas do rádio do carro de Eve, ela finalmente retorna.
  Sua blusa estava um pouco manchada de sangue e água, e quando minha irmã entra no carro, ela joga o taco sujo de madeira que usei, no banco de trás.
  Sem dizer nada, ela coloca a chave do carro a ignição e dá partida.
  – O que aconteceu? – Tento começar uma conversa, mas seu semblante duro, permanece concentrado nas ruas à nossa frente.
  – Eu fiz um acordo com o zelador – Sua mandíbula trava por alguns segundos, e ela solta um longo suspiro antes de continuar. –, eu vou lhe dar algum dinheiro e ele vai apagar todas as gravações das câmeras de segurança de hoje. – Seus dedos apertam o volante escuro.
  – E o corpo de Sammy? – Continuo fitando seu rosto sério.
  O carro sacoleja algumas vezes quando Eve aumenta a velocidade.
  – Nós o jogamos em um lago afastado da universidade. O zelador vai limpar tudo e sumir com o restante das provas. – Sua voz dura se embarga pelo choro que ela contém.
  – Isso é bom. – Sorrio fechado.
  Pela primeira vez desde que entrou no carro, Eve me olha, e é de uma maneira que eu nunca vi antes. Ela me condenava enquanto jogava toda sua dor em cima de mim.
  Eu nunca fui olhada desta forma antes dessa noite.
  – Vamos esquecer essa droga de noite, Mae. Você nunca mais pode fazer isso, entendeu? – E todo seu esforço para segurar o choro some quando as primeiras lágrimas escorrem por seu rosto.
  Apenas assinto.
  – Eu nunca mais vou te deixar fazer isso. Nunca... – Ela sussurra a última parte, transbordando cada parte que quebrei de sua alma nessa noite.
  Algumas ruas depois, Eve estaciona em frente à nossa casa de forma abrupta.
  – Saia do carro, eu preciso ficar um tempo sozinha. – Ela pede, sem me olhar, apenas secando suas lágrimas.
  – Tudo bem. Quer que eu leve o taco de baseball? – Aponto para o banco detrás, e ela nega com a cabeça.
  – Eu vou jogá-lo fora, apenas saia do carro.
  Observo ela por mais alguns segundos antes de deixar o carro e caminhar até a entrada de minha casa.
  Passo silenciosamente pelos corredores, e agradeço por encontrar ainda dormindo em minha cama. Coloco seu celular dentro do seu bolso assim como antes, e vou direto para o banheiro, retirando todas as minhas roupas sujas as escondendo no fundo do cesto de roupa suja.
  Ligo o registro e deixo a água quente me envolver, levando embora os últimos vestígios de Sammy. Fecho os olhos e assisto inúmeras vezes a gloriosa cena dá qual fui protagonista, o grande papel.
  Lavo todo meu corpo e cabelo, me sentindo revigorada. Desligo o chuveiro e seco todo meu corpo, colocando uma roupa limpa e seca.
  Volto para o meu quarto, indo direto para cama, onde me deito ao lado de . Repouso minha cabeça contra seu tronco, e passeio as pontas dos dedos contra sua barriga coberta por uma camiseta.
  – Agora está feito. Vamos ficar juntos para sempre. – Sorrio fechado, encarando meus dedos ágeis contra o tecido fino.
  Espalmo minha mão sobre seu corpo e fecho os olhos, respirando fundo antes de adormecer e sonhar com o novo destino que teríamos.

Capítulo 21

  Seus olhos castanhos com o tom de branco que os abraçava; eles não paravam de me julgar; eles não paravam de seguir cada suspiro de dor que eu soltava; eu não posso mais aguentar; eu os odeio.
  Eu odeio Sophie.
  Essa maldita passou o que eu acho serem horas, apenas me encarando e perguntando qual foi o motivo que me trouxe até esse mundo. Eu não queria lembrar, mas ela me empurrou até a borda e me jogou de volta ao passado.
  Eu não posso aguentar.
  Eu odeio tudo sobre o meu passado, eu odeio tudo que eu fiz e odeio as minhas "razões" por ter agido feito uma criatura descontrolada.
  Eu odeio aquela noite.
  Eu simplesmente não era a mesma, os meus sentimentos eram diferentes, eu não podia me reconhecer. Jamais mataria alguém daquela forma, mas eu não podia controlar, tudo dentro de mim era diferente, mas não posso explicar isso, eu não sei o que houve.
  Não me sentia no controle.
  – Eu não me importo se continuar aqui. Nós temos um longo tempo. – De volta, encostada sobre o feno alto, Sophie sustenta seu olhar pesado e vibrante sobre minha direção.
  Fico em silêncio, sentindo meus lábios tremerem e meus olhos se enxerem pelas lágrimas que eu tenta segurar.
  Meu corpo nunca esteve tão fraco, e não havia uma parte sequer dele que não doía. Eu não podia mais aguentar isso.
  – Vamos lá, Mae. Sua amiguinha já está dormindo, nós podemos conversar a sós, ela não vai escutar nada do que você me contar. – Sophie cruza os braços sobre seu vestido preto, deixando um pequeno sorriso pintar seus lábios pálidos.
  Involuntariamente, viro minha cabeça para o lado, vendo a imagem desacordada de Valerie. Sua cabeça estava pendida para baixo, junto com alguns fios de cabelo que me impossibilitavam de ver seu rosto. Seus braços estavam marcados por cortes fundos e sangrentos, suas pernas ajoelhadas estavam um pouco inclinadas para frente, assim como seu tronco.
  – Você está com medo? – A nova pergunta de Sophie me faz voltar a encará-la e, em resposta, encolho meu corpo no lugar. – Por que está tão hesitante em me contar a verdade? Está com medo de que eu te julgue... ou está com medo de encarar os seus pecados?
  Sinto como se suas palavras pudessem me machucar ainda mais.
  Eu não posso apagar tudo que fiz. Passei os últimos três anos da minha vida sendo atormentada, me sentindo complemente amedrontada em minha própria pele, sem acreditar que um dia fui capaz de matar alguém daquela maneira tão cruel, e ainda arrastei minha irmã para o meio do meu caos.
  – Talvez te fazer abrir a boca sobre o que você fez seja tão prazeroso quanto te machucar. – A voz de Sophie era calma, derramando toda a sua satisfação em me ver nessa situação.
  Sem qualquer chance de segurar todas as lágrimas acumuladas em meus olhos, transbordo todos os meus sentimentos, me sentindo a pior pessoa do mundo outra vez, exatamente como foi quando acordei na manhã seguinte daquela maldita noite que eu não posso esquecer.
  A porta do galpão faz alguns barulhos, e Sophie se afasta dos fenos. Em seguida, uma pequena fresta de luz entra pela porta, e junto dela, a imagem de invade a construção alta de madeira. Ele deixa a porta entreaberta, antes de caminhar em direção a Sophie.
  – Você é uma completa perturbada. – diz para Sophie, enquanto encara todo o trabalho que ela fez aqui dentro.
  O olhar vibrante no rosto de desfaz qualquer tom de incredulidade que suas palavras possam ter tentado passar.
  – Não acha que está pegando um pouco pesado demais? Assim você vai matar ela. – para ao lado de Sophie, se juntando a ela enquanto me observam como se eu fosse um bicho.
  – Não vou matá-la antes do previsto. Só estou me divertindo, ainda tenho duas semanas até trinta e um de outubro. – Sophie sorri para mim.
  – Você quem sabe. Só não estrague tudo.– dá de ombros, ainda me observando atentamente e captando cada parte do meu corpo machucado e cansado.
  Sophie desvia seu olhar de mim, direcionando seu sorriso, agora, para .
  – Você está tão desesperado assim pelo ? Acha mesmo que a porcaria de beijo vai fazê-lo te querer? Está sendo estúpido, porque o meu irmão nunca vai te escolher, e você sabe. – Sophie inclina seu tronco em direção a , ficando extremamente próxima a ela, fazendo questão que ele veja o sorriso de escárnio que ela mantém.
   não parece se acuar por Sophie, já que um sorriso idêntico ao dela borda cada canto de seus lábios.
  – Não acho que esteja em posição de me julgar, Sophie. Quem acreditaria nessa sua história de ressurgir Mae apenas para ajudar ? – O sorriso de Sophie vacila por alguns segundos diante das palavras de . – Talvez seu irmão acredite nisso, mas não acho que ele ficaria feliz em saber que você pretende fugir com a namorada dele alegando que está fazendo isso por ele. Me diga, Sophie, você apenas quer viver uma bela história de amor com aquela maluca ou tem algo por trás disso tudo?
  Os olhos de pareciam entrar em conflito contra os de Sophie, ambos emanando seu desprazer um pelo outro. E isso me enjoava, eu apenas queria ficar longe de toda essa confusão deles.
  – Faça a sua parte e não se meta nos meus assuntos. – O sorriso de Sophie some, dando lugar a uma expressão carregada.
  – Já estou fazendo. Mantenho longe desse lugar e você sabe disso. – sorria abertamente agora, satisfeito com sua pequena vitória. – Você apenas precisa ficar de boquinha fechada e fazer sua parte também, Sophie. Manter elas aqui não estava nos nossos planos, e já estão dando falta. Não vai demorar até que comece a se perguntar onde elas estão, ou até que ele tenha vontade de voltar para esse galpão. Então arrume sua bagunça e dê o fora desse lugar logo, acho que já brincou demais.
  Sem esperar por uma resposta, se vira e vai em direção a saída do galpão, deixando Sophie completamente sufocada em raiva, para trás.
  Quando a porta do galpão é fechada, Sophie se vira furiosa em direção aos fenos, indo para trás de uma das remessas, retirando de lá através de barulhos metálicos, a longa lança de madeira que usou para matar as duas garotas que Valerie e eu encontramos quando chegamos aqui.
  Já com a lança em mãos, e quase correndo, ela vem em minha direção, acertando meu rosto com a madeira dura. Minha cabeça pende para o lado, e meu corpo balança, fazendo as correntes se mexerem.
  Sinto o sangue quente encher minha boca ao ponto de escorrer para fora. E isso acarreta mais algumas lágrimas de minha parte, a dor era latejante demais para que eu suportasse.
  Os dedos Sophie agarram meus cabelos, puxando os fios rudemente para trás, obrigando-me a encarar seus olhos banhados em fúria.
  – Nós vamos sair desse lugar, mas não pense que isso acabou. Vou te levar de volta para aquela cabana, e te manterei lá até que o dia chegue. – Ela cospe suas palavras, direcionando para mim o que deveria ser de .
  Sophie joga sobre o chão a lança suja com meu sangue, e depois solta meus cabelos, para se virar e fazer o mesmo caminho que . Seus passos são apressados até a saída do galpão, da qual ela deixa com um alto bater de porta.
  Ainda sentindo o sangue quente escorrer por minha boca, deixo que o meu choro silencioso ganhe intensidade, não me importando se isso poderia acordar Valerie.
  Eu estava desesperada.
  As lágrimas que molham o meu rosto escorrem em abundância, e meus olhos arderem cada vez mais. Fechos as mãos fortemente, fazendo todo meu corpo tremer e chacoalhar as correntes de maneira mais alta.
  – Não gosto de ver minha pequena Mae desse jeito.
  Desesperadamente corro meus olhos ardentes pelo galpão, em busca da voz, encontrando Angeline sentada sobre os fenos altos a minha frente.
  Suas sobrancelhas loiras estavam franzidas, e seu olhar era preocupado.
  – A-Angeline... você veio me tirar daqui? – Pergunto exasperada, mas com a voz baixa.
  – Não. – Ela responde, fazendo meu desespero aumentar. – Pare de chorar, querida. Vai acordar sua amiga.
  Não digo nada, apenas comprimo os lábios, sentindo mais lágrimas escorrerem de meus olhos.
  Angeline suspira com pesar.
  – Mae, eu não posso te tirar desse galpão, eu estou morta. Apenas apareço porque você precisa me ver. Eu faço parte da sua mente, aquele pequeno pedaço que precisa de ajuda. – Sua cabeça se inclina para o lado. – Se minha alma fosse aparecer para alguém, seria para Eve. Ela me matou, e por isso é a única da qual posso me comunicar. Você sabe disso.
  – E o que minha mente quer agora? – Pergunto em meio a um pequeno soluço que escapa de meus lábios ensanguentados.
  Angeline suspira outra vez.
  – Me diga você, Mae. – Seu olhar preocupado se torna sério. – Não sente vontade de fazer com Sophie tudo que ela fez com você e com sua amiga?
  Sua pergunta me faz segurar a respiração por alguns segundos.
  – Por que está me perguntando isso? – Sinto meu corpo voltar a tremer.
  – Não se sinta culpada, não estamos no seu mundo. Aqui você pode matar sem qualquer culpa, afinal, ninguém nesse lugar é humano. – Quem responde minha pergunta não é Angeline, e sim uma garota que surge de trás de um dos altos fenos onde estava escondida.
  Sua pele era pálida assim a de todos os moradores se Setealém, seus olhos esbranquiçados e o tom de loiro de seus longos cabelos eram muito claros, iguais aos de Angeline.
  – Nós finalmente nos encontramos, Mae. – Ela sorri abertamente para mim, enquanto para ao lado de Angeline, deixando em grande evidência sua semelhança com ela.
  – V-você...? – Meus olhos se arregalam, e a pequena palavra quase não sai de minha boca trêmula.
  Ela inclina seu corpo para frente, mantendo o sorriso.
  – Sou você. Ou como vocês costumam dizer, eu sou sua versão de Setealém. – Uma curta gargalhada sai de sua boca.
  – C-como isso é possível? – Pergunto, completamente atônita por estar me enxergando em um outro corpo. Era como olhar no espelho.
  – Pensei que soubesse que quando se mata alguém de Setealém, a alma dela fica presa a você. Angeline acabou de te falar isso. – Minha possível versão desse mundo endireita sua postura outra vez, me fitando confusa.
  Olho rapidamente para Angeline, mas ela apenas sustenta sua feição séria, sem dizer nada.
  – Mas eu não matei você. – Sinto meu peito subir e descer com rapidez, por conta do meu exaspero ao que vejo.
  – Um vive e o outro morre, essas são as regras. Por isso estou morta, porque você está viva. Isso te faz minha assassina. – Seus olhos estreitam, mas o sorriso continua intacto.
  Isso é tão estranho. Eu me sinto completamente louca, ver e conversar comigo mesma. Sei que são coisas comuns nesse mundo, mas não sei se posso lidar.
  – E por que você só apareceu agora? Você não deveria me odiar? – Mesmo temendo sua resposta, pergunto.
  – Não me entenda mal, eu não sou do tipo de guarda rancor. As coisas são como são, o que eu poderia fazer quanto a isso? – Ela sai de perto de Angeline e começa a caminhar em minha direção, sobre seus saltos e roupas pretas. – Acho que esse é a hora perfeita para aparecer. Veja só o seu estado, Mae. – Ela para a minha frente e leva suas mãos até a cintura, me fitando atentamente.
  – F-foi a Sophie.
  – Eu sei que foi Sophie. Aquela garota é um problema chato, nunca gostei dela, só não a matei por . Seria uma dor de cabeça ter que explicar para ele. – Minha versão de Setealém solta um logo suspiro, enquanto nega com a cabeça. – Mas sabe, Mae. Eu não podia matá-la, mas você pode. – Eu podia enxergar através de seus olhos esbranquiçados um grande brilho ruim.
  Meus olhos voltam a se arregalar.
  – Ela está certa, querida. – Angeline diz, e desvio meu olhar até ela que ainda estava sentada sobre o feno. – Eu perdi minha preciosa filha uma vez, e não quero perder pela segunda vez.
  – Você está quase morrendo. Aquela garota pode até achar que não está te matando, mas você sabe que está, seu corpo humano é fraco, precisa ir embora logo ou morrerá. – Minha versão de Setealém, diz.
  – Não pode deixar que todos te tratem dessa maneira, querida. Não é a primeira vez que Sophie te machuca, apenas devolva tudo para ela antes que os próximos sejam quem você mais quer proteger. – As palavras de Angeline fazem com que minha cabeça seja bombardeada por medo e temor.
  Eu estou nessa situação justamente porque queria proteger Eve, e Mark, mas também sei que não posso confiar nas palavras de Sophie, ela pode atacá-los a qualquer momento. Parece que não há uma solução, qualquer coisa que eu fizer os colocará em perigo.
  – Você sabe que só existe um jeito de ajudar todo mundo... precisa mergulhar em Setealém, Mae. – Minha outra versão se abaixa sobre os joelhos, ficando bem próxima ao meu rosto. Ela estende sua mão e toca meu cabelo sujo com a ponta dos dedos, observando atentamente os fios. – Você se lembra da noite de três anos atrás? Esteve tão diferente, se sentiu fora do controle e matou aquela garota.
  Seus olhos voltam a se conectarem com os meus, deixando-me cada vez pior, enquanto retomo todas as sensações anteriores de volta.
  – Aquela noite foi quando nós nos ligamos pela primeira vez, trinta e um de outubro, o dia que você matou Sammy. Um ano depois, o mesmo dia que seu namorado morreu... e eu também. – Seus dedos se enrolam em torno de uma fina mecha de meu cabelo de forma sútil, enquanto outro sorriso borda seus lábios. – Você sabe que foi uma data especial, uma noite sem remorsos porque estávamos juntas. Então me deixe continuar com você, eu posso te fazer sentir tão bem, Mae. Sem remorso, em Setealém não existem remorsos.
  Minha boca se abre trêmula se abre, mas nenhuma palavra sai dela.
  Eu estava recebendo uma oferta escura que vinha de minha própria imagem. Eu literalmente estava lutando contra minhas próprias palavras, e tinha medo de me entregar a mim mesma e descobrir o que poderia acontecer.
  A tosse alta e falha que vem da minha esquerda, me salva de uma resposta que eu queria guardar apenas para mim.
  – Sua amiga está machucada, Mae. – Suas palavras me fazem olhar para Valerie, que acordava aos poucos, enquanto engasgava. – Você não quer fazer Sophie se sentir da mesma maneira? Ela merece, todos aqui merecem. Eles não são humanos, por isso, não existe culpa.
  Minha própria voz vinda de outro corpo ecoa por todo galpão me abraçando a força, fazendo todo meu corpo doer em culpa e medo.
  Eu odeio Sophie. Odeio mais que tudo.
  Essa garota é apenas um problema. Ela já fez tanto comigo, e agora está fazendo com Valerie, eu não posso aceitar as coisas dessa maneira. Todos nesse mundo querem me machucar, e machucar os que eu quero proteger, eles não podem me fazer sentir culpa por isso.
  – Lembre-se, Mae – Seus dedos saem de meu cabelo e vão para o meu rosto, querendo que eu focasse toda minha atenção sobre si –, você teve a chance de viver uma vez. Mas se Sophie me trouxer de volta a vida, você não terá uma segunda chance. – Meu corpo inteiro estremece com suas palavras.
  – Hora de ir. Sua ajuda chegou, Mae. Faça a escolha certa e não se arrependa. – Angeline nos interrompe, saltando de cima dos fenos altos.
  Minha versão de Setelém solta meu rosto e se levanta, me olhando uma última vez com uma intensidade tão grande que posso sentir todo meu interior se revirar. Ela caminha para perto de Angeline e as duas se desmaterializam como se nunca estivessem aqui.
  E sem me dar qualquer tempo para colocar toda minha cabeça no lugar, escuto o barulho de correntes que vinham do lado de fora do galpão, indicando que alguém estava entrando. Meu corpo se torna tenso, e procuro Valerie com os olhos, percebendo que sua respiração havia se tornado irregular e com chiados estranhos, e não sei ao certo se ela já acordou.
  Mais alguns barulhos e a porta do galpão se abre outra vez, fazendo todo o desespero guardado em mim, se aflorar outra vez. Começo a temer por mim e por Valerie, e quase grito por Angeline ao pensar que poderia ser Sophie retornando outra vez.
  Uma sombra surge na porta do galpão, acompanhada por cabelos loiros e pele pálida, completando uma figura impassível que eu passei a conhecer muito bem.
  – Achei vocês. – Com seu tom de voz neutro, Mark diz, enquanto sustenta o taco de baseball que o pai de havia me dado, e que pedi que ele guardasse.
  O garoto caminha em minha direção, sem demonstrar qualquer tipo de emoção ao ver em um estado tão lastimável.
  Mark para perto o suficiente para acertar as correntes que me prendiam com o taco de alumínio coberto pelo arame enferrujado, quebrando-as pela metade e me libertando. Meu corpo vai ao chão enquanto sinto meus braços pegarem fogo de dentro para fora. Meu rosto fica algum tempo sobre o chão de madeira e o feno, até que eu escute mais correntes sendo quebradas.
  Viro minha cabeça para o lado, vendo o corpo de Valerie também, largado sobre o chão. E com esforço, me arrasto até ela, puxando seus ombros para perto de mim, enquanto ela ainda tossia freneticamente, e agora posso ver que uma pequena quantidade de sangue escorria de seu nariz para dentro de sua boca.
  Com os dedos aperto seu nariz e inclino sua cabeça para trás, na tentativa de parar o sangue.
  – Respire apenas pela boca. – Peço quando ela tosse mais vezes. E, aos poucos, Valerie começa a abrir os olhos, mesmo que minimamente.
  Solto um suspiro longo e dolorido, olhando para Mark que estava parado perto de nós duas.
  – Como você nos achou? – Pergunto, enquanto espero pacientemente Valerie recobrar toda sua consciência.
  – Você sumiu, e Eve estavam te procurando, mas não te achavam em lugar algum. Sammy apareceu para mim hoje de manhã e disse que estavam aqui, ela disse que eu deveria pegar o seu taco e vir até o galpão de noite porque era seguro. – Mark explica calmamente, ainda sem demonstrar alguma emoção.
  – S–Sammy? – Pergunto espantada e ele assente. – Por que ela me ajudaria?
  Mark dá de ombros.
  – Ela falou que nada pode acontecer antes das duas semanas. – Ele responde, e involuntariamente aperto Valerie contra meus braços.
  Daqui duas semanas; trinta e um de outubro.
  Sinto Valerie tocar minha mão que estava sobre o seu nariz, e quando a olho, ela estava completamente acordada. Com cuidado retiro minha mão de seu nariz, e lentamente ela se senta sobre o chão do galpão, ainda estabilizando sua respiração.
  – Como você está? – Pergunto, quando ela se vira para Mark.
  – Não posso dizer que bem. – Sua voz era baixa e seu olhar cansado, o que me faz sentir ainda mais culpada por tudo que passamos.
  Eu não deveria me sentir culpada, isso aconteceu apenas por Sophie. Não posso colocar isso sobre minhas costas.
  – Precisamos ir antes de eles voltem, Sammy disse que voltariam. – Mark alerta.
  Com algum esforço e sentindo muita dor, me coloco de pé, precisando me equilibrar sobre minhas pernas fracas para não cair. E depois tento ajudar Valerie, que acaba se apoiando contra meus ombros.
  Mark se vira de costas para nós duas e começa a caminhar em direção à porta do galpão.
  – O que vamos fazer com os corpos mortos? – Valerie pergunta para mim.
  – Eles já morreram, vocês não. – Mark responde, mesmo sem parar de andar até a porta.
  – Ele tem razão, Valerie. Não podemos mais fazer nada. – Falo, e ela com certo pesar, assente.
  Passo uma mão ao redor da cintura de Valerie, e ela se apoia melhor em meus ombros, antes de começarmos a caminhar lentamente até a saída do galpão, enquanto parte das correntes que ainda estavam presas em nós duas, se arrastava pelo chão.
  Quando já estamos de frente para a porta, paro por alguns segundos por conta de meus machucados. Depois enfim atravessamos a porta, sendo recebidas pela escuridão da noite, e me fazendo perceber que ficamos um dia inteiro sendo totalmente torturadas por Sophie.
  – Vamos rápido. – Mark nos olha sobre os ombros, fazendo um gesto para que o seguíssemos em direção a uma pequena plantação alta perto do galpão.
  Não me dou ao trabalho de fechar a porta do galpão, de qualquer forma irão saber que fugimos. Por isso, apenas tento me apressar e acompanhar os passos de Mark, mas meu corpo era fraco e doloroso, e ainda tinha o peso do corpo de Valerie, que parecia mais cansado que o meu.
  Tudo em mim doía, eu podia sentir cada machucado interno e externo que Sophie me causou, o que tornava tudo ainda mais difícil. Eu estava esgotada, em apenas um dia, passei o que pareceu uma vida, e ainda fui forçada a mergulhar em meu passado escuro.
  Eu a odeio. Odeio com tudo que tenho agora. Outra vez, ela me deu os piores momentos de minha vida, e ainda pretende fazer mais, mas não posso deixar que isso aconteça. Dessa vez Sophie machucou Valerie, ela foi arrastada para dentro de sua sujeira. Isso não estava certo.
  Eu sei que ela terá sua ruina. está a ajudando, mas não apenas para ficar com , ele pretende trair Sophie e matar a Mae de Setealém, eliminando tanto ela, quanto a mim. E isso causará um grande caos, e seu plano não irá dar certo nem que eu falhe em impedi-la. Mas nada disso faz com que a vontade de fazê-la sofrer suma de dentro de mim.
  Sophie precisa pagar por tudo que fez; Setealém precisa pagar por tudo que fazem aos humanos.
  Assim que adentramos a alta plantação, sinto minhas pernas fraquejarem já não aguentando mais, e por isso caio sobre a terra áspera, levando Valerie comigo. Meus olhos pesam, revelando o cansaço de todo meu corpo, eu só conseguia ficar deitada sobre a terra seca, escutando minha própria respiração martelar em meus ouvidos enquanto sinto cada machucado em meu corpo arder.
  – Você está bem, Mae? – Valerie se ajoelha ao meu lado, me olhando com preocupação, mas meus olhos estão cada vez mais pesados.
  Mark se aproxima de onde estou, e fica parado de pé ao lado do meu corpo deitado.
  – Precisamos ir. – Ele diz, e com dificuldade eu assinto, mesmo que meus olhos se fechem lentamente.
  – Mae. – Sinto uma mão pequena dar alguns tapinhas em meu rosto, me fazendo abrir os olhos outra vez, apenas para encontrar uma segunda pessoa parada ao lado de Mark. – Você não pode dormir agora. – A voz cansada de Valerie diz, mas não posso prestar atenção, meus olhos estão focados apenas naquela que era minha própria imagem.
  Valerie e Mark não parecem notá-la, talvez não possam a ver, apenas eu.
  Ela, Mae, permanece parada ao lado de Mark, me encarando através de seus olhos esbranquiçados, esperando o momento exato em que eu torno a fechar meus olhos, para me levar direto ao meu destino.
  "Eu estarei te esperando, Mae."

Capítulo 22

  Eu já contei mil e duzentos segundos desde que acordei e estou encarando o teto escuro em madeira podre. Minha respiração era calma, e meu corpo relaxado, não havia sinal algum de qualquer machucado ou marca por ele, eu chequei.
  O longo vestido preto que estava em meu corpo era fino e confortável, e a leve brisa que entrava pela janela aberta balançava as cortinas e a barra de meu vestido, trazendo-me uma sensação estranhamente inebriante.
  Conto mais duzentos segundos seguintes até escutar um barulho próximo de onde eu estava, mais especificamente, na porta do quarto; Eve estava parada lá, com a mão direita erguida no ar, enquanto um copo redondo e marrom estava caído sobre o chão, e algum líquido vermelho e aparentemente espeço, o rodeava.
  – Você acordou... – Eve encara meu corpo deitado sobre a cama, de forma totalmente estática, tanto que nem podia piscar os olhos.
  Ela pisa sobre o líquido vermelho derramado no assoalho de madeira e vem apressada até a cama, se sentando ao meu lado enquanto leva suas mãos até o meu o rosto, com os olhos cheios de alívio.
  Retiro suas mãos de meu rosto e me sento sobre a cama, levo minhas mãos sobre as coxas e tamborilo meus dedos em cima do tecido preto do vestido, enquanto solto fortemente o ar preso em meus pulmões.
  – O que aconteceu? – Pergunto para Eve.
  – Você não se lembra? – Ela arqueia as duas sobrancelhas, em surpresa.
  – Eu me lembro. Quero saber por que desmaiei. – Tamborilo com mais rapidez os dedos sobre minhas coxas.
  Eve aperta os lábios em uma fina linha e encara o colchão duro por alguns segundos antes de responder.
  – Provavelmente por cansaço, você passou por muito, e por isso ficou dois dias desacordada. – Ela volta a me encarar, agora com pesar. – Valerie nos contou sobre vocês.
  Apenas assinto.
  – Como ela está?
  – Está bem agora. ficou com ela e eu com você, demos algum sangue para vocês duas, e por isso estão curadas. – Eve solta um longo suspiro, antes de arrastar sua mão até a minha, segurando-a firmemente. – Por favor, Mae, eu estou te implorando, pare de se meter com essa gente de Setealém, nós já estamos envolvidos em um plano muito perigoso, não precisamos de mais. Sophie já te odeia, não dê outros motivos para que ela te machuque novamente. – Os olhos de minha irmã eram suplicantes, eles até mesmo brilhavam, e sei que ela está se segurando para não começar uma cena de choro.
  – Tudo bem. – Assinto outra vez, não querendo prolongar esse assunto, não é bom.
  – Eu fiquei com tanto medo desta vez. e eu procuramos vocês duas por todos os lugares que conhecíamos, mas não encontramos nenhuma pista sobre vocês. Então um dia, Mark apenas saiu de casa dizendo que traria vocês duas de volta, eu não pude acreditar muito nele, mas de alguma forma, ele fez isso. Não sei como, mas estou grata por Mark. – Eve fala amarga, apertando ainda mais minha mão contra a sua, como se quisesse sentir que eu estava mesmo ali.
  Mark apenas saiu de casa dizendo isso? Nós sabemos que não é real, ela o mandou fazer isso, Sammy estava tomando a frente de tudo, agora eu sei. Mas acho que devo manter essa informação apenas entre Valerie, Mark e eu.
  Puxo minha mão para longe de Eve e me levanto, calçando o par de sandálias que minha irmã deixou para mim ao pé da cama.
  – O que você vai fazer? – Ainda sentada, Eve pergunta.
  – Vou ver Valerie. – Responde, já caminhando para fora do quarto.
  Escuto Eve levantar apressada da cama e vir atrás de mim.
  – O quê? Está falando sério, Mae? Nós acabamos de falar sobre isso. – Eve leva sua mão até o meu ombro, me puxando para trás, obrigando-me a parar assim que chegamos no corredor.
  – Eu não estou indo atrás de Sophie, estou indo ver Valerie. – A encaro sobre os ombros, e ela franze o cenho.
  – O que há com você? Está estranha, Mae. – Seus dedos apertam meus ombros, e os acompanho com o olhar.
  – Eu só quero ver ela, Eve. Saber mesmo se está bem, se esqueceu que ela também passou por tudo aquilo? – Pergunto retoricamente, virando minha cabeça outra vez para frente e voltando a caminhar pelo corredor.
  Não escuto seus passos me seguindo desta vez, e por isso aproveito o momento e atravesso todo o corredor, passando pela cozinha e depois pela sala, onde encontro Mark sentado sobre o sofá enquanto encarava a televisão quebrada à sua frente com a tela toda chuviscada em cinza e preto.
  – Fique de olho em Eve. Eu já volto. – Digo seriamente, e Mark apenas concorda com a cabeça antes de voltar sua atenção para a televisão chuviscada.
  Por fim, caminho até a porta de entrada e saio de minha casa, deixando Eve e Mark para trás.
  A tarde do lado de fora era escura apesar da brisa ser suave. O céu vermelho estava em um tom apagado, com grandes nuvens carregadas por todo o lado. As ruas eram desertas como de costume e as casas velhas pareciam ganhar mais intensidade em meio a sombra do meu despertar.

***

  Respiro três vezes seguidas de forma alta, enquanto passos os olhos pelas paredes brancas sujas e cobertas por lodo, que estava a poucos metros de mim.
  Fecho os olhos por alguns segundos, apenas sentindo a brisa suave balançar a barra de meu vestido preto. Em seguida, volta a abrir os olhos e começo a atravessar a rua, indo em direção à casa de paredes de lodo. Caminhos pelas pequenas britas sobre o chão, que faziam um caminho perfeito até a porta lascada. Dou quatro batidas na madeira velha, e aguardo pacientemente até que seja atendida.
  Conto duzentos e quarenta segundos até ver a porta se abrindo, mostrando-me a imagem pálida e apática de Valerie, que vestia uma calça jeans rasgada e uma larga blusa branca com manchas pretas em formato de longos dedos.
  – Como você está? – Pergunto.
  Valerie segura na borda da porta com a mão direita e escora o ombro esquerdo contra o batente.
  – Estou bem... – Ela me olha com um olhar pequeno e faz uma curta pausa de sete segundos antes de continuar. – E você?
  Apenas aceno a cabeça positivamente, e ela entende.
  Valerie solta a borda da porta e se desencosta do batente, ela dá alguns passos para fora e se senta no pequeno degrau em frente a porta de entrada, sem se preocupar em fechá-la, deixando o interior escuro de sua casa à mostra.
  Me junto a ela, sentando-me ao seu lado.
  Valerie abraça os próprios joelhos, deixando que seus olhos caiam sobre a rua deserta à nossa frente.
  Ela fica por cento e oitenta segundos em silêncio, apenas observando as ruas e todas as árvores atrás dela.
  – Eu quero me vingar de Sophie. – A brisa suave passa por nós duas e entra em sua casa, ela balança os cabelos de Valerie para trás, e esse acompanha o movimento que sua boca faz para soltar as palavras; os únicos a se movimentarem, já que seu rosto ainda era apático.
  – Se vingar? – Pergunto pausadamente, mesmo que tenha escutado com perfeição suas palavras.
  Seu rosto se vira com calma em minha direção, e seus olhos em tom de castanho claro se encontram com os meus, passando toda e qualquer vontade que Valerie carregava por dentro.
  Ela acena a cabeça, piscando os olhos de forma lenta.
  – Nós podemos fazer isso. – Respondo, desviando meu olhar do seu, até a rua deserta e rachada.
  – A faca ainda está com , e acho melhor continuar com ele, aquele garoto é medroso demais. – Escuto sua respiração sair nasalada, como uma risada sem humor. – Mas acho que poderíamos ir até a loja do pai do e buscar algumas coisas.
  Ela quer machucar Sophie, então precisamos das opções certas, coisas que vêm do mundo humano, e já temos o lugar perfeito.
  – Como vamos ir até lá sem que desconfiem? – Espio Valerie de rabo de olho, a vendo cerrar os olhos, e apertar os joelhos rodeados por seus braços.
  – Não se preocupe com isso, eu já sei o que fazer. Nós apenas iremos cobrar um pequeno favor que nos deve. – Os cantos de seus lábios pálidos se repuxam em um pequeno sorriso.
  – Está falando da mãe dele? – Arrasto meus pés sobre as pequenas britas, fazendo um baixo barulho de arranhar.
  – Nós fizemos isso por ele. Hora do pagamento. – Sua cabeça se inclina para o lado, e seus olhos castanhos claros me encaram com avidez, por todos os lados.
  Assinto, sabendo que ela poderia resolver tudo. Eu apenas estaria lá.
  – Acho que Mark pode nos ajudar, ele está tão envolvido nisso quanto nós duas. – Digo, acompanhando seus olhos.
  Ela acena mais uma vez.
  – Volte para casa agora, sua irmã não deve estar feliz. Amanhã na escola daremos um jeito em tudo. – Ela vira sua cabeça outra vez, voltando a encarar a rua deserta e com o asfalto rachado.
  Sem questionar, me levanto do pequeno degrau em que estava, e começo a me afastar lentamente. Percorro todo o caminho de britas, e quando alcanço a calçada, olho sobre os ombros, fazendo com que todos os meus sentimentos se encontrem com os de Valerie apenas por um breve e intenso olhar.

***

  A noite já havia chegado, e a suave brisa se transformou em um vento gelado e cortante que brigava com o meu vestido e cabelos, os empurrando por todas as direções. E mil e quinhentos segundos que contei foram o suficiente para que eu retornasse para minha casa.
  Eve ainda estava chateada e preocupada com a minha saída, mas fui paciente e conversei com ela por novecentos segundos, acalmando todas as suas preocupações. Depois a levei até o quarto e me deitei ao seu lado sobre a cama, esperando com paciente até que ela pegasse no sono.
  Agora fazem exatamente mil e oitenta segundos contados que estou parada em frente a porta que me levaria ao porão de minha casa, onde me encontrei com ela pela primeira vez. Sammy. Ainda posso me lembrar com clareza daquela noite, minha primeira noite em Setealém.
  As mesmas emoções não retornam, eu não as tenho mais, não posso tê-las outra vez, todas foram levadas para longe.
  Solto o ar de meus pulmões rudemente, criando um barulho alto de respiração.
  Dou quatro passos até a porta pequena e velha, levando minha mão até a maçaneta gelada, girando-a com cuidado. A porta destrava com um "click" e, com um sutil empurrão, a abro, revelando toda escuridão ao final das escadas de madeira que rangem debaixo de meus pés quando começo a descer por ela.
  Um por um, e com cuidado para não cair, piso em cada nos degraus rachados até fechar no final, no chão seguro e firme. Meus olhos logo captam um pequeno quadrado na parede, responsável por deixar que um único feixe de luz entre no porão, iluminando apenas uma parte dele todo.
  Caminho até a janela quebrada e sem um novo vidro no lugar, e fico por um tempo apenas observando a luz que emana dela, lembrando onde tudo começou.
  – Você está aqui, certo? – Pergunto ao vento, sabendo que ela sempre estaria por perto, especificamente neste lugar, onde tudo começou.
  Não tenho qualquer resposta, apenas a luz da pequena janela quebrada é minha companhia.
  – Eu sei que você me odeia... eu também me odeio. – Continuo sendo recebida apenas pela luz da janela. – Nós poderemos resolver isso na hora certa, você sabe, não posso me esconder do que já fiz. Eu estarei pronta para qualquer coisa que você tem em mente, não tenho medo agora, eu apenas entendo.
  Viro meu corpo contra a janela, ficando de frente para a parte que não podia receber luz, o lado escuro e sem vida, o mesmo onde ela se escondeu pela primeira vez.
  – Você disse para o Mark onde eu estava. Não posso imaginar por que fez isso, mas sei que está nos seus planos. Eu deveria te agradecer? – Cerro meus olhos, fitando cada parte da escuridão a minha frente. – Talvez esse seja o certo a se fazer, mas não posso, agora eu tenho meus próprios negócios.
  Caminho lentamente para frente, parando ao lado da escada de madeira, em meio a todo silêncio do porão.
  – Nós iremos resolver isso. Eu não vou fugir. – Lanço um último olhar para a escuridão, antes de subir todos os degraus de madeira, que rangem outra vez.
  Quando chego ao topo, ainda de costas, fecho a porta do porão, escutando um pequeno grunhido que vem do final das escadas, e não preciso olhar para saber o que era.
  Sorrio minimamente, fechado, e começo a me afastar daquela pequena porta que carregava uma grande porção de memórias e sentimentos.
  Me arrasto pelos corredores de minha casa, apenas com vontade de sentir toda a vibração que as paredes carregavam. E no final, estou no único lugar que ainda me faz sentir viva, meu antigo quarto. Onde o lugar estava habitado por dois corpos mortos e podres deitados sobre a cama grande e larga.
  Me surpreendo ao encontrar Mark aqui também, ele estava parado de pé ao lado da cama, perto de Angeline.
  – Sente falta deles? – Minha pergunta atrai a atenção de Mark, que desvia seus olhos esbranquiçados dos corpos mortos de seus pais.
  Ele me olha sem emoção.
  – Eu não sei. – Sua voz fina ecoa por todo quarto mórbido e carregado por um forte odor de morte.
  – Você é realmente confuso sobre como se sente. – Cruzo os braços, e começo a me aproximar dele, tendo como foco apenas os corpos mortos, mas sei que os olhos de Mark estão sobre mim.
  Paro ao seu lado, observando cada detalhe dos corpos pálidos que estavam com manchas verdes e pretas por toda parte. A magreza também era notável, e suas peles finas moldavam com perfeição os ossos mais aparentes.
  – Eu sei que tipo de relação você teve com seus pais, mas acho que está tudo bem em esclarecer como se sente a respeito disso.
  – Eu matei meu pai, não tem o que esclarecer. – Mark diz, e eu ainda posso sentir seus olhos sobre mim.
  – Pelo jeito, o único vínculo que você criou foi com a sua irmã. – Viro meu olhar até o seu, cerrando os olhos.
  – Acho que sim. – Ele pisca os olhos repetidas vezes por seis segundos.
  – Será que ela se parece com você? – Pergunto retoricamente de forma baixa, analisando desde sua pele pálida e olhos esbranquiçados, até os fios lisos e loiros de seus cabelos, sobrancelhas e cílios.
  – Você me acha parecido com ela? – Ele pergunta entre sua apatia habitual.
  Não respondo nada, apenas sorriso fechado.
  – Me diga, Mark, você ainda está comigo?
  – Sim. – Ele é breve, mas convincente.
  – Então vá mais cedo para escola amanhã e me espera na entrada, temos algumas coisas para fazer.
  Ele apenas acena positivamente uma vez, antes de se afastar e ir até a porta do quarto.
  – Estou curioso para saber até onde você pode ir. – Ele me olha da porta, pela primeira vez, sorrindo ao me encarar.
  Nosso acordo está fechado. Ele sabe disso. Estamos juntos agora.
  Fico por mais setecentos e vinte segundos com Angeline e Jack, antes de sair de meu antigo quarto e ir até onde Eve dormia. E fechando a porta atrás de mim, caminho em meio ao escuro até o corpo desacordado de minha irmã, me deitando ao seu lado. Me aproximo com cautela e abraço o corpo de Eve, sentindo o cheiro fraco de seus cabelos.
  Inspiro seu cheiro mais uma vez e fecho os olhos em seguida, escutando a sinfonia que vinha do lado de fora do quarto. Tudo que se arrastava por essa casa marcada pelas mortes e sofrimentos. Todos os sentimentos vagando de uma vez, tentando perturbar todos aqueles que habitavam sua morada. Mas eu já não me importava mais, eu me tornei parte de tudo

Capítulo 23

  Na manhã seguinte, tudo parecia estar indo de acordo com nosso plano. Mark saiu mais cedo para a escola, assim como eu pedi. E Val, com certeza, já está dando um jeito em .
  Tentei ser a mais discreta possível enquanto me arrumava e esperava por Eve. Ela não desconfiava de nada, e nem podia.
  Eve comentou sobre o cheiro que começava a invadir todos os cômodos da casa, querendo se livrar dos corpos de Angeline e Jack. Mas não posso fazer isso, então apenas menti, dizendo que pensaria em algo.
  E depois de dois mil e quatrocentos minutos que passamos dentro de casa, fomos para a escola, mesmo que eu tivesse outros planos sobre isso.
  Nos reunimos com Val e em um dos corredores principais, onde fomos alvos de todos os olhares dos moradores de Setealém, mas isso já é algo que estamos acostumados.
  Conversamos por breves minutos sobre tudo o que aconteceu nos últimos dias, enquanto Val e eu tentávamos deixar o clima sempre ameno, para que tudo continuasse no caminho certo.
  E com o alto e firme ressoar do sinal da escola, sabíamos que o momento havia chegado, e que precisávamos colocar as coisas em ordem neste momento.
  – Vamos? – Eve pergunta, se virando de lado e indicando a sala aberta perto de onde estávamos.  
  – Acho que hoje ficaremos separados. – Val coloca suas mãos para trás do corpo, e diz calmamente.
  Eve franze o cenho, e a encara confusa. Enquanto tenta disfarçar seu nervosismo, pois sabia que tudo estava começando agora.
  – E por que ficaremos separados? – Eve volta se virar de frente para Val.
  – Cheguei mais cedo e encontrei um dos professores, e ele me disse que ficaremos separados. Aulas diferentes ou algo assim. Você estava comigo, não é? – Val olha para , que se encolhe no lugar, completamente acuado.
  – S-sim. Ele disse isso, Eve. – confirma a mentira de Val.
  Eve fica em silêncio por alguns segundos, apenas observando os dois, provavelmente na tentativa de captar alguma coisa.
  – E quem fica com quem? – Minha irmã pergunta, com uma expressão totalmente negativa, nenhum pouco feliz com isso.
  – Você precisa ir com . – Val aponta para a sala que Eve queria anteriormente entrar.
  – Mae vai com você? – Eve pergunta, me olhando incerta.
  – Não se preocupe comigo. Estou bem agora, e estamos na escola, nos encontraremos depois. – Forço um falso sorriso em meu rosto, torcendo internamente para que ela caia em minha mentira.
  Algumas pessoas começavam a passar por todos nós, indo em direção à sala de aula.
  – E–Eve, é melhor irmos agora. – Ainda nervoso, segura no pulso de Eve, a puxando junto do fluxo de alunos.
  Por sorte, minha irmã não tem tempo de relutar, e acaba sendo jogada sala adentro.
  – Você conseguiu. – Cruzo os braços e comento, assim que eles somem.
  Val dá uma rápida olhada para a sala de aula, antes de voltar para mim.
  – Ele estava em dívida, não podia negar. – Ela comenta seriamente, me fazendo apenas acenar com a cabeça.
  Ficamos em silêncio por mais alguns segundos, até ela dizer que precisávamos ir.
  Discretamente caminhamos até a saída da escola, onde avistamos Mark nos esperando na calçada. Ele tinha um olhar vago e encarava o asfalto rachado.
  Lentamente nos aproximamos dele, e sua atenção vem ao nosso encontro. Assim como seu olhar cerrado e apático.
  Sem trocar uma única palavra, nós três seguimos pelas ruas de Setealém, com Val nos guiando pelo caminho que fizemos uma única vez.

***

  Dois mil e cem segundos depois, estávamos em frente a fachada de madeira e letras brancas. Todos os doces estranhos estavam muito bem expostos na grande vidraça, assim como dá última vez em que viemos aqui.
  Val nos olha sugestivamente antes de caminhar até a porta, que ressoa um pequeno sino assim que atravessamos ela.
  O homem alto e calvo que estava perto de algumas mesas redondas e pequenas de madeira, nos olha curiosamente assim que nota nossa presença.
  – Ora, ora, o que temos aqui... Sejam bem–vindos! – O homem que antes estava limpando a mesa, agora para seus movimentos e abre um grande sorriso em nossa direção.
  – Queremos saber qual o preço do aluguel das armas? – Val é direta, fazendo o homem arquear as sobrancelhas.
  – Então não vieram atrás dos meus doces? – O sorriso grande em seu rosto permanece com gosto.
  Val nega com a cabeça.
  – Cem noctis por arma. – Ele responde, visivelmente interessado.
  – E como podemos conseguir esse dinheiro?
  Olho de relance para Mark, que estava ao meu lado. Ele observava tudo com atenção.
  – Não têm dinheiro? – O homem deixa o pano sujo que usava para limpar a mesa, e vem em nossa direção. – Então eu tenho uma proposta para fazer.
  – Uma proposta? – Levando as sobrancelhas, curiosa.
  – Estou precisando de ajuda na loja. é ruim nas entregas e muitas das vezes não aparece por aqui. Façam essas entregas para mim, e eu deixo que escolham algumas armas. – Ele cruza os braços cheios, sobre seu estômago.
  Val nos olha, pedindo permissão para o que deveria responder, e eu dou de ombros.
  Talvez não seja um mal negócio. Nós precisamos disso.
  – Certo, iremos fazer isso. – Val estende sua mão para o homem alto e calvo, que a aperta firmemente sem pestanejar, fechando nosso novo acordo. – Mas vamos deixar apenas entre nós quatro. Seu filho não gosta muito de humanos, e isso poderia ser um problema.
  – Tudo bem. – O homem mantém o sorriso. – E quando podem começar? – Ele nos olha com expectativa.
  – Agora. – Respondo, atraindo a atenção de Val e Mark.
  Mas eles sabem, quanto antes começarmos, mais cedo teremos tudo que queremos.
  – Ótimo. Eu já tenho algumas entregas de doces. – O homem nos dá as costas, e caminha até o pequeno armário ao lado das prateleiras de doces. Ele abre o armário e retira de lá algumas caixas quadradas e brancas empilhadas.
  – Aqui estão suas primeiras encomendas. – Ele bate no topo da primeira caixa. – Os endereços estão escritos aqui. – Ele aponta para os quadrados brancos.
  Nós três nos aproximamos, e acabamos por pegar algumas das caixas.
  – Vocês podem fazer isso?
  – Sim. Eu moro em Setealém há algum tempo, posso encontrar. – Val responde.
  – Então já podem começar. – Ele cruza os braços outra vez.
  – Qual seu nome? – Pela primeira vez desde que chegamos, Mark se manifesta.
  – Joe. – O homem alto e calvo, responde em outro sorriso.
  – Vamos indo agora. – Val interrompe, e faz um gesto de cabeça para que seguíssemos ela.

***

  Nós três seguimos pelas ruas de Setealém, passando por cada casa destruída, mata alta, lojas estranhas, ruas rachadas e pessoas que nos olhavam mal-encarados, e até mesmo nos mandavam voltar para o mundo humano.
  Com o vento gelado e o céu escuro em tom avermelhado em cima de nossas cabeças, traçamos um caminho que durou mil trezentos e oitenta segundos. O silêncio nos acompanhou até uma grande casa em uma rua reta com mais muitas outras ao seu redor, as paredes não estavam pintadas e todo seu concreto era gasto e descamado.
  – Essa é a casa. – Val diz, apertando firmemente as das caixas brancas que ela segurava.
  Ela inclina sua cabeça para o lado e nos observa por poucos segundos.
  – Vamos. – Ela acena levemente a cabeça, antes de começar a caminhar até as paredes de concreto gasto.
  Em uma fila indiana, Mark e eu a seguimos, até que parássemos em frente a porta de madeira.
  Ao lado da porta, havia um pequeno botão de campainha, do qual Val apertou e soltou uma exclamação de dor em seguida, afastando seu dedo com algumas gotas de sangue.
  Me aproximo da campainha, vendo uma pequena ponta de fero no meio do botão, colocada ali estrategicamente para todos que apertassem.
  Val volta a segurar as caixas com as duas mãos, e posso ver o sangue de seu dedo indicador sujar um dos quadrados brancos de papelão.
  Exatamente dois minutos depois, a porta de madeira é aberta, relevando a imagem de uma alta mulher de cabelos escuros que iam até sua cintura. Seus olhos esbranquiçados se apertam ao nos ver, e suas mãos seguram com mais firmeza no batente da porta, restringindo nossa entrada.
  – Quem são vocês? – Apesar de seus olhos correrem por nós três, sei que a minha presença e a Val são as que mais incomodam.
  Val dá um passo para frente, e a mulher aperta mais seus dedos contra o batente da porta, de forma que eles até causem algumas pequenas rachaduras na madeira.
  – Joe nos mandou entregar. – Val pega a caixa do topo e estende em direção a mulher.
  A mulher de pele pálida e dentes amarelados e rachados encara a caixa por quinze segundos, antes de a puxar rudemente da mão direita de Val.
  – Voltem para o mundo imundo de vocês antes que infestem Setealém. – Ela quase grita, antes de fechar a porta com força, nos deixando para o lado de fora.
  Permanecemos parados, encarando a madeira marrom, até que a mulher voltasse, apenas para abrir a porta por um momento, jogando algumas moedas em nossa direção.
  Todas as moedas batem contra o corpo de Val, algumas até acertando seu rosto, indo diretamente para o chão depois.
  Os olhos de Val se tornam vagos e seu corpo completamente imóvel.
  Mark solta um longo suspiro e se abaixa, pegando uma por uma todas as moedas. Ele guarda todas as moedas no bolso de seu uniforme escolar.
  – Precisamos ir agora. – Mark se vira, e começa a se afastar da casa de paredes de concreto gasto.
  – Você está bem? – Dou uma rápida olhada para Val, que apenas se vira e segue Mark.
  – Vamos.
  E sem ter muita escolha, apenas faço o que ela pede. Nós sabíamos que não havia tempo para isso agora.

***

  Mil setecentos e quarenta segundos depois, nós estávamos alcançando a segunda casa. Ela era a última em uma rua sem saída, que parecia dar entrada para a floresta.
  Andando pelo asfalto rachado, passamos em frente a todas as casas antes de chegar em nosso destino. E era muito perceptível ver e sentir os olhos que nos espiavam através das janelas e das cortinas escondidas.
  Ninguém nos queria aqui.
  Paramos em frente a segunda casa, esta com uma porta de madeira, mas com um pequeno quadrado de vidro sujo, nos impossibilitando de enxergar através dele.
  Mark toma a frente e dá três batidas no vidro sujo, mas ninguém além do vento gelado nos recebe.
  – Tente de novo. – Digo, e Mark leva sua mão outra vez até o vidro, dando, agora, quatro batidas. E na última delas, a porta se abre sozinha, nos dando uma pequena passagem.
  Encaro Val, com as sobrancelhas arqueadas. Ela dá de ombros, antes de passar por Mark e empurrar a porta, até que se abrisse por completo.
  – Nós precisamos entrar. – Val faz um sinal de mão para que a acompanhássemos.
  E assim o fazemos, passando pela porta e entrando na casa iluminada com a pouca luz que vinha do lado de fora. Damos de cara com a sala vazia, e seguimos em direção ao corredor do lado, que nos levou para uma pequena cozinha, também, vazia. Havia um copo redondo de madeira sobre a mesa, ele estava tombado e um líquido preto sujando tudo e indo até o chão, causando um baixo barulho de goteira.
  – Vamos embora. – Falo em alerta para Val e Mark, que mesmo com os olhos presos no copo, assentem juntos.
  Não perdemos tempo ao dar o fora daquela casa, fechando a porta e nos afastando dali, enquanto traçávamos o mesmo caminho de antes.

***

  Dois mil oitocentos e vinte segundos depois, estávamos em nossa antepenúltima entrega do dia, e com quatro caixas restantes.
  A casa pintada em um verde apagado ficava em uma rua mais movimentada, com algumas crianças brincando nas calçadas. E todas paravam assim que nos viam passar, prestando toda sua atenção em nós três.
  Ignorando cada olhar esbranquiçados, caminhamos pelo asfalto rachado, até que paramos em frente a porta de madeira quadriculada.
  Acho que agora era a minha vez.
  Dou dois passos para frente e bato na porta quadriculada, que apenas alguns segundos depois, é aberta por um homem alto e magro, com os cabelos amarelados até os ombros e uma longa barba malfeita.
  Ele segurava um cigarro preto entre os dedos, e nos olhava com curiosidade através de seus olhos esbranquiçados.
  – Posso ajudar? – Ele arqueia as sobrancelhas, enquanto soltava a fumaça densa entre seus lábios rachados e sem cor.
  – Joe. – Respondo, simplesmente, estendendo uma das caixas que eu segurava.
  O homem acena positivamente e afasta seu corpo para o lado, nos dando passagem para dentro de sua casa. Olho sobre os ombros para Val e Mark, mas eles continuam inexpressivos, e por isso, acabo por entrar, escutando os passos dos dois me seguindo.
  O homem fecha a porta, e pede para que o seguíssemos até a sua cozinha, onde ele se senta em uma das cadeiras velhas.
  – Pode colocar aqui.
  Me aproximo sem pressa e coloco a caixa de papelão sobre a mesa. Em seguida, o homem apaga o seu cigarro sobre a caixa.
  – Esperem um pouco. – Ele enfia as mãos com unhas sujas, dentro do bolso detrás de suas calças, retirando de lá cinco moedas douradas.
  Ele coloca as moedas sobre a mesa, empurrando-as em minha direção.
  Estico minhas mãos para pegá-las, no mesmo segundo que ele sorri.
  – Vocês não são daqui. Eu posso sentir o cheiro.
  Entrego as moedas para Mark guardar em seu bolso, e volto a me juntar a eles.
  – Sabe, eu costumava ser como vocês. Mas as coisas mudaram, na verdade, estão mudando pra vocês também. Eu posso sentir o cheiro humano, ele está bem fraco, vocês cheiram quase como ele. – O homem aponta com sua unha suja, em direção a Mark.
  Ninguém ousa dizer nada e o sorriso amarelo do homem sentado era a única coisa que preenchia todos nós.
  Olho uma última vez para o homem sujo e para a caixa que eu carregava em meus braços, antes de dar as costas para todos e começar a caminhar em direção a saída da casa. E assim como foi antes, Val e Mark me seguem, deixando para trás tudo o que aquele ex-humano nos disse.

***

  Seguimos para nossa penúltima casa, apenas novecentos segundos de distância. E nossa passagem por ela foi rápida, já que não parecia ter ninguém. A casa estava trancada, e mesmo que para os padrões de Setealém, parecia abandonada.
  Por isso, fomos obrigados a seguirmos para nosso último destino. Uma casa completamente sozinha em meio a um grande matagal alto, sem vizinhos ou sinal de qualquer pessoa por perto.
  A porta da casa estava aberta, revelando todo o interior completamente escuro. E com cautela, adentramos o ambiente, que cheirava muito mal, um odor extremamente forte.
  A falta de luz do lado de dentro nos fazia ver apenas grandes sombras, e foi exatamente seguindo elas e o odor forte, que acabamos saindo na sala, o primeiro lugar banhado por alguma cor. A cortina entreaberta, deixava que pouca luz entrasse no ambiente, mas que iluminasse o suficiente para que enxergássemos o vermelho espalhado pelo tapete e sofá rasgado.
  – Será que não tem ninguém aqui também? – Mark pergunta, se virando em minha direção.
  Olho para Val, que mantinha seus olhos concentrados no sofá sujo e rasgado.
  – É melhor irmos embora desse lugar. – Ela diz séria e se vira para sair da sala. E ao fazermos o mesmo que ela, damos de cara com uma mulher alta.
  Ela tinha os cabelos desgrenhados e roupas rasgadas, alguns arranhões estavam distribuídos por suas pernas e braços, e um grande vergão saltava sua bochecha direita. Suas unhas e mãos estavam cobertas por sangue seco, enquanto ela segurava uma faca de cozinha.
  A mulher enruga o nariz e a boca, nos mostrando seus dentes como se fosse um animal, enquanto um som estranho saia de sua boca.
  – Fiquem atentos. – Val alerta, levando um de seus braços para frente de nossos troncos.
  Os pés descalços da mulher dão alguns relutantes passos, e ela passa a segurar a faca com as duas mãos.
  – O meu m-marido... m-meu m-marido... – Ela tenta falar em meio a outro barulho estranho, muito semelhante ao que os gatos fazem quando estão ariscos. – Meu m-marido... ele era um humano... um humano. E-eu descobri que ele pretendia me matar... com isso que vocês estão carregando. – A mulher aponta sua faca em direção as caixas que estávamos carregando.
  Ela dá mais alguns passos e nós três recuamos.
  – E-ele me enganou esse tempo... esse tempo todo. – Mais um barulho estranho. – Eu odeio humanos. Odeio. – Ela enruga o nariz e mostra os dentes outra vez. – E é... e é por isso que eu preciso matar vocês agora.
  Sem tempo para processar suas palavras, ela avança em nossa direção com a faca, nos fazendo escorregar e cair sobre o tapete sujo.
  A mulher tenta acertar a perna de Mark com a faca, mas consigo o puxar para o lado, e tudo o que ele tem é um pequeno arranhão no tornozelo.
  – Se levantem, rápido! – Val grita, enquanto pega uma das caixas que derrubamos sobre o chão.
  Quando Mark e eu conseguimos nos colocar de pé, a mulher salta sobre o sofá e corre para fora da sala. E o que escutamos em seguida, é o barulho dela trancando a porta de entrada.
  – Droga! – Val diz exasperada. – Vamos por aqui. – Val corre com a caixa, para direção contraria da qual a mulher seguiu, e rapidamente Mark e eu a seguimos.
  Entramos em um corredor pequeno, olhando em qual porta poderíamos entrar, mas ao escutar o barulho dos passos apressados da mulher passando pela sala, somos obrigados a correr pelo corredor e entrar na última porta.
  Acabamos dentro de um quarto velho, com apenas uma cama, uma cadeira de balanço e uma janela velha com cortinas rasgadas.
  Val usa a cadeira de balanço para travar a porta, enquanto eu corro até a janela, na tentativa de abri-la, mas para nosso azar, estava emperrada, era velha demais.
  – Mark, me ajude aqui. – Peço entre os dentes, enquanto faço força para abrir a janela.
  Não demora até que a mulher louca esteja batendo contra a porta e fazendo barulhos estranhos do outro lado.
  Val se afasta quando a porta começa a sacolejar, e não perde tempo ao abrir a caixa que trouxe consigo. Ela retira de dentro da caixa um grande castiçal de prata.
  Com mais uma batida na porta, ela faz sua primeira rachadura.
  Val olha de solavanco para porta, e depois para onde estávamos. Em seguida, se levantando e vindo correndo até a janela, acertando o vidro inúmeras vezes com o castiçal, até que ele se quebrasse por completo.
  Ela empurra o vidro para fora, fazendo alguns cortes em sua mão.
  – Vamos, passem logo! – Alerto, assim que a porta faz outra rachadura.
  Val é a primeira, se colocando em cima do batente e do começo da janela, para depois pular para fora.
  – Vamos, agora é sua vez, Mark. – Empurro seu corpo em direção a janela, e ele me olha por alguns segundos, antes de fazer o mesmo que Val.
  Quando Mark alcança o chão de terra batido do lado de fora, a porta do quarto é aberta pela mulher louca, que faz outro barulho estranho. Ela começa a correr em minha direção assim que me coloco em pé na janela, a tempo de ela conseguir agarrar meu tornozelo, fazendo meu tronco bater contra a parede do lado de fora.
  Val vem em minha direção, e com a ajuda de Mark, eles seguram meus braços e tentam me puxar para fora. Mas a mulher parecia ser mais forte que eles. E para atrasar nossa fuga, ela acerta minha panturrilha com a faca, me fazendo soltar um estridente grito de dor.
  Tento olhar sobre os ombros, mas minha visão é precária devido a posição que estou.
  – Me dê o castiçal! – Praticamente grito para Val, que sem saber o que fazer, apenas me obedece.
  Me solto Valerie e de Mark, e empurro meu corpo de volta para o quarto, e a mulher louca aproveita a oportunidade para me arrastar para trás pelas pernas. Minha panturrilha queima em dor com os puxões que ela dá, mas tento não pensar nisso agora.
  Com esforço, viro meu corpo para cima, e consigo acertar o rosto da mulher com um chute, a deixando desnorteada por um momento.
  Tento me colocar de pé, mas caio sentada quando minha perna esquerda falha, devido ao machucado. Me arrasto até a parede da janela e me escoro contra o batente da janela, obrigando meu corpo a se levantar.
  – Vamos, Mae! Vem logo! – Val grita do lado de fora da casa, enquanto Mark permanece parado ao seu lado, com um semblante totalmente sério em seu rosto.
  Respiro fundo, pronta para tentar saltar a janela, mesmo com esse machucado ardente. Mas a mulher logo se recupera, e vem correndo em minha direção com a faca, e em um ato desesperado e involuntário do meu corpo, acerto seu rosto com o castiçal, que era mais longo que a faca.
  A mulher cambaleia para trás e cai sentada sobre o chão.
  Encaro o objeto em minha mão, agora manchado de sangue, e o aperto firmemente contra os meus dedos.
  – O que você vai fazer?! – A voz de alta de Val me faz olhar janela a fora, vendo Mark correr em minha direção e saltar para dentro do quarto outra vez.
  Rapidamente, ele toma o castiçal de minha mão e vai até a mulher caída no chão, acertando sua cabeça repetidas vezes, até que ela parasse de se debater.
  Mesmo de costas, eu podia notar seu tronco descer e subir rapidamente, efeito de sua respiração acelerada. E quando ele se vira em minha direção, sou capaz de ver com detalhes seu rosto e roupas sujos pelo sangue da mulher morta.
  Meus olhos se arregalam levemente, enquanto ainda me mantenho escorada contra o batente da janela, encarando Mark sem acreditar em tudo que aconteceu.
  Ele anda em poucos passos até a janela, e para à minha frente.
  – Vamos embora. Você primeiro. – Mark aponta janela afora.
  Meus olhos ainda se mantém sobre ele, rebobinando inúmeras vezes o que o garoto de apenas doze anos acabou de fazer.
  Pisco algumas vezes para voltar a realidade, e aceno para ele.
  Me apoio melhor na janela antes de saltar para o lado de fora. E ao sentir o impacto da minha perna esquerda contra o chão, caio de mal jeito, sentindo a dor em minha panturrilha se alastrar por todo meu corpo.
  Val vem até onde eu cai, enquanto Mark salta para fora outra vez.
  – Você está bem? – Val se abaixa em minha altura e tenta checar meu machucado, mas assim que seus dedos encostam em minha panturrilha, afasto ela de perto de mim.
  – Não toque, por favor. – Contorço o rosto.
  – Você quer que eu pegue um pouco de sangue daquela mulher? – Mark pergunta, assim que se aproxima.
  Ele ainda segurava o castiçal sujo.
  – Não. Só vamos embora logo. Alguém pode chegar e estaremos encrencados. Apenas me ajudem. – Estico meus braços na direção deles, que em meio a minha dor e resmungos, me ajudam a ficar de pé.
  Passo um de meus braços sobre os ombros de Valerie e assim seguimos nosso caminho.

***

  Três mil cento e oitenta segundos dolorosos depois, finalmente estávamos de volta a loja de Joe. Ele nos levou até os fundos de sua loja, onde contamos em detalhes tudo que nos aconteceu, o homem apenas riu e disse que esse era o preço a se pagar.
  Joe acabou me dando um pouco de sangue, e deixou que escolhêssemos cinco itens de sua loja, cada um equivalente a nossas entregas, que mesmo não tendo concluídas todas, ele sabia que não tínhamos culpa do que nos aconteceu.
  Val escolheu um grande saco de linho, duas cordas, um canivete e uma lixa de metal. Ela jogou todos os itens no saco de linho e disse que levaria até sua casa, e pediu que Mark fosse mais cedo para a escola na manhã seguinte, para que pudesse esconder tudo isso dos outros.
  E depois de acertarmos os detalhes de nossa pequena vingança contra Sophie, acabamos por sair da loja de Joe, mas não sem antes receber uma proposta dele para trabalhar fixamente em sua loja, e assim ele nos ofereceria noctis como pagamento, e deixaria que alugássemos qualquer coisa de sua loja de graça.
  E mesmo que fosse loucura por tudo que passamos hoje, acabamos por aceitar sua proposta, com um único acordo de que nos desse alguns dias de descanso antes de começarmos.
  Seria muito útil ter acesso a tudo isso, poderíamos nos defender melhor de todos aqui.
  E por fim, cada um de nós seguiu por um caminho de diferente; Val levando consigo tudo que usaríamos no dia seguinte e Mark e eu de volta para nossa casa.
  Mesmo que meu machucado já estivesse um pouco melhor depois do sangue que tomei, Mark ainda precisou me ajudar a caminhar até a porta de entrada. Onde, assim que passamos, fomos recebidos por Eve, que mais parecia com um grande furacão.
  – Onde você estava?! – Sua voz era alta e carregada, enquanto seus olhos vermelhos pelo choro me encaravam com preocupação e raiva.
  – Dando um passeio. – Respondo, retirando meu braço do ombro de Mark.
  – Dando um passeio desse jeito?! O que estavam fazendo?! Olhe só pra vocês dois, Mae! – Ela avança até onde estávamos, mas desvio, passando por ela.
  – Mark estava junto, não precisa se preocupar. – Dou as costas para minha irmã, indo em direção ao corredor.
  Faço uma careta de dor, enquanto manco até a entrada do corredor de quartos, já avistando no final dele, a porta do porão.
  – Vocês sumiram o dia todo, Mae! E eu sei que estava mentindo, ele nem conseguia me olhar direito, estava escondendo alguma coisa! – Ela continua, com sua voz exasperada.
  Solto um longo suspiro, querendo apenas me livrar disso e descansar um pouco.
  – Valeria estava junto, não estava? Eu não quero você andando com ela, Mae. Desde que vocês duas ficaram mais próximas, só coisas ruins aconteceram... até mesmo você está diferente agora. – Sua voz estava embargada, e sei que ela estava se segurando para não chorar.
  Paro de andar e me viro para trás, encontrando seus olhos brilhantes e lacrimejantes de minha irmã. E Mark estava mais atrás, apenas observando tudo.
  – Você pode me deixar descansar agora? Eu estou bem. Já disse que não precisa se preocupar. – Forço um sorriso em sua direção, enquanto seu rosto se contorce em raiva, assim que volto a me virar e seguir pelo corredor.
  Mancando com minha dor, vou até meu antigo quarto, abrindo a porta e entrando, logo me trancando lá dentro.
  Solto outro suspiro, enquanto sinto o forte odor que os corpos de Jack e Angeline causavam no cômodo. E sem me importar, caminho até a cama e empurro o corpo esverdeado e preto de Jack para o chão, me deitando em seu lugar, abraçando o corpo gelado e duro de Angeline, antes de fechar os olhos, esperando ter um momento de sossego em meus sonhos.
  Respiro fundo uma última vez, antes de me aconchegar melhor a Angeline e cair em um sono profundo, enquanto escuto a minha própria voz ecoar por todo o quarto, junto daquela presença que aprendi a reconhecer.
  – Como se sente hoje? Espero que descanse bastante, temos um grande dia amanhã.

Capítulo 24

  Já estou por longos minutos apenas sentada sobre essa cadeira velha e gasta, enquanto encaro através do vidro sujo e trincado da janela da cozinha, admirando o vermelho do céu do lado de fora deste novo dia.
  Minhas mãos se mantêm fechadas ao redor da xícara vazia que estava sobre a mesa lascada, meus olhos desviam da janela e caem sobre ela, encarando agora, o resto do líquido denso e escuro que continha na xícara de porcelana manchada.
  Um longo gole de sangue para um dia sangrento.
  Quando acordei nesta manhã, me sentindo muito melhor, Mark já não estava mais em casa e eu sabia o motivo. Minha irmã, Eve, acabou por sair mais cedo também, parecendo ainda estar chateada com tudo que aconteceu noite passada. Talvez eu lide com ela depois, mas não agora.
  Agora eu tenho algo mais importante para fazer.
  Retiro minhas mãos da xícara manchada e as passo por meu uniforme escolar, ajeitando as roupas rasgadas em meu corpo. Depois me levanto da cadeira e começo a caminhar para fora da cozinha, seguindo para a porta de entrada e, enfim, deixando minha casa.
  Respiro o ar gélido do lado de fora e começo a contar cada passo que dou até chegar no meu destino inicial. Observando atentamente todas as batidas do meu sapato contra o solo rachado e mórbido de Setealém.

***

  Quinze mil e três passos foram o suficiente para me levar até a escola, onde acabei por encontrar Mark parado na calçada da frente, segurando o grande saco de linho marrom, que guardava muito bem tudo que usaríamos hoje.
  Brevemente, ele me informa que Valerie está me esperando do lado de dentro da velha construção e, sem demora, começo a caminhar para dentro da escola, sendo recebida por corredores quase vazios. Por isso não foi difícil encontrar Valerie, que estava parada perto de uma das salas de aula.
  – Aconteceu alguma coisa? Sua irmã não parecia muito feliz quando chegou. – Val cruza os braços e aperta os olhos, esperando por minha resposta.
  Solto um curto suspiro.
  – Não se preocupe. É apenas o de sempre. – Respondo, cansada dessa situação com Eve.
  Valerie apenas assente.
  – Certo. Melhor irmos agora. Já deixei tomando conta da sua irmã. – Val informa e se vira, fazendo um gesto para que a siga para fora da escola.
  Sigo os movimentos de Valerie, dando uma última olhada ao nosso redor para me certificar de que iriamos ser discretas. E a pessoa que encontro parada ao final aposto do corredor, me chama a atenção por um momento.
  – Você pode ir na frente. – Digo para Val, que me olha sobre os ombros.
  – Por quê? – Ela franze o cenho.
  – Eu já estou indo. – Respondo, e me viro de costas para ela, caminhando até a pessoa no final do corredor.
  O homem alto e de cabelos brancos logo nota minha presença, abrindo um grande sorriso assim que me vê.
  – Mae. – Ele saúda animado. – Por que tem faltado em minhas aulas? Eu deveria me preocupar com isso? – O professor cruza os braços, mantendo seu sorriso em minha direção.
  – Estive resolvendo alguns assuntos familiares. Eu sou uma humana, não é fácil me adaptar a pais de Setealém. – Dou de ombros, segurando minhas mãos em frente ao meu corpo.
  – Entendo isso. – Ele acena positivamente. – E em que posso ajudá-la agora?
  – Gostaria de fazer algumas perguntas. – Sou direta, o vendo arquear as sobrancelhas.
  – Pois então as faça. Meu trabalho é tirar todas as suas dúvidas. – E lá estava mais um sorriso.
  – É possível que a versão humana e a de Setealém se misturem? – Solto uma das perguntas que vêm rondando minha mente desde que acordei, logo após meus dias trancada no galpão.
  – Está tendo problemas com sua versão de Setealém? – O professor me olhar com divertimento.
  – Talvez. – Dou de ombros outra vez.
  – Você se lembra da aula onde eu expliquei que quando um humano mata alguém de Setealém, este alguém pode escolher ou não atormentar seu assassino?
  Assinto para sua pergunta, para que ele continue.
  Esta aula foi logo após o meu incidente na loja de Joe, onde acabei por matar para me defender, e logo depois comecei a me sentir atormentada.
  – Pois bem, minha cara Mae. Como alguém precisa morrer para que o outro viva, isto faz como que uma das partes se torne uma assassina em potencial, responsável pela morte de sua versão humano ou de Setealém, como é o seu caso. E esta versão que morreu pode, como todas as outras decorrentes, escolher ficar preso a quem viveu para que ela morresse. Não posso dizer se, de fato, as duas versões chegam a se unir, cada caso é um caso, e pode ser diferente para cada pessoa, mas ainda assim existe essa possibilidade que você sugeriu.
  Franzo meu cenho, absorvendo toda sua explicação que desperta dentro de mim um sentimento de desventura.
  Meu ex-namorado foi supostamente morto pelo assassino de Hollow Grow; era o que a polícia havia noticiado. Mas sua versão de Setealém existe e, neste mundo, ela é a explicação para sua morte, o que deixa tudo muito estranho. Ou ele morreu pelo suposto assassino de Hollow Grow, ou morreu pela ordem natural de Setealém.
  Algum lado desta história tem cheiro de mentira, e acho que posso encontrar a resposta para isso bem aqui neste mundo.
  – Mais alguma pergunta? – O professor de cabelos brancos e dentes amarelos me puxa para fora de minha mente, me fazendo olhá-lo novamente, já que me perdi, encarando o chão de cimento do corredor.
  – Não, acho que já entendi. – Suspiro baixo e ele assente.
  – Lembre-se, Mae. Quanto mais você mata em Setealém, mais isso te acompanha, se torna um grande amontoado negro, como um escuro manto de almas mortas que podem ou não escolherem te atormentar. Por isso, humanos tendem a fazer coisas das quais se sentem incrivelmente arrependidos depois, não sabendo explicar como foram capazes de tais atrocidades. Poucos são os que cometem assassinatos dentro de Setealém, mas só o fato de um humano estar vivo e sua versão de Setealém morrer por conta da ordem natural, já o afeta. E se sua versão for do tipo pouco amigável, ela pode se arrastar com o humano por toda eternidade, condenando-o por anos dentro de um grande tormento.
  Sem conseguir responder a tudo que ele me disse, apenas me viro e me afasto de perto do homem de cabelos brancos, enquanto chacoalho minha cabeça de um lado para o outro, tentando afastar de mim todos os nós que começam a se desatar em minha mente.
  Forço meus passos por todo o corredor, e para felicidade, para o lado de fora da escola, onde Mark e Valerie me esperavam.
  Respiro fundo e começo a me aproximar deles, deixando para trás todas as inevitáveis revelações que um dia iriam me encontrar.
  – Está pronta? – Val pergunta, assim que começo a descer os poucos degraus da entrada da escola.
  Aceno positivamente com a cabeça, enquanto sou observada pelos olhos atentos de Mark, que pareciam desvendar exatamente o que eu sentia neste momento.
  E com isso, Valerie toma sua posição, sempre à frente, nos guiando pelo caminho onde encontraríamos nosso pequeno alvo do dia. Aquele que sentiria todas as dores e perturbações que um dia fomos obrigados a mergulhar.

***

  Nós três, lado a lado, permanecíamos parados a uma distância considerável do grande prédio abandonado cercado apenas por mato alto. O solo de terra se misturava ao vento gelado do dia avermelhado, e o silêncio se estendia por cada canto deste lugar que tive o desprazer de conhecer um dia.
  – Como você sabe que ela está aqui? – Viro minha cabeça para o lado, encarando Valerie, que estava entre Mark e eu.
  – Depois que fui trazida para Setealém, por diversas vezes tentei fugir, até que acabei encontrando esse lugar abandonado, e achei que ele poderia virar alguma espécie de refúgio, mas não foi bem isso que aconteceu. Como você sabe, Sophie, e costumam ficar aqui, principalmente Sophie, que se esconde nesse lugar para não ter que ir as aulas e ficar perto de humanos. E por conta disso, não pude mais ficar neste prédio, mas pelo menos sei que é aqui onde ela gosta de passar algum tempo.
  – e podem estar aí, isso torna tudo mais difícil. – Faço uma simples, mas importante observação.
  – Não estão. Eu os vi na escola hoje. Esse é o momento perfeito para fazermos isso. – Val mantém seus olhos focados no prédio, deixando que todo seu sentimento de vingança pairasse por suas órbitas.
  – Me diga, Valerie, você não tem amigos por aqui? Por que nunca tentou nada com eles, antes, já que sabe tanto? – Continuo encarando seu perfil ao vento.
  Ela solta um breve suspiro.
  – Eu tive amigos, se você quiser chamar assim. Alguns morreram, outros se tornaram como Setealém, e por isso decidi que não queria mais ninguém por perto. Isso até vocês chegarem aqui. Eu apenas preciso ir embora.
  Mesmo que ela não me olhe, aceno com a cabeça, logo desviando meu olhar em seguida, indo até Mark que, como sempre, se mantinha quieto, apenas observando tudo.
  – E você, Mark, não tem amigos? – O garoto de olhos esbranquiçados, me fita, não deixando que seu rosto transpareça qualquer reação.
  – Não me encaixo com ninguém deste mundo. – Ele responde, apenas piscando seus olhos vez ou outra.
  – Eu posso acreditar nisso. – Val deixa que um mínimo sorriso surja em seus lábios, enquanto espia Mark pelo canto de olho.
  Eu também posso.
  – Devemos ir agora? – Pergunto, voltando ao centro de nosso plano.
  – Sim. – Val acena positivamente. – Mas vamos ser silenciosos, positivamente não queremos que Sophie desconfie que tem visitas.
  E outra vez Valerie toma a frente, cortando o vento com passos e nos guiando até a entrada do nosso grande momento.
  Passamos pela abertura sem porta e andamos em meio aos escombros dentro da construção, depois checamos cada canto do primeiro andar, mas apenas as vigas e entulhos se faziam presentes. Seguimos em silêncio até o segundo andar, o local onde passei algum tempo com e no passado, mas também não havia nada. Mais uma vez seguimos em frente, agora, por todos os outros andares, sendo recepcionados pelas aberturas nas janelas, que deixavam a luz avermelhada do dia entrar.
  – Só falta o terraço. – Val diz, apertando os olhos e levando o dedo indicador até a boca.
  Sinto um grande arrepio correr por todo meu corpo ao ter recordações do que passei no terraço, e isso me faz apenas querer mais e mais o que estava por vir.
  – Então vamos. – Contenho o sorriso que ameaça surgir em meus lábios, e começo a caminhar em direção à última remessa das escadarias.
  Sem pressa e aproveitando todas as sensações que fluíam pelo meu corpo neste momento, subo os degraus até o terraço, sendo seguida por Valerie e Mark.
  Paro em frente a portal de metal enferrujada e respiro fundo, me sentindo ótima neste momento.
  Levo minhas duas mãos até a porta e, sem prolongar mais, a empurro para fora, sendo recebida pelo vento do terraço que, de imediato, balança a saia de meu uniforme, assim como as bordas do blazer preto que eu usava.
  Valerie a Mark logo se juntam a mim, cada um assumindo uma posição ao meu lado, enquanto observávamos o corpo parado perto da borda do prédio, ele era pequeno e magro, coberto por um longo vestido preto muito familiar.
  Uma vibração diferente corre por cada veia do meu corpo, algo tão forte que até mesmo faz com que Sophie se vire em nossa direção, mesmo que isso seja apenas uma metáfora.
  Suas sobrancelhas se enrugam e seu semblante é duro e confuso.
  – O que vocês estão fazendo aqui? – O vento balança seu longo cabelo escuro e seu vestido. – Por que fugiram do galpão? Eu não me lembro de ter deixado isso acontecer. – Sophie começa a caminhar em nossa direção de forma pesada e irritada.
  Ela para especificamente a minha frente, deixando seu rosto tão próximo do meu que quase se tocam. Permaneço parada, apenas aguardando seu sofrimento, que não demora ao vir, pois, percebo, pelo canto de olho, Mark abrir o saco de linho que carregou até aqui, e retirar dele o canivete que escolhemos como arma.
  – Estou falando com você? – Sophie brada em meu rosto, mas sua resposta vem de sua própria boca, com um alto e agudo grito de dor, assim que Mark crava o canivete em sua perna esquerda, a fazendo perder o equilíbrio.
  Sophie cambaleia para o lado, enquanto Mark retira do saco de linho uma das cordas, a jogando em direção a Valerie que, com avidez, ajuda a imobilizar Sophie, dando três voltas ao redor do seu corpo com a corda. Depois disso, os dois vão empurrando ela em direção à única viga que tinha no terraço, a que ficava perto do comportamento da caixa d'água.
  – O que vocês pensam que estão fazendo? – Sophie grita, assim que Valerie e Mark usam a segunda corda para amarrá-la a viga.
  Depois de dar o último nó, Mark joga o canivete sujo de sangue em minha direção, e junto com Valerie, ele se afasta do corpo de Sophie.
  – Bem-vinda à nossa vingança, Sophie. – Balanço o canivete de um lado para o outro, enquanto sorrio para a garota banhada em ódio.
  – Vingança? Como você acha que vai se vingar de mim? – Ela brada outra vez, empurrando seu corpo para frente, na tentativa de se soltar.
  – Você quer saber como eu pretendo me vingar? – Me aproximo de seu corpo, ficando perto o suficiente para que nossos narizes se toquem, enquanto sinto sua respiração pesada atingir meu rosto.
  Estendo o canivete sujo em direção a sua barriga, deixando que a ponta afiada encoste levemente em seu vestido, para depois, empurrá-lo com toda força para frente, sentindo a lâmina se enterrar em sua carne.
  Algumas gotas de sangue saem da boca de Sophie, atingindo meu rosto, e isso é o suficiente para me fazer sorrir.
  – Desta maneira que eu pretendo me vingar. – Afasto meu corpo do seu, criando um espaço entre nós para que eu possa observar em detalhes cada gota de sangue que escorre pelo corte em sua barriga.
  Mesmo mantendo minha atenção em Sophie, noto quando Valerie se afasta, voltando até onde o saco de linho estava caído.
  A respiração de Sophie se torna irregular, e seu tronco começa a subir e descer com rapidez, enquanto uma linha de sangue escorre para fora de sua boca se misturando com a saliva, fazendo com que alguma parte disse fique pendurava em seu queixo.
  – Será que nós deveríamos contar para o seu irmão o que você anda planejando? – Sorrio para Sophie, mesmo que seja apenas um blefe de minha parte, já que contar para sobre tudo, pode acabar estragando nosso plano.
  – Ele nunca vai acreditar em vocês! – A voz de Sophie falha em meio ao bolo de sague em sua boca.
  – Você tem razão, nunca acreditaria em nós. – Val responde, voltando a se aproximar. Ela estava com a lixa de metal em mãos.
  Embalada pelo vento gelado em seus cabelos castanhos claros, ela para perto de Sophie.
  – Pode me emprestar o canivete, Mae? – Val estende sua mão em minha direção, mas não me olha, está atenta demais nos olhos raivosos de Sophie.
  Curiosa para saber o que ela faria, entrego o canivete para Valerie, e logo depois me junto a Mark, ficando ao seu lado e sendo mais um espectador do sofrimento de Sophie.
  Valerie segura a mão esquerda de Sophie, que estava presa ao seu tronco pelas cordas, depois, com o auxílio do canivete, ela começa a fazer cortes na ponta de todos dos dedos da garota presa.
  – Mas, sabe, Sophie, mesmo que seu irmão não acredite na gente – Em meio aos grunhidos de dor de Sophie, Valerie joga o canivete no chão, dando atenção apenas para a lixa de metal, a aproximando dos dedos cortados –, isso não nos impede de nos divertir um pouco com você.
  Sophie tenta afastar sua mão da Valerie, quando ela a segura com força, para depois, esfregar a lixa de metal contra o corte feito em seu dedo indicador.
  A lixa começa a ficar suja de sangue a medida que o dedo de Sophie se torna cada vez mais vermelho e sua carne começa a descamar.
  Sophie começa a gritar de dor, enquanto se engasga no próprio sangue, mas isso não impede Valerie e esfregar a lixar em todos os seus dedos cortados, deixando os machucados ainda maiores e sua pele em pura carne viva e sangrenta.
  – O que me diz disso, Sophie, divertido? – Valerie estende a lixa de metal em frente ao rosto da garota amarrada, mostrando para ela resquícios da sua carne grudada ao metal áspero.
  Sophie tenta responder, mas tudo que sai da sua boca são grunhidos e brados de dor.
  – Você tem sorte, não somos como você e não iremos passar dias te torturando, mas com certeza iremos te largar amarrada aqui, para que essa sua dor se alastre por horas até que você se liberte ou alguém te encontre. E até lá, espero que se divirta bastante sentindo sua própria miséria. – Em um ataque de raiva, Valerie volta a pegar o canivete sobre o chão e começa a fazer cortes da mão direita de Sophie, para poder lixar cada um dos machucados, descamando sua pele cada vez mais, em uma cena nada agradável de se ver, mas muito merecida.
  – Eu acho isso divertido. – Mark comenta ao meu lado, me fazendo olhá-lo.
  Ele mantém seu olhar na dor de Sophie.
  – Aposto que acha. – Digo, cada vez mais surpresa com o garoto de doze anos que acabou se tornando meu irmão de Setealém.
  – Se estamos fazendo isso com ela, é porque ela merece. – Ele continua, agora me olhando, seriamente.
  Sorrio sem mostrar os dentes, em resposta.
  – Sim, ela merece.
  – Nós devemos ir agora. Sophie precisa de um tempo para pensar. – Valerie nos olha sobre os ombros, e Mark e eu assentimos juntos.
  Sophie branda outra vez, e Valerie se afasta, começando a recolher tudo que trouxemos.
  – Pode me emprestar isso por um minuto? – Me aproximo de Valerie, e indico o canivete. Ela acena e me entrega ele, e depois se afasta com Mark, com tudo já de volta ao saco de linho marrom.
  Uma última vez me coloca à frente de Sophie, que se debulhava em dor e suor.
  – Eu realmente espero que você sofre muito. – Sorrio com escárnio para ela, e depois uso o canivete para acertar sua coxa direita, criando um grande rasgo que divide sua carne ao meio, deixando a lâmina cravada no final do machucado sangrento e pulsante. – Objetos humanos fazem um belo estrago em vocês, não concorda?
  Deixo que minha risada nasalada seja a última coisa que Sophie escute, antes que eu me vire em meio aos seus gritos e deixe o terraço na companhia de Valerie e Mark.

***

  – Tivemos uma noite bem longa. – Val comenta entre um suspiro e um grande sorriso em seu rosto. – Me sinto ótima. – Ela nos olha satisfeita. – Eu me sinto extremamente ótima em saber que Sophie está agonizando de dor.
  – Nada como um dia após o outro. – Digo, a deixando ainda mais feliz.
  – Bom, melhor voltarmos agora. Nossos dias serão cheios daqui para frente. Vejo vocês amanhã na escola. – Val ajeita o saco de linho marrom sobre seus ombros, e depois acena com sua mão direita para nós, antes de se virar e seguir por outro caminho.
  – Vamos? – Me viro para Mark, que apenas assente.
  E assim o fazemos, traçando todo o caminho que deveríamos até nossa casa. Um caminho silencioso e sem pretensão de conversa alguma, pois sei que esse é o jeito de Mark, e sua lealdade já é o bastante neste momento.
  Quando chegamos, percebo que Eve estava na sala, mas evito de passar por ela e vou direto para o meu antigo quarto e Mark faz o mesmo. Já estou farta de brigas, por isso vou evitá-las daqui para frente.
  Assim que entro no quarto coberto pelo cheiro da morte. Caminho em direção à cama, desviando do corpo morto de Jack jogado ao chão, e me sento ao lado do de Angeline, observando cada traço de seu rosto em começo de decomposição.
  Inspiro todo o ar de dentro do quarto e fecho os olhos, sentindo um par de mãos passarem por meus ombros e repousarem sobre minhas clavículas.
  – Você fez um bom trabalho hoje. Sempre faz. – Minha própria voz sussurra ao meu ouvido, me mostrado o quão unidas nós estamos nos tornando a cada dia.

Capítulo 25

  Na manhã seguinte, tudo parecia correr bem. Sem arrumar nenhuma briga, Eve me esperou para que fossemos juntas até a escola. Claro, no mais absoluto silêncio, e agradeço por isso. Mark, como de costume, saiu mais cedo, como sempre fazia.
  E bastou que nossos pés pisassem no chão destruído da escola de Setealém, para que pares e mais pares de olhos esbranquiçados e amarelados, nos observassem como se fossemos as maiores ameaças deste mundo. Muitas das criaturas deste lugar faziam questão de cochichar seus segredos, enquanto passávamos pelo corredor de salas.
  Valerie e já nos esperavam em seus lugares, parados à porta de uma das salas das quais costumávamos entrar.
  – Bom dia. – Val saúda, mas Eve apenas passa por ela e entra na sala quase cheia.
  Solto um suspiro.
  – Não ligue para isso. – Digo, e Val acena positivamente.
  Encaro , que estava visivelmente nervoso em seu lugar. Sempre olhando discretamente para os lados, como se algo ruim fosse chegar a qualquer momento.
  – Aconteceu alguma coisa? – Pergunto.
   me olha por um instante e depois segura as próprias mãos, mexendo os dedos para tentar descarregar seu nervosismo.
  – Eu soube de alguns boatos hoje quando cheguei. – Ele começa a dizer quase que inaudivelmente, e seus ombros encolhidos seguem suas palavras.
  – O que foi, ? – Val franze o cenho para ele.
   olha outra vez para os lados, mexendo cada vez mais seus dedos.
  – Estão dizendo pelos corredores que Sophie foi encontrada machucada em algum lugar de Setealém. É isso que eles estão dizendo. – Os olhos amedrontados de encontram nos nossos. – Eu sei... Eu sei que foram vocês.
  – E por que você acha que fizemos isso? – Val se aproxima um pouco mais de , e mesmo que sua voz esteja calma, o garoto de cabelos loiros e olhos azuis encolhe todo meu corpo magro.
  – Vocês têm sumido juntas e Sophie já fez coisas ruins antes. – Seu olhar se torna baixo.
  Valerie sorri fechado e toca o ombro de com a mão esquerda.
  – Você não precisa se preocupar com isso. Agora vá assistir a aula. Nos vemos depois. – Ela dá duas batidinhas no ombro dele, antes que o garoto saia de perto de nós duas com um olhar ainda mais assustado.
  Valerie respira pesadamente assim que se vai.
  – Precisamos dar um jeito nele. – Val cruza os braços e me olha com seriedade.
  – Nós não vamos machucar ele, Valerie. – Falo, firmemente.
  Não deveríamos fazer isso com quem não merece. Eu sei que ele anda assustado, mas não posso culpá-lo, afinal, estamos em Setealém.
  – Ele pode acabar estragando tudo com todo esse pavor. – Val bufa, sem paciência.
  Suspiro pesadamente.
  – Eu irei pensar sobre isso. – Não. Eu não irei.
  Valerie fica um pouco mais calma, relaxando sua postura nervosa de antes.
  – As coisas estão prestes a piorar agora. – Val comenta, e a encaro sem entender.
  Ela maneia a cabeça, apontando para trás. E quando olho sobre os ombros, vejo que e se aproximavam.
  Já faz algum tempo desde a última vez que nos encontramos todos assim. Admito que nos manter longe desses dois, fez com que conseguíssemos colocar tudo em prática da maneira que planemos, mas era inevitável encontrar com eles outra vez.
  – Há quanto tempo. Vocês duas têm andado sumidas por aqui. – diz, assim que para a poucos passos de nós.
  – Um longo tempo. – A voz grave de capta toda atenção para ele.
  Seu olhar era apático, adornado pelo piercing preto em sua sobrancelha direta, acompanhado a linha até o lado direito de sua boca, com mais um de seus piercings.
  Lembro que o ver desta maneira, em um primeiro momento, foi completamente chocante, pois descontruía a imagem de meu ex-namorado morto, que era o oposto. E confesso que com o passar do tempo, isso se tornou um tanto quanto normal para mim, não sendo tão relevante em sua aparência, era como se eu não os visse sempre. Mas tem algo neste momento que faz com que os adornos em cor preta o deixem extremamente atraente.
  – Perderam muitas coisas por aqui. – sorri, sem alegria.
  – Sim, elas perderam. – completa. – E é melhor que fiquem atentas, alguns casos estranhos de mortes a moradores de Setealém começaram a acontecer. Teve uma na loja do meu pai, outra em uma casa nas redondezas, e agora Sophie. Parece que alguém a torturou. Cara, o estado dela não era nada bom quando a encontramos. – O sorriso que surge nos lábios de era de puro divertimento, ele sabia o que estava fazendo.
  – Vocês não sabem nada sobre isso, não é? – Os olhos verdes com manchas esbranquiçadas de , olham diretamente para mim.
  Então este era o momento? Ele sabe. deve ter enchido a cabeça de com algumas provocações. Talvez um jogo, mas agora eu posso fazer igual.
  – Não, nós não sabemos. Valerie? – Olho de rabo de olho para a garota ao meu lado, que sorri e nega com a cabeça.
  – Sophie não parava de gritar o seu nome quando a encontramos. – mantém o sorriso, carregando nosso embate no ar.
  – Sua irmã não gosta muito de mim. Não acredite em tudo que ela diz. – Cruzo os braços e inclino meu corpo para frente, deixando que receba meu sorriso.
  – Você tem razão. – Ele me avalia por alguns segundos, antes de acenar positivamente e passar ao meu lado, indo pelo corredor.
   fica parado por alguns segundos, sempre animado com qualquer situação tensa. E logo segue .
  – Você acha que ele sabe muito? – Val se inclina para o meu lado e pergunta em voz baixa.
  – Não. – Respondo, me virando para encarar os dois corpos altos sumirem pelo corredor. – Ele provavelmente só nos associa a essas mortes. Ninguém além de nós sabe que também estamos interessados no dia trinta e um de outubro.
  – De qualquer forma, você precisa trazê-lo para o nosso lado logo. Não acho que Sophie irá deixar as coisas por isso mesmo, você sabe. – Val diz seriamente, antes de entrar para sala de aula.

***

  Assim como a manhã, a tarde também correu sem problemas. Não encontramos mais ou . E todos os olhares acusadores se perpetuaram sobre nós, mas não era algo que nos incomodava, talvez se nos enxergassem desta forma, os moradores de Setealém se tornariam mais temerantes sobre nós.
  – O que você vai fazer? – Mark pergunta, assim que tombo minha cabeça para trás, a apoiando no encosto da cadeira de madeira da cozinha.
  – Eu ainda não sei. – Suspiro, encarando o reboco descascado e mofado do teto.
  – não vai aceitar participar do nosso plano. Ele é de Setealém.
  – Mark, eu sei. – Inclino minha cabeça para baixo outra vez, encarando o rosto pálido do garoto de olhos esbranquiçados.
  Acabei tendo uma longa conversa com Mark, e contei sobre trazer para o nosso lado. Para variar, era bom conversar com alguém que entendia a situação, já que minha irmã apenas surtaria ou se trancafiaria no quarto, como está fazendo agora.
  – Então como você vai fazer isso? – Ele volta a perguntar, e o olho severamente em sinal de alerta.
  – Eu acho que posso ajudar. – Uma terceira voz preenche a cozinha, e quando olho além dos pequenos ombros de Mark, vejo Angeline parada rente à entrada da cozinha.
  Mark vira sua cabeça para trás e depois me olha.
  – Você também pode vê-la? – Pergunto e ele assente.
  – É claro que ele pode. É meu filho querido. Vocês dois são. – Angeline se aproxima do garoto, com um sorriso no rosto. E deposita suas mãos sobre os cabelos loiros dele.
  – E como você pode me ajudar? – Pergunto, curiosa sobre sua visita.
  Angeline me olha, ainda sorrindo.
  Uma última vez, ela passa as mãos pelos fios claros de cabelo do Mark e depois se afasta, parando ao meu lado e estendendo uma mão para mim.
  – Vamos dar uma volta, querida? – Angeline tomba sua cabeça para o lado, e espera pacientemente até que eu pegue em sua mão e me levante da cadeira.
  – Você pode ficar de olho na Eve? – Pergunto para Mark, que mais uma vez assente sem questionar. E assim, deixo que Angeline me guie para fora de nossa casa.
  Do lado de fora, somos acolhidas pela noite agradável de Setealém. O céu vermelho parecia especialmente bonito agora. E a brisa era suave como uma pluma macia.
  De mãos dadas com Angeline, minha querida mãe, andei por alguns caminhos rachados, enquanto sentia todo meu corpo se embolar em uma sensação de agito, ao reconhecer aquele caminho que me levaria para o lugar onde renasci em Setealém.
  Observo o sangue acima de nossas cabeças, e os pontos pretos que pintavam o céu, as estrelas que se podiam ver deste mundo. Apreciei cada bela árvore deixada para trás, e a toda terra batida que se misturava com o ar cada vez que a brisa se exaltava.
  Vi todas as casas destruídas sumirem, deixando apenas a mata extensa e cheia, com um grande e muito bem visível galpão.
  – O que estamos fazendo aqui? – Pergunto.
  Angeline aponta para o longe, onde a imagem do garoto com as mãos sujas de sangue se repetia. Ele estava de pé, ao lado do galpão, e limpava suas mãos nas próprias roupas, como um grande déjà vu.
  – Você saberá o que fazer, querida. – Angeline sorri e rodeia meu corpo em uma dança lenta. E quando olho para trás, ela já havia sumido.
  A brisa passa por meu corpo, balançado os fios longos de meu cabelo, e fecho os olhos, aproveitando esta sensação por um momento.
  Respiro fundo e volto a abrir os olhos, procurando a imagem de como se fosse uma grande presa.
  Seu corpo alto e esguio começa a se movimentar, se deslocando com lentidão de perto do galpão. Jogo meu corpo para trás de uma das inúmeras árvores da mata alta, ocultando minha presença. Espero com paciência, até que trace todo seu caminho, passando afastadamente de onde eu estava. E uso desta vantagem para segui-lo neste momento, para qual fosse seu destino nesta noite agradável e, agora, intrigante.

***

  Não tive tantas surpresas em meu caminho secreto, apenas voltou para sua casa, e mesmo que isso se torne perigoso agora, eu preciso fazer alguma coisa. Dez dias já haviam se passado, e não há mais tempo para adiar o que eu deveria fazer, trinta e um de outubro estava se aproximando.
  Andei por mil e vinte passos de distância, este não é o momento de recuar.
  Espreitando por detrás de outra árvore, me escondo até que entre em sua casa, e espero exatos um minuto e meio, para repetir suas ações.
  Sempre atenta a tudo ao meu redor, atravesso a rua deserta e vou em direção à casa de porta vermelha, andando sobre o caminho de pedras antes. Seguro na maçaneta gelada e a giro com movimentos lentos, tentando não fazer muito barulho. Quando a porta se abre, empurro ela para dentro, fazendo um pequeno ranger ecoar pelo lado de dentro da casa. Estreito meu corpo pela abertura e me coloco para dentro da casa, fechando a porta com cuidado.
  Encaro o longo corredor escuro da casa e tento captar qualquer vestígio de barulho que entrega a presença de alguém. E uma vez que sou recebida pelo mais absoluto silêncio, começo a andar pela casa, checando a cozinha e a sala, cômodos completamente vazios. Torno minha última opção o corredor vazio e me dirijo à sua entrada, forçando minha memória para o quarto que eu deveria entrar.
  Uma única e solitária porta estava entreaberta, deixando uma pequena fresta de luz emanar pelo corredor escuro, guiando meus passos até lá. De frente para a porta preta com um grande X vermelho, consigo escutar uma música que entoa do lado de dentro, não sei ao certo qual o nome, mas a voz de Marilyn Manson era inconfundível até em Setealém.
  Isso é surpreendente, não esperava que os moradores de Setealém se apossassem com mais do que armas do mundo humano. Aparentemente, Marilyn faz sucesso em ambos os mundos... a menos que ele pertença a este.
  Isto não é hora para teorias da conspiração, eu tenho coisas mais importantes para fazer agora.
  Ainda cuidadosa, começo a empurrar a porta do quarto de , recebendo as boas-vindas dos acordes de guitarra que vinham de uma pequena e quebrada, caixinha de som sobre a cabeceira ao lado da cama.
  O quarto estava vazio, sem qualquer sinal do garoto alto e pálido. E ao notar a segunda porta em tom de preto, que estava fechada, sei que estava no banheiro.
  Este é seu momento, Mae. Apenas faça o que precisa ser feito.
  Agradecendo pela voz de Marilyn Manson cobrir qualquer vestígio da minha presença, começo a andar de um lado para o outro dentro do quarto, checando em todos os cantos para ver se encontrava alguma coisa realmente relevante. Não sei ao certo o que estou procurando, mas posso aproveitar este momento.
  Vasculho por entre as roupas pretas do e por seus pertences. Mas, no final, o que realmente me chama a atenção é o grande guarda-roupa que havia em um canto do seu quarto, do qual escondia mais do que roupas.
  – O que temos aqui... – Sorrio para mim mesma, quando encaro as diversas facas enfileiradas uma do lado da outra, acopladas na parede do guarda-roupa.
  Passo levemente o dedo por algumas das lâminas, tomando cuidado para não me cortar. Eu apenas queria senti-las.
  Fico uns bons minutos apenas observando a pequena coleção mortal de , antes de caminhar até a sua cama e me sentar sobre ela, esperando com anseio que ele saísse do banheiro.
  Cruzo minhas pernas e deixo que meu pé esquerdo siga o ritmo da música que parecia tocar repetidamente toda vez que acabava. Apoio as mãos sobre o colchão, pendendo meu corpo um pouco para trás.
  Fecho os olhos e aprecio a música agressiva e agitada, tentando absorver cada palavra que era cantada dentro do quarto de paredes escuras.
  Balanço a cabeça de um lado para o outro e abro os olhos, encarando fixamente a segunda porta fechada dentro do quarto, torcendo para que ela fosse aberta de uma vez.
  Marilyn Manson precisa cantar mais alguns versos até que a porta seja, finalmente, aberta.
   estava parado na entrada do banheiro, com os cabelos molhados e uma toalha preta enrolada em sua cintura. Seus olhos apáticos caem sobre os meus assim que nota minha presença.

We were neurophobic and perfect
(Nós éramos neurofóbicos e perfeitos)
The day that we lost our souls
(O dia em que perdemos nossas almas)
Maybe we weren't so human
(Talvez não fôssemos tão humanos)
But if we cry we will rust
(Mas se nós chorarmos, vamos enferrujar)

  – Você veio. – diz entre as palavras de Marilyn, com um sorriso de escárnio no rosto.
  – Sabia que eu estava te seguindo? – Pergunto, enquanto me levando de sua cama.
  – Sim. – Ele estreita os olhos verdes, olhando com atentamento cada um dos meus movimentos.
  Paro a quatro passos de distância de seu corpo, aproveitando neste momento, para admirar cada uma das tatuagens que cobriam seu tronco, pescoço e braços.
  Inclino minha cabeça para o lado, e vou arrastando meu olhar por toda sua pele tatuada, até que eu encontre seus olhos esbranquiçados.
  – Hoje mais cedo, quando falou sobre Sophie. Você não acha que sua irmã merece pagar por todas as coisas ruins que já fez? – Pergunto como pretexto, esperando que ele caia na minha pouca-vergonha.
   solta uma risada nasalada, no mesmo momento em que os acordes de guitarra voltam a ficarem altos.
  – Você não veio até aqui para falar sobre Sophie. O que você quer, Mae? – Seus olhos ficam cada vez mais analíticos.
  Sorrio verdadeiramente, sentindo meu corpo imergir em uma onda diferente de sensações proibidas.
  Dou apenas três passos para perto de e levo minha mão direita até a lateral do seu rosto, deixando que ele encare através de meus olhos.
  – Neste momento, eu quero você. – Soou tão carregada e baixa, que minhas palavras quase são cobertas pela música alta.
  – Eu pensei que isso fosse um erro. – Sem demonstrar nenhum tipo de reação, apenas com seu sorriso de escárnio, diz.
  – Sempre é. – Essas são minhas últimas palavras, antes que eu me coloque na ponta dos pés e tome seus lábios pálidos para mim.

And I was a hand grenade
(E eu era uma granada de mão)
That never stopped exploding
(Que nunca parou de explodir)
You were automatic
(Você era sem emoções)
And as hollow as the "o" in God
(E tão vazia quanto a letra "u" em Deus)

   não pondera nem por um momento, ele apenas corresponde ao meu beijo, invadindo minha boca com sua língua quente.
  Suspiro entre o beijo, me sentindo vitoriosa.
  Talvez a música agressiva incite as coisas entre nós, pois leva suas mãos até minhas coxas descobertas pela saia do uniforme escolar, e me levanta em um único impulso, me fazendo entrelaçar as pernas ao redor de sua cintura. Passo os braços ao redor do seu pescoço, enquanto sinto o tecido da toalha úmida entre minhas pernas.
   começa a nos levar até sua cama, se sentando na borda e me mantendo em seu colo. Apoio as pernas contra o colchão, mas ainda assim mantendo sua cintura enlaçada.
  Brevemente, paro nosso beijo.
  – Os seus pais? – Pergunto entre a falta de ar.
  – Estão no seu mundo já faz dois dias. – responde, levando suas mãos até a parte detrás de minhas costas.
  Sorrio satisfeita, afastando minhas mãos de seu corpo, para que eu consiga desabotoar meu blazer preto e tirá-lo, seguido por minha blusa de botões, ficando, agora, apenas de sutiã.
   me olha durante alguns segundos, antes de aproximar sua boca de meu pescoço, apenas roçando os lábios contra minha pele quente, me fazendo sentir seu piercing gelado.
  Mordo meu lábio inferior e ergo minimamente meu corpo, fazendo um pequeno movimento entre nossos corpos.
  Enterro minhas mãos nos fios molhados do seu cabelo quando ele começa a distribuir mordidas por toda extensão do meu pescoço.

I am never gonna be the one for you
(Eu nunca serei o único pra você)
I am never gonna save the world from you
(Eu nunca salvarei o mundo de você)

  Ansiando cada vez mais por isso, arrasto minha mão direita por todo seu tronco tatuado, indo diretamente para a toalha ao redor da sua cintura. E com avidez, coloco minha mão para dentro do pano preto, sentindo instantaneamente seu membro que começava a ficar duro.
   estremece quando seguro em seu membro e o puxo para fora da toalha. Suas mordidas cessam no momento em que eu começo a movimentar minha mão sobre ele, fazendo movimentos lentos de baixo para cima.
  Ele contém um pequeno gemido, fazendo sua respiração bater contra o meu pescoço, e isso só me encoraja mais a continuar.
  Eu começava a sentir minha calcinha molhada pela excitação de tê-lo pulsante e duro contra minha mão.
  Com a mão esquerda, empurro sua cabeça para frente, trazendo sua boca de volta a minha, onde iniciamos um beijo desajeitado e molhado. E mesmo entre a música pesada, eu conseguia escutar os estalos de nossos lábios molhados.
  Sinto o pré-gozo de e uso disto para lubrificar seu membro e aumentar a velocidade dos meus movimentos, arrancando alguns gemidos de sua parte.
   desce suas mãos até minha cintura e aperta cada lado dela, enquanto sua respiração fica cada vez mais acelerada.
  Deixo que meus movimentos se tornem lentos, apenas para provocá-lo, e como resposta, ele arfa de um jeito arrastado que faz meu corpo todo se arrepiar.
  Aperto levemente a base de seu membro, e acelero os movimentos até eu sinta todo seu corpo ficar tenso e o líquido quente sujar parte da minha barriga descoberta.
  Suspiro entre o beijo, extremamente excitada, e afasto minha mão suja de seu membro ainda duro.
   separa nossas bocas e me fita com as pupilas dilatadas, me fazendo sorrir lasciva. E como resposta, rudemente, ele me vira e joga meu corpo sobre a cama, arrancando de uma vez a toalha presa em sua cintura.
  Meu sorriso se perpetua ao poder observar com detalhes cada parte do seu corpo nu. Dá primeira vez que transamos, não tive muito tempo ou uma boa circunstância para admirá-lo desta forma.
  Seu corpo alto e esguio, nada muito musculoso, mas bem definido, sua pele tatuada e os cabelos úmidos que caíam sobre sua testa, rente ao piercing em sua sobrancelha; os lábios com um pouco mais de cor, devido aos nossos beijos, acompanhado do segundo piercing, este, que deixava sua boca ainda mais convidativa.
  Mesmo que ele seja uma versão de Setealém do meu ex-namorado, ele parece tão diferente agora, e até mesmo sua aura se embalava nisso. Eu podia sentir o perigo correndo por cada canto deste quarto, deixando o clima ainda mais intenso entre nós dois.
  Ele era o meu perigo de Setealém.
  Apoio a sola dos pés sobre o colchão, de modo que minhas pernas fiquem dobradas, o que ocasionalmente faz com que a barra de minha saia escorregue, deixando grande parte da minha calcinha molhada à mostra.
  Os olhos verdes apáticos de se fixam entre o meio de minhas pernas, perdendo alguns longos e deliciosos segundos ali.
  Com a expiração alta, fica aos meus pés, segurando minha perna direta entre suas mãos, para poder retirar meu sapato e minha meia, fazendo o mesmo do lado esquerdo de meu corpo, logo depois. E quando termina, ele começa a subir suas mãos por toda extensão das minhas pernas, causando arrepios intermináveis em meu corpo, com o simples contato de suas mãos contra minha pele sensível.
  Seguro a respiração quando suas mãos entram por debaixo da minha saia, indo diretamente para cada lado da barra de minha calcinha. E seus olhos intensos e flamejantes de desejo não desviam dos meus nem por um segundo enquanto ele faz isso.

They'll never be good to you, bad to you
(Eles nunca serão bons pra você, ruins pra você)
They'll never be anything
(Eles nunca serão nada)
Anything at all
(Absolutamente nada)

  Lentamente, e sem demonstrar pressa, começa a puxar minha calcinha para baixo, deslizando a fina peça de roupa por minhas pernas, até que ela deixasse meu corpo.
  Meu corpo inteiro vibra aos acordes de guitarra, me fazendo ficar cada vez mais impaciente para tê-lo comigo. E a visão do meu membro exposto só torna tudo ainda mais difícil para mim. Então, tomada inteiramente pelo desejo deste momento, puxo o corpo de para baixo e fico por cima, me sentando sobre seu tronco despido, fazendo com que ele sinta cada centímetro da minha intimidade exposta e molhada, que agora molhava sua pele também.
   morde o canto de seu piercing e se levanta, sentando-se sobre a cama e me acomodando melhor sobre seu colo. Em seguida, levo minhas mãos até as costas, abrindo o feixe de meu sutiã, o jogando para bem longe do meu corpo. Agora, estando vestida apenas por uma saia.
  Os olhos e lábios de vão diretamente para o meu colo descoberto, começando com beijos molhados por toda minha clavícula, descendo com fervor até meu seio esquerdo, onde me provoca com sua língua. Levo as mãos até seus cabelos úmidos e impulsiono meu colo para frente, querendo sentir ainda mais sua boca macia e sua língua ágil.
  Fecho os olhos e solto um curto suspiro, apenas aproveitando o delicioso momento que ele me proporcionava. Fazendo com que meus seios se tornem ainda mais rígido à medida que minha pele ficava cada vez mais molhada por sua saliva.
  Puxo pelos cabelos, o afastando de minha pele sensível. Aproximo minha boca da sua, mas não o beijo, apenas encosto nossas testas, enquanto nossas respirações excitadas se misturavam.
  Seus olhos miram os meus, captando cada sinal que eu dava enquanto levava minha mão até seu membro duro, para que depois, com a ajuda de suas mãos, eu impulsione meu corpo para cima apenas para encaixar seu membro em minha entrada pulsante.
  Em um gemido sôfrego que se misturava com o de , começo a descer por seu membro, sentindo lentamente ele me preencher da forma mais prazerosa que já fiz.
  Suas mãos rodeiam minha cintura, e as minhas rodeiam o seu pescoço. Em seguida, começo a movimentar meu corpo sobre o seu, arrancado mais um gemido preso em minha garganta.
   inclina sua cabeça para frente, abafando meus próximos gemidos com um beijo molhado e barulhento, que parecia fazer parte da música que não parava de entoar por todo o quarto.
  Com um pouco mais de agilidade, aumento meus movimentos, recebendo a ajuda dos quadris de , que se levantavam vez ou outra, indo ainda mais fundo contra minha intimidade. Meus seios roçam sem parar contra a pele tatuada de seu tórax, nos deixando acesos com cada provocação e centímetro de pele interligada.
  Aperto com firmeza a pele de suas costas, escutando alguns gemidos escaparem por entre nossos beijos a medida que o sexo ficava mais intenso.
   escorrega sua mão até a parte detrás de minhas coxas, movimentando nossos corpos, até que eu esteja deitada sobre o colchão. Ele para com nosso beijo, e retira seu membro de dentro de mim, apenas para se livrar da saia que ficava entre nós dois.
  E estando completamente sem roupas, ele desliza suas mãos com unhas pintadas em preto, por toda extensão de minhas pernas, passando pela lateral de meu quadril e barriga, e por cima dos meus seios, os apertando levemente e me fazendo gemer. Suas mãos continuam subindo, e agora passam por meus braços, até que alcancem minhas mãos, entrelaçando nossos dedos e restringindo meus movimentos.
   se inclina sobre meu corpo e roça nossos lábios no exato momento em que voltar a me penetrar, me fazendo gemer contra sua boca. Fecho os olhos, o sentindo se movimentar em cima de mim e começar a beijar meu pescoço de forma arrastada, distribuindo alguns chupões e mordidas.
  Aperto minha mão contra a sua, e ele força as minhas contra o colchão, de modo que eu me sinta presa a ele neste momento.
  Ele começa a roçar seus lábios por meu pescoço, arrastando-os para cima até chegar em meu maxilar. Abro os olhos e encaro sua expressão sacana, que me incentiva a movimentar meu quadril no mesmo ritmo que o seu, enquanto escutamos o barulho de nosso sexo.
  Outra vez próximo a minha boca, aproveito do momento e passo minha língua sobre seu piercing, sentindo suas penetrações ficarem cada vez mais rápidas e fortes.
  Entre um gemido sôfrego, peço que vá mais rápido, antes de voltarmos a nos beijar, tendo a voz de Marilyn Manson e a cama rangendo como trilha sonora para nosso momento perigoso.
  A cabeceira da cama começa a bater contra a parede escura quando aumenta o ritmo de seus movimentos, nos levando ao paraíso de Setealém em um intenso e delicioso orgasmo. Sua boca levemente avermelhada estava tão próxima da minha, enquanto nossas respirações se misturavam aos acordes de guitarra. E eu sentia toda nossa excitação se embolar em uma explosão de satisfação e pecado.
  Ainda com seu membro dentro de mim, sorrio para e puxo seu tronco para frente, o abraçando naquele momento, enquanto acomodo minha cabeça na curva de seu pescoço e fecho os olhos, sentindo nossos mundos se unirem.

Eu havia trazido ele para o meu lado. Nós somos apenas um único mundo.
I am never gonna be the one for you
(Eu nunca serei o único pra você)
I am never gonna save the world from you
(Eu nunca salvarei o mundo de você)

Capítulo 26

  Suspiro arrastadamente, me mexendo sobre o colchão de solteiro, e lentamente vou abrindo meus olhos. A primeira coisa que capta a minha atenção, é o enorme guarda–roupa escuro, que abrigava alguns dos brinquedinhos de .
  Empurro o lençol de cor preta para baixo, revelando meu corpo coberto apenas por camiseta que peguei emprestada cm , ela também era da cor preta e tinha alguns desenhos bem estranhos estampados no tecido.
  Checo meu lado esquerdo, mas percebo que estou sozinha na cama e, por isso, apenas me levanto dela, espreguiçando meu corpo enquanto o sinto um pouco dolorido; nós tivemos uma longa noite.
  Com os pés descalços, caminho até a janela com cortinas escuras e as afasto para o lado, a fim de ver como estava o dia do lado de fora. O céu se mantinha vermelho como sempre é, mas mesmo assim, eu sabia que era dia. Não havia vento ou brisa, era apenas um dia calmo e com alguma neblina pairando sobre o ar. O sol era algo que nunca vi com clareza em Setealém, talvez o tom avermelhado do céu o escondesse.
  Ainda segurando as longas e finas cortinas para o lado, movimento meu pescoço, o escutando estalar baixo. Suspiro outra vez e fechos os olhos por alguns segundos, apenas sentindo as partes doloridas de meu corpo, e sei que preciso lidar com isso depois.
  – O que você está fazendo na minha casa? – A voz irritada e carregada, que eu tanto conhecia, entra no quarto em dois passos pesados.
  Me viro sem pressa, e meus olhos logo caem sobre o pequeno e magro corpo de Sophie, que tinha suas mãos fechadas em punhos e o rosto contorcido em uma expressão irritada. Seus pés também estavam descalços, e o longo vestido preto que ela tanto usava, balançava quase que imperceptivelmente, mostrando que seu corpo tremia.
  – Você não vai querer ouvir a minha resposta para sua pergunta. – Digo, sem qualquer vontade de brigar. Eu acabei de acordar e não vou deixar que ela atrapalhe tudo que eu consegui.
  Os olhos escuros de Sophie, correm por cada parte do meu corpo, e sua expressão irritada se intensifica ao ver o tecido escuro e estampado que cobria minha pele.
  Ela sabia, mas eu não me importo.
  – Espero que não tenhamos atrapalhado sua noite de sono. – Por mais que eu não quisesse brigar agora, eu realmente não posso perder a oportunidade de provocá-la, ela merece isso. – Também vejo que já está bem, isso me deixa feliz, Sophie.
  Mesmo que seu corpo esteja coberto pelo vestido longo e de mangas compridas, sei muito seus machucados devem estar melhores, já que os dedos de suas mãos estão em perfeitas condições, apenas com uma leve vermelhidão.
  – Até quando você vai continuar atrapalhando a minha vida? – Sua pergunta é retórica e seus dentes trincados quase rangem. – Eu vou te matar. Eu vou acabar com a sua vida, do mesmo jeito que você fez com a minha.
  Permaneço calma em meu lugar, e não respondo nenhuma das suas ameaças, porque algo muito melhor acabou de chegar neste momento.
  – O que está acontecendo aqui? – A voz grave de , pergunta, enquanto ele para atrás de sua irmã.
  O corpo de Sophie se torna tenso, e sua expressão muda drasticamente, ficando surpresa e tanto quanto amedrontada.
  O corpo alto de estava coberto apenas por calças pretas de moletom, dando vista para todo seu tronco e braços tatuados, e ao começo de seu pescoço também. Seus cabelos estavam desalinhados como ele sempre usava, e o piercing em sua sobrancelha acompanhava o movimento franzido que ele fazia.
  O corpo de Sophie sobe e desce em uma respiração nervosa, e chega a ser ridícula a maneira como ela fica amuada quando está por perto.
   dá alguns passos descalços e para ao lado de sua irmã, a encarando com seriedade, e esperando ela responda sua pergunta.
  – Por que ela está aqui? Ela não deveria estar aqui. – Os olhos de Sophie se tornam pequenos e ela encolhe os ombros, enquanto engole em seco.
  – Isso não é da sua conta, Sophie. – responde, apático.
  – Mas, irmão, ela é uma humana. – O tom de voz de Sophie era desesperado, tentando a todo custo fazer cair na realidade das próprias ações.
  Os olhos verdes e esbranquiçados de , se viram em minha direção e um sorriso sínico se abre em seus lábios.
  – Ela é uma humana? Se você não me contasse isso, eu nunca descobriria. – As palavras de destroem qualquer esperança em Sophie, a deixando completamente desolada, com uma expressão que nunca vi antes, algo que beirava a tristeza.
  Contenho o sorriso satisfeito que teima em se mostrar em meu rosto.
  – Agora saia do meu quarto, Sophie. – diz, sem nem olhar para sua irmã.
  Sophie, ainda desolada, apenas assente antes de deixar o quarto.
  – Ela realmente não gosta de mim. – Dou de ombros e falo descontraidamente.
   caminha até onde estou e para a minha frente, levando suas mãos para dentro dos bolsos de suas calças de moletom.
  – E você se importa com isso? – Ele pergunta, em sua inexpressão de quem não dá a mínima para toda essa situação.
  – Não. – Finalmente mostro o sorriso satisfeito que contive antes, enquanto levo os meus braços até o pescoço de e fico na ponta dos pés, apenas para alcançar seu rosto. – Eu estou indo embora agora, minha irmã deve estar preocupada. – Minhas palavras não causam o menor efeito em , mas eu não esperava que causasse.
  Seus olhos me fitam por alguns segundos, até que ele diga alguma coisa.
  – Me encontre no galpão, hoje à noite.
  Arqueio as sobrancelhas, intrigada com o seu pedido.
  – E eu posso saber o motivo disso? – Entrelaço meus dedos atrás de seu pescoço, sentindo alguns fios de seus cabelos roçarem contra minha mão.
  – Talvez você queira saber o que eu faço por lá, já que vive me seguindo. – E lá estava mais um sorriso cínico.
  É claro que ele sempre percebeu. E mesmo que eu já saiba o que ele anda fazendo no seu tempo livre, talvez isso seja intrigante quando olhado de seu ponto de vista.
  – Eu acho que posso fazer isso. – Estreito os olhos, mas mantenho meu sorriso.
  Sem que eu consiga controlar, meus olhos caem diretamente sobre seus lábios, adornado pelo piercing tão convidativo. E com um suspiro, preciso me conter.
  – Estou indo agora. – Retiro meus braços de seu pescoço, enquanto ele se mantém parado com as mãos nos bolsos. Em seguida, puxo a gola da camiseta que estava usando, e a tiro de meu corpo, ficando coberta apenas pela calcinha branca que eu usava. – Muito obrigada, estou te devolvendo isso. – Estendo a camiseta em sua direção.
  Agora é a vez de estreitar os olhos, deixando que eles desçam por todo meu corpo e parem no meu colo descoberto, antes que ele retire sua mão direita do bolso das calças de moletom, e pegue a camiseta de minhas mãos.
  Sorrio fechado e me viro, caminhando até o banheiro como se eu não estivesse andando por seu quarto apenas de calcinha. Eu acho que posso fazer isso muitas vezes.

***

  Depois da agradável manhã que tive ao lado de e Sophie, finalmente me despedi e fui embora.
  A princípio me senti confusa, tentando entender o que Angeline queria que eu fizesse quando encontrasse o , mas depois de tudo que passamos, acho que já tenho a resposta, e tudo será mais fácil se eu o tiver ao meu lado.
  Às vezes penso que estou sendo suja, tudo isso é para acabar com aqueles que nos mantém em Setealém e para evitar imprevistos indesejados, e claro, para trazer meu ex-namorado de volta a vida. Mas o que eu faço agora, isso é justo? Esse é o jeito certo de trazê-lo de volta? Talvez ele me odeie por isso um dia.
  Andei por dois mil e quatrocentos segundos até que chegasse em frente à minha casa outra vez. Contar cada um desses segundos sempre me ajuda a manter toda a minha calma e não deixar que tudo escorra para longe, como era antes. Talvez eu devesse agradecer a ela por me dar isso agora, nós compartilhamos.
  Andando calmamente até a porta, sou parada quando ela se abre antes que eu tenha a oportunidade de fazer isso. Eve estava do outro lado, pronta para ir para a escola, julgo eu. O uniforme cobria todo seu corpo e sua expressão não era de raiva como imaginei que seria, e sim de cansaço.
  Seus olhos sem vida me encaram por alguns segundos, antes que ela saia da casa.
  – Por favor, se livre daqueles corpos, o cheiro está insuportável. – Essas sãos suas únicas palavras, quando ela passa por mim e caminha em direção à calçada.
  Olho o corpo cansado de minha irmã se afastar, e quando não a vejo mais, entro em minha casa.  
  Ando calmamente por todos os cômodos da casa e termino parada na cozinha, onde Mark estava sentado em uma das cadeiras ao redor da mesa de madeira lascada.
  – Eve está bem? – Pergunto, atraindo a atenção do garotinho de cabelos loiros, quase brancos.
  – Você não deveria perguntar isso pra ela? – Ele me olha, com sua falta de interesse rotineira.
  – Não acho que ela me responderia. – Me escoro contra o batente da entrada da cozinha.
  – Acho que ela cansou do que fazemos, isso é bom, não é? Assim ela não atrapalha mais. – Mark pergunta de um jeito tão inocente, como se essa pergunta não fosse algo surreal para uma criança de doze anos, considerando o contexto por detrás dela.
  – Me responda uma coisa Mark, como era sua relação com a Eve de Setealém? – Espero curiosa por sua resposta.
  Isso é algo que me inquieta também, nunca falamos sobre isso, e às vezes esta outra versão de minha irmã é tratada como se nunca tivesse existido.
  – Ela não falava muito e sempre ficava trancada no quarto dela. Não tenho muitas coisas para dizer sobre isso. – Mark responde, sem emoções aparentes.
  – Então vocês não criaram uma ligação, como foi com você e a minha versão? – Pergunto, e ele responde com um simples aceno de cabeça. – E por que Angeline só aparece para nós dois? Ela também trouxe Eve para esse mundo.
  – Talvez porque ela não queria aparecer para Eve. – Mark responde, se levantando da cadeira em que estava e caminhando até onde estou, passando ao meu lado. – Estou indo pra escola. – E com isso, escuto seus passos se afastarem, até que a porta da frente seja aberta e fechada.
  Estou sozinha pelo resto do dia.
  – Por onde eu devo começar? – Pergunto para mim mesma, enquanto olho para a cozinha vazia e deteriorada.
  Depois de pensar um pouco, acabo por ir até o meu quarto, onde o cheiro da morta estava impregnado pelas paredes, acompanhado pelos dois corpos sem vida.
  Caminho até meu guarda-roupas, e retiro de lá alguma coisa que posso usar hoje, as levando comigo até o banheiro, onde pretendo tomar um longo banho.
  Vou até à banheira e ligo a torneira, esperando com paciência até que ela se encha por completo. E foi preciso setecentos e vinte minutos até que isso acontecesse.
  Com a porta do banheiro fechada, retiro o uniforme escolar que sou obrigada a usar todos os dias, e o deixo jogado sobre o chão, antes de caminhar até a borda da banheira, colocando pé por pé dentro da água quente. Por fim, me sento na banheira e depois me recosto, deixando todo meu corpo ser coberto pelo líquido transparente, para minha surpresa.
  Encaro a água calma sobre meu corpo, lembrando do dia que usei essa banheira para limpar os corpos de Angeline e Jack. Talvez eu sinta o contato com suas mortes agora transitando por todo este líquido quente, e isso me deixa mais viva do que nunca.
  Empurro meu corpo para baixo, até que a água cubra cada parte do meu corpo, ficando totalmente submersa na banheira. Com os olhos abertos, eu podia enxerga a água dançando sobre minha cabeça, junto da luz que emanava do lado de fora, clareando o teto branco com manchas de mofo. A imagem era tremida e acompanhava o balançar da água, assim como o barulho calmo que ela cantava aos meus ouvidos.
  Eu estava submersa, e sempre foi disso que precisei. Angeline e Jack não me puxaram para Setealém, eles apenas apressaram o que já iria acontecer, era inegável, um dia o destino cobraria de mim todas as minhas ações tortas.
  Suja, mais suja do nunca, e nenhuma água quente e transparente poderia levar isso embora. As coisas são como são, o que eu poderia fazer quanto a isso?
  Impulsiono todo o meu corpo para cima, colocando minha cabeça e tronco para fora da água, respirando exasperadamente em busca de ar.
  Olho em volta, dentro do banheiro, tendo apenas o contínuo barulho de estática que a lâmpada pendida no teto fazia.
  Seguro nas bordas da banheira e fico apenas sentindo tudo que me atacava neste momento, observando para mim todos os passos que eu precisarei dar de agora em diante.
  Cento e oitenta segundos parada, me levanto da banheira, saindo dela enquanto uma grande quantidade de água molha o chão. O líquido transparente balança de um lado para o outro dentro da banheira, enquanto começo a secar meu corpo com uma toalha que estava pendurada ao lado da pia.
  Depois de me secar e me vestir, esvazio a banheira e volto para o meu quarto, sabendo o que deveria fazer agora.
  Caminho até a cama de casal e solto um longo suspiro, antes de puxar o corpo putrificado de Angeline. Seguro em seu braço direito, e começo a arrastar seu corpo para fora do quarto e depois pelo corredor, parando em frente a porta de madeira do porão, e com o pé, a abro. Toco cuidado ao descer, escutando cada batida do corpo de Angelie contra os degraus de madeira.
  Quando alcanço o solo, sou recebida pelo vazio e silêncio do ambiente escuro.
  Solto o braço esverdeado com manchas pretas de Angeline, e começo a andar por todo o local em busca de algo que pudesse me ajudar. Boa parte de tudo que tinha no porão foi queimado pelo incêndio da primeira noite que estivemos aqui, mas para minha sorte, na parte mais escura e afastada, onde encontrei Sammy em nossa primeira noite, um grande e pesado baú estava.
  Volto até o corpo de Angeline e o arrasto até o baú marrom. Empurro a tampa dele para cima e tiro de dentro todas as roupas antigas que estavam ali, pareciam do século passado. Depois de amontoar as roupas em outro canto, coloco o corpo de Angeline dentro do baú, empurrando e forçando seus membros para que coubessem no espaço retangular. Por fim, empurro a tampa do baú para baixo e deixo o corpo de Angeline em uma parte escondida.
  Subo todos os degraus de madeira outra vez, e quando já estou de volta ao corredor, fecho a porta do porão, deixando meu segredo muito bem guardado.
  Ando pelo corredor de madeira, até que eu esteja de volta ao meu quarto, tendo apenas uma última tarefa. Vou para perto do corpo de Jack, que permaneceu jogado no chão por todos esses dias, e faço o mesmo que fiz com Angeline, seguro em seu braço e começo a arrastá-lo pela casa, mas não em direção ao porão.
  Passo pelo corredor de madeira e atravesso a sala, escutando Jack se chocar contra alguns móveis, mas só paro quando estamos de frente para a porta de entrada. Abro ela e saio sozinha para me certificar de que ninguém veria o que eu estava planejando fazer. E depois de ter certeza que eu poderia fazer isso, arrasto o corpo de Jack para fora e o levo para os fundos da casa, onde ninguém poderia nos ver agora, apenas o mato alto seria testemunha.
  Depois de posicionar ele no centro do quintal dos fundos, volto a contornar a casa, indo até à porta de entrada, e depois até a cozinha. Vasculho nos armários, gavetas e geladeira, acabando por encontrar algo similar ao óleo que usamos no mundo humano. Eu não poderia imaginar nisso, nunca me interessei por qualquer coisa desse mundo, esta é minha primeira vez vendo comida deste mundo antes de pronta, apenas comi uma única vez, e foi na casa de , tenho vivido apenas com o sangue que guardei na geladeira.
  Junto da pequena lata de óleo jogado no fundo do armário, também pude encontrar uma caixa de fósforos usados para ligar o fogão, deduzo.
  Já com o que preciso em mãos, volto a passar pela cozinha, corredor e porta de entrada, contornando pela terceira vez, a casa. De novo, checo para me certificar de que estava sozinha, e agradeço aos céus de Setelaém por este lugar ser vazio e com vizinhos mais distantes do que seria no mundo humano.
  Me aproximo de Jack por uma última vez e retiro a tampinha branca que guardava o óleo, logo depois despejando todo o líquido viscoso sobre o corpo morto e apodrecido.
  Jogo a lata vazia ao lado de Jack, ficando apenas com a pequena caixa de fósforos. Risco o primeiro palito, que se apaga em menos de dois segundos, e então parto para o segundo, que com êxito, brilha com sua pequena chama quente.
  Respiro fundo, com meus olhos grudados no corpo molhado de óleo, e com um adeus, solto o pequeno palito acesso, que não demora a começar a consumir o corpo sem vida.
  Caminho até a parede detrás da casa e me sento sobre o mato malcuidado, assistindo as chamas quentes devorarem toda carne podre de Jack que ia se desmanchando aos poucos, enquanto um forte odor transcendia por todo o ar de Setealém.
  E mesmo morto, eu podia escutar seus gritos de dor; e mesmo sem vida, eu podia ver sua expressão de horror; e mesmo sendo um amontoado de carne pobre, eu podia sentir o seu desespero para se livrar do fogo ardente; e mesmo sem existir, eu podia sentir os seus pedidos por ajuda, mas isso não adiantava, não mais.
  – Como se sente? – A voz suave e calma de Angelin, pergunta, com seu corpo sentado ao meu lado esquerdo.
  – Como eu deveria me sentir? – Pergunto, sem olhá-la.
  – Você não deveria sentir. – A resposta vem com a minha voz, mas não sai de minha boca.
  Aquela que era parte de mim, eu podia sentir a sua presença ao meu lado direito.
  – Nós não tínhamos muitas escolhas. As coisas são como são, e nós estamos indo muito bem, Mae. Se você quer viver em meu lugar, faça da forma certa, ou eu tomarei isso de você quando Sophie te matar. – Suas palavras também eram calmas, mas com muita veracidade.
  E com as duas que compartilhavam cada sentimento que eu tenho com elas, junto delas, por esse tempo, eu apenas observo o aglomerado de chamas quentes devorarem toda a carne sangrenta de Jack, que aos poucos deixava apenas seus ossos como testemunhas silenciosas do que eu acabei de fazer.

Capítulo 27

  Depois de fazer o que Eve me pediu e dar um sumiço no corpo de Jack, resolvi que deveria ocupar meu tempo com outra coisa até que minha irmã e Mark voltassem da escola. E no final, apenas me encontrei no meio da destruída cozinha de Angeline, enquanto mexia nos armários e na geladeira, em busca do que poderia me ajudar a fazer uma pequena refeição de agrado. Confesso que foi um pouco confuso distinguir o que poderia ser cada coisa, devido ao cheiro e coloração diferente que as comidas de Setealém tinham, mas bastaram algumas tentativas que me arrancaram dois mil e setecentos minutos, para que tudo estivesse finalizado.
  E mesmo com cores escuras e de aparência duvidosa, meus olhos saltavam para tudo que coloquei na mesa. Eu não tive fome alguma desde que comecei a beber o sangue das pessoas desse mundo, ele era como uma grande refeição, mas agora eu realmente quero comer tudo que fiz.
  Para minha sorte, não precisei esperar por tanto tempo. Assim que a manhã começou a se despedir e a tarde chegava, eu pude escutar a porta da frente sendo aberta, trazendo quatro imagens familiares.
  – O que é isso? – Valerie pergunta, assim que entra na cozinha, seguida de Mark, e Eve, que olhava atentamente tudo que estava posto sobre a mesa.
  – Fiz o almoço. – Respondo, simples.
  Eve olha por mais alguns segundos a comida, e acaba dando as costas, saindo da cozinha e seguindo pelo corredor dos quartos.
   encolhe os ombros, com os olhos caídos.
  – Eu vou atrás dela. – Ele diz, antes de fazer o mesmo caminho que minha irmã.
  A cozinha entre em silêncio, mas isso não impede Mark de caminhar até a mesa e se sentar em uma das cadeiras de madeira, logo pegando um dos pratos que também estavam sobre a mesa, para fazer sua refeição. Talvez ele sinta falta disso, já o vi comendo uma coisa ou outra por aqui, mas sei que Mark não sabe cozinhar, pois nunca o vi fazendo.
  Valerie suspira e se junta a Mark na cadeira ao lado.
  – O que há com ela? – Pergunto, me sentando na cadeira a frente deles.
  – Sua irmã ainda se importa, mas está irritada com tudo que fizemos, me contou. Acho que ela me odeia. – Valerie comenta, em um riso seco, antes de pegar o pão de coloração escuro e mergulhar na pequena panela ao centro da mesa, com uma sopa que eu fiz com algumas junções de ingredientes.
  Valerie mastiga um pedaço do pão molhado na sopa, e me olha com curiosidade.
  – O que é isso? Tem um gosto diferente. – Ela apoia seus cotovelos sobre a mesa, enquanto Mark, ao seu lado, está concentrado em tomar sua sopa.
  – Sangue. Eu usei um pouco do sangue de Angeline e Jack, isso irá nos ajudar. – Respondo sem muito interesse, já que Eve é a única coisa em minha cabeça neste momento.
  Valerie ri por curtos segundos, com uma expressão divertida em seu rosto ao escutar minha resposta.
  – Eve está fazendo isso para me afetar, ela sempre age assim quando quer que eu me sinta culpada e vá até ela. – Respondo em meio a um suspiro realmente cansado.
  – Isso não é bom? – Mark diz, nos fazendo olhá-lo. Ele segura no ar sua colher com a sopa escura. – Assim ela não pode nos atrapalhar.
  – Ele tem razão. – Valerie completa, apoiando seu rosto na mão esquerda, enquanto a direita leva o pão mordido até a panela de sopa, para molhá-lo outra vez.
  – De qualquer forma, vamos esquecer minha irmã por agora. Tenho uma grande novidade pra contar. – Um mínimo sorriso borda meus lábios.
  – O que é? – Valerie pergunta de boca cheia.
  – Me encontrei com ontem, no galpão. E hoje ele pediu que eu voltasse. Ele quer me mostrar o que faz lá dentro. – Me sinto satisfeita com minhas palavras, criando uma pequena ansiedade que corre por meu corpo.
  – E o que você respondeu? – Valerie pergunta, atenta.
  – Eu disse sim. Essa será a primeira vez que entro naquele galpão. – Deixo o mínimo sorriso em meus lábios se tornar totalmente nítido.
  Valerie maneia a cabeça.
  – Você fez um grande trabalho. Nós não precisamos dele na nossa fuga, mas se estiver do seu lado ao invés do de Sophie, será um a menos para nos atrapalhar quando o dia chegar.
  – Foi por isso que você não voltou para casa ontem? – Mark pergunta, curioso, e faz com que Valerie me olhe com as sobrancelhas arqueadas.
  Me limito apenas a sorrir para ela, que entende tudo.
  – Você sabe o que está fazendo? – A garota de cabeços castanhos claros e olhos escuros, limpa suas mãos no ar, enquanto me olha.
  – Sim. Tudo vai dar certo.
  – Se você tem certeza sobre isso, acho que devemos conversar sobre outra coisa agora. Nós três precisamos voltar até a loja de Joe, ele é fundamental em nosso plano, as armas dele são necessárias para que tudo dê certo. – Valerie diz, ficando um pouco séria agora.
  Mark, que estava terminando de tomar sua sopa, nos observa atentamente.
  – Nós podemos ir lá, e depois eu sigo para encontrar . – Sugiro, e Valerie acena positivamente com a cabeça.
  – Vamos então. Aproveitaremos que sua irmã provavelmente se trancou no quarto. – Valerie é a primeira a se levantar, seguida por mim, e por último, Mark.
  Acabamos por deixar tudo da mesma forma, caso Eve tivesse vontade de comer alguma coisa, tudo estará no mesmo lugar.
  Em fileira, saímos da cozinha, vendo o pequeno e agitado amontoado de cabelos loiros do lado de fora do quarto onde minha irmã passava as noites.
  – O que você está fazendo? – Pergunto para , que mexe suas mãos de maneira nervosa, sorrindo da mesma forma.
  – Estou dando um pouco de espaço para sua irmã. – As laterais de seu sorriso, tremiam.
  – E como ela está?
   escolhe os ombros de novo, e nem preciso de uma resposta para saber que Eve continuava em sua chantagem emocional.
  – V-vocês vão sair? – Ele pergunta, se aproximando com dois passos.
  – Sim, tome conta de Eve. – Valerie responde por mim, antes de se virar e seguir para a porta de entrada. Mark faz o mesmo, e eu dou um rápido aceno de cabeça para , antes de seguir os outros dois.

***

  O caminho até a loja de Joe foi preenchido por poucas palavras. Eu pude perceber como Valerie se tornou séria depois que falamos com , e sei que sua ideia anterior ainda a ronda, mas eu não irei machucar .
  Quando alcançamos a fachada de madeira e a vitrine que expunha alguns doces, não perdemos tempo do lado de fora. E assim que fomos recebidos por Joe, ele nos delegou algumas de nossas tarefas do dia, apenas duas cobririam nosso expediente. Joe disse que teve uma semana calma, e que estava feliz por ter novos funcionários, e agora, todos os dias, deveríamos nos apresentar em sua loja para fazer algumas entregas, e que se caso nosso trabalho não fosse necessário, ele avisaria.
  Com as caixas retangulares em mãos, que escondiam mais do que doces esverdeados e alaranjados, nós seguimos pelo caminho que Joe nos informou. Não foi perto, andamos por longos minutos em uma estrada de terra, mas me sinto bem com isso. Compartilhar o silêncio e os segredos com Mark e Valerie, de alguma forma me enchia. Caminhando sobre a terra seca e sentindo o vento agradável de um dia sem calor ou chuva, me traz uma sensação nostálgica de algo que eu não tenho. Eu posso repetir esses mesmos passos todos os dias que nunca me cansaria, apenas com essa sensação que me leva para uma nova dimensão dentro de mim mesma.
  Uma pequena casa de pedra começava a se pintar no horizonte de nosso caminho, nos aproximando cada vez mais de nosso primeiro e penúltimo cliente deste dia, que me fazia ferver em ansiedade ao pensar no que me aguardava.
  Mark estava ao nosso meio, olhado para cada detalhe de Setealém como se fosse algo novo para ele. Valerie estava mais relaxada, andando contra o vento agradável, enquanto seus cabelos e barra de sua saia balançam sutilmente.
  – Este é seu? – Valerie pergunta, assim que nos aproximamos da porta de madeira que guardava a casa de pedra.
  Aceno positivamente, tomando a frente dos dois e dando quatro batidas na porta com uma grande rachadura lateral.
  Conto cento e vinte segundos até que uma mulher de cabelos longos e escuros, abra a porta. Seus olhos amarelados correm por nós três e seus dentes amarelados rangidos nos saúdam de má vontade.
  Ela não diz nada, apenas nos encara como se fossem algum tipo de animal contagioso.
  – Joe. – Digo, simples, estendendo a caixa retangular em sua direção.
  A mulher alta, com cabelos que iam até sua cintura, olha da caixa para meu rosto, antes de puxar o papelão retangular de minhas mãos, pronta para fechar a porta sem nos pagar.
  Como pude perceber sua intenção, consigo segurar a porta antes que ela a feche, mesmo que isso tenha machucado alguns de meus dedos da mão direita.
  – São cem noctis. – Sorrio para a mulher de cabelos escuros, enquanto sinto dois de meus dedos latejarem junto com o sangue quente que escorre deles.
  A mulher tenta forçar a porta contra minha mão, mas percebendo minha resistência, ela enfia sua mão livre dentro do bolso do avental que cobria a parte da frente de seu corpo, e joga as moedas douradas no chão de terra do lado de fora.
  – Obrigada. – Agradeço falsamente, retirando minha mão do batente da porta, mas outra vez, antes que ela possa fechar a porta, a mulher de cabelos escuros é impedida.
  – Você deveria ser mais agradecida, está comprando coisas que vêm do nosso mundo. Quem está querendo matar com isso? Não acho que os moradores de Setealém ficariam felizes em saber disso. – Valerie tomou minha frente, segurando com firmeza na extremidade da porta de madeira.
  A mulher de cabelos escuros arregala os olhos, encarando Valerie com irritação. Mas isso não é o suficiente para desarmá-la, pois minha amiga força a madeira rachada para frente, acertando em cheio o rosto a mulher do lado de dentro.
  Enquanto Valerie se virava para ir embora, pude notar o vermelho do sangue que começava a escorrer pelo nariz da mulher de cabelos escuros.
  Aceno educadamente para a mulher que cobria seu nariz, sorrio e sigo Valerie.
  Não digo uma palavra para a garota de cabelos castanhos claros que tomava a frente, mas me sinto satisfeita pelo que aconteceu. As coisas estão diferentes agora.
  Discretamente olho para o lado, vendo Mark, que logo devolve o mesmo olhar que o meu. Sorrio para ele, que retribui de bom grado, me fazendo aproveitar esses seus raros momentos.

***

  A segunda casa, apesar de conhecida, também levou longos minutos devido à última entrega ter sido um pouco distante.
  A fachada verde apagada, a rua movimentada e o asfalto rachado eram iguais desde a última vez que estivemos aqui.
  Com calma e sem nos importar com os olhares infantis esbranquiçados que estavam espalhados pela calçada, andamos até a porta de madeira quadriculada.
  Mark carregava uma caixa e Valerie outra, as duas destinadas para o mesmo cliente, que depois de duas batidas, nos recebe com um grande sorriso.
  – Não esperava encontrar vocês. – O homem de cabelos até os ombros e barba malfeita diz. – Vamos, entrem, entrem!
  Olho de relance para o céu avermelhado, que ficava cada vez mais escuro, indicando que a noite logo chegaria.
  – Desculpe, dessa vez não podemos demorar. – Digo e o homem de cabelos amarelados, estreita os olhos.
  – É uma pena. Mas vocês devem ter compromissos mais importantes. Esperem um minuto, vou pegar algumas moedas. – Sua figura alta e magra some para dentro da casa, retornando alguns segundos depois com as mãos cheias de moedas brilhantes. – Acho que isso é meu. – Ele diz em meio a seu sorriso, antes pegar as caixas que estavam com Mark e Valerie. – Mesmo que faça apenas poucos dias que encontrei vocês, posso sentir o quanto mudaram. O cheiro em vocês duas está cada vez mais fraco, talvez possam até enganar alguns moradores de Setealém se as coisas continuarem assim. – O homem ajeita as duas caixas em seus braços, antes de agradecer e fechar sua porta.
  Troco um rápido olhar com Valerie, que parece não se importar muito com as palavras do homem.
  E assim seguimos, depois de finalizar nossa última entrega do dia, retornamos para a loja de Joe, que nos felicitou por termos conseguido fazer tudo com excelência desta vez. Ele ofereceu alguns band-aids para que eu cobrisse os machucados em meus dedos, e por fim, nos pagou com seus noctis, dizendo que quando precisássemos, poderíamos alugar suas armas.
  Com as coisas acertadas, deixamos a loja de Joe, Valerie e Mark com o intuito de voltar para casa, e eu com o meu grande compromisso da noite com .
  Para nossa surpresa, acabamos encontrando no caminho de volta, ele disse que estava indo embora de minha casa, e mesmo com sua resposta, Valerie ficou séria, alegando que o acompanharia, e assim os dois sumiram pelo começo da noite. E antes que eu fosse até o galpão, pedi para que Mark cuidasse de Eve enquanto eu não voltasse para nossa casa.

***

  Desta vez não consegui contar os minutos que levei até chegar no galpão, eu me sentia muito ansiosa por isso, era estranho, mas eu não podia. A noite era agradável e com um clima cinza, e eu gostava disso. O vento embalou todo o meu corpo, me fazendo agarrar na barra de minha saia, tentando a todo custo descarregar o meu nervosismo.
  Solto minha respiração presa quando os meus olhos encontram a grande construção. O vento rodopia meu corpo, segredando-me sobre o garoto de cabelos bagunçados e corpo coberto por tatuagens e piercings, que me esperava do lado de fora do galpão.
   estava de braços cruzados, com seu corpo escorado na porta fechada por novas correntes. Suas calças pretas eram rasgadas nos joelhos e começo de suas coxas; Seus sapatos eram da mesma cor, e eu sabia que estavam gastos; a grande camiseta escura cobria seu corpo, passando da marca de seu cinto, e os desenhos estranhos estampados me revelavam que era a mesma camiseta que peguei emprestada dele esta manhã.
  Sorrio por alguns segundos, antes de fingir estar séria e começar a dar os primeiros passos em sua direção, sentindo minha camiseta branca de tecido fino balançar pelo vento. Esta foi uma das poucas peças de roupas que não eram pretas, que achei no guarda-roupa de Angeline.
   não demora ao notar minha presença. Seu rosto continua o mesmo, apático, muito similar ao de Mark.
  – O que eu deveria ver? – Pergunto, quando paro à sua frente.
   me olha por alguns segundos, checando cada parte do meu corpo, para depois se desencostar da porta do galpão, retirando do bolso traseiro de suas calças, uma pequena chave prata. Com facilidade, ele abre a porta dupla do galpão, dando espaço para que eu entre primeiro.
  Dou uma rápida olhada para ele, que permanece parado ao lado da porta, esperando que eu entre. Internamente respiro fundo e começo a atravessar galpão adentro.
  As luzes já estavam acessas e eu me sinto em um grande déjà vu.
  Ao centro do galpão uma grande corrente prendia um corpo ensanguentado e sem fôlego, e nos lados haviam mais dois corpos, mas estes já não serviam mais para nada.
  Escuto fechar a porta do galpão atrás de mim e me viro para ele, que me observava atentamente, tentando captar todas as minhas reações.
  – É uma humana? – Pergunto, e ele apenas assente, ainda com seus olhos verdes e esbranquiçados em mim. – Então é isso que você faz aqui... mata humanos? – Faço outra pergunta, mesmo que eu já tenha todas as respostas.
  – Como você se sente sobre isso? – Sua voz grave, pergunta calma e arrastadamente.
  – Eu não sinto. Não deveria sentir. – Respondo verdadeiramente, sabendo que era isso que ele gostaria de ouvir. apenas quer ter a certeza que eu o aceito como ele é, para que possamos levar isso adiante, já que sei que ele não mudará.
  Ele solta uma risada nasalada de desdém, antes de passar por mim e ir em direção ao amontoado de feno que ficava perto do corpo sem fôlego da menina presa e amedrontada.
   vai para trás dos fenos altos, retirando de lá a familiar lança que o vi usando na primeira vez que estivesse no galpão.
  – Então me prove que você não sente. – Ele joga a lança com cabo de madeira e ponta de metal no chão, se escorando contra os fenos enquanto me fita intensamente.
  Era até aqui que ele queria chegar?
  Olho para a lança largada no chão, e caminho até ela nas botas coturnos que peguei de Angeline. Ao me aproximar do objeto sujo de sague seco, me abaixo para pegá-lo, sentindo meu corpo quente neste momento.
  Observo o objeto grande em minhas mãos, antes de me virar e dar treze passos até o corpo pequeno da garota machuca. Sua cabeça se levanta temente e me olhando com pavor, seus olhos choram mais do que ela pode aguentar e sua boca treme. Ela não diz nada, apenas fecha os olhos em sua despedida silenciosa, encolhendo seu corpo no lugar, enquanto os dedos de suas mãos e pés se contorcem.
  Pisco algumas vezes e não prolongo toda essa situação, acertando a barriga da garota de cabelos claros. Seu tronco se encolhe para frente e as lágrimas de seus olhos pingam para o chão, junto do sangue quente e brilhante. Os seus dedos param de se contorcer e o seu corpo não treme mais. Escuto alguns engasgos que saem de sua boca, anunciando a sua partida de Setealém.
  Deixo que a lança contemple seu corpo, e me afasto de mais um corpo sem vida, deixando para trás o rastro de sangue que eu pinto meu caminho em Setealém.
  Me viro para , me aproximando pesadamente e com o corpo fervendo em ansiedade. Ele nota meu nervosismo, mas não diz nada, apenas me recebe em seus braços assim que agarro sua camiseta preta.
  Com o queixo apoiado no topo da minha cabeça, sei que tem sua atenção na vida que acabei de ceifar injustamente.
  – Como era sua vida com ela, antes de mim? – Ainda segurando sua camiseta preta e com a cabeça repousada contra seu tronco, pergunto.
  – Ela não gostava das mesmas coisas que você, nunca a vi chorando e nem com medo. Embora você esteja começando a se parecer com ela. – Sua voz sai rouca, ainda mantendo o tom calmo.
  – E ela sabia sobre isso? – Aperto meus dedos contra o tecido de sua camiseta.
  – Foi ela quem me trouxe aqui na primeira vez. – Mesmo não o vendo, eu podia sentir o seu sorriso.
  Me afasto de seu tronco, apenas para poder observar seu rosto marcado por dois piercings que o distinguiam tanto daquele que no passado eu amei.
  – Eu não sou ela. – Falo, enquanto sinto meu peito descer e subir um pouco mais rápido.
   permanece apático, olhando dentro dos meus olhos, me pretendo em uma maldição predestinada.
  – Eu sei. – Seus lábios pálidos são os únicos a se movimentarem em seu rosto apático.
  – Nunca foi fácil estar neste mundo com você, não quando você me lembra ele. Mas eu estou aqui agora, e me pergunto se existiria outro jeito de mudar isso ou se as coisas são como são. Eu não vou me tornar ela, . Eu nunca fui ela. – Mesmo que minhas intenções ao estar perto dele sejam outras, sou sincera em minhas palavras.
   se desencosta do feno, deixando sua postura muito mais alta que a minha, totalmente intimidante em sua altura. Suas mãos correm para dentro dos bolsos de suas calças jeans rasgadas, e alguns fios de seus cabelos bagunçados caem sobre sua testa. Seus olhos verdes, que não eram nada parecidos com os dele, me engolem como um pobre coelhinho branco na floresta. Sua presença me massacra, e todo o calor de seu corpo emana sobre o meu, deixando minha respiração cada vez mais desregular em minha própria ansiedade enquanto o encaro.
  – Eu nunca pedi que você fosse como ela.
  Por que ele diz isso? O meu coração não pertencente a este mundo, mas ele o arrasta na lama até que eu me renda. Este corpo já não é meu, mas minha essência resiste. Eu estou perdendo e me questionando sobre o que eu realmente posso fazer no final da minha história. Talvez o vilão devore o coração da mocinha, e ela se sinta eternamente feliz enquanto entrega todo seu corpo e sua alma para ele, em um final ruim.

Capítulo 28

  – Mae, acorda!
  Um par de pequenas mãos chacoalha meu corpo de um lado para o outro, forçando-me a apertar os olhos já fechados.
  – Anda, acorda!
  Suspiro, antes de abrir os olhos, vendo Valerie se materializando a minha frente em uma imagem desfocada.
  – O que você está fazendo aqui? – Pergunto com a voz falha, enquanto me sento sobre o colchão.
  Valerie se senta à beira da cama, próxima de meu corpo.
  Estico os braços no ar e espreguiço todo meu corpo, sentindo o lençol escuro escorregar por meu tronco.
  – Precisamos conversar. – Assim como o seu tom de voz, o semblante de Valerie também era sério.
  Franzo meu cenho, demorando um pouco para processar tudo isso, eu mal acordei.
  – O que foi? – Pergunto, colocando minhas mãos sobre meu colo, enquanto dou toda a minha atenção para Valerie, que estava em seu vestido longo e preto.
  Todos neste mundo parecem ter um código de vestimenta quase resumido a vestidos longos e pretos, ou roupas rasgadas.
  – Ontem, quando nos separamos e eu disse que iria acompanhar ... fui até lá e o ameacei.
  Solto meu segundo suspiro do dia, apertando os olhos levemente ao escutar tudo o que eu não queria para começar esta suposta manhã.
  – Por que você fez isso, Valerie? – Ajeito-me melhor no colchão, tentando me manter calma sobre essa conversa.
  – Eu precisava saber a verdade. – Ela enruga seu nariz e olhos, como se tivesse o total direito de estar fazendo isso.
  – Que verdade? – Me sinto cada vez mais atordoada sobre está manhã.
  Valerie se mantém calada por alguns segundos, parecendo buscar as palavras corretas para isso, enquanto suas pupilas começam a se dilatar em meio aos seus pensamentos silenciosos.
  – Você percebeu minha desconfiança, eu precisava saber a verdade, e por isso, eu ameacei . E como já esperava, eu tinha razão. – Ela faz uma breve pausa, apertando seus lábios em uma linha fina, tentando suprimir tudo que a assolava neste momento.
  – Do que você está falando, Valerie? – Inclino meu tronco para frente, apertando os lençóis entre meus dedos, começando a ficar aflita com esta manhã.
  Seus olhos castanhos claros encontram os meus, sendo tão sérios como nunca vi antes.
  – Ele também desconfiava de nós, isso não é segredo. escutou toda nossa conversa na cozinha ontem, e quando o encontramos no corredor, ele não estava dando um tempo pra sua irmã, e sim, estava apenas disfarçando sua traição. Depois que nós saímos, ele nos seguiu até a loja de Joe e voltou para contar tudo... Eve já sabe. – Outra vez, Valerie aperta os lábios, agora, com mais força, fazendo alguns pequenos filetes de sangue brilharem.
  Sinto meus ombros ficarem rígidos e uma enorme tensão correr por meu corpo como uma extensa corrente elétrica.
  – Quando eu cheguei ontem, depois de me encontrar com , Mark disse que Eve saiu para ir até à casa de , parece que ele não aguentava mais ficar sozinho... mas depois de tudo que você disse, isso me parece apenas uma desculpa. – Confesso, sabendo que meu semblante, neste momento, está tão sério quanto o de Valerie.
  – Eu fiquei esperando do lado de fora Eve sair para que eu entrasse, mas apenas Mark apareceu, eu perguntei sobre Eve e ele me disse que ela não voltou pra casa. – Valerie passa a língua nos lábios, limpando os pequenos filetes de sangue.
  Volto a endireitar meu corpo, me sentindo enganada. Mas não é como se eu tivesse o direito de me sentir assim, eu comecei com isso.
  – não devia ter contado para Eve.
  – Você sabe que ele não concordava com o que fazíamos. – Com as pupilas ainda mais dilatadas, Valerie diz.
  Solto meu terceiro suspiro.
  – Precisamos pegar aquela faca que deixamos na casa do , ele e Eve com certeza vão dar um jeito de estragar tudo que estamos fazendo. – Jogo o lençol para o outro lado da cama, o vazio, mas Valerie empurra meu tronco de volta ao colchão quando faço menção de me levantar.
  – Não precisamos mais daquela faca, ela era importante quando só tinha uma arma. Agora estamos trabalhando com Joe, ele nos dará tudo, deixe aquela faca com eles.
  – Não é muito arriscado? – Pergunto, temente.
  Valerie nega.
  – Não se preocupe, nada vai acontecer. Apenas vamos continuar seguindo com nosso plano, e quando Eve chegar, lidamos com ela.
  Sem ter muitas escolhas, acabo por concordar.
  Em seguida, me levantei da cama, troquei de roupas e vasculhei alguma coisa entre os armários para comer. Visto que Valerie queria ir até à loja de Joe e talvez tivéssemos um longo dia com isso, e é bom que eu me mantenha firme e de pé.
  Depois de aprender a apreciar todos os sabores de Setealém, a comida já não era desagradável. Lembro-me bem que comer qualquer coisa desse mundo me torna cada vez mais parte dele, mas meu corpo precisa se alimentar, o que eu deveria fazer quanto a isso? Morrer de fome não era uma opção, já que tenho algo importante para fazer neste mundo.

***

  Com tudo feito, seguimos até nosso novo trabalho. Mark não veio, estava na escola e continuaria lá, não podemos levantar suspeitas, e sei que ele pode vir outra hora. Mas a grande surpresa não era essa; nós não fomos para a escola, mas ela veio até onde estávamos. E, antes que pudéssemos alcançar a fachada da loja de Joe, um visitante bem interessante nos fitou através de seus olhos esbranquiçados, enquanto atravessava a loja segurando um pequeno bolinho verde-musgo.
  – Ora, ora, se não são minhas queridas alunas que não têm frequentado as minhas aulas. Devo mudar minha abordagem? Talvez assim vocês voltem. – O homem alto e de aparência velha diz, assim que se aproxima o suficiente. – Não deveriam estar na escola?
  – Você também não deveria? – As palavras de Valerie fazem com que um grande sorriso surja entre os dentes amarelos do professor.
  – Acho que um simples professor também tem direito a alguns dias de folga. – Ele responde, naturalmente.
  O homem de cabelos brancos fica em silêncio e leva o bolinho verde-musgo até a boca, dando uma grande mordida, enquanto espera uma resposta para sua pergunta.
  – Nós não precisamos mais ir para a escola. – Respondo, simples.
  – Não? – Ele arqueia as sobrancelhas sob o céu vermelho do dia de Setealém.
  – Não. Mas talvez você devesse se preocupar com Eve e . – Completo e ele volta a sorrir depois de mastigar mais um pedaço do bolinho.
  – Tudo bem, eu ficarei de olho neles. – E dando uma última mordida no bolinho verde-musgo, o professor amaça o papel branco que o enrolava, enfiando-o dentro do bolço de suas calças. – Vejam só vocês duas, minhas queridas alunas, me deixam orgulhoso, principalmente você. – Ele aponta para Valerie. – Estamos juntos por cinco anos, e resistiu todo esse tempo. Talvez apenas precisasse da motivação certa para seguir o nosso caminho. – O homem aponta em minha direção, me deixando tensa por um momento. – Acho que devo ir agora. – O professor diz depois de alguns segundos de silêncio em meio ao seu olhar curioso.
  Um tilintar de sinos.
  – O que vocês estão fazendo aqui? – Me surpreendo ao notar que a pergunta não foi feita por nenhuma das três vozes dessa conversa. E ao olhar além do homem de cabelos brancos, vejo duas figuras altas se aproximando.
   se arrasta até onde estávamos, com uma expressão totalmente séria enquanto sai da loja de seu pai. E ao seu lado, quase me fazendo sorrir, estava com suas tatuagens e apatia.
  Com alguns passos eles param ao lado do professor.
  Não sei ao certo, mas o olhar que me direcionava era completamente quente, como se pudesse me queimar através de toda a verdade que eu sabia que ele havia descoberto.
  – Por que não estão na escola? – As palavras do garoto tatuado e de cabelo escuro tentavam me empurrar para longe, bem próximo a uma cilada, mas eu não me importo, apenas por ter um par de olhos verdes-esbranquiçados em mim, já me alivia desta situação.
  – Eu poderia fazer a mesma pergunta pra você, . – O professor, sempre de bom humor, cruza os braços, olhando para o garoto que era um pouco mais baixo que ele.
  Os olhos de cerram, e pelo movimento de sua mandíbula, sei que seus dentes estão trincados. E criando um contrataste, , ao seu lado, apenas enfia as mãos para dentro dos bolsos de suas calças rasgadas na altura dos joelhos, deixando seus olhos sempre em minha direção.
  – Estava ajudando na loja do meu pai. – Com a voz carregada, responde.
  – Se estava, é porque não está mais, então já podemos ir, eu acompanho vocês, estava de saída também. – O professor leva uma mão até as costas, e faz um gesto para que os dois tomem seu caminho.
  Com um último olhar dos dois, e começam a andar.
   passa ao lado de Valerie e ao meu, dando uma bruta topada contra meu ombro. O professor de cabelos brancos ergue as sobrancelhas para o que acabou de acontecer, mas me limito a sorrir, realmente me divertindo com essa situação que criou.
  Com um aceno de cabeça, o professor some junto de e .
  – As coisas em Setealém ficam cada dia mais interessantes, você não acha? – Pergunto para Valerie, enquanto giro meus pés, ficando de frente para onde eles acabaram de seguir.
  – Sempre foram, com você por aqui. – Valerie me olhar de canto de olho, e solto uma curta risada seca.
  – Acho melhor não irmos até a loja de Joe, pode voltar e ferrar com tudo. – Em seguida Valerie completa e eu assinto.

***

  Sem muitas escolhas do que poderíamos fazer, Valerie e eu seguimos para um pequeno espaço perto da loja de Joe, um lugar isolado onde pudéssemos passar algum tempo enquanto Eve não voltava para casa. As coisas seriam diferentes hoje.
  A beira de uma pequena queda livre, colocamos nossas pernas ao ar, sentindo o vento de Setealém passar por entre elas, enquanto nossas mãos se apoiavam contra à terra seca e áspera. O céu vermelho e a imensidão verde de várias altas árvores eram o nosso cenário, atraindo nossos olhos para a maldita floresta que escondida nossa única chance de fuga.
  – O que o professor disse antes me chamou a atenção. – Começo, com a voz calma e impassível.
  Valerie vira sua cabeça em minha direção, fazendo com que os longos fios em castanhos claros de seus cabelos voassem por diversas direções ao mesmo tempo.
  – Você esteve nesse mundo por cinco anos, sempre soube de muita coisa, mas sei que não me contou por medo de me perder em seu plano. Mas me diga, Valerie, você poderia ter procurado Joe ou alguém como ele antes. Poderia ter feito tudo que estamos fazendo agora, e mesmo assim, escolheu permanecer neste lugar por tanto tempo. – Meus olhos se concentram nos seus, transbordando minha seriedade verdadeira. Este era o momento para esclarecer qualquer coisa, nosso tempo está acabando aqui.
  Valerie desvia seu olhar, focando nas altas árvores cheias, deixando que seu pensamento voe para onde quer que seja, em busca da minha resposta.
  – Eu não escolhi ficar aqui, nunca escolheria. – Ela sorri minimamente fechado, fazendo um rápido barulho com o nariz. – Não era tão simples, Mae. Estar nesse mundo diferente, cercada por essas pessoas e coisas novas, e todos que eu conheci sempre sucumbiam a Setealém. Eu estive por cinco anos aqui, isso é verdade, mas sem um apoio, sem alguém que pudesse ser o ponto de retorno, tudo se torna difícil. Se todos se rendiam, por que eu também não deveria me render? – Seus olhos voltam a encontrar os meus, e nunca os vi tão escuros, era como se sua alma estivesse transbordando para fora. – É verdade que eu não aguentaria muito mais em Setealém, mas quando vocês chegaram, eu percebi que essa era minha última chance. Eu não poderia perder mais ninguém para Setealém, ou a próxima seria eu.
  Suas palavras tocaram fundo dentro de mim, reverberando tudo que eu carregava. Eu nunca entenderia os sentimentos de Valerie, como era estar em Setealém por tanto tempo, já que o pouco que tive deste mundo, já foi o suficiente para me fazer mergulhar no meu próprio desespero e insanidade.
  – Mas por que me pergunta isso? Não está com dúvidas sobre dar o fora deste lugar? – Seus olhos continuam escuros, me intimidando cada vez mais.
  – Não, não estou. Esse mundo não me pertence... mas às vezes penso se ele me aceitaria de volta, como sou agora. – Solto o ar pesadamente, encarando meus pés sobre o vento, bem acima da queda livre. – Eu fiz coisas ruins e nem precisei vir até Setealém pra isso. Sinto que nunca serei perdoada por tudo, não acho que seja a pessoa certa para ele.
  – Sua dúvida então é outra. – Valerie sorri, mas não de forma acolhedora. – Se você o trouxer de volta, ele não precisará saber sobre Setealém, apenas esqueça sobre isso agora, nosso maior objetivo é não deixar Sophie te matar ou trazer a outra Mae, e precisamos nos livrar de , ele também é uma ameaça aos nossos planos. Então não pense nisso agora, quando a hora chegar, você saberá o que fazer.
  Assinto, mesmo que não tenha certeza sobre suas palavras e sobre o meu futuro. Quando a hora chegar eu farei o que for preciso, o que o meu eu daquele momento clamar, e espero que sua voz me leve à liberdade, não à condenação.
  Valerie e eu ficamos por mais algum tempo sentadas à beira da queda livre, até que o momento chegasse. Bons minutos se passaram e Eve deve ter retornado para casa; eu devo lidar com as consequências da confissão de .
  Com uma breve despedida, segui todos os passos que aprendi a fazer, até que eu estivesse em frente à casa deteriorada que aprendi a chamar de "lar" nos últimos dias.
  Abri a porta calmamente, esperando ser recebida por um furação, mas o silêncio me saudou. Andei por alguns minutos, entrando e saindo dos mesmos cômodos, mas a única pessoa que encontrei foi Mark, que me disse que Eve ainda não havia voltado para casa.
  O sentimento de preocupação e raiva me engolem ao pensar que Eve pode estar fazendo isso apenas como "castigo" por minhas atitudes. Mas eu estou decidida a pôr um ponto final nisso, ela precisa entender que as coisas são desta maneira agora.
  Dou um breve aviso a Mark, dizendo que sairia de novo, e volto a retomar meus passos até a porta de entrada, tendo uma das maiores surpresas do dia de céu avermelhado, ao encontrar parado do outro lado da porta, me esperando do lado de fora. E com breve palavras trocadas, ele disse que viu quando Valerie e eu fomos embora, e por isso, me seguiu até aqui, querendo me ver. Talvez isso ajude neste momento, já que pedi que ele me acompanhasse até a casa de , onde supostamente minha irmã deveria estar.
  Com minha mão atrelada a dele, vagamos por algumas ruas de Setealém, sempre tendo olhares curiosos ou escandalizados ao nos verem desta forma, mas isso não parecia o incomodar.
  Debaixo do céu rubro, demos mil e duzentos passos até encontrar a casa amarela com a pintura descascada. Meus olhos correm pelo concreto sem vida, tentando-me fazer imaginar o que havia além daquelas paredes e o que eu encontraria ao ver e Eve. Apenas torço para que eles não estraguem nossa única passagem de ido para o mundo humano.
  Com , caminhei até a porta de madeira marrom e girei a maçaneta sem pressa. O lugar estava silencioso e escuro, e o forte odor tão familiar nos cantarolou palavras de boas-vindas.
  Meu corpo fica tenso e parece notar, tendo que tomar alguns passos à frente e me puxar pela entrada para que eu tome coragem. Ele para diante de uma bifurcação, e me lembro que o lado esquerdo daria para a cozinha onde Valerie matou a mãe de com uma punhalada pelas costas, e por isso, aponto para o lado direito. Outra vez, ele me guia até o cômodo escuro com uma única fresta de luz causada pela cortina pouco entreaberta. Mas a pequena fresta era o suficiente para iluminar a grande poça de sangue viscosa ao centro da sala.
  O corpo pálido jogado no chão parecia se afogar no vermelho, mas eu sabia que sua vida já tinha se esvaziado.
  O choro baixo criava uma trilha de fundo, e com os olhos ágeis, noto que ele vem do pequeno corpo encolhido ao canto da sala, com a cabeça enterrada entre os joelhos e os braços ao redor das pernas.
  – Eve? – Pergunto, temente, soltando a mão de .
  A menção ao seu nome faz com que minha irmã levante a cabeça, me mostrando seus olhos fundos e avermelhados pelo choro, com grandes olheiras. Sua pele estava quase sem cor, e mesmo de longe, eu sabia que seu corpo tremia em seus cabelos desgrenhados.
  Seu peito sobe e desce rapidamente, e suas mãos cobertas pelo sangue seco sujavam sua roupa, da qual ela agarrava com força.
  Olho outra vez olho para o corpo morto de , com uma faca cravada em suas costas, dividindo sua carne, da mesma maneira como foi no passado. Eu não preciso de muito para saber que quem fez isso foi Valerie, e que já está morto há quase um dia.
  – Você pode tirá-lo daqui? Eu já vou te encontrar. – Me viro para , que com as mãos nos bolsos, assistia toda a cena.
  Com suas pernas longas, ele caminha até o corpo de , o recolhendo do chão sem a menor delicadeza, jogando-o sobre os ombros antes de sair da sala.
  Respiro fundo, voltando a me virar para Eve, indo até ela com um arrastar de pés rangendo sobre a madeira do chão. Me sento ao lado do seu corpo trêmulo, e passo meu braço esquerdo por seus ombros, a trazendo para perto.
  A boca trêmula de Eve se abre, enquanto seus olhos inchados se concentram na grande poça de sangue deixada por .
  – E-eu sei de tudo... sei de tudo... e-eu sei de tudo... me contou. – Sua respiração fica alta e rápida. – Você está louca como eles... como eles. H-... você não deveria... não deveria estar com ele. Tudo isso que aconteceu... a mor-te do ... – Seu rosto se contorce, e mais lágrimas escorrem de seus olhos – é tudo culpa de vocês.
  Outra vez ela esconde o rosto entre os joelhos, deixando que seu corpo treme em meu braço.
  – Você precisa parar com isso, Eve. – Calmamente e com um longo suspiro, digo. – Não estamos no mundo humano, aqui em Setealém as coisas são diferentes. Tudo que fizemos até agora é para nos tirar desse lugar. Você deveria ser mais como a Eve que chegou até Setealém, a mesma que estava disposta a matar para sair, porque essa Eve aqui, a que está chorando, não ajudará em nada.
  Sua cabeça se levanta outra vez, e seus olhos me olham com descrença e raiva, inundados por mais lágrimas.
  – Se isso é demais pra você agora, não precisa se preocupar. Apenas fique quieta e me deixe ser a irmã mais velha desta vez. Eu farei tudo por nós duas e vou nos tirar de Setealém. – Com um rápido beijo que selo no topo de sua cabeça, me levanto do chão e a deixo chorando na sala, para que ela tenha seu momento e entenda minhas palavras.
  Depois de sair da sala, vou à procura de , o encontrando no terreno vazio da parte detrás da casa. Ele estava sentado em uma pequena mureta de concreto, olhando atentamente o corpo morto jogado aos seus pés. Suas roupas estavam um pouco sujas pelo sangue, mas isso não parecia o incomodar.
  Me aproximo dele, sentando ao seu lado. Meus olhos também vagam até , observando, agora, sob a luz do dia avermelhado, todas as marcas de Valerie. Antes, escondida naquela sala escura, eu apenas vi a faca e o corte que ela fez, mas agora eu literalmente podia contar todos os doze furos que Valerie fez em suas costas, todos eles grandes o suficiente para caber algumas pedrinhas do chão de terra.
  – O que foi isso? – Os olhos verdes-esbranquiçados de , me questionam.
  Solto um grande suspiro, enquanto pego em sua mão suja de sangue e encosto minha cabeça contra seu ombro.
  – Setealém não é para todos.

Capítulo 29

  Uma semana se passou. Uma semana que eu continuo vindo no mesmo lugar e fazendo as mesmas coisas, e eu até poderia estar cansada disso, mas não quando está comigo.
  E de novo ele estava agachado à beira do pequeno lago, observando como se fosse a mais bela cena, o corpo sem vida afundar na água clara. Como sempre, enchemos todo o interior do corpo de pedras, para que nosso segredo ficasse muito bem escondido no fundo do lago, assim como todos os outros que lhe fariam companhia, já o esperando para dar boas-vindas.
  Este lago de água clara e brilhante, o mesmo lugar onde me encontrou quando eu fugia com avidez de Sophie. E agora aqui estou eu, entregue aos seus maus hábitos, o ajudando em sua brincadeira pecadora, arrancando a vida daqueles que são semelhantes a mim. Mas se esse era o meu passaporte para longe de Setealém, eu pagaria por ele.
  – Acho que foi o último. – Digo, ao lado de , também agachada na beira do lago.
  – Sim, foi o último. – Ele me olha através de seus olhos verdes-esbranquiçados. –Vamos embora.
  Assinto, sabendo que essa era uma parte importante para ele: ser rápido para nunca ser pego.
   se levanta e, com a mão suja de sangue, estende-a em minha direção para que eu faça o mesmo. Aceito de bom grado sua ajuda, entrelaçando nossos dedos quentes pela vida de outra pessoa, antes de seguirmos para fora da floresta.
  Talvez isso me aproxime dele. Era o que ela fazia com ele.
  Sorrio seco com meu próprio pensamento, e isso faz com que me olhe de canto de olho.
  Mas eu nunca vou ser ela. Essa aqui sou eu.
  Calmamente, caminhos até a casa de , um lugar que passei a frequentar bastante na última semana, e por isso, não foi nenhuma surpresa para Ada me ver com sua filha. Ela nem ao menos se importou com nossa sujeira de sangue, já estava acostumada.
  Com um sorriso gentil, ela nos avisou que estava de saída, se encontraria com o pai de e os dois iriam até o mundo humano resolver algumas pendências.
  – Por que sua mãe vai tanto ao meu mundo? – Pergunto, assim que entramos na cozinha.
  Me recosto contra a pia de alumínio e encaro que estava próximo à mesa de madeira, limpando as mãos em um velho pano de prato.
  – Alguns moradores de Setealém gostam do seu mundo, eles se divertem com os humanos. – sorri de lado, e sei o tipo de diversão que ele se refere, o mesmo que fizemos perto do lago. – Muita gente de Setealém mora no mundo humano, e vocês provavelmente nunca saberão. – Ele volta a jogar o pano de prato sobre a mesa de madeira, mas agora, sujo de sangue.
  Suas mãos ainda tinham uma coloração avermelhada, mas era mais fraca do que as que estavam pintando minhas mãos.
  Sem uma resposta minha, caminha até onde estou. E eu passo meus braços ao redor de seu pescoço, mas sem encostar minhas mãos sujas contra sua pele.
  Ele inclina seu corpo e encosta seus lábios contra os meus, sem a intenção de começar um beijo mais profundo.
  – Você pode me emprestar uma camiseta? Acho que a minha já era. – Pergunto, assim que nossos lábios se separam.
  Ele olha brevemente para o meu tronco, observando o vermelho que manchou a blusa amarela que eu vestia.
  Com um rápido aceno de cabeça, se afasta de mim, virando-se para sair da cozinha.
  Solto um suspiro, apoiando minhas mãos nas bordas da pia de alumínio. Jogo minha cabeça para trás e encaro o teto manchado por verde, contando cada uma das manchas, enquanto espero por .
  Tudo tem sido tão louco nessa semana. Depois de encontrar morto, tive uma longa conversa com Valerie, mas ela não parecia arrependida, e sim destinada a arrancar de nossos caminhos todos que ela julgasse como uma ameaça. Nós brigamos por isso, com certeza brigamos, estava assustado, ela não deveria tê-lo matado, mas o fez mesmo assim. Nossa briga durou menos de dois dias, não poderíamos iniciar um conflito quando faltava tão pouco para a despedida de Setealém.
  Eve foi minha maior conquista nos últimos dias. Ela finalmente se rendeu, mesmo que isso signifique passar todos os dias trancada dentro de seu quarto. Minha irmã desistiu de lutar e finalmente me deixou fazer o que eu devo fazer. E tudo apenas melhorou desta forma. e eu estamos mais unidos, e Mark seguiu nos ajudando na loja de Joe.
  Tudo estava caminhando para o fim.
  – Eu sabia que você estaria aqui.
  Minha cabeça tomba para frente quando uma voz carregada me puxa para o meu presente.
  – Estava me procurando? – Arqueio as duas sobrancelhas, enquanto encaro sem medo, a feição raivosa de , que estava parado na entrada da cozinha. – Eu não escutei você entrando.
  A respiração alta de preenche a cozinha, e tão rápido quanto um piscar de olhos, ele me prensa contra a pia de alumínio, um braço em cada lado das bordas. Seu rosto estava perto o suficiente para que eu contasse cada um de seus cílios.
  – Eu pensei que as coisas estivessem claras. Por que você continua se encontrando com ele? – Suas palavras eram como, rosnados estridentes.
  Penso em respondê-lo de forma que sei que vai irritá-lo, como venho fazendo nessa última semana, mas uma resposta ainda melhor entra pela cozinha.
  – O que você está fazendo aqui, ? Não me avisou que vinha. – A voz grave e rouca de pergunta. Ele estava parado de onde saiu, segurando uma camiseta preta em sua mão direita.
   não se vira para olhá-lo, ele temia, eu podia perceber isso. E por cima de seus ombros, observo que não tinha um semblante sério ou irritado, mas sim, curioso, o tipo de curiosidade que eu sei onde levaria.
  – Não precisamos mentir, não é verdade? Todos nós sabemos por que oZayn está aqui. – Sorrio fechado, observando por um momento. Sua expressão ainda era raivosa, mas também, temente.
  Volto minha atenção para , que sorri da mesma forma que eu. E o conhecendo tão bem como aprendi nos últimos dias, eu certamente o acompanharia no que estava prestes a acontecer nessa cozinha.
   deixa sobre a mesa sua camiseta preta, bem ao lado do pano de prato. Depois, com uma calma silenciosa, ele caminha até onde estávamos, parando bem atrás do corpo de , o deixando ainda mais temente com sua presença.
   coloca suas mãos uma em cada lado da cintura de , o deixando tenso para, em seguida, através do pescoço de , aproximar seu rosto do meu, dando-me outro beijo, esse com muito mais desejo. Nossas línguas se envolvem por alguns segundos, e o piercing preso em seu lábio me faz suspirar. A respiração alta de preenchia nossos ouvidos. E ao nos separarmos, um fino fio de saliva surge, se estendendo até tocar a pele de .
  Observando atentamente tudo, percebo quando coloca suas mãos para dentro da camiseta de e as arrasta até a parte da frente de suas calças jeans, vagarosamente desabotoando-a e descendo o zíper. treme contra meu corpo, quando enfia suas duas mãos para dentro de suas calças, o fazendo apertar as bordas da pia de alumínio com mais força.
  Encaro por alguns segundos, que com um olhar carregado por seus maus hábitos, incentiva que eu continue.
  Afasto minhas mãos, que também estavam nas bordas da pia, e as levo até o rosto de , sujando sua pele pálida com o sangue que eu carregava. Seus olhos tensos observam os meus com atenção, e aproveito do momento para tomar seus lábios para mim, iniciando um beijo que o pega de surpresa.
   treme outra vez, mas não reluta ao corresponder aos meus movimentos, deixando que o gosto em sua boca se misture ao meu. Seu corpo é empurrado para frente, e agora sei que ele está totalmente entre e eu, sem poder escapar disso.
  Devido a nossa proximidade, sinto quando puxa o membro de para fora das calças, começando a masturbá-lo, me deixando sentir o membro de e a sua mão roçando contra minha barriga descoberta.
   afasta sua boca da minha para soltar um gemido sôfrego, e sorrio satisfeita com isso.
  Inclinando minha cabeça para o lado, volto a procurar por e sua boca, o beijo pela terceira vez, tendo os gemidos de como nossa sinfonia particular.
  Sentindo os movimentos de se acelerarem ainda mais, e com isso, quebro nosso beijo para poder levar minha boca até o pescoço de , começando a distribuir beijos molhados; faz o mesmo no lado contrário, causando alguns movimentos da parte de .
  Eu pude sentir sua pele se arrepiando quando toquei minha língua quente contra seu pescoço, arrastando-a por toda sua extensão até chegar em sua boca. E desesperadamente, segura em minha nuca, ansiando por um contato direto entre nossas bocas.
  Outra vez, quando voltamos a nos beijar, aumenta seus movimentos em torno do membro de , o empurrando para frente, me deixando cada vez mais prensada contra a pia de alumínio.
  Entre muitos suspiros, e eu nos beijos incessantemente até que ele não aguentasse mais e se desmanchando nas mãos de , sujando toda a minha blusa amarela. Eu podia sentir seu membro pulsando entre nós dois, e isso era extremamente excitante.
  Com a respiração ofegante, encara meus olhos, com as pupilas dilatadas em puro prazer.
  Ele parece estagnado, sem saber o que falar, e por isso, agindo por seu impulso, ele se afasta de nós dois enquanto arruma suas calças. Seu olhar perdido de descrença fica nos observando por alguns segundos, antes que ele saia correndo da cozinha e da casa de meu namorado.
   me olha logo em seguida, e eu arqueio as sobrancelhas, sorrindo ao pensar em como isso foi divertido.
  Ainda escorada contra a pia, peço que se aproxime, e basta alguns segundos até que ele me coloque sentada sobre o alumínio da pia, antes de iniciarmos um beijo que nos daria bons momentos dentro dessa cozinha, de novo.

***

  – Daqui a três dias será trinta e um de outubro.
  Minhas palavras atraem , que com um olhar baixo, me fita depois que para de limpar uma das suas facas que ele tirou de seu guarda-roupa.
  – Eu sei. – Ele responde, voltando sua atenção para a faca e o pano branco que segurava.
  Me ajeito melhor sobre sua cama, ainda deitada de bruços, sentindo meu tronco despido roçar contra o colchão.
  – Há algum tempo, eu encontrei uma caverna naquela floresta onde nós costumamos ir. – E, outra vez, tenho sua atenção para mim. – Eu quero que você me encontre lá daqui a três dias.
  Suas sobrancelhas se arqueiam, fazendo com que o piercing preso do lado direito acompanhe o movimento.
  – E pra quê? – deixa sua faca de lado, na cabeceira, junto do pano branco.
  Seus olhos verdes-esbranquiçados me têm com atenção.
  – Você teve uma surpresa pra mim, quando me pediu para te encontrar no galpão... agora é a minha vez. – Deixo que um sorriso surja em meus lábios, enquanto balanço minhas pernas no ar, que estavam erguidas.
  – Uma surpresa? – Seus olhos se cerram e um quase imperceptível sorriso também surge em seus lábios. Eu podia sentir a desconfiança e curiosidade que vinha de .
  O momento se aproximava, apenas setenta e duas horas até o meu adeus para Setealém. Eu já estava decidida e sabia muito bem o que deveria fazer, e não voltaria atrás, eu não quero, apenas vou pegar o que preciso.
  – Você pode fazer isso? – Apoio as duas mãos no colchão, e levanto meu corpo em direção ao de , ficando próxima de seu rosto.
  Seus olhos correm até meus seios descobertos, antes de voltarem para o meu rosto. E com um acenar, ele aceita meu convite para o seu próprio adeus neste mundo.
  Sorrio outra vez, e me aproximo mais, selando nossos lábios rapidamente.
  – Ótimo.
  Quando me afasto de seu rosto, sinto uma pequena presença próxima. E espiando através do canto de olho, vejo a figura de Sophie espreitando pela porta entreaberta do quarto de .
  – Preciso tomar um pouco de água. – Digo para , antes de me levantar da cama e pegar sua camiseta preta, vestindo-a, e depois indo em direção à porta.
  Com os pés descalços, vou para o corredor, não vendo mais Sophie por perto. Calmamente, começo a andar em direção à cozinha, mas Sophie parecia não estar em lugar nenhum agora. Talvez tenha voltado para o seu quarto.
  Ainda parada na entrada da cozinha, começo a me aproximar da janela atrás da pia, vendo o começo da noite do lado de fora. O céu avermelhado estava mais escuro, e alguns pontos brilhantes enfeitavam a lua, também, vermelha.
  Com as mãos apoiadas na pia de alumínio, observo com atenção quando algumas sombras correm de um lado para o outro através do vidro da janela.
  Franzo meu cenho, tentando enxergar com nitidez o que poderia ser, mas tudo que ganho são as luzes da cozinha piscando freneticamente até que se apaguem, me deixando no meio do nada escuro.
  Olho sobre os ombros, mas tudo está quieto, e as luzes acessas dos outros cômodos da casa, parecem ter se apagado também. Volto a me virar para frente, tendo apenas a luz da lua vermelha como norteador.
  Mais sombras surgem do lado de fora, tantas que nem posso contar. Elas correm como se estivessem atrasadas para um grande compromisso, sem deixar nenhum rastro de como poderiam ser suas feições.
  Sinto que minha respiração fica mais curta, e meu corpo tenso, isso não me trazia uma boa sensação.
  Atenta a qualquer movimento feito pelas sombras do outro lado da janela, sobressalto quando uma claridade cobre a cozinha, criando outras sombras, estas, para tudo que havia dentro deste cômodo.
  Com os pés descalços e receosos, me viro para trás, encontrando Sophie parada na entrada da cozinha, enquanto segurava uma vela presa a um pequeno candelabro.
  – Tudo está se tornando agitado por aqui. – Sophie sorri, em meio a chama da vela que dançava em uma pequena clareira que projetava sombras em tudo. – E você sabe por quê, Mae? Porque o momento está se aproximando, e nós podemos sentir isso. Então aproveite enquanto pode.
  Seus olhos escuros me encaram com fervor, e sua mão que segurava o candelabro se mexe, assim como seu corpo, que me dá as costas e some pelo corredor, me deixando outra vez no escuro.
  Ainda com suas palavras que pareciam pairar dentro da cozinha, dou uma última olhada por cima dos ombros, vendo que as sombras continuavam a correr do lado de fora. Em seguida, me afasto da pia, saindo da cozinha e indo até à sala, permanecendo parada no meio do escuro. Encaro as cortinas mal projetadas, caminhando lentamente até elas. E uma vez parada em frente ao tecido que mal se podia enxergar no meio da falta de luz, seguro na borda da cortina, arrastando apenas uma pequena parte para o lado, me surpreendendo ao ver que deste lado também haviam sombras correndo do lado de fora.
  – Mae?
  Me afasto abruptamente das cortinas, quando escuto a voz de que acabou por me assustar.
  Viro meu corpo em direção a nova claridade, o encontrando, também, com uma vela iluminando seu caminho.
  – Parece que estamos sem energia por aqui. – Ele diz, e eu assinto.
  – Você pode me levar em casa? Já está tarde, Mark e Eve devem estar preocupados. – Respiro fundo, tentando me acalmar por um momento.
  E com isso, acabou me levando embora. E me senti aliviada quando não encontramos nada do lado de fora, mesmo não tendo falado para ele o que vi. Mas, mesmo com o alívio temporário, eu sentia como se estivesse sendo viajada em cada passo que dei até chegar em minha casa.
   não entrou, pois não queria deixar sua irmã sozinha por muito tempo. E para minha infelicidade, a falta de luz parecia ter afetado Setealém, e por isso, acabei encontrando Mark entre algumas velas que iluminavam nossa casa. Ele me disse que Eve permaneceu no quarto, como tem feito, mas que ele levou algumas velas para ela.
  Depois de minha breve conversa com Mark, onde acabei por descobrir que ele estava com fome, pedi que ficasse em seu quarto enquanto eu preparava algo para nós dois. Eu também tentaria fazer com que Eve comesse um pouco, já que desde que se isolou de tudo, foram poucas as vezes que consegui a convencer a tomar nem que fosse, um copo de sangue.
  Chequei tudo que tínhamos nos armários, e por sorte, estávamos abastecidos o suficiente. Com os noctis que Joe nos pagava, comecei a comprar algumas coisas para casa, tentando nos manter firmes até minha saída deste mundo.
  Com uma panela fumegante sobre o fogão, e algumas velas iluminando a cozinha, despejo três colheres de sopa de sangue dentro do molho que eu preparava para um delicioso macarrão escuro de Setealém, talvez eu pudesse fazer minha irmã experimentar isso.
  Sinto que tive muita responsabilidade nesta semana. Com Eve fora do caminho, apenas se trancando no quarto, tive que cuidar dela, e claro, de Mark. Era estranho, mas ficávamos cada vez mais próximos, depois que me permiti viver ao jeito deste mundo para poder sair, eu compreendia Mark melhor e podia ajudá-lo com coisas simples e básicas, como refeições ou a escola.
  Os moradores de Setealém também começavam a se perguntar sobre Angeline e Jack, mas eu sempre insistia na mesma desculpa, e sei que ela não vai durar muito, por isso, esses três dias precisam passar rapidamente.
  Tampo a panela fumegante quando escuto algumas batidas que vinham da porta de entrada da casa.
  Olho através da janela, pensando na possibilidade de ser alguma das sombras que eu vi na casa de , mas, sem quaisquer explicações, elas não deram sinal desde que voltei.
  Os passos rápidos de Mark passam pelo corredor ao lado da cozinha, enquanto ele saia de seu quarto para ir abrir a porta de entrada. Me sinto apreensiva por ele, já que não escuto nada depois que a porta range.
  – Mark? – Chamo por seu nome, ficando impaciente com sua demora.
  Desligo a panela fumegante, e com os olhos atentos, encaro a entrada da cozinha, já pensando em ir atrás de meu irmão, mas solto todo o ar de meus pulmões quando vejo sua figura pálida surgir, trazendo consigo um convidado.
  Mark me olha curioso e depois espia pelo canto de olho.
  – Você pode nos deixar a sós? Quando a comida estiver pronta, eu vou te chamar. – Sorrio para o garoto de cabelos claros, que segurava uma vela.
  Ele acena positivamente, sem dizer nada, e depois sai da cozinha.
  Permaneço parada perto do fogão, esperando até que eu escutasse a porta do quarto de Mark ser fechada. E fez o mesmo, enquanto sustentava um olhar pesado e intenso em minha direção.
  Suas mãos estavam fechadas em punhos, e as tatuagens em seus braços descobertos pareciam mais escuras no meio da iluminação escassa das velas que espalhei pela cozinha.
  – O que veio fazer aqui? – Pergunto, quando tenho a certeza que Mark não nos escutará.
  Como um vulto no meio do escuro, vem em minha direção, empurrando meu corpo contra o fogão, fazendo a panela fumegante cair no chão, respigando um pouco de molho sobre nossos pés, mas não me importo com a quentura, e nem com o barulho que ele fez.
  Sua mão sobe até o meu pescoço, apertando os dedos contra minha pele, e suas pupilas se tornam grandes e escuras como esta noite.
  – Por que fez aquilo? – Ele pergunta entre os dentes.
  Sorrio fechado, levando minha mão direita sobre a sua, afrouxando seu aperto em meu pescoço.
  – Eu pensei que era o que você queria. – Digo, de forma baixa e arrastada.
  Os dedos de se tornam mais firmes contra minha pele, e pela proximidade de nossos corpos, eu sentia seu tronco descendo e subindo com rapidez, por conta da respiração pesada.
  – Você sabe o que eu quero? – Ele me olha através das pupilas dilatadas, antes de aproximar seu rosto do meu e levar sua boca para perto de minha orelha. – Que você morra. – Ele sussurra, tenebrosamente.
  Eu queria poder dar risada e gritar pela casa o quanto eu gostava disso, mas apenas me limito a esperar que ele afaste seu rosto do meu, para que eu leve meu dedo indicador até a parte inferior de seu queixo.
  – Daqui a três dias, querido. Não se preocupe, já estamos quase lá. – Sorrio fechado outra vez. afasta minha mão de seu queixo, empurrando meu corpo para trás, enquanto sai da cozinha em chamas, eu quase podia sentir o calor.
  A porta de entrada é fechada com força, eu pude escutar, e isso era o suficiente para me alertar sobre como tudo está ficando cada vez mais perto.
  Umedeço os lábios com a ponta da lingua e me afasto do fogão, tomando cuidado para não pisar no molho espalhado pelo chão. Caminho até a gaveta da pia e a abro, tirando de lá um maço de cigarros pretos que me deu, e pego um deles, o acendendo na vela mais próxima. E com o cigarro entre os dedos, observo através da janela, o corpo de sumir pela rua escura de Setealém, me mostrando que eu estava a três noites do mundo humano.

Capítulo 30

  O vento já havia ido embora e o silêncio sondava vagarosamente tudo ao meu redor. A pedra da qual eu estava sentada às vezes era incômoda, mas eu me manteria aqui por algum tempo. As pequenas folhas alaranjadas pareciam dormir nos inúmeros galhos que pintavam a fachada das árvores que rodeavam Setealém. Meus olhos estavam fascinados, grudados à pequena paisagem parada.
  – É amanhã. – Com a voz tranquila, Valerie diz ao meu lado.
  Meus olhos acompanham suas palavras e a espio com sutileza. O longo vestido escuro que ela usava, tinha sua barra deitada em cima da grande pedra, enquanto suas mãos abraçavam seus joelhos dobrados. Seu olhar era calmo, e todo seu rosto parecia tranquilo sobre o que viria no dia seguinte.
  – Sim.
  – Você está certa sobre fazer isso mesmo? – Os olhos em castanhos-claros de Valerie, me observam com atenção. Sua feição continua calma e sua pele extremamente pálida parecia ser beijada pelo fraco sol deste fim de tarde.
  – Eu não deveria estar? – Pergunto, e Valerie desvia seu olhar, voltando a encarar as folhas alaranjadas à nossa frente.
  Percebo que, quieto em seu canto, com os olhos curiosos, Mark nos fitava através de suas íris esbranquiçadas. Seu pequeno corpo estava sentado ao lado de Valerie, que se manteve ao nosso meio, e suas pequenas mãos também estavam ao redor de seus joelhos, com seus cabelos claros caindo sobre sua testa.
  – Só estou perguntado porque sei que você e se tornaram muito próximos nos últimos dias.
  Meus olhos se apertam, enquanto observo com atenção o rosto de Valerie, que se mostrava de perfil para mim.
  – A ideia de se aproximar dele foi sua, só fiz isso porque era parte do seu plano. – Respondo, decidida sobre o que eu faria no dia seguinte. Não há voltas, essa era a minha escolha.
  – Eu sei, mas... – Seus lábios finos se fecham em uma linha reta, firmemente, quanto ela interrompe a própria fala e fica em silêncio.
  – Mas o quê, Valerie? – Pergunto, curiosa com toda essa conversa.
  – Nada. Apenas vamos fazer isso amanhã. – Ela solta um curto suspiro alto e eu apenas assinto, concordando que isso precisava ser feito amanhã.
  Nada dentro de mim mudou durante esse tempo, a minha escolha desde o começo sempre foi ir embora de Setealém. Nós montamos um plano, e precisamos segui-lo até o fim, tudo já estava pronto desde o começo.
  – E você, Mark, também está certo da sua escolha? Quer mesmo fazer isso? – Aproveitando este momento de nossa conversa, tento arrancar de meu irmão toda a sua vontade de ir até o fim com suas escolhas. Não podemos continuar com hesitações, todos aqui devem estar seguros disso.
  Sem uma palavra, o pequeno garoto de cabelos claros assente, parecendo decidido, e talvez ele seja o único que nunca hesitou entre nós.
  – Você não sentirá falta de Setealém? – Valerie pergunta ao garoto sentado ao seu lado. – Nunca desmonstrou sentir falta dos seus pais, mas está sempre perto da Mae. Até onde eu percebi, mesmo sendo desse mundo, seus pais se preocupavam com vocês.
  Mark parece refletir um pouco nas palavras de Valerie, buscando dentro de si mesmo uma resposta.
  – Eu acho que eles foram bons pais, mas estão mortos, eu não posso mudar isso. – Com a voz calma e expressão apática, ele começa a nos responder. – Eve se parecia um pouco com o meu pai, nós tínhamos uma relação normal, acho que ela nunca se importou muito. – Mark encolhe os ombros, ficando ainda mais pequeno. – E tinha a Mae... ela sempre fazia o que queria, não se importava em levar uma bronca depois, tudo perto dela era mais divertido, por isso eu sempre gostei de estar perto dela.
  – E você acha que comigo as coisas também serão divertidas? – Pergunto, inclinando meu corpo para frente, querendo vê-lo melhor entre Valerie.
  – Já estão sendo. – E sendo um gesto extremamente raro de sua parte, Mark sorri, quase que imperceptivelmente. – Eu não me importo de ir pro mundo humano, desde que eu fique perto da Mae.
  Fico por alguns segundos apenas observando o pequeno garotinho de pele pálida, olhos esbranquiçados e cabelos claros, enquanto penso no quão louco tudo isso se tornou. Quando eu imaginaria que esse tipo de coisa aconteceria? Eu realmente pretendo voltar ao mundo humano, e levarei mais do que eu trouxe, e Mark é a prova disso.
  – Então está decidido, todos aqui parecem certos de suas escolhas, apenas vamos fazer isso dar certo amanhã. – A voz de Valerie se torna um pouco mais alta, mas ainda é calma. Apenas está nos fazendo concretizar tudo que planejamos.
  Assinto a suas palavras.
  – Mas me diga uma coisa, Mae, e Angeline, ela não apareceu mais pra você? – Os olhos em castanho-claro de Valerie me tomam outra vez.
  Solto uma curta risada nasalada.
  – Quem matou Angeline foi Eve, ela deveria ser a única a poder ver a alma do morto. Essa Angeline que eu vi, nunca existiu, ela sempre esteve aqui. – Aponto para minha própria cabeça.
  Eu demorei para entender, as coisas eram estranhas, mas tudo é claro como a água agora. Eu estive procurando por uma saída esse tempo todo, eu precisava de ajuda, e então Angeline apareceu como um grande surto do meu desespero. As suas respostas só vinham quando eu estava perdida, eu mesma me guiei.
  – Mas Mark também não via ela? – Valerie olha de mim para o meu pequeno irmão. E meus olhos acompanham os seus, parando sobre a pequena figura encolhida em suas roupas simples.
  – Talvez nossas mentes tenham se encontrado em Setealém, por isso tivemos a mesma alucinação. – Inclino minha cabeça para o lado, sorrindo em direção a Mark, que me olha de forma curiosa.
  – Eu não em importo com isso, contanto que vocês estejam bem para amanhã. Eu só não posso perder essa oportunidade... depois de cinco longos anos nesse lugar, eu mal posso acreditar que finalmente estou indo embora. – Valerie também sorri, abraçando com mais força os joelhos. – Eu vi pessoas que eram a minha salvação em Setealém morrerem. Eu estive sozinha, e nada nunca deu certo até agora.
  – Talvez você só precisasse das pessoas certas. – Digo calmamente. E seus olhos encontram os meus.
  – E vocês são as pessoas certas? – Em seus longos cabelos castanhos, Valerie ergue suas sobrancelhas ao me encarar.
  Não respondo sua pergunta, apenas sorrio, sabendo que isso era o bastante para ela.
  – Como nós vamos embora daqui? – Mark nos surpreende, interrompendo com sua pergunta.
  – Isso é algo que vem me incomodando, Valerie, como vamos sair? Eu me lembro que uma vez voltamos ao mundo humano sem explicação, apenas fomos levadas pra lá, mas era só passar por uma porta que voltávamos para Setealém.
  – Não podemos usar isso. – Valerie responde, seria. – Todo humano pode ser trazido para Setealém assim, mas ele precisa ser completamente humano. Vocês voltaram enquanto ainda estavam assim, mas depois de beber sangue pela primeira vez, o seu corpo já começa a fazer parte desse lugar, e você não pode mais voltar desta maneira. Moradores de Setealém têm a vantagem de fazer essas viagens quando quererem, então naquele dia eu soube o que queria fazer, e foi por ele que eu consegui chegar até vocês no mundo humano. Eu não acho que em nossa situação atual, nós poderíamos fazer como os moradores de Setealém, mas também não conseguimos fazer como os humanos. Apenas vamos tirar dos nossos caminhos todos que estão atrapalhando, e depois veremos como podemos voltar.
  – Tudo bem. – Assinto outra vez, sabendo que nossa condição mudou bastante desde que chegamos aqui.
  Tirando todas as pedras de nosso caminho, isso já nos ajudará a procurar uma solução para voltar com mais tranquilidade.
  – E quanto a Sammy e os outros? Você não os viu mais? – Valerie pergunta, e Mark continua quieto em seu canto, apenas atento a nossa conversa.
  – Sophie e com certeza não farão nada até amanhã, ou suspeitaria, esse é o motivo de ter sido tão fácil pra mim durante esses últimos dias. E Sammy... – Solto o ar de forma pesada – ela anda silenciosa, mas sei que amanhã nos encontraremos de novo. Eu posso sentir isso, ela esteve esperando por esse momento mais do que qualquer um.
  Volto a observar as folhas alaranjadas, sabendo que tudo se consumirá amanhã. E talvez Sammy seja o meu maior problema. Ela trará as contas de nosso passado, e nós finalmente nos encararemos como os mesmos olhos de três anos atrás.
  – Desculpe a demora, eu tive um pequeno problema.
  Toda nossa conversa se encerra definitivamente quanto o homem alto e de cabelos longos, que conhecemos ao fazer nossas entregas para Joe, surge atrás das pedras em que estávamos sentados. De qualquer forma, tudo já está resolvido, não há mais motivos para levar essa nossa conversa adiante.
  – O seu nariz está sangrando. – Mark aponta em direção ao rosto do homem alto, que com rapidez, limpa o sangue que escorria em seu rosto, com o auxílio de sua mão direita. Uma fina linha de sangue suja sua pele, indo em direção à barba malfeita.
  Era estranho o fato de ainda conversarmos com ele, quando fazemos nossas entregas. Isso já durou por alguns dias, e mesmo assim nem sabemos o seu nome, ele nunca nos disse.
  – O que aconteceu? – Pergunto, e o homem sorri.
  – Meu vizinho estava um pouco irritado. – Ele indica com seu dedão, a casa sobre seus ombros.
  Atrás das pedras que estávamos sentados, do outro lado da rua, haviam algumas casas, e uma delas era a do homem alto e de cabelos longos até os ombros.
  – Algumas entregas dele chegaram na minha casa, eu fui devolver. Mas eu acho que ele não gosta muito de mim, porque já fui um humano como vocês. – O homem de pele pálida se escora contra a pedra que Mark estava sentado.
  Seu nariz volta a sangrar, mas ele não se importa.
  – Você é um morador de Setealém agora, por que ele ainda não gosta de você? – Valerie pergunta, olhando por cima de seus ombros.
  – Mesmo que meu cheiro e minha aparência tenham mudado, eu ainda vim do mundo humano e isso não tem como mudar. Eles dizem que estamos tomando o lugar dos deles aqui em Setealém, alguma baboseira como essa. – O homem sorri outra vez, totalmente despreocupado com a sua situação.
  – E você não sente falta do mundo humano?
  O homem de roupas sujas, nega com a cabeça.
  – Eu não pertenço mais ao mundo humano, o que eu me tornei não permite que eu me encaixe lá outra vez. Suas morais e regras, nenhuma delas eu poderia seguir, aqui não há nada disso, eu posso fazer o que eu quiser sem me sentir culpado ou sem parar em uma prisão. – Com os braços cruzados, ele responde, enquanto o sangue de seu nariz suja sua barba malfeita e escorre em direção a sua boca, deixando seus dentes amarelados, com um tom de vermelho vivo. – Quando eu tenho saudades do mundo humano, eu simplesmente vou até lá e fico por algumas noites, mas depois volto para minha casa.
  Minha casa.
  Ele chama Setealém de "minha casa", eu não posso entender isso, mas posso entender seus motivos. O mundo humano realmente não aceita esse lugar, suas morais são fortes e tudo em Setealém é desumano e criminoso, e uma vez que você experimenta viver sem regras, é difícil colocá-las em sua vida outra vez. Quem em Setealém me julgaria pelo que eu fiz no passado? O mundo humano com certeza me condenaria.
  – Lá nós temos que viver como ratos. Passamos nossas vidas no esgoto, escondendo nossa sujeira dos humanos, e quando saímos para superfície, eles gritam de medo e tentam nos matar... Não há lugar para ratos de esgotos no mundo humano, mas Setealém acolhe nossa sujeira.

***

  A noite chegou calma e sorrateira, avisando que faltava pouco para o adeus, que tudo terminaria em poucas horas. Eu quase sinto o ar do mundo humano invadindo meus pulmões.
  Dois dias haviam se passado desde que tive minha última discussão nesse mundo, uma pequena lembrança de como todos odeiam humanos. Eu não deveria estar aqui, todos sabem, mas eu escondi a minha sujeira no mundo humano. Setealém arrancou ela de debaixo do meu tapete e o vento espalhou essa sujeira; eu me senti acolhida em minha perversão.
  As horas estão passando, a minha sujeira está espalhada por cada canto dos dois mundos, mas eu poderia limpá-la amanhã. Eu pegarei a sujeira com meus dedos manchados, a verei ganhar vida enquanto me confronta. Não posso mais fingir que sou limpa, que nada existe, mesmo que o mundo humano exija que eu seja limpa como a água.
  A minha sujeira se tornou vermelha e eu virei um pequeno rato ardiloso. Se eu voltar ao mundo humano com a minha sujeira, todos irão gritar e não haverá lugar para mim, por isso, eu preciso de um longo banho, eu preciso voltar limpa. Não posso mais viver aqui, eu me sinto em uma grande jaula, e mesmo em Setelaém, eu ainda não posso ser quem eu realmente sou.
  Talvez depois de tomar um grande gole de veneno, eu me purifique e morra para que uma nova eu nasça.
  Em meus pés pesados pelo longo dia que tive, Mark e eu voltamos para casa e Valerie seguiu seu caminho, o nosso amanhã seria uma longa caminhada e precisaríamos descansar hoje.
  Ao avistar meu lar, o lugar onde aprendi a tomar como meu, eu conseguia avistar sua alta silhueta escorada na parede rachada do lado de fora. Ele estava me esperando com os olhos intensos e mal-intencionados, os fios de seus cabelos castanhos balançavam com o vento gelado da noite vermelha e suas tatuagens pareciam cintilar na pele pálida, os piercings ganhavam um brilho único e perigoso, um estreito convite para a minha sujeira, e as íris verdes-esbranquiçadas me chamavam, dizendo que eu deveria me aproximar o mais rápido possível de suas roupas escuras e com desenhos estranhos.
  Mark solta minha mão e sai correndo na frente cumprimentando com um breve aceno de cabeça, antes de empurrar a porta de entrada de nossa casa e sumir para dentro.
  Respiro fundo, tentando tomar para mim todo ar que posso nesse momento. Sem pressa, forço meus pés pesados pela calçada, e depois pelo caminho de pedras até a porta de entrada. Paro ao lado de e observo com seriedade seus olhos. Depois, com calma, seguro em sua mão direita, puxando todo seu corpo para que acompanhasse o meu. E assim, nós dois entramos em minha casa, prontos para criarmos nossa última noite juntos em Setealém. O nosso adeus deste mundo.

Capítulo 31

  – Você acha que conseguiria viver longe de Setealém? – Pergunto, enquanto sinto o vento passar por nossos corpos sentados.
  Meus pés balançam no ar enquanto estou na beirada do terraço, no exato ponto onde tive minha queda com Sophie. Do alto do prédio, eu via o nada, o grande e extenso espaço do nada, onde o mato alto tomava posse de toda terra seca do lugar, deixado o aspecto de abandono muito forte, quase engolindo tudo.
  – Por que está me perguntando isso? – Os braços de se apertam com mais força ao redor de minha cintura.
  As pernas longas de estavam ao lado das minhas, também balançando no ar da beirada do terraço. Seus braços me prendiam e minhas costas estavam aconchegadas a seu tronco alto. Seu queixo estava sobre o topo de minha cabeça, repousado entre meus cabelos.
  – Eu só queria saber. Às vezes eu penso que não posso ficar longe do mundo humano, estar aqui é como me sentir presa. – Confesso, sabendo que seus olhos verdes deveriam estar estreitos agora. E se pudesse vê-lo, me olharia com desconfiança.
  – Eu não sei, Mae. Estive em Setealém por toda minha vida, mas se eu tivesse um grande motivo para isso, eu poderia tentar. – Ele responde entre o vento barulhento que bagunçava nossos cabelos misturando as cores no ar.
  – Um grande motivo... – Repito suas palavras de forma baixa, refletindo para mim mesma sua ideia de mudança.
  – Você está estranha hoje, agindo como se estivesse ansiosa por alguma coisa. – Sua voz é calma, mas carregada de ceticismo.
  – É apenas impressão sua. – Viro minha cabeça para poder olhá-lo sobre meus ombros.
  Ofereço a um sorriso, mas ele não retribui, apenas me fita com seus olhos estreitos, assim como eu já imaginava.
  – A única coisa que temos hoje é o nosso encontro. Mas eu estou tranquila a respeito disso. Até vim para o seu lugar favorito em Setealém e estamos aqui em cima juntos, não há nada para se preocupar.
  – MAE!
  Meu nome sendo rasgado pelo vento, impede que me dê qualquer resposta, mas penso que ele não diria nada de qualquer jeito, apenas manteria seu olhar cerrado enquanto pensava sobre o que eu disse.
  Volto a virar meu rosto para frente, e abaixo o olhar, vendo a pequena figura de Mark bem distante de meus pés. Ele estava parado na frente do prédio e nos observava do chão seco.
   afasta seu corpo do meu e me ajuda a sair da beirada do terraço.
  – Eu já estou indo. – Anuncio, e continua quieto, apenas com aquele olhar que muitas das vezes me incomodava. – Você sabe que não posso ficar muito tempo fora de casa, Eve precisa de mim.
  Ainda sem uma resposta de sua parte, me aproximo de seu corpo alto e levo minha mão direita até o seu rosto. Encaro com profundidade seus olhos verdes-esbranquiçados, querendo guardar esse último momento.
  Com o polegar, traço um pequeno caminho pela pele pálida de , até que meu dedo encontre sua boca quase sem cor. Toco o piercing preso no seu lábio inferior, sentindo o quão frio estava o adorno. Seus cabelos balançam com o vento ao nosso redor e alguns fios caiam sobre sua testa, dançando em cima do piercing de sua sobrancelha.
  Aproximo mais meu corpo do seu, e levo meu rosto em direção ao seu, tendo de ficar na ponta dos pés. Meus olhos caem em direção aos seus lábios e encaro a linha fina até que minha boca se junte com a sua.
  As mãos de abraçam minha cintura, me mantendo perto e sua boca corresponde a minha, em um beijo lento e intenso, marcado por todos os sentimentos que vivemos nesses últimos dias. Sua língua quente preenche minha boca, fluindo entre nós o gosto do amargor de algumas horas, como se fosse possível saber o que nos esperaria.
  Seus dedos pressionam contra a pele de minhas costas, deixando meu corpo esmagado contra o seu, guardando por um último momento nosso contato em Setealém. Ele fazia isso tão bem... ah, ele sabia como fazer isso, era como uma maestria de sensações. conhecia cada ponto do meu corpo, por dentro e por fora, ele sabia onde deveria estar e quando fazer isso comigo, era como se sua alma se misturasse a minha, mostrando-me o nosso fim.
  Me afasto de , que lentamente abre seus olhos, me fitando sem emoção, causando arrepios por todo meu corpo. Suas mãos escorregam para longe de minha cintura, restando apenas o vento entre nós.
  – Não se esqueça de me encontrar mais tarde. – Minha voz quase não sai, e sou incapaz de não encarar seus olhos verdes, que marcavam minha pele como se fosse fogo.
  – Para minha surpresa. – Ele sorri de forma decadente, sem mostrar os dentes.
  Dou alguns passos para trás, começando a me afastar.
  – Sim... para sua surpresa. – Lanço para ele minhas últimas palavras, antes de virar meu corpo e sair do terraço, deixando de uma vez por todas.

***

  Depois me juntar a Mark, nós dois fomos encontrar Valerie na loja de Joe, onde ela já escolhia tudo que precisaríamos para a nossa grande escapada. Acabamos pedindo as contas na loja, e Joe, mesmo sem saber, nos desejou muita sorte enquanto mantinha um largo sorriso em seu rosto velho.
  – Acho que deveríamos ir agora. – Valerie, que estava com um grande saco marrom pendurado nas costas, diz.
  Seus pés cobertos por sapatos pretos, estavam parados no corredor de minha casa. Mark estava ao seu lado, apenas observando de perto tudo o que faríamos neste momento.
  – Me espere lá fora, eu já estou indo.
  Entendendo meu pequeno pedido, Valerie assente e caminha pelo corredor até chegar na porta da frente. Mark permanece parado no lugar, enquanto eu caminho até o quarto onde Eve estava.
  Empurro a porta com cuidado, e a imagem de minha irmã deitada na grande cama, exatamente na mesma posição em que esteve durante todos esses dias, preenche minha visão.
  Tentando não fazendo muito barulho, caminho até a cama, colocando meus joelhos para cima do colchão, que afunda com meu peso. Me aproximo de Eve e abraço seu corpo por trás, sentindo o calor de sua pele quente.
  – Eu estou indo agora. Por favor, descanse bem. Quando eu voltar, nós iremos embora. – Sussurro perto de sua orelha e sinto seu corpo tremer em meus braços.
  Por alguns segundos, deito minha cabeça contra suas costas, apertando meu braço direito contra a parte da frente do seu corpo, em um abraço rápido.
  O corpo de Eve continua tremendo, mas ela não diz nada.
  Quando me afasto de minha irmã, a cubro com o lençol escuro que estava jogado na outra ponta do colchão, deixando a cama e em seguida, o quarto.
  Assim que fecho a porta, encontro Mark parado em frente, me olhando com seus grandes olhos esbranquiçados.
  – Cuide de Eve até que eu volte. Tentarei não demorar muito, então pode arrumar suas coisas, tudo bem?
  Mark assente. E com um beijo em sua testa, me despeço de meu pequeno irmão, antes de ir encontrar Valerie, que me esperava do lado de fora da casa, pronta para limpar toda a nossa sujeira de Setealém.

***

  Valerie e eu vagamos uma última vez pelas ruas de Setealém, e observamos com muita atenção cada um dos moradores desse lugar. Andamos em direção às árvores da floresta até que o céu ficasse vermelho, indicando o fim da tarde. Arrastamos o saco marrom pela terra seca, e avistamos alguns animais que andavam perto do rio. Escutamos o silêncio, e abraços do vento gelado que nos guiou até a entrada da caverna, que nos esperava com ansiedade.
  Os ratos haviam saído do esgoto, e agora iriam lutar por seu direito de andar na superfície.
  Valerie me lança um olhar sério, me dizendo através de suas íris em castanho claro, que o momento havia chegado e que precisávamos fazer isso. E com um breve aceno de cabeça da minha parte, ela tem sua permissão para começar a caminhar caverna adentro.
  Algumas memórias me atingem quando o ar gelado do lado de dentro da caverna arrepia todos os pelos de meu corpo, era a mesma sensação de estar aqui como na primeira vez. Os morcegos pendidos no teto pereciam ter dormido por todo esse tempo, cada um deles no mesmo lugar de antes, os insetos ainda se esgueiravam pelo chão áspero de poeiroso.
  Nós duas seguimos a pequena luminosidade que emanava por todas as viradas dentro da caverna, até que chegássemos na entrada principal, um grande espaço aberto e enfeitado por crânios de animais e escritas vermelhas ilegíveis, assim como as pedras pontiagudas nas paredes.
  – Quando esteve aqui na primeira vez, eu não deixei que se aproximasse... agora você pode. Venham até aqui. – A mesma voz, em tom feminino, assim como na primeira vez, diz por detrás da grande rocha ao centro da abertura.
  A sombra da voz se materializa e depois ganha uma forma nítida, revelando a mesma velha senhora que já encontrei na floresta algumas vezes. Ela para ao lado da grande rocha e apoia sua mão direita sobre o cinza sujo, enquanto nos encara, esperando que aceitássemos seu convite.
  Outra vez olho para Valerie, que mesmo tensa, faz um pequeno sinal de cabeça para que fossemos até a velha senhora. Ela joga o saco marrom sobre os ombros, segurando-o mais ajeitadamente, e é a primeira a dar alguns passos em direção à grande rocha. Já consciente de quem essa senhora era, engulo toda minha tensão e começo a acompanhar os passos de Valerie.
  Lado a lado, em meio ao ar denso e gelado da caverna, andamos até os três estreitos degraus que levavam até a rocha e a senhora, que não desgrudou seus olhos enrugados de mim, eles me condenavam, provavelmente imaginando como seria o nosso acerto de contas do qual ela tanto esperou por esses anos.
  A sola de nossos sapatos fazem algum barulho nos três degraus, nos fazendo alcançar a rocha.
  Minha feição é de surpresa ao notar um pequeno buraco cheio de água cristalina, escondido atrás da rocha. Era como um tipo de água única, tão brilhante e reluzente que parecia que toda luz da caverna vinha dela, e não das inúmeras velas espelhadas pelas pedras cinzas.
  – A pessoa que cair nesse buraco será esquecia para sempre, e sua outra versão ressurgirá através destas águas. Uma alma por outra. – A velha senhora arrasta sua voz falha, bem próximo ao meu corpo, eu podia sentir sua presença.
  Me viro de solavanco, encontrando seu corpo a apenas dois passos do meu. Eu não parava de me arrepiar. Estando aqui, de costas para esse buraco, eu podia imaginar todas as piores cenas possíveis.
  Os olhos enrugados da velha vão até o saco que Valerie segurava, deixando sua expressão ainda mais tenebrosa.
  – Vejo que não vão precisar da faca que lhes dei, hoje. Espero que ela tenha sido útil por algum tempo. – Um sorrio sujo e amarelado pinta sua face, e algo dentro de mim me obriga a desviar o olhar. – Eu posso sentir que mais convidados se aproximam, então eu vou assistir, e quando tudo acabar, eu voltarei até você, Mae, temos coisas importantes para resolver hoje.
  Meus olhos, hesitantemente, voltam até a rosto da velha senhora, que continuava sorrindo e me observando como se eu fosse algo valioso.
  Eu não podia dizer nada, não conseguia, apenas fiquei parada em meu lugar, vendo seu corpo desaparecer diante meus olhos em apenas alguns segundos.
  Valerie respira aliviada ao meu lado quando a velha some, e logo joga o saco marrom sobre o chão, fazendo uma pequena quantidade de poeira levantar.
  – Você escutou o que ela disse, eles estão chegando. Precisamos nos preparar. – Valerie começa a vasculhar o saco e retira dele, duas cordas e dois punhais. – Tome. Esconda isso. – Ela me estende um dos punhais, e eu logo o coloco na parte detrás de minhas calças.
  Seu semblante era sério e concentrado.
  – Eu vou ficar aqui atrás. – Valerie aponta para a rocha. – Fique onde você está e faça Sophie vir até aqui, vou tentar amarrar ela.
  – Mas e o ? – Pergunto assim que vejo Valerie fechar o saco marrom e ir para trás da pedra.
  – Você pode dar um jeito nele? – Seus olhos ficam centrados em mim, esperando por minha resposta. Eu apenas assinto, mesmo que não me sentisse muito confiante sobre isso.
  Valerie me dá um leve aceno de cabeça, e depois se agacha atrás da pedra, de modo que seu corpo fica completamente escondido.
  Respiro fundo e olho para frente, observando cada canto da caverna gélida e sombria. Ao fundo, vindo de longe, eu podia escutar alguns passos que aos poucos pareciam se aproximar. Este era o momento, o que tanto esperei por todo o tempo em que estive em Setealém. A minha passagem de ida estava mais perto do que nunca, e eu não poderia deixar que qualquer traço da Mae que chegou até esse mundo, atrapalhasse no que eu deveria fazer hoje.
  Olho discretamente para Valerie, que estava tão concentrada em escutar os passos, que nem se deu conta do meu olhar sobre ela.
  Volto a olhar para frente, e coloco toda a minha atenção sobre a abertura de pedras que dava entrada para onde estávamos. Duas grandes sombras apontam na virada, andando lado a lado, fazendo com que o som dos passos acompanhasse os movimentos refletidos nas paredes da caverna. Todas as velas que rodeavam as pedras pontiagudas, davam forma para quem se aproximava, até que suas imagens fossem reluzidas pelas chamadas que dançavam de um lado para o outro em meio ao ar gélido.
  Os olhos castanhos de Sophie encontram os meus. Uma aura escura os rodeava, e ela nem ao menos piscava, apenas me encara com ânsia, um desejo secreto que ela queria espalhar por essa caverna. Já retomava seu antigo sorriso que havia sido deixado de lado nas últimas semanas. Ele podia se sentir grande agora, achando que me tiraria de Setealém de uma vez, acabando com suas ameaças por um motivo insignificante.
  – Você realmente chegou até aqui. – Sophie diz, com seus lábios pálidos agora pintados em um tom de vermelho vivido que parecia sangue. Seus olhos estreitos não deixavam os meus.
  – Eu não perderia isso por nada. – Sinto os meus ossos tremerem por dentro. Quero olhar para Valerie, mas isso estragaria nossos planos, contudo, posso sentir sua tensão de onde estou, ela se mistura à minha.
  A barra do longo vestido preto de Sophie balança quando sua bota preta encontra o chão em dois passos. permanece em seu lugar, assistindo tudo da entrada. Sophie continua se aproximando de onde estou e automaticamente fecho minhas mãos, tentando evitar levá-las até o punhal escondido no cós de minhas calças.
  Os seus passos criam ecos solitários na caverna, e posso escutar que alguns morcegos se agitam do lado de fora. Sua bota se atrita com as pedrinhas soltas no chão, até que ela estivesse em frente aos três largos degraus que a levariam até mim.
  Engolindo minha tensão, ergo minimamente meu queixo, observando-a com muita atenção. Seus olhos castanhos parecem me dilacerar enquanto ela começa a subir os três degraus largos.
  Sophie estava na minha frente agora, com suas botas firmes no chão, e seus olhos escuros.
  Olho por cima de seus ombros pequenos, encontrando o sorriso de , que perecia ansioso com tudo isso.
  Já sabendo o eu deveria fazer, começo a dar alguns passos para trás, e Sophie os acompanha. Seus olhos estavam nos meus e sua atenção era minha, por isso, ela não foi capaz de perceber Valerie. E esperando pelo momento certo, continuo indo cegamente para trás, até que eu sinta parte de meus pés se penderem no nada, enquanto algumas pedrinhas caiam para dentro do buraco. Eu estava de costas para ele, a beira dele, com metade dos pés para fora.
  Sophie se engrandece quando me vê sem saída, mesmo que ela não saiba que isso faz parte de sua queda.
  Sinto meus ossos tremerem de novo, e olho outra vez sobre os ombros de Sophie, mas agora, em direção a Valerie, que entende meu olhar e rapidamente sai de seu esconderijo, se colocando atrás de Sophie e depois passando um de seus braços ao redor do tronco dela enquanto posiciona o punhal contra o pescoço da garota de olhos escuros, que me encara com fúria.
   se agita em seu lugar, mas Valerie ameaça rasgar a garganta de Sophie se ele se mexer. O garoto hesita, rangendo os dentes, e no final, toma sua decisão, mostrando que realmente não se importa com Sophie, quando começa a correr em nossa direção.
  Valerie passa o punhal pelo pescoço de Sophie, que a empurra, ganhando apenas um corte extenso, mas superficial, em sua pele.
  Envolta de toda sua fúria, Sophie tenta avançar em mim, mas me esquivo para o lado, fugindo de suas mãos e acabando por escorregar nas pequenas pedrinhas no chão da caverna. Meus joelhos vão para o chão, e minhas mãos se cortam nas pedrinhas, tentando evitar que eu me machucasse mais. Meus pés escorregam para dentro do buraco, e meu pé direito toca a água.
  Todos ficam imóveis quando a água do buraco começa a se movimentar de forma agitada. Os olhos de se tornam sério e Sophie sorri diante de mim; Valerie, que estava prestes a impedir de se aproximar, me encara com preocupação em meio a sua respiração ofegante de tensão.
  O silêncio se instala por poucos segundos, até que um par de mãos esverdeadas saiam de dentro da água, segurando em meu tornozelo direto enquanto tenta me arrastar para dentro do buraco.
  Meu interior se desespera enquanto tento me segurar contra o chão áspero, sentindo meus dedos ganharem alguns arranhões.
  Valerie corre para perto de mim, mas envolve a cintura dela com seus braços, a levando para trás. Ela se debate e tenta acertá-lo com o punhal, mas tudo o que consegue, é fazer um pequeno corte na bochecha dele.
  Sophie dá um passo até onde estou, e pisa em minha mão esquerda. Meu rosto se contorce em dor e os par de mãos esverdeadas, que esconde seu corpo através da água cristalina e brilhante, começa a me puxar para dentro do buraco, me molhando até as coxas.
  Sinto minha respiração ficar irregular, meu peito sobe e desce com rapidez, meus ossos tremem e o desespero me engole. Afundando cada vez mais, forço minha mão livre até o cós de minhas calças, na parte detrás, puxando o punhal exasperadamente para poder cravá-lo contra a bota de Sophie. Um grito esganiçado sai de sua boca, e ela retira seu pé de minha mão. Aproveito do momento para agarrar seu tornozelo também, a fazendo cair sentada no chão. Me apoiando em seu corpo, tento sair de dentro do buraco, mas as mãos esverdeadas eram muito fortes. O corpo de Sophie começa a ser arrastado junto com o meu, e todo o desespero que me internalizava, passa para Sophie, que contra sua vontade, começa a nos puxar para fora do buraco.
  Com muito esforço, conseguimos nos livrar do par de mãos e sair do buraco. E sentada à beira do buraco, ergo a barra de minhas calças, vendo a marca dos dedos muito bem desenhados em minha pele, agora avermelhada. Encaro, tensa, a água cristalina que ainda se mexia, e me levanto, me afastando do buraco, mesmo sentindo um pequeno incomodo em meu tornozelo esquerdo.
  Minha respiração era alta e a água pingava de meu corpo. ainda segurava Valerie, e Sophie se levantava lentamente do chão, retirando o punhal cravado em sua bota. Uma pequena poça de sangue fica sobre o chão quando ela começa a andar com pouca dificuldade.
  – O que é isso? – Seus olhos encontram as duas cordas que Valerie deixou atrás da rocha grande. – Pretendiam me amarrar? – Ela solta uma risada nasalada quando pega uma das cordas.
  Suas mãos pequenas e pálidas tocam a corda grossa, e seus olhos escuros observam o sisal por alguns segundos e depois correm até os meus, fervilhando em escuridão.
  – , traga Valerie até aqui. – Sophie dá sua ordem, sem nem ao menos encarar , ela estava concentrada demais em me observar.
  Seus passos sangrentos e com ecos, voltam a me ter como destino, e, outra vez, eu começo a andar cegamente para trás. Sophie estende o punhal banhado por seu sangue, em minha direção, conseguindo me puxar pelo braço de forma rude. A garota de cabelos longos empurra meu corpo para perto do de Valerie, e me força a sentar de costas para ela, enquanto rodeava nossos corpos com a corda de sisal, dando vários nós apertados, que cortavam a pele de nossos braços.
  Eu podia sentir o corpo de Valerie tremer, enquanto sua respiração chiava alto em ruídos de raiva.
  – Ainda sobrou uma corda. – Sophie se agacha para pegar a outra corda que estava jogado ao lado do punhal que Valerie largou no chão, havia a forçado a isso.
  A garota pálida de lábios vividos anda sem pressa até , que terminava de nos amarrar, e passa a corda ao redor de seu pescoço. O garoto arregala os olhos e leva as mãos até o sisal, tentando se livrar da corda, mas Sophie o arrasta para trás, deixando a corda cada vez mais apertada contra sua pele.
   começa a salivar, tentando falar, mas sem sucesso, apenas grunhidos exasperados saiam de sua boca. As pontas de seus dedos começavam a ficar vermelhas contra a corda que ele, a todo custo, tentava puxar para longe de seu pescoço.
  Sophie arrasta ele para perto da rocha, amarrando seu corpo contra a pedra, deixando completamente imóvel.
  – Assim está bem melhor. Eu não preciso mais de você. – Ela diz, dando um passo para trás, admirando seu trabalho feito.
  – O que você pensa que está fazendo? – tenta gritar, mas sua voz falha, e uma pequena quantidade de saliva misturada com sangue, escorre pelos cantos de sua boca.
  – Não precisamos mais fingir, eu sempre soube que seu plano era acabar comigo depois que se livrasse dela. – Sophie aponta o punhal em minha direção. – E você também sempre soube que eu faria o mesmo, não há surpresas aqui, apenas fui mais rápida que você.
  Isso é baixo até mesmo para ela. Eu sabia de seus planos, mas vê-la fazendo isso de perto é ainda mais perturbador, Sophie realmente não se importa com ninguém, ela era como a verdadeira essência de Setealém.
  – Me solte. Eu estou avisando. – Os dentes de rangem, misturados a saliva e sangue. Ele impulsiona seu corpo para frente, mas as cordas estão muito bem amarradas, ele não pode sair.
  – O que fazemos agora? – Sussurro para Valerie, que remexe suas costas contra as minhas.
  – Nada.
  Penso em questioná-la sobre sua resposta, mas Sophie nos manda calar a boca.
  – Não cochichem como ratos. Eu quero que prestem atenção no que vou fazer. Acho que chegou a hora de esclarecermos algumas coisas aqui.
  Ela sorri fechado e encara , levando seu punhal até a parte inferior do queixo dele.
  – Você é ainda mais desprezível do que essas duas, realmente acreditou que matando todos, iria olhar para você. – Ela nega com a cabeça, enquanto solta outra risada nasalada. – Foi difícil fingir por todo esse tempo, e pior ainda, foi difícil aguentar todo o seu desespero. Você é nojento, é como os humanos, carregando toda essa sua necessidade de ser amado por alguém e, por isso, criou essa obsessão ridícula pelo na esperança de que ele te desse o que você queria.
  – Cale a boca, Sophie! – grita, mesmo com dificuldade.
  – Você não está em posição de exigir alguma coisa aqui. – Sophie aperta a ponta do punhal contra o pescoço de , fazendo uma gota grossa de sangue escorrer pela extensão da pele pálida dele. – Você acha que porque transou com alguma vez, ele olharia pra você? Isso é tão patético. – Sophie começa a gargalhar, fazendo sua voz ecoar pela caverna.
  A expressão do era de pura fúria, seu rosto inteiro estava contorcido, e seu corpo tentava a todo custo se livrar das cordas.
  – Nem se você fosse o último morador desse lugar olharia pra você, e sabe por quê? – Ela inclina seu rosto para frente, ficando bem próxima a ele. – Porque você é mais patético e nojento que um humano. O que você tem para oferecer ao além do seu corpo? Vai se vender dessa forma imunda a sua vida toda?
  Meu corpo treme com as palavras de Sophie, me deixando em pura descrença.
  Ela encara profundamente os olhos de , que começam a derramar algumas lágrimas de ódio, enquanto sua respiração ficava alta. A expressão de fúria ia se desmanchando, dando lugar a uma nova expressão no rosto do garoto.
  Angústia.
  Angústia por estar sendo obrigado a escutar tudo isso e não poder fazer nada. Angústia, talvez, porque Sophie mexeu na sua parte dolorosa.
  – Eu sempre estive ao lado do , mesmo quando aquela maldita vadia morreu. E então você apareceu. – Os olhos escuros de Sophie, encontram os meus. – Mas fiquem sabendo que nenhum de vocês terá ele, é meu, sempre será meu. Vou matar cada um de vocês e continuarei ao lado do meu irmão.
  – Do que você está falando, sua maluca? Você não ama a Mae? – Valerie rosna atrás de mim, ela estava tão transtornada quanto qualquer um de nós.
  Sophie não responde nada, apenas sorri com desdém.
  – Eu vou tirar você e aquela vadia da vida do de uma vez. – Sophie aponta o punhal em minha direção, outra vez. – Mas antes eu preciso me livrar de um inseto.
  Os olhos escuros dela ameaçam , antes dela virar o punhal de volta para ele.
  – Morra sabendo que ninguém nunca te amou. – Sophie diz com uma aura extremamente escura em torno de seu corpo e voz.
  Sem piedade esem hesitar, Sophie segura o punhal com as duas mãos e acerta o peito de , apenas uma vez. Os olhos molhados por lágrimas do garoto se arregalam e sua boca se abre, fazendo toda a saliva e o sangue escorrerem para fora, descendo por seu queixo e pescoço machucado, manchando a gola de sua camiseta. O choro de é silenciado e sua respiração descompensada se dissipa pela caverna, até que seu corpo fique imóvel e seus olhos se fechem.
  Sophie dá um enorme sorriso ao assistir morrer. Ela afasta as mãos sujas de sangue do peito dele, deixando o punhal cravado na pele do garoto como uma lembrança.
  – O que você fez, Sophie? – Uma voz alta e grossa rasga a caverna ao meio, ecoando por cada parede pontiaguda.
  Todos se tornam silenciosos e surpresos, e Sophie se vira de solavanco em direção à voz.
  – ? O que você está fazendo aqui? – Ela fica desconcertada por alguns segundos, sorrindo de força nervosa, enquanto limpa as mãos sujas no próprio vestido.
  Os passos de eram pesados, até que ele aparecesse nos três degraus largos. Com os olhos sérios, ele sobe cada um dos degraus e para ao lado da rocha, encarando o corpo morto de .
   leva sua mão até o punhal cravado no peito de , e o puxa para longe da pele morta, fazendo com que uma grande quantidade de sangue escorresse para fora do buraco que se formou no garoto sem vida.
  Os olhos verdes-esbranquiçados de observam a faca suja de sangue por longos segundos, antes de se arrastarem até o rosto de Sophie, a condenando através das íris raivosas.
  – Por que você fez isso, Sophie? – A voz imponente de faz Sophie encolher os ombros e recuar.
  Ela se sente amuada por alguns segundos, mas logo uma expressão séria toma conta de seu rosto.
  – Eu fiz isso por nós dois. – As palavras de Sophie saem altas pela caverna. – Todos eles sempre estragaram a sua vida, , você não percebe?
  O semblante de se franze em descrença.
  – me disse que você gostava da Mae, não foi por isso que veio até aqui? Não queria trazê-la de volta? – pergunta firme, com o semblante pesado.
  – Eu nunca gostei daquela vadia, era tudo mentira. Eu não podia te contar... não naquela época. Mas agora eu posso. – Sophie sorri outra vez, e anda até , segurando o rosto dele entre suas mãos pequenas. – , eu sou sua irmã, estive com você por mais tempo que qualquer um, eu te conheço muito bem, eu sei sobre tudo que você gosta e não gosta. Eu não me importo com o que você faz, apenas saiba que pode contar comigo para qualquer coisa. Eu te amo, , e sou a única que pode te fazer feliz.
  Os meus olhos se arregalam, e meu estômago dá voltas. Eu não podia acreditar nas palavras de Sophie, isso era repulsivo. Esse tempo todo fingindo gostar da Mae, apenas para se livrar de nós duas e ficar com o seu próprio irmão.
  – Mae, você está bem? – Valerie pergunta, e sinto que ela tenta virar seu pescoço para me ver, mas apenas me mantenho quieta, observando a repulsiva cena que acontecia a passos de onde eu estava.
   não responde Sophie, e sim a encara com incredulidade.
  Vendo que não teria uma resposta de seu irmão, Sophie fica na ponta dos pés e aproxima seu rosto do de , até que conseguisse encostar sua boca contra a dele.
  Meu estômago dá mais voltas e sinto que posso passar mal a qualquer momento. Queria poder desviar meus olhos do que vejo agora, mas eu não podia, eles pareciam grudados nessa repulsiva cena. Meus olhos ardem por lágrimas em nojo, e seguro com força contra a barra de minha blusa, enquanto mordo o canto interno de minha boca.
  Sophie continua pressionando sua boca contra a de por mais alguns segundos, pois, em seguida, seu corpo fica mole e sua boca escorrega para longe da dele. O tronco de Sophie pende para trás, e a segura para não sair no chão, e nesse momento eu consigo ver o punhal sujo de sangue enterrado contra a barriga de Sophie. A mão esquerda de segurava parte do punhal, enquanto a direita segurava o corpo de Sophie.
  Mesmo com a cabeça pendida para trás, eu podia ver algumas lágrimas escorrerem dos olhos de Sophie, enquanto algum sangue saia de sua boca.
  – Por que está fazendo isso comigo? – Sophie pergunta com dificuldade, e não responde, apenas começa a levar seu corpo para perto do buraco cheio de água. – Por favor, não! , eu te amo! – Sophie começa a se desesperar quando seu irmão para a beira do buraco.
  Os olhos de encaram Sophie com desprezo.
  – Mas eu não te amo. Adeus, Sophie. – Suas palavras frias a fazem chorar ainda mais.
   solta sua irmã, segurando apenas o punhal. O corpo de Sophie escorrega da lâmina afiada para a água que se mancha com seu sangue, e as mãos esverdeadas logo a rodeiam, puxando-a para baixo enquanto ela grita por socorro.
  A água fica quieta, o corpo de Sophie desapareceu, mas permanece na borda do buraco, encarando-o com atenção. Apenas alguns segundos bastam para que a água cristalina e brilhante volte a se mexer, agora, emergindo o corpo de Sophie outra vez, sem qualquer vestígio de roupas; Era sua versão humana tentando voltar, uma alma pela outra.
  Com avidez e força, chuta a versão humana de Sophie de volta para a água, que é recebida pelas mesmas mãos esverdeadas, levando-a embora também.
  Seus olhos ficam presos na água por mais algum tempo, antes que se vire e comece a andar até onde Valerie e eu estávamos. Ele se agacha à minha frente, sem me encarar, e usa o punhal que ainda segurava para cortar a corda que nos prendia.
  Uma vez que meus braços estão livres, rodeio-os em torno de , puxando-o para um abraço apertado. Ele solta o punhal e retribui meu abraço.
  – Surpresa. – sorri de lado, assim que nos separamos. – Você está bem? – Seus olhos varrem todo meu corpo, observando cada ponto machucado.
  – Eu estou bem, não se preocupe. – Limpo o canto de meus olhos, que ainda ameaçavam derrabar algumas lágrimas.
  – Você demorou muito, um pouco mais e talvez não estivéssemos mais aqui. – Valerie diz assim que se livra das cordas, e se levanta.
   também se levanta e me ajuda a fazer o mesmo.
  – Eu apenas fiz o que combinamos. Nosso plano deu certo, não deu? – arqueia suas sobrancelhas, assumindo sua expressão impassível.
  – Tinha que dar, nós três repassamos esse plano muitas vezes na última semana, ele não podia dar errado. – Valerie suspira, passando a mão por sua testa e retirando a fina camada de suor.
  – Não deu. – diz, ainda impassível, e Valerie assente.
  – Eu estou indo na frente, não demorem. Vou esperar do lado de fora. – Valerie avisa, antes de começar a andar em direção aos três degraus largos e depois para fora de onde estávamos.
  Quando fico sozinha com , volto a encará-lo.
  – O que foi? Por que está com essa cara? – Ele pergunta, me apertando mais em seus braços.
  – Você sabia que sua irmã gostava de você?
  A mandíbula de se aperta, e sua expressão é séria.
  – Não.
  Tento encontrar em seus olhos a verdade, e ele parece sincero agora.
  – Você vai sentir falta dela?
   respira fundo com minha pergunta, provavelmente irritado.
  Seus olhos encontram os meus, deixando aberto para mim qualquer vislumbra que eu queria vasculhar em seu interior.
  – Tudo vai ficar bem enquanto eu estiver com você, Mae.
  Quase seguro a respiração com suas palavras.
  Seus olhos continuam abertos para mim e seu rosto se aproxima lentamente do meu. sela nossos lábios de forma suave, sem qualquer intenção que não fosse transparecer a verdade.
  – Você foi a melhor escolha que eu fiz em Setealém. – Sussurro contra seus lábios e nossas testas juntas. sorri fechado e eu também.
  Ele me abraça outra vez, passando suavemente suas mãos contra a minhas costas. Em seguida, nos separamos e ele beija o topo de minha cabeça, antes de pegar em minha mão e começar a me guiar para longe. E ao passarmos ao lado do corpo morto de , encara o amigo com pesar, carregando consigo a perda de alguém que o amava, mesmo que de forma errada.
  – Vejo que conseguiu, Mae.
  Meus passos cessam e meu corpo paralisa no lugar, se arrepiando por inteiro ao escutar aquela voz. Eu havia me esquecido dela.
   aperta minha mão, tentando me acalmar e depois nos vira. Aquela criatura de cabelos escuros tapando seu rosto, pele suja e roupas rasgadas, estava sentada em cima da grande rocha.
  Eu nunca a vi falando comigo nesta forma horripilante, apenas como a velha senhora da floresta, uma das almas perdidas.
  – Sammy... veio resolver seus problemas comigo? – Pergunto, tentando esconder toda a minha tensão.
  – Eu disse que assistiria tudo, e que quando acabasse, eu voltaria. Mas sabe, eu quero que isso seja grande, um momento que nenhuma de nós esqueçamos, Mae. Olhe para você agora, está machucada. – Sammy cruza suas pernas em seu vestido branco sujo de preto. – Por isso, eu farei algo muito melhor. Deixarei que você viva sua vida, crie seus sonhos e se esqueça de mim. E quando isso acontecer, eu voltarei. Voltarei e roubarei de você tudo o que você roubou de mim, assim será mais doloroso pra você e mais prazeroso para mim.
  Eu não podia ver seu rosto através do cabelo sujo que o escondia, mas sabia que ela sorria.
  – Use esse buraco para voltar ao mundo humano, eu já preparei tudo. Seja feliz e espere por mim, Mae. – Suas últimas palavras ecoam pela caverna, balançando as chamas acessas das velas espalhadas, enquanto sua imagem desaparece igual uma grande ilusão, bem diante aos meus olhos.

***

  Durante todo o caminho de volta para minha casa de Setealém, eu só consegui pensar em tudo que Sammy me disse, e como sua vingança será exatamente da mesma maneira que eu fiz com ela. Talvez eu possa viver com isso, eu não sei.
  – Você deixou suas coisas aqui, não deixou? – Pergunto para Valerie assim que paramos em frente à porta de madeira da minha casa.
  Ela apenas assente.
  , que estava de mãos dados comigo, toma a frente para abrir a porta, mas é interrompido quando ela se abre primeiro, nos revelando a imagem de Mark.
  – Eu vi da janela vocês chegando. – O pequeno garotinho de cabelos claros, diz.
  – Nós conseguimos. – Sorrio para ele, que continua apático.
  Dou uma boa olhada em Mark, percebendo que toda a sua roupa estava molhada e seus pés descalços.
  – Por que você está molhado? – Pergunto.
  Mark, ainda segurando a maçaneta da porta, abre ela totalmente, nos dando mais espaço.
  – Vem comigo. – Ele pede, me encarando.
  Olho com o cenho franzido para e Valerie, antes de soltar a mão de meu namorado e ir com Mark.
  Nós seguimos todas as suas pegadas molhadas que iam do corredor até o quarto onde Eve ficava. A porta estava quebrada, e uma das cadeiras da cozinha parecia ter sido usada para isso. Olho atenta para Mark, que anda em direção ao banheiro do quarto. Sigo seus passos molhados, notando que não havia ninguém sobre a cama. Paro em frente a porta do banheiro, vendo que a banheira ao fundo transbordava, molhando cada azulejo.
  Escuto os passos de Valerie e entrando no quarto. Mark para ao lado da banheira e me encara, esperando que eu me aproxime. Seguro com força na barra de minha blusa e sinto meu coração acelerar, as batidas de meu coração martelavam alto em meus ouvidos quando dou o primeiro passo para dentro do banheiro. Pelo chão de azulejos molhados, vou me aproximando da banheira, até que eu consiga ver um grande borrão no meio de toda água que transbordava.
  – Você pediu pra cuidar dela. Eu tentei. Vim ver como ela estava, mas ela havia trancado a porta, então eu usei a cadeira pra abrir. Mas quando eu cheguei no banheiro, ela já estava morta. – Mark explica tudo, com a expressão apática de alguém que não sofreu nenhum pouco com isso.
  Me ajoelho na borda da banheira, não me importando em me molhar mais. Olho por cima dos ombros, encontrando e Valerie parados na entrada do banheiro, ambos me encarando com expressões sérias.
  Volto a virar meu rosto para frente, e meus olhos vagam por pela água que transbordavam, desfocando ainda mais o borrão que estava deitado no fundo da banheira.
  – Mark, vamos esperar lá fora, vem. – A voz de Valerie chama Mark, que com um último olhar direcionado a mim, sai do banheiro.
  Quando escuto os passos deles pelo quarto e depois pelo corredor, deixo que as lágrimas que segurei até agora, escorram livremente.
  Toco com receio a água que cobria minha irmã.
  – Então essa foi a sua escolha?
  Espero silenciosamente por uma resposta que nunca vou ter. E acabo por me sentar sobre a água do chão, ao lado da banheira. Levo minhas mãos até os joelhos, vendo cada uma das minhas lágrimas pingarem sobre minhas pernas.
  Eve nunca quis ser como os moradores de Setealém, mais do que ninguém, ela odiava isso. Minha irmã odiava como esse lugar trazia tudo que ela queria esquecer sobre mim, o lugar que a forçava a fazer coisas que ela abominava. E se um dia Eve concordou em fazê-las, foi por seu desespero em me tirar de Setealém, mas a verdade é que minha irmã nunca foi como eu, e ela não podia ser, seu desprezo por esse lugar era tão grande que ela preferiu tirar a própria vida do que fazer parte disso, e sei que tenho grande peso em sua decisão, pois minha irmã sofria ao me ver dessa maneira, mesmo que esse fosse o único jeito de nos tirar daqui.
  – Não chore, querida Mae.
  Viro exasperada para o lado, encontrando o rosto dela, minha outra versão, próximo ao meu. Seu corpo estava agachado, perto do vaso sanitário.
  – O que faz aqui? Você não deveria desaparecer para sempre agora que eu consegui? – Pergunto, enquanto seco os meus olhos.
  – Eu apenas vim me despedir. – Ela sorri.
  – Despedir?
  – Sim. Também vim te parabenizar por ter conseguido.
  – Não deveria estar com raiva de mim ou coisa do tipo? – A encaro com incerteza, em meio a um soluço de choro.
  – Por que eu estaria? Foi como eu disse, você tinha uma chance de continuar viva, e caso não conseguisse, eu não te daria outra chance, eu voltaria. Mas você conseguiu, então as coisas são como são. – Minha versão de Setealém tomba a cabeça para o lado. – Nós somos como uma só, Mae. Compartilhamos muitas coisas, por isso, eu vou embora e esperarei até o dia em que você se juntará a mim.
  Eu tentava enxergar através de seu sorriso, mas ela não parecia querer me fazer mal.
  – Antes de ir eu preciso te contar algo muito importante... eu escutei tudo que Sammy disse pra você. – Seus olhos se estreitam, assim como costumava fazer. – Em Setealém nós também temos algumas histórias, e há muito tempo eu escutei uma, era sobre um anjo e um demônio, Mae. Se você os encontrar, poderá tirar Sammy de uma vez por todas da sua vida. Mas tome cuidado, porque se o diabo existe, ele com certeza vive no Sanatório Waverly Hills.

Capítulo 32

  – Então você está indo agora? – Mesmo que Valerie tente esconder, eu podia ver em seus olhos uma pitada de tristeza.
  – Sim. Você sabe que eu preciso ir. – Levo minha mão esquerda até seu ombro, dando um leve aperto.
  – Eu estarei rodando por aí. – Valerie suspira. – Passei tanto tempo presa naquele lugar, que agora quero ver tudo que perdi por aqui. – Ela sorri fechado, minimamente.
  O grande trem atrás de mim, apita, anunciando que logo partiria. Olho para cima, contemplando a bela noite estrelada e fria que se estendia por nossas cabeças.
  – Você vai mesmo fazer isso, Mae?
  As palavras de Valerie me fazem olhá-la outra vez. Ela estava com uma das mãos outro braço, enquanto me encarava com preocupação.
  – Não vou deixar Sammy estragar minha vida justamente agora que eu consegui voltar. Eu vou fazer isso, Valerie. – Respondo, séria e convicta.
  Valerie suspira profundamente.
  – Se alguma coisa acontecer, me ligue e eu vou te encontrar, tudo bem? – Seus olhos preocupados me encaram, e eu assinto, tentando tranquilizá-la.
  Eu realmente espero que Valerie possa ser um pouco mais feliz, ela não deveria se preocupar comigo. Nós retornamos ao mundo humano, e nem ao menos podemos procurar nossos familiares, que pensam que fomos mortas pelo assassino de Hollow Grow, já que era isso que a polícia falava todas as vezes que alguém desaparecia misteriosamente, assim como foi quando perdi meu ex-namorado. A polícia do mundo humano tinha conhecimento de Setealém, mas não podia abrir essa informação ou seria um caos, então o assassino de Hollow Grow foi criado como álibi. Valerie já sofre por isso, por ter se tornado uma vítima desse "assassino", sem direito a ir atrás de sua família, então ela não deveria se preocupar comigo.
  – Nós precisamos ir agora, o trem já vai partir. – A voz grave e rouca diz atrás de mim.
  Olho por cima dos ombros, encontrando parada, vestindo roupas de meu mundo, todas na cor preta; uma blusa de gola alta, calças-jeans e botas de mesma cor. Suas tatuagens estavam cobertas, apenas os seus piercings eram visíveis. Seus cabelos estavam despenteados como sempre, e sua pele tinha mais cor, talvez porque tenha vindo para o mundo humano comigo. Seus olhos ganharam um tom único de verde, sem manchas brancas, mesmo que ele sempre fosse um morador de Setealém.
  Aceno para ele, que pega de minha mão direita a mala que eu segurava.
  – Eu acho que vou indo. – Seguro minhas mãos na frente do vestido de mangas longas, que ia até os meus joelhos cobrindo todos os meus machucados que ainda precisavam cicatrizar.
  Valerie solta outro suspiro e se aproxima de mim, me envolvendo em um abraço. Seu suéter azul era macio contra o meu rosto assim que apoio meu queixo em seu ombro.
  – Se cuide. – Ela pede, quando se afasta, mantendo as mãos em meus ombros.
  – Você também. – Sorrio para aquela que foi minha amiga nos piores dias de minha vida. – Nós ainda vamos nos encontrar, não é uma despedida.
  Seguro na mão de e sorrio para Valerie, que permanece parada nos vendo partir.
  Caminho até o trem com , que entrega o meu bilhete ao bilheteiro. Ele nos dá passagem assim que o trem apita de novo, enquanto uma grande quantidade de fumaça saia da máquina, fazendo meu vestido balançar.
  Juntos, entramos no trem, e me guia pelo carpete vermelho preso ao chão; B24, B25, B26, B27, B28 e B29, onde ficaríamos. Mark já no esperava sentado no assento B24.
  – Como se sente? Feliz? – Pergunto para meu pequeno irmão, vestido em um macacão preto e uma blusa de gola na cor branca.
  Me sento no assento B25 e ao meu lado, na B26.
  Mark acena repetidas vezes com a cabeça, voltando sua atenção para a janela do trem, que começava a se movimentar. Para ele, tudo no mundo humano era novo e fascinante.
  Sorrio para o garotinho de costas para mim e passo a mão por seus cabelos lisos e loiros, que ganharam um tom mais escuro, assim como seus olhos e pele.
  Percebo, ao lado de Mark, um pequeno recorte de jornal, o mesmo que eu havia trazido comigo, mas que meu irmão pediu para ver. Sutilmente, pego o recorte de jornal largado no banco de Mark, e encaro com seriedade a foto estampada nele; Ellinora e , com seus três filhos.
  Assim que voltei ao mundo humano, segui todas as instruções de minha versão de Setealém, e acabei por chegar em Ellinora e , e sua fascinante história de superação, pelo menos era assim que o mundo sabia sobre eles. Mae me contou toda a verdade, cada mínimo detalhe de suas histórias e do que eles eram. Talvez eu estivesse me envolvendo em um grande problema indo atrás deles, mas pelo que Mae me contou, eles fazem a limpeza desse nosso mundo, eliminando toda e qualquer tipo de criatura ou pessoa ruim. Talvez eles me ajudem com Sammy.
  E pensar que algum tempo atrás eu estava assistindo a história desses dois. Eles com certeza criaram um império, sua história até mesmo foi parar em um cinema, mas de forma mentirosa, é claro. Eles são grandes, são conhecidos, mas escondem toda a verdade, apenas aqueles que os conhecem como são, são os únicos capazes de irem atrás de seus serviços. Cinco anos no comando do Sanatório Waverly Hills, com certeza eles estão no topo das criaturas sobrenaturais.
  Se há uma chance de sumir com Sammy para sempre, mesmo que eu precise procurar por um anjo e um demônio, eu farei isso. Tenho grandes planos, minha vida com o meu e com Mark não pode ser ameaçada.
  – O que foi? Por que está olhando de forma estranha pra esse jornal? – A voz de me desperta, fazendo o barulho do trem em movimento, vir para primeiro plano.
  Seus olhos verdes me observam, e quase sorrio por isso.
  – Nada, só estava vendo como o marido de Ellinora se parece com você, não acha? – Inclino minha cabeça para o lado.
   me encara com julgamento, e tento não rir.
  Deixo o recorte de jornal sobre meu colo, e seguro no braço direito de :
  – Não se preocupe, eu estou bem apenas com você. – Digo e fecho os olhos, encostando minha cabeça contra seu braço.
  Alguns segundos bastam para que eu sinta uma respiração quente contra meu rosto, e logo depois, lábios contra os meus. Abro os olhos, dando de vista com os cabelos de caindo para baixo, com a maneira que ele se inclinou para me beijar.
  Não posso conter meu sorriso e deixo que meu namorado vislumbre ele. E ganho em resposta um lindo sorriso adornando por um provocante piercing ao canto de sua boca.
  Espio Mark, que ainda mantinha sua atenção na janela ao lado de seu assento, atento a todas as paisagens que passavam por nós. coloca seu braço ao redor dos meus ombros, me trazendo para mais perto, e assim seguiríamos nossa viagem.
  Percebo quando uma mulher em um uniforme azul, aparece na entrada do corredor do trem, ela junta suas mãos cordialmente e sorri:
  – Trem com destino final para Hazelhills.

BÔNUS (RELATOS)

  Como um pequeno bônus especial pra vocês, eu colhi algumas experiências sobrenaturais (reais) de amigas e leitoras, pra dar mais veracidade a fic de Setealém, afinal, é uma lenda e muitas pessoas afirmam que realmente já visitaram esse mundo paralelo.

***

  HELENA:
  "Hoje aconteceu uma coisa muito estranha comigo...
  Peguei o ônibus errado pra ir pra faculdade e acabei em uma cidade que eu nunca tinha ido antes, mas que sabia que tinha o apelido de "trevas" porque ficava bem longe, a última parada. Eu fiquei desesperada né, não conhecia o lugar. Comecei a mandar vários "me liga" pros meus pais, já que não tinha crédito ou internet, mas o pior era que nenhum deles me retornava, e isso foi me deixando cada vez mais desesperada, eu estava cada vez mais longe de casa. E por estar desesperada e quase chorando, achando que nunca mais ia voltar pra casa, acabei indo conversar com uma menina que estava sentada no banco da frente, ela parecia ser da minha idade, e foi bem gentil comigo, dizendo que poderia me acompanhar até a minha cidade porque fazia parte do caminho que ela pegava pra ir trabalhar. No final, estávamos nós duas em frente a uma estação de trem, no meio da chuva em um dia bem feio.
  Geralmente eu só ando com meu passe escolar, mas dessa vez eu tinha dinheiro (ainda bem), então fui comprar o meu bilhete pro trem. Eu fiquei em frente a uma espécie de parede trançada de madeira, onde eu só conseguia ver a sombra da pessoa que vendia os bilhetes, e pela silhueta, eu tenho certeza que era um homem. Ele ficou parado do outro lado, e mesmo eu falando que queria um bilhete, ele não fazia nada, apenas ali parado me olhando. Depois de uns minutos, ele finalmente me vendeu um bilhete, e eu sai foi bem apresada dali. E enquanto eu esperava o trem com a menina que me ajudou, ela não parava de me olhar, e dentro do trem foi a mesma coisa, ela me olhava e depois escrevia alguma coisa no celular (o caminho todo). Quando finalmente chegou na minha cidade, eu agradeci a menina pela ajuda e praticamente corri pra fora do trem.
  Esse é um dia que eu nunca mais quero repetir na minha vida, porque eu acho que fui pra Setealém."

***

  EDUARDA:
  "Nesse meu sonho eu estava em uma sala de hospital, a sala estava escura e cheia de brinquedos de crianças, mas essa sala do nada virou um corredor (mas nem ferrando que eu andei por aquela merda não), aí eu fui sair de lá, e por um milagre tinha uma porta e ela estava meio aberta. Quando eu cheguei perto da maçaneta, a porta se fechou com tudo, e era como se tivesse trancada e não abria de jeito nenhum, aí eu comecei a gritar, e depois de um tempo a secretária do hospital abre a porta e eu pergunto se ela tinha sido trancada, aí o que ela me responde? Que a merda da porta estava aberta. Depois disso eu fui parar em uma sala de espera com toda a minha família lá (só não estava a minha mãe e minha irmã, elas estavam em outra sala, do lado), aí aparece uma mulher e começa a tirar foto do hospital inteiro, ela tirou até foto minha (eu estava sentada nas cadeiras de espera), essa mulher era tipo a caça–fantasmas. Depois de um tempo, aparece minha mãe, minha irmã e essa mulher segurando uma foto. E, meu, quando eu vejo essa foto, era a foto que ela tirou de mim: eu estava na mesma posição da hora que ela tirou, sentada, meio inclinada pro lado com a cabeça meio tombada, como se tivesse escorando em alguém, e adivinhem... eu estava, do meu lado tinha uma menina com roupa meio antiga, com aqueles sapatos de bonecas, na mesma posição que eu, ela estava escorada em mim e eu nela.
  Depois disso eu acordei, mas sabe aquele momento em que você acorda e tá meio dormindo, então, foi nesse momento em que eu "voltei" pro sonho, só que eu estava no meio da rua, a menina aparece e segura a minha mão e fala "eu quero ser sua amiga", aí eu acordo de vez."


  "Vou contar um negócio que aconteceu comigo no começo desse ano.
  Eu estava de boas esperando o eclipse acontecer, e enquanto eu esperava, estava assistindo supernatural (detalhe, eu estava no quintal de casa com ninguém por perto, estava praticamente todo mundo dormindo, só meu pai que estava na sala). Aí né, o episódio era de uma caça a um demônio lá, e como vocês devem saber, quando eles aparecem as luzes piscam e essas coisas, tudo bem até o episódio acabar. O episódio acabou e eu fechei o notebook e fui ver a lua pelo telescópio, e quando eu abaixei a cabeça pra olhar a lua eu tive a impressão de ter visto algo, já tive meu primeiro infarto aí. Eu fiquei olhando pra cozinha pra ver se tinha alguém, e meu, do nada mesmo as luzes começaram a piscar, mas assim, todas as luzes de fora, eu não sabia se corria ou se deixava me levarem ali mesmo."


  "Eu já ouvi vozes também, eu pensei que era a minha irmã cantando, porque não dava pra entender nada e era um monte de coisa falando, aí eu vou no quarto dela e ela tá lá de boa.
  Não era a minha irmã..."

***

  ASCHLEY:
  "Mas resumindo, eu estava acessando o youtube pelo pc no meu quarto, vendo um vídeo, e no vídeo falava sobre o maior medo dele (youtuber) desde a época que morava em outro país, aí ok. Ele (youtuber) fala das premonições que teve na época do caso da Madeleine McCann, e mostra até uma foto dela, e a garota é lindinha, mas tem algo nela que me deixa sempre tensa. Assim que terminei de ver o vídeo, fui pesquisar mais detalhadamente sobre ela: fotos, pistas, jornais, etc., e do nada, a porta da frente fez um barulho muito alto, e quando eu olhei, estava aberta, como se alguém tivesse aberto a base do chute mesmo. Eu imaginei que fossem meus pais, então nem levantei da cadeira, continuei no pc (da porta do meu quarto dá pra ver um pouco a porta da frente). Só que ninguém apareceu e ninguém fechou, então eu levantei e fui até a porta, e chegando lá eu chamei meus pais e ninguém respondeu, e já estava de noite, tudo silencioso, então eu liguei a lanterna do celular e fui ver nas laterais da casa onde tem uns minis–corredores, e não tinha absolutamente nada. Quando entrei novamente, ouvi as vozes dos meus pais, eles estavam conversando tranquilamente na área de serviço, e acabei deixando isso pra lá, porém, até hoje fico intrigada.
  Depois de algum tempo, esse caso (Madeleine McCann) não me assustava mais. E eu fui visitar uma amiga minha já que fazia meses que não nos víamos desde que ela foi morar em outra cidade. Estávamos no calçadão público da cidade, e ele estava vazio, e mais uma amiga nossa estava com a gente também. Eu estava com internet no celular e mostrei o vídeo a elas, e assim que acabou, demorou mais ou menos uns 10 segundos, e um cara passa de moto encarando a gente, já que aqui é uma cidade pequena então conhecemos quem vem de fora, e esse era o caso, mas ele não passou direto, e foi dando voltas pelo calçadão, cada vez mais rápido e barulhento. A casa mais próxima de uma de nós, era só atravessar o calçadão, mais ou menos uns 20 passos. Corremos até lá, e antes de chegar, o cara acelerou mais ainda como se quisesse nos matar, mas quando chegamos, trancamos o portão, a moto meio que quis derrapar e ele foi embora.
  Depois disso nunca mais pesquisei sobre ela (Madeleine McCann), porque sempre algo estranho acontece"


  "Eu estava tentando dormir depois de falhar ao tentar madrugar. Aí às 3h15 meu pc estranhamente liga, mas ELE TAVA TOTALMENTE DESLIGADO. E às 3h30 desligou sozinho. E depois disso eu dormi com a luz ligada."

***

  ELLIE:
  "Olha que negócio estranho, eu estava na igreja, IGREJA, com minha mãe e meus irmãos, só que eu não estava muito a fim de ficar lá dentro, e peguei uma cadeira e fui lá pra fora, acho que era umas nove da noite, e beleza. De repente eu comecei a olhar pro canto da rua (onde era por lá mesmo que eu ia passar pra ir pra casa), e perto do poste tinha uma coisa escura. Gente, eu fechei meus olhos e abri de novo pra ver se era real, só que era a própria morte ali. Entrei pra igreja na hora e depois contei pra mamãe, e quando a gente saiu da igreja pra vir embora não tinha nada lá.
  Moral da história: quando vocês forem pra igreja, fiquem dentro da igreja."

***

  YASMIN:
  "Sonho: eu e mais alguns amigos estávamos na casa de uma moça procurando alguma coisa que deixamos cair. E como eu estava apertada pra ir no banheiro, eu perguntei pra moça lá se eu podia ir no banheiro e ela respondeu que eu podia. Aí eu fui no banheiro, mas quando eu voltei, eu não estava vendo mais ninguém, eu achei que o pessoal havia saído, então eu caminhei em direção a saída também, e quando eu olhei, eu fiquei um pouco assustada porque parecia que tinha tido um apocalipse. Então eu comecei a andar sem rumo, até que eu vejo um homem parado na rua, então eu perguntei "onde eu estou?" e ele me respondeu "não se faça de desentendida, você sabe bem onde estamos", aí eu lembrei sobre as histórias sobre Setealém, mas antes de eu falar alguma coisa, eu senti uma pancada forte na cabeça e ouvi uma mulher falando que não era pra eu estar lá, ainda. Depois disso eu voltei pro mundo normal de novo."

***

  RAQUEL:
  "No sonho que eu tive, eu estava no meu quarto, e tinham umas pessoas orando ali, só que ninguém conseguia me ver e nem ver outra garota que estava comigo né. Ela estava de vestido branco e de cabeça baixa, aí eu estranhei e fui até ela né, e quando eu cheguei na frente dela, ela levantou o rosto e estava todo ensanguentado, menina. Aí ela tentava me agarrar e eu saia correndo. Eu também desci a escada correndo, e ela estava vindo atrás de mim, e quando eu cheguei muito perto da porta pra poder sair de casa e pedir ajuda, ela me puxou pelo pé, e só sei que alguma coisa ela fez, porque eu senti uma dor muito forte no peito e acordei. O mais assustador é que quando eu acordei, eu tive uma paralisia do sono e então fiquei super assustada né, e dizem que na paralisia do sono você pode ter alucinações. Eu não sei o que se era alucinação mesmo, mas eu senti como se fossem muitas mãos passando pelo meu rosto e corpo, sabe?! Eu fiquei assustadíssima, e quando eu consegui voltar a si e me mexer, eu só sabia chorar.
  Foi terrível."


  "Eu estava em casa e minha mãe tinha saído pra trabalhar. Eu acordei e liguei a tv do quarto, e então fui descer pra fazer meu café, mas quando eu estava no meio da escada eu percebi que tudo ficou em silêncio, e quando eu subi de volta, a televisão estava desligada. Eu liguei de novo e fui descer, e no momento que eu dei de costas a tv desligou novamente. Estava tudo em silêncio e eu ouvi uma respiração muito mais alta que a minha, véi, nisso eu fiquei super assustada e desci pra a sala né, desisti até de tomar café e fiquei sentada assistindo tv e morrendo de medo. Eu estava com sono e com muito medo de dormir, eu me sentia observada, e sempre que eu estava quase adormecendo eu ouvia uma respiração forte. Eu fiquei muito alerta e assistindo tv, e o auge foi quando eu estava quieta e mais calma, mas então, o meu vidro de perfume se moveu sozinho e caiu no chão, mas eu não tinha colocado ele na ponta da estante, não coloquei ele ali. Puts, naquele momento eu sai correndo, menina, e eu não fiquei em casa pelo resto do dia. Eu sempre senti medo da minha casa e sempre ouvi essa merda dessa respiração, mas depois de um tempo parou, apesar de que tenho medo disso voltar a acontecer até hoje."

***

  BIA:
  "Eu morava em uma casa bem estranha, sabe. Ela a noite era bem sinistra, mano, o ambiente ficava pesado.
  Eu era sempre a primeira da casa a acordar e era bem cedinho, eu dormia no quarto de mainha (medo de dormir sozinha) e ia me vestir no meu quarto. E pra ir pro meu quarto tinha que passar pelo corredor que era de frente a sala, mas eu sempre via uma criança sentada no sofá, e nunca via o rosto dela, ela tinha uma luz branca ao redor, sabe, e às vezes ela chorava. Mas só eu via isso, mano, ninguém nunca viu essa criança e nem escutado nenhum choro. E toda vez que eu ia abrir o portão de casa pro meu pai que chegava do trabalho (a noite), eu via uns vultos na garagem da casa (alguns eram brancos) e era sempre em frente a janela da sala, e sempre eram homens por causa do formato do corpo.
  A casa era muito estranha, ainda bem que me mudei."

***

  ELLY:
  "Um dia eu e minha família (por parte de pai) estávamos reunidos, contando coisas estranhas e sobrenaturais que aconteceram com a gente, era algo até comum entre nós, e no meio disso meu pai se pronunciou. Ele começou a contar algo extremamente bizarro. Quando criança, a mãe dele (que no caso é minha avó paterna) era costureira (o que ela é até hoje) e quando terminava os trabalhos de costura, ela colocava tudo em uma bolsa grande e ia caminhando até a casa de sua patroa pra entregar tudo prontinho, e um dia, ela levou um de seus filhos (irmão do meu pai). Meu pai estava fazendo alguma coisa na casa, ele estava sozinho, depois ele foi pra a cozinha e encontrou o seu irmão que tinha saído com a minha avó. O irmão do meu pai estava mexendo nas panelas, como se procurasse alguma coisa nelas. Meu pai disse "o que você está fazendo?", e ele respondeu com um olhar estranho "estou procurando algo para comer", e continuou olhando pro meu pai. Meu pai não deu muita importância e saiu pra ficar em frente da casa, mas algo assustou ele, minha avó estava voltando para casa, com o meu tio do lado dela. Meu pai pensou "está confuso, ele tinha saído com ela antes, mas acabei de ver ele na cozinha, e agora aqui fora". Meu pai assustado, perguntou pro meu tio "você não estava na cozinha?", e ele respondeu "não, eu sai com a nossa mãe".
  Obs: faz algum tempo que meu pai me contou isso, então eu não lembro tudo totalmente detalhado, mas contei o que eu lembro."


  "Eu tenho dois irmãos, e os dois sempre viram coisas assombrosas dentro de casa (incluindo eu). Um deles durante a noite, via crianças vestidas de branco, com aqueles vestidos bem de fantasmas mesmo. Essas crianças corriam pela casa, ficavam rindo, brincando e fazendo barulhos. Ele também ouvia fortes pancadas vindo da cozinha. Mas o assombroso é, só ele via. Ele já sentiu alguém puxar seu pé enquanto ele dormia, e na hora, começou a orar, se cobriu todo e foi dormir. O outro, um dia estava na rua deserta com um amigo dele, quando eles viram uma pessoa extremamente alta, como se tivesse em cima de pernas de paus. Essa pessoa estava dos pés à cabeça vestido de branco e com um capuz, seus braços estavam cruzados, com um punho encostando em cada ombro. A coisa era tão veloz que passou correndo por eles sumindo rápida e misteriosamente por eles.


  "Eu, minha mãe e minha avó dormíamos no mesmo quarto. Nosso quarto era o primeiro, e na frente dele ficava a área da frente, tipo um hall, e nesse canto ficavam manequins (minha mãe vendia roupa). Em um dia, começamos a ouvir barulhos, como se os manequins estivessem caindo, sendo arrastados ou batucados. Nós perguntamos "quem é?", mas ninguém respondia e os barulhos paravam, passou 5 dias assim, e no último dia, os basculantes da janela se abriram, fazendo um barulho muito alto. Minha mãe ficou muito assustada, e no final, todos dormimos na mesma cama, morrendo de medo. Outro dia, eu estava quase dormindo, quando eu senti e escutei alguém se curvando na minha frente e sussurrando algo incoerente no meu ouvido. Eu fiquei assustada, mas por via das dúvidas, eu perguntei se tinha sido minha avó, e ela disse que não. Fui dormir com uma sensação estranha, como se alguém tivesse me observando. No outro dia, eu e minha avó comentamos sobre isso, e ela me falou que depois de eu perguntar se ela tinha falado comigo, ela começou a sentir como se alguém estivesse no quarto nos observando."


  "Meu avô, disse que um dia estava deitado em uma rede, quando sentiu uma mulher deitando por cima dele, pensando que era a minha avó, ele abraçou o corpo da mulher e abriu os olhos. Ele se assustou quando viu uma caveira de cabelos longos e pretos em ao invés da minha avó, então ele tentou se mover, mas de repente ele ficou com o corpo todo dormente, e fechou os olhos fortemente e começou a orar e logo depois, o peso da mulher em cima dele sumiu, e quando ele abriu os olhos não tinha mais nada ali e a dormência do seu corpo sumiu."


  "Desde pequena, eu sempre tive muitos pesadelos e via coisas assombrosas. Uma delas foi em uma noite em que eu e minha tia dormíamos no mesmo quarto. Minha cama era de frente pra a porta que estava aberta e dava vista para a cozinha. Em uma noite eu dormi tranquilamente, mas acordei, e olhei para a cozinha através da porta aberta, a cozinha estava com uma luz meio azulada, mas ainda meio escuro e vi uma sombra de um homem bebendo água de uma jarra azul de vidro (uma que minha avó tem até hoje) e em copos de vidro também azuis, que eram um conjunto. O homem bebia vários copos de água, e eu vendo aquilo comecei a ficar com sede. Na hora, eu pensei que fosse minha tia e eu estava confundindo sua sombra com a de um homem, então eu falei em um tom que dava para minha tia ouvir da cozinha "tia, me traz água, por favor", e no mesmo instante, minha tia respondeu "eu não tô na cozinha, tô deitada". Eu olhei pra a direção da voz e vi a silhueta da minha tia deitada na cama ao lado da minha, depois olhei novamente pra a cozinha, e a sombra de três cachorros muito grandes e fortes com chifres na cabeça, apareceram, enquanto o homem continuava bebendo água. Eu me cobri toda e tentei dormir de novo, o estranho foi que em não lembro de mais nada que aconteceu depois que eu fechei os olhos tentando dormir."


  "Outro dia, eu estava na sala assistindo Sessão da Tarde, quando uma de minhas tias passou por mim entrando no quarto e depois saiu indo para frente da casa conversar com seus pais, e da sala eu conseguia ver ela e escutar sua voz. Depois de uns minutos, minha "tia" apareceu na porta do quarto que ela tinha entrado antes, mas não era ela, era como se fosse uma cópia, seu rosto estava fechado e seu olhar era de maldade, depois de passar uns 10 segundos me olhando a coisa que parecia minha tia voltou para dentro do quarto fechando a porta, e eu sai correndo da sala indo para frente da casa, encontrando minha tia animada e sorridente conversando com seus pais."


  "Eu estava em pé encostado na mesa da cozinha e virada de frente para ela, meu pai estava tomando banho. Depois de uns minutos e escutei o barulho do chuveiro sendo desligado, vi pelo canto do olho esquerdo meu pai passando por mim com seu calção de veludo preferido, mas sua imagem estava estranha, estava chuviscada quando o resto do cenário estava em perfeita qualidade. Eu, curiosa, olhei pelo canto do olho direito, depois dele ter passado por trás de mim, e sua imagem já não era a mesma, eu via um homem de capuz e vestes pretas que sumiu logo depois. O mais bizarro, é que minha avó estava atrás de mim, mas não viu nada."


  "Em uma noite, eu estava morrendo de dor de cólicas, e fui pra a cozinha procurar algum remédio. Virada pro armário, eu senti uma pessoa correndo na minha direção atrás de mim e ouvi pés descalços batendo fortemente no chão, quando virei para olhar, não era nada. Com pressa, tomei o remédio e corri para minha cama me enrolando toda. Eu e meu irmão estávamos no quarto, a porta trancada e a luz apagada, a única coisa que iluminava era o brilho de nossos celulares ligados, ele estava deitado na rede em um lado do quarto e eu deitada na cama do outro lado. A porta que eu tinha trancado começou a se abrir, meu irmão foi lá e fechou novamente, sem trancar. Pensei em alertar meu irmão que eu tinha trancado, mas não quis assustar. A porta abriu e fechou várias vezes sozinha, eu já estava assustada, daí olhei pro meu irmão e o brilho de seu celular clareava atrás dele, e quando eu olhei para trás dele, eu vi um homem sorrindo."


  "Eu já tive/tenho sonhos e pesadelos que aconteceram na vida real, mas quando eu acordo eu não lembro, só lembro quando acontece, apenas alguns eu consigo lembrar; consigo ver, sentir e ouvir coisas quando tinha paralisia do sono. Acontece coisas comigo que quando acontece eu sinto a sensação que sabia que tal coisa ia acontecer; as vezes visito um lugar, leio um plot twist de um livro, ouço e vejo alguma coisa e sinto um déjà–vu sinistro."

FIM



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