Schatten

Escrito por Sial | Editado por Lelen

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  Seokjin tentou, sem sucesso, fechar os olhos diante da janela algumas vezes.
  A linha do horizonte estava alaranjada, com um toque de vermelho englobando a enorme Estrela que se punha em mais um fim de tarde. A visão era quente, aterradora. Apreciada tão de cima, era magnífica. Naquele instante, os raios solares pareciam queimar-lhe até o último espaço de pele exposta, iluminando o ambiente escuro com totalidade. A sala escolhida no topo lhe conferia uma vista panorâmica da cidade, onde podia encará-la como sempre quis, com os olhos de alguém que realmente podia estar onde estava, tirando e recolocando objetos de valor à seu bel-prazer. Poderoso, inigualável.
  Mas ele não contava com a luz, tão mais brilhante lá de cima. Não contava com a bola de fogo viva que o encarava todos os dias, ultrapassando suas paredes de vidro caras e manifestando-se como um lembrete: a sombra de seu interior não estava tão escondida quanto ele pensava.
  Viena era a sua conquista. Entretanto, acima dela e de seus arranha-céus extravagantes, havia a luz. E esta o intimidava, expunha, ejetava o conteúdo mais profundo de seu coração direto em seus pés, fazendo-o se questionar e isso era inadmissível.
  Mas ah, Seokjin não podia se controlar ao admirar sua beleza. Radiante, quente, avassaladora. Estava tão hipnotizado, que não ouviu os passos que se aproximavam.
  — Senhor? — Um homem de terno abriu a porta suavemente, com temor na voz. — Chegou correspondência.
  — Se for sobre o maldito casamento, tem uma lixeira bem ao seu lado.
  O funcionário, que não deveria ter mais de 22 anos, engoliu em seco. Pisando em ovos, agarrou a caixa de presente com papel em seda e jogou-a no lixo ao lado da porta. Seokjin continuou sentado, de costas para o rapaz, encarando o banhar da luz laranja enquanto se transformava lentamente em um azul. Os feixes, agora mais fracos, refletiam no copo de cristal e no líquido âmbar de seu whisky, já mais quente do que antes.
  A porta bateu com a saída do subalterno. Tudo voltara a ficar silencioso, inclusive a mente dele, que ia abafando os gritos do passado à medida que a luz se apagava.

  Havia um outro sol, que vagava pela cidade. Não era o tipo de Sol que ele estava acostumado a ver diariamente. Esse era um tipo peculiar, tão mais quente, vivo e brilhante. Estava envolto em flores, perfumado, sorridente. Esse sim o intimidava de verdade. Como se gritasse diretamente que ele não merecia chegar perto. Não depois de tudo.
  O sino acima da porta de vidro tocou assim que esta se abriu. “Já vai”, ele a escutou dizer antes de surgir correndo atrás do balcão, sorrindo abertamente.
  Sorriso esse que fraquejou levemente ao vê-lo, mas sem deixar seus lábios por completo. Era gentil demais para isso.
  — O que está fazendo aqui? — perguntou educadamente. — Achei que a prova do orçamento fosse só amanhã.
  — Não vim falar disso — disse ele, hesitante. — Você… Tem um café aqui perto. Fazem soda italiana também. Podemos conversar por um minuto?
  Ela o encarou por um tempo, sem dizer nada. O sorriso ia ficando mais fraco, enquanto os batimentos dele ficavam mais fortes.
  — Não acho que isso seja apropriado — respondeu ela, sem uma ponta de irritação na voz.
  — Você é a responsável pelas flores do meu casamento, não? — Seokjin grunhiu, mais sério do que antes. Não era raiva, realmente, mas ironia. — Então, acredito que não deva se preocupar com isso.
  A mulher piscou algumas vezes, tentando afastar todas as sensações que aquela voz lhe trazia. Concordou levemente com a cabeça, colocou uma folha de hortelã na boca e seguiu as costas do homem para fora da loja, fazendo o sino tocar mais uma vez e o cartaz de “Open” se tornar “Closed”. Entrou no enorme carro preto reluzente junto com ele no banco de trás, e cumprimentou brevemente o motorista. Seja lá para onde estavam indo, permaneceria com suas melhores intenções intactas.

  Seokjin remexeu em alguns documentos do carro e passou um pacote sem nome ao seu funcionário antes de finalmente saírem. Quando se acomodou no assento da mesa, fez a primeira pergunta:
  — Você ainda gosta de caramel macchiato? — Enquanto isso, ele lançou um olhar de esguelha para os garçons enfileirados no canto do lugar. Estava vazio, é claro. Ele tinha cuidado disso.
  — Gosto. — ela não deixou de reparar que estava parcialmente sozinha com ele. E não entendia porque simplesmente não levantava e ia embora, como seus instintos ordenavam.
  Ele estalou os dedos e, como robôs, todos se mexeram ao mesmo tempo. Ela levou um susto com o barulho repentino.
  — Você… — ele começou após sobrarem apenas os dois e, claro, dois homens de preto parados discretamente em cada porta. — Como você está?
  — Estou bem. E você?
  Ele apenas assentiu, sem responder diretamente. Estar bem era algo bastante relativo na sua visão. Ali, naquele momento, com ela, sentia-se um tanto eufórico.
  Porém, Seokjin não conseguia dizer mais do que isso. Havia ido parar ali sem um plano, sem inspecionar com cuidado a oportunidade jogada em seu colo, com o pensamento unicamente focado em conseguir fazer com que ela aceitasse um café. Era bom vê-la de perto mais uma vez, a bela — tão bom e intenso quanto um autoinjetor de adrenalina —, e também um tanto aterrorizante perceber como ela não mudara praticamente nada nos últimos anos.
  — Você estava em algum lugar? — perguntou, a fim de quebrar o gelo. Ele pareceu acordar de um transe e percebeu que ainda estava vestido como usualmente: o terno e a gravata muito bem passados, o melhor perfume francês, os cabelos cuidadosamente arrumados.
  — Estava no escritório — resmungou, quase inaudível. — Como vai sua família?
  — Vão bem. Quer dizer, mamãe teve câncer há uns anos atrás, foi uma perda difícil. Vovó ainda está lúcida, meu irmão foi cursar Economia — disse ela, e um garçom depositou uma bonita taça de caramel macchiato à sua frente e saiu sem fazer barulho. Ela sorriu com a decoração de espuma na bebida, e ele não se conteve em esboçar o mesmo sorriso de canto; ficava maravilhado em como ela achava tudo belo e impressionante. Tinha o mesmo efeito semelhante ao da seringa que ressuscitava o coração de uma pessoa no caso de uma reação alérgica grave.
  — E quanto ao seu pai? — perguntou, depois de tomar o primeiro gole.
  — O velho já morreu há muito tempo. — ele lembrou-se com amargura.
  — Claro… — abaixou levemente a cabeça, lembrando-se da vez em que ele e o pai haviam ido parar na delegacia após uma das brigas mais violentas em um bar sujo que ela já havia presenciado. Ela desconfiava que ele mudara logo após aquela fatídica noite. — Não estamos aqui pra falar de família, não é?
  Desafiou, sem deixar de lado o tom gentil.
  — Por que me chamou aqui?
  — Queria conversar.
  — Não temos o que conversar, Seokjin. — ela deu uma risada seca. — Só temos um assunto para tratar: o orçamento e as disposições das flores do seu casamento. Qualquer assunto fora disso não vai cair bem… — suspirou, parando a fala ao ver o rosto do homem totalmente sem expressão.
  Diferentemente da segurança dela, Seokjin se viu mordendo levemente o lábio inferior, segurando-se para não dizer tudo que realmente queria. Queria, mas não podia, nem sabia se conseguiria. Eram tantas coisas acumuladas que as palavras não seriam coerentes.
  — Não somos desconhecidos, acho que podemos tomar um café como dois velhos amigos.
  — Não é necessário fechar um restaurante para dois amigos tomarem um café. — ela bebericou mais um pouco do macchiato, sem encará-lo. — E não precisa fingir que nada aconteceu.
  — Eu jamais fingiria tal coisa. — sua voz saiu em tom baixo, rouco. — Eu só… Não quero falar do passado.
  — Não quer falar do passado, mas mal consegue olhar pra mim sem pensar nele. — colocou uma mecha atrás da orelha. — Olha pra mim.
  Ele ergueu os olhos para ela, encarando-a firmemente pela primeira vez desde que se reencontraram. Desde que pisou naquela maldita loja de flores junto com Mary, que insistira em usá-las para a cerimônia, tirando dúvidas sobre arranjos e datas de validade por horas a fio. Desde que o passado o atingiu como uma avalanche.
  — Você conseguiu tudo que quis, não é? — ela lhe lançou um sorriso simpático e ao mesmo tempo triste.
  Seokjin não entendeu a pergunta.
  — Soube que seu casamento com Mary Wallace vai expandir seus negócios para os Estados Unidos. Quer dizer, ela dá bastante detalhes sobre isso. — levantou os ombros. — E que Nova York será apenas o tapete de boas vindas.
  — Mary fala demais. — ele rosnou, sem se importar em passar uma impressão errada. — Os negócios com os americanos já faziam parte do plano.
  — Eu acredito. Assim como todo o globo. Mas a parceria dela é inegável.
  — … — ele prensou os lábios, colocando os cotovelos no tampo de madeira, parecendo finalmente pronto a falar. — Não quero falar da Mary.
  — Eu também não. — ela respondeu prontamente. — Mas se não formos falar dela, nem de você ou da cerimônia, sinto que preciso ir embora agora.
  — , eu sinto muito! — falou antes que a garota pudesse pensar em se levantar. — Eu… Há sete anos as coisas eram muito diferentes, eu não tinha nada
  — Seokjin, não…
  — Eu não podia te dar nada. Nem um maldito caramel macchiato que você está tomando agora. Tudo girava em torno do que eu não tinha, e eu senti que deveria… Eu queria alcançar mais.
  — Você sempre sonhou demais, Seokjin. Sempre quis mais. E tudo bem com isso, eu fico muito feliz que você tenha conseguido todos os seus carros, seus prédios, seu dinheiro, sua fama. Você não precisa me pedir desculpas por algo que você sempre quis.
  —
  — Não foi o que você sempre quis?
  Ele abriu a boca para respondê-la, mas nada saiu. Algo em sua garganta o sufocava. Informações desnecessárias, pensou ele. Coisas de quem tinha feito uma escolha há tempo demais. Queria dizer-lhe que havia sim conseguido muito. Havia conseguido tudo, e agora estava prestes a voar ainda mais alto. Mas, pela primeira vez, aquilo mais o assustava do que o motivava.
  — Tem algo que eu quero muito mais nesse momento… — ele sussurrou, e o clima automaticamente pesou. A feição simpática de se transformou. Apesar de estar corando, ela logo tratou de repuxar os lábios e assumir a expressão séria que usava tão pouco.
  — Você não quer, você só acha que quer. No final, a sua ganância é muito mais voraz. Eu não quero competir com ela de novo.
  Ela levantou-se em um rompante, e virou-se para sair.
  — Uma palavra sua, só uma. — ele interrompeu seus passos. — Só diga…
  Ela virou-se novamente para ele, o coração descompassado como não ficava há mais de sete anos. Ele não podia estar falando sério.
  — Seokjin…
  — Nem tudo foram maravilhas, . Estar no topo não me fez melhor… Só me fez cada vez mais… Sozinho, angustiado. Eu não sei mais se quero…
  Cada palavra parecia estar sendo dita com dor. Não era fácil pra ele admitir tal coisa, contradizendo uma filosofia que pregara tanto a vida toda. Mas naquele momento, com ela, ele não conseguia assumir a postura dura e imponente de sempre. Ela conhecia seu outro lado, como ninguém mais conhecia.
   permaneceu estática, sem saber como reagir. Ela havia amado aquele homem. Aquele que estava se mostrando agora — não o empresário, afortunado, esnobe —, sendo sincero sobre seus sentimentos sem que precisasse perguntar, como fora poucas vezes na vida.
  — Não faz isso. — ela sussurrou. — Você não pode aparecer depois de todos esses anos me dizendo isso. Depois de ter ido embora… Não teve espaço pra mim na sua vida naquela época e não vai ser agora que terá. Acho melhor você procurar outra florista.
  E ela se foi, correndo, não dando margem para que ele se pronunciasse.
  O sol havia ido embora. Normalmente, ele gostava. Aceitava o escuro todos os dias e a totalidade da sombra, era nela que se sentia confortável, nela sua máscara permanecia intacta perante todos. Mas a maldita luz, essa parecia querer expor todos os seus segredos, suas inseguranças, todo o seu passado.
   era o sol e não havia como se esconder de sua luz. Tudo nele era revelado diante dela, escapulia para fora sem precedentes, e isso o fazia se sentir patético. Apesar de assustado, Seokjin se sentia ao mesmo tempo admirado, preso. Queria apenas aquela luz, não outras que apenas tentavam imitar seu brilho. A luz que fazia sua sombra ficar menor, mais silenciosa, fraca, sem poder algum sobre ele.

 

  Seokjin olhou em volta no cômodo apertado e quente da sala de espera do evento que definiria o resto de sua vida.
  Seu motorista particular, a única pessoa em toda a Áustria que talvez pudesse chamar de amigo, segurava o Rolex elegante que seria exibido no pulso do chefe enquanto se alongava ligeiramente, como se tivesse dirigido por horas no carro em vez de trinta minutos. Do outro lado, Seokjin observava seu reflexo junto às outras mãos que brotavam e alisavam seus músculos impressionantes por debaixo do smoking, provavelmente relacionado à equipe de remo da Universidade, a única atividade em grupo que se propôs a participar por tanto tempo.
  A peça desenhava seu corpo perfeitamente, e se não soubesse como a gravata estava devidamente apertada pensaria que ela o estava sufocando. Mas sabia que havia algo mais intenso formando um bolo em sua garganta, e piorava à medida que aquele dia passava.
  Olhou brevemente por sobre o ombro, na direção de sua entrada. Todas as flores o deixavam enojado. Depois de tudo, ainda eram as flores dela, graças ao surto de Mary ao ir atrás da mulher em Alte Donau e pedir uma nova chance à melhor florista da cidade, depois da mesma querer desistir do trabalho de última hora. tentou se safar, mas os novos zeros no contrato encerraram a questão.
  Ele não voltou a vê-la, nem mesmo de relance. Não sentia-se arrependido por tentar, mas entendeu o que ela queria dizer: ele não poderia ter os dois. Ela não se encaixava na vida sob o holofote, com o mundo aos seus pés. E ele não estava pronto para largar tudo.
  À medida que caminhava sobre o tapete vermelho, Seokjin via mais degraus acima. Mais uma escadaria que completaria apenas com uma palavra naquela noite. Meu dia, minha esposa, meu império. Estava sendo digitado nos principais jornais de Viena naquele instante.
  Depois, não haveria mais trancas. Ele se mudaria e nada mais seria impossível. Ele só precisava dizer.
  Mas quando se acomodou diante do altar, ele a enxergou.
   estava sentada a poucos metros da porta. Fitava-o distante, com um sorriso em linha fina, porém sincero. Algo despedaçou dentro de si, e a música do coro começou a ressoar por todos os cantos, tirando-o do momento por alguns segundos.
  Foi como se tivessem arrancado seu auto injetor de adrenalina e o jogado nos fundos de um porta-luvas.
  A mulher de branco se aproximava, sob olhares de galanteio e adoração, a noiva mais linda que todos ali presentes já viram. Ele encarou a garota inglesa e teve que concordar com tal fato. A mulher que seria como um foguete para sua ascensão, altiva na aparência e no poder. A união mais do que perfeita. Entretanto, não conseguia controlar seus malditos olhos, que retornavam sempre para o fundo da igreja, em busca da mulher de vestido vermelho, um feixe de luz estampando todos os rostos, objetos, e ninguém sequer estava reparando.
  Obrigatoriamente, virou-se para o padre, que já começava a recitar as palavras da cerimônia, que lhe pareciam incoerentes. Virou-se de frente para sua futura esposa de branco depois de um tempo, recebendo seu sorriso radiante. As lágrimas nos olhos de seus familiares cintilavam do outro lado do altar.
  — Mary Wallace, aceita Kim Seokjin como seu legítimo esposo?
  — Aceito! — A palavra saiu antes de sequer o padre terminar.
  — Kim Seokjin, aceita Mary Wallace como sua legítima esposa?
  Uma respiração pesada escapou de sua garganta, e automaticamente ele inclinou a cabeça por sobre o ombro para dar uma olhada nos fundos, para , para a porta dupla de madeira que levava ao exterior com seu céu de nuvens de tempestade, e calculou quantos segundos levaria para escapar dali com ela.
  Mas seus pés estavam pesados, ele não conseguia se mexer. Mary já dava pigarros para chamar sua atenção, chamando-lhe novamente para a realidade. Para o topo, para voarem, relembrando-o da escolha que ele fizera anos atrás.
  O sol o deixava desconfortável, mas nunca na vida havia se sentido tão aquecido como quando se expunha a ele. Sem nenhuma sombra, nenhuma máscara. Seu coração pulou, vivo, ansioso para retornar àquele calor. Nem que seja por um dia. Alguns minutos ainda eram aceitáveis.
  Sua boca ficou seca e Mary estava prestes a tirar o sorriso do rosto. Ele, então, respirou fundo e deu sua resposta.



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