Savior

Escrito por Bela Deville | Revisado por Lelen

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ATENÇÃO:Quatro músicas fizeram essa fic: Savior, do Rise Against; No One Does It Better, do You Me At Six; Dangerous, do Michael Jackson e The A Team do Ed Sheeran. Fiz uma playlist no youtube com elas com suas respectivas letras acopladas, e também com as outras músicas que estarão na história. Ouça-as. Alguns trechos delas estão estrategicamente espalhados pela fic.That’s all. Divirta-se!

I woke up this morning
with a grudge the size of story
Oh, I feel, I feel so low
Let me start at the end
The part I haven’t figured out yet
Yes, I am, I’m moving slow

  Abri os olhos, mas demorei a acordar. A costumeira dor de cabeça invadiu-me abruptamente, e eu me forcei a levantar e sentar na cama. Coloquei a mão das têmporas, massageando-as e enfim colocando meu cabelo pra trás, agoniado. Não suportava mais acordar daquele jeito. Não suportava mais sofrer tanto por ela. E tudo aconteceu tão rápido...
  Suspirei mais de uma vez, derrotado com minha situação. Analisei o quarto bagunçado, as roupas jogadas no chão, as garrafas de bebida, os maços de cigarro enchendo completamente o cinzeiro. Eu não era fumante, aqueles cigarros ali eram o sinal da minha fraqueza. Uma burrice, uma tremenda burrice. Pensei em ver as horas, mas no fundo eu já não me importava direito com que horas são. Se tivesse algum compromisso, os caras teriam me avisado, mas de qualquer forma estávamos de férias. Aquele mês com uma folga de McFly, de shows, de entrevistas e até mesmo dos meus companheiros de banda eram pra ser dias que eu dedicaria a família, a sair com outras pessoas... Mas não. Visitei a família brevemente, e maldito foi aquele dia que resolvi aceitar o convite de um amigo para visita-lo em Glasgow. Como eu imaginaria encontrar uma garota como ela na capital escocesa?
  Balancei a cabeça. Eu não queria pensar nisso, não queria pensar nela. Não queria pensar em como eu deixei de ser um ídolo pop cheio de mulheres ao seu redor para me tornar um homem vulnerável às vontades de uma única mulher. E uma única mulher que não sabia nem o que fazia da vida, uma juventude transviada que eu deveria mais é que esquecer. E começar por juntar minhas roupas e minhas coisas, colocar tudo numa mala e sair daquela cidade de uma vez.
  Foi apenas o tempo de eu pegar as três primeiras peças de roupa do chão que o meu celular começou a tocar freneticamente. Eu esperei que ele parasse de tocar, mas como isso não aconteceu, atendi.
  - Alô?
  - Bom dia, Jones. – uma voz insuportavelmente sexy atendeu do outro lado do telefone. Eu respirei fundo. Não iria responder, ia desligar. – Eu sei que você está aí. Não desligue.
  - Me dê um bom motivo pra não desligar depois de você ter sumido do mapa por quatro dias seguidos.
  - Eu estou no Royal Infirmary.
  - Num hospital? – perguntei, tentando disfarçar a preocupação em minha voz.
  - É. E eu preciso de você. Preciso que me traga roupas e que me tire daqui. – Eu fiquei em silêncio. Era isso que ela queria, se aproveitar de mim de novo. Fazer-me acreditar que precisava de mim pra depois sumir e me deixar sozinho. Era o que fazia de melhor. Então, pela primeira vez naquelas três semanas desde que a conheci, parei pra pensar antes de lhe responder. Considerei dizer-lhe não. – Dan? Por favor? Por favor, por favor?
  Ela nunca havia me implorado por nada. Tudo que fazia eram pedidos que pra mim deveriam ser logo atendidos. Mas dessa vez...
  Suspirei fundo.
  - O que você está fazendo no hospital?
  - Venha logo. Eles vão me sedar de novo. Venha me salvar. – dessa vez sua voz saia quase como um sussurro, como se ela tivesse fazendo algo de errado. Ligar-me, sem dúvidas, era algo de muito errado que estava fazendo.
  E então, de repente, desligou. Eu não ouvi mais nada. . Não sei nem porque a chamo de mesmo sabendo que esse não é o seu nome. Eu não sei nada sobre essa mulher, por que diabos tinha que ir vê-la? Por que salvá-la?
  Hospital.
  E se ela tivesse morrendo de verdade?

  O pensamento me fez largar tudo que estava fazendo e me vestir rapidamente. Ao perceber quão mal cheirava, tirei toda a roupa e tomei uma rápida ducha antes de colocar as roupas novamente. O cheiro de nicotina ainda estava entre meus dedos, e meu casaco não disfarçava um breve odor de bebida por ter sido usado em ocasiões anteriores e não ter sido bem lavado. Mesmo assim, coloquei a carteira no bolso de trás do jeans, peguei uma camisa que serviria como vestido nela e uma das minhas jaquetas, saindo como um louco do hotel.

  - . – eu repeti para a mulher da recepção.
  - Não existe nenhuma moça com esse nome aqui, senhor.
  - Por favor, minha senhora, ela acabou de me ligar e disse que estava nesse hospital especificamente. É uma menina mais ou menos dessa altura – indiquei com a mão -, cabelos , olhos e provavelmente pintados de preto.
  - Você tem noção que muita gente pode se encaixar nessa descrição por aqui, certo? – a mulher me perguntou, e eu já estava quase desistindo quando uma outra mulher, uma provável enfermeira de acordo com suas roupas, puxou meu braço chamando a atenção.
  - Danny Jones?
  Uma fã? Aquele realmente não era o momento.
  - Sou eu. – Tentei sorrir.
  - – ela fez uma careta quando pronunciou o nome – me pediu para que eu a levasse até ela. Venha.
  - Mas... – a recepcionista quis contestar.
  - É a menina do 129, Kirsten. – a outra fez uma cara de entendimento - Pode deixar que eu o levo lá.
  Deixei-me ser levado pela enfermeira. Passamos pelos corredores brancos e sem graça do hospital, o cheiro de álcool etílico e desinfetante no ar. Os doentes que passavam por nós, em sua maioria, estavam em cadeiras de rodas, e em sua maioria eram adolescentes e jovens adultos, gente da minha idade. No entanto, eu não conseguia me preocupar com a situação daquelas pessoas, não quando minha mente estava imaginando que o pior estivesse acontecendo a .
  Chegamos enfim ao quarto 129, onde um prontuário estava preso à porta no nome de . A enfermeira bateu duas vezes antes de escancarar a porta e eu finalmente vê-la. Usava a camisola verde-claro do hospital, seu corpo estava descoberto e ela parecia se encolher demais por causa do frio. Suas pernas tinham pequenas marcas roxas, assim como os braços.
  - Aproxime-se, rapaz. Você vai ficar aí na porta?
  Acordei pra realidade e enfim me aproximei da maca em que – ou , sei lá – estava. Ela dormia como um anjo, mas o seu visual era de um anjo de asas quebradas; parecia uma menina que se perdeu completamente na vida. Jamais conseguiria imaginar que aquela mesma garota estava há quatro dias deitada na minha cama, completamente nua, contando-me histórias absurdas e rindo das próprias piadas. A mesma garota que me cantava The Cure até que eu adormecesse em seus braços, mas que, quando a conheci, parecia uma mulher fatal.
  Coloquei as mechas de cabelo que tapavam seu rosto para trás. Seu rosto estava calmo, paciente. Olheiras escureciam os olhos, deixavam-na doente.
  - O que aconteceu com ela? – perguntei a enfermeira.
  - Ela não te falou?
  - Não... Eu só a conheci há duas semanas.
  - E você está apaixonado por ela?
  Parei para pensar. Estava? Nem eu sabia dizer. Mas muito provavelmente sim. Porque se fosse, não seria a primeira vez que me apaixonaria, e eu lembro da sensação. Eu só não lembro de me sentir tão absurdamente dependente de outra pessoa do jeito que eu me sentia agora, toda vez que simulava a morte daquela menina. Uma menina que eu não sabia nem o verdadeiro nome até minutos atrás.
  - Talvez. – eu lhe disse, suspirando.
  - Pobre menino. – ela comentou baixinho, enquanto trocava o soro.
  Eu suspirei alto e alisei o rosto de . Peguei um cobertor e a cobri.
  - Prefiro que ela mesma te conte o que aconteceu. Não quero invadir a privacidade de vocês. – disse a enfermeira, afastando-se e pedindo licença para sair. Eu apenas acenei com a cabeça e sentei na cadeira ao lado da maca de , voltei a encará-la.
  O que ela havia feito dessa vez? Fechei os olhos, relembrando de como havíamos nos conhecido. O pub, o amigo em comum, a dança, o piano. Eu estava cansado, absurdamente cansado. Suspirei, e fiquei criando respostas para as milhões de perguntas na minha mente.

  #FLASHBACK#
  O ambiente do restaurante não estava barulhento, apesar do número de pessoas falantes ali dentro. O local, cuidadosamente decorado, apresentava uma classe que eu, por mais que já estivesse presente em ambientes parecidos, não conseguia me acostumar. As pessoas estavam bem vestidas, e a classe alta de Glasgow se apresentava naquele restaurante. Eu acompanhava Josh, meu amigo, que teria sido arrastado ao restaurante a pedido da sua irmã. Alisia podia ser extremamente persuasiva e irritante quando queria. Naquele dia ela tinha planos de reunir família e amigos para um importante anúncio. Eu só acabei sendo arrastado porque estava na cidade. Por um vidro espelhado que ficava ao lado da mesa em que eu sentava, avistei meu reflexo. Smoking bem passado, cabelos em uma tentativa de estarem arrumados e um rosto um pouco cansado. Na verdade, eu queria mesmo era estar em um bom pub, enchendo a cara, me divertindo; mas só poderia fazer isso quando o jantar acabar, e o jantar não queria acabar tão cedo. Foi de repente quando senti a mão gelada de Alisia me puxar pra longe da mesa.
  - Vai ser o seguinte, Jones: Eu vou anunciar meu noivado, vamos brindar e você irá naquele piano - ela apontou para um piano de calda situado não muito longe da nossa mesa, centralizado no salão e bem iluminado - e vai tocar uma música bem bonita para ouvirmos e dançarmos.
  - Noivado? - perguntei confuso, bagunçando os cabelos.
  - Sim, óbvio. Por que você acha que convidei essa gente toda pra cá?
  - Mas você só está namorando há alguns meses...
  - Já faz dois anos, Jones. Dois anos. - ela rolou aqueles olhos azuis e ajustou melhor o coque em que prendia seu cabelo louro platinado. Eu sorri sem graça pra ela. Sempre perdia noção do tempo.
  A verdade é que eu não queria tocar ali. Nem cantar. Minha voz estava péssima, e eu ainda me sentia um pouco inseguro de tocar piano em público. Mesmo assim, balancei a cabeça positivamente, concordando com o que ela havia me pedido.
  - Ótimo. Agora volte pra mesa.
  Mandona. Sinceramente, não sei como diabos aquele namorado dela iria aguentar casar.
  Rolei os olhos e voltei à mesa, sentando, me acomodando ao lado de Josh e de um amigo dele que eu teimava em esquecer o nome.
  Logo tudo aconteceu como Alisia previu. Ela levantou, pediu que todos levantassem suas bebidas e fez seu anunciamento. Enquanto todos congratulavam a ela e ao noivo, ela já me jogava aquele olhar mortal para que eu saísse dali e me dirigisse ao piano. E assim eu fiz. O pessoal do restaurante pareceu não se importar quando sentei ao piano. Olhei em volta, observando as pessoas que jantavam confortavelmente. Virei meu olhar pra porta, vendo as pessoas chegarem, algumas conseguindo entrar com suas reservas feitas antecipadamente, outras tendo que dar meia volta e esperar por o milagre de uma mesa vaga. Logo ouvi a voz de Alisia me chamando para começar a tocar. Toquei a primeira que estava na minha mente. Bittersweet Symphony. Completamente nada a ver com o evento, mas eu realmente não conseguia pensar direito com tanta gente olhando pra mim.
  O restaurante pareceu parar para me ouvir, já que houve um silêncio quando comecei a tocar e um silêncio ainda maior quando comecei a cantar. Eu me sentia estranho ali sozinho. Sentia falta dos meus bandmates. Por isso fechei os olhos e tentei me concentrar ao máximo no que fazia, apagando os muitos rostos que se viravam para me olhar curiosos. Mesmo quando abria os olhos, eu não conseguia enxergar direito as pessoas ao meu redor. É como se a imagem delas estivesse embaçada.
  Quando enfim terminei, uma salva de aplausos ecoou pelo restaurante. Eu levantei do piano, reverenciei, e sorri largo. Quando ia me acostumar a receber aplausos daquele jeito? Nunca, talvez.
  Pediram-me para tocar mais uma, e eu atendi o pedido com prazer. Seria muito melhor que ficasse ali, tocando, do que no meio daquele pessoal cheio de conversa e com pouca bebida a me oferecer. Antes de começar a tocar, pedi um copo de whisky, e então eu quase me perdi no som da melodia que tocava.
  Foi de repente que uma mulher de preto sentou ao meu lado e cruzou as pernas. Eu franzi o cenho e virei a cabeça. Não era uma mulher, era uma garota. Ela sorriu pra mim. Seus olhos estavam um pouco vermelhos, um olhar cansado disfarçado com maquiagem.

The way she came into the place
I knew right then and there
There was something different about this girl

  Mesmo assim, sua beleza era estonteante. Os olhos brilhavam em minha direção de um jeito quase doente, e eu estava seriamente me segurando pra não rir que nem um macaco ou falar alguma besteira. Olhava para ela notando cada traço do seu rosto, do pescoço, dos ombros. O jeito como a alça do vestido teimava em cair, e ela ajeitava sempre como a mesma graciosidade. Engoli em seco e forcei o meu melhor sorriso.
  - Oi. - eu disse, na quase certeza de que aquele “oi” estava soando como “uga uga”.
  - A quanto tempo você toca?
  - Não muito tempo... - eu disse, sem graça. Ela continuava a olhar pra mim, como quem pedia especificidade. - Talvez uns dois anos, não sei. Costumo me perder no tempo.
  - Você tem muitos fãs né?
  - Tenho alguns, mas...
  - Ah, deixa de coisa. Tem um monte de meninas ali fora que só faltam se mijar pra ver você. Eu as vi quando entrei.
  Eu ri, sem graça.
  - Você ouve minha música?
  - Acabei de ouvir. Gostei. Quem sabe um dia eu tenha interesse de descobrir de que banda você faz parte. - ela cruzou as pernas e colocou as mãos debaixo das coxas, com frio. Engraçado como se equilibrava tão bem em cima do piano. Analisei-a mais uma vez, descaradamente, de cima a baixo. E ao mesmo tempo que eu o fazia, ela se levantava e andava ao meu redor.

The way she moved
Her hair, her face, her lines
Divinity in motion

  - Você não tem vergonha?
  - De que? De tocar?
  - Não. De olhar pra mim desse jeito.
  - Eu não...
  - Não precisa se desculpar. - ela sorriu, e sentou na ponta do banco em que eu sentava. Impressionei-me com o quão quente seu corpo estava. Ela aproximou sua boca do meu ouvido. Sua respiração pesada fazendo com que parte do meu corpo se sentisse excitado. Uma parte bem específica. - Eu gosto.
  Suspirei. Espera. Onde eu estava mesmo? Sentado ao piano. Haviam pessoas me assistindo, não? Olhei ao redor. Poucas pessoas ainda prestavam atenção em mim. A maioria eram garotas que não estavam gostando nem um pouco da aproximação daquele ser humano perigoso que agora tocava algumas notas no piano. Parei para ouvir o que ela tocava. Era algo antigo, provavelmente clássico, mas que eu não sabia que música era especificamente.
  - Moonlight Sonata, do Beethoven. Eu aprendi quando criança. - disse-me, ajustando-se melhor ao banco e usando da outra mão para fazer uma bela e calma melodia soar ao piano.
  - Parece que eu não sou o único músico por aqui. - disse, e ela sorriu.
  - Você é o único. Eu apenas sei tocar um bando de notas as quais um cara cego achou uma perfeita melodia. - ela disse, sem parar de tocar. Esperei que ela terminasse a música, e assim que ela o fez, recebeu uma salva de palmas. Ouvi uma mulher alta e elegante em uma mesa não muito distante falar algo como “É isso aí, filha!”. Provavelmente sua mãe. Antes que eu pudesse sequer fazer a menção para perguntar alguma coisa, a garota se aproximou do meu ouvido de novo. Dessa vez, sua mão estava mais esperta ainda, e acariciava minha perna. Eu não sabia nem como me portar.
  - Vamos sair daqui?
  - Pra onde?
  - Pra algum lugar com bebidas de verdade, música e uma pista de dança. O que acha?
  Era exatamente o que eu queria.
  - Eu nem sei seu nome...
  Ela se levantou e estendeu a mão.
  - Você pode me chamar de .
  - Seu nome é ?
  Ela olhou cerrado pra mim, desconfiada.
  - Não. é como você deve me chamar. - tirou a mão da minha frente e deu as costas, saindo dali. Eu demorei um pouco para perceber que ela estava indo sem mim.
  Mas será que eu devia confiar naquela garota? Ela não queria me dizer seu nome verdadeiro, mas o seu corpo, sua aura, seu jeito fácil de me hipnotizar... tudo aquilo era difícil de se dizer não. Eu via ela andando para fora do restaurante, seus quadris mexendo-se em um samba elegante, os longos cabelos sedosos faziam com que eu morresse de vontade entrelaçar meus dedos ali. Recordei-me rapidamente de seu rosto, dos lábios beijáveis, das mãos geladas em contraste com o corpo quente, dos olhos pintados de preto que me faziam achar que estava conversando com algum tipo de lince, ao invés de uma mulher.
  Não, eu não podia confiar numa garota daquela.
  Mas já era tarde demais. Eu não pude controlar meu corpo de levantar e correr atrás dela, gritando seu “nome” e, enfim, colocando minha mão ao redor da sua cintura.

The girl was persuasive
The girl i could not trust
The girl is bad
The girl is dangerous

  #Fim de flashback

  Acordei devagar. Percebi que havia dormido na cadeira ao lado dela, com o filme de como nos conhecemos passando pelos meus sonhos. De novo. Minha coluna reclamou quando eu a arqueei para me levantar. Quando pus meus olhos na maca, não estava mais lá. Procurei-a pelo quarto, e foi então que a vi num canto tirando a camisola do hospital para vestir as roupas que eu havia trazido pra ela. Olhei para minhas mãos. A sacola na qual eu havia colocado as roupas dela já não estava mais comigo, e sim com ela, naquele canto.
  - Boa tarde, flor. – ela me cumprimentou com uma voz falha e um sorriso fraco nos lábios pálidos.
  - Eu dormi muito?
  - Não. Acordou na hora certa. – disse ela colocando o casaco por cima da blusa que realmente lhe servira como vestido. Observei quando ela pegou as botas e subiu na maca para calçá-las. A agulha do soro já não estava mais em seu braço.
  - Eles te deram alta?
   não respondeu, apenas sorriu em minha direção. Eu fiquei quieto, sem reação. Sentia que se fosse puxar uma conversa séria com ela, talvez pudesse fazê-la ficar mais frágil do que já parecia.
  - Preciso de um cigarro. – comentou de repente, aparecendo na minha frente e alisando meu rosto. É, ela poderia parecer frágil, mas não o suficiente para parar de me manipular com aqueles olhos de sonhadora, brilhantes, e aquele sorriso quase melancólico que poderia me fazer ficar de joelhos para implorar que me sorrisse novamente. Ou para pedi-la em casamento, e apagar as cicatrizes que a deixavam tão triste, sozinha e dependendo de um estranho como eu quando internada em um hospital.
  - , o que aconteceu?
  - Hã? – perguntou ela, sentando no meu colo, afogando o rosto em meu pescoço. Era realmente difícil de concentrar com a sua respiração arrastada contra o meu pescoço.
  - O que aconteceu... pra você vir parar... aqui? No hospital. – Abracei-a, muito mais querendo prendê-la para que não fugisse do que para realmente lhe dar carinho.
  - Hmm... Talvez eu tenha exagerado um pouco na última vez que tomei pílulas. Overdose. – respondeu. Se eu pudesse ver seus olhos, tinha certeza que estariam vidrados em qualquer ponto daquele quarto, quase como se ela fosse uma mulher cega. Eu não quis me deixar assustar, não queria pressioná-la, mas ao mesmo tempo queria lhe interrogar. Queria saber o que acontecia para ela fazer isso consigo mesma.
  Overdose. Ela comentava aquilo como se fosse algo tão simples, tão rotineiro...

“Cos we’re just under the upper hand
And go mad for a couple grams”

  Suspirei. Fiz carinho nos cabelos bagunçados, massageando sua nuca, trazendo-lhe lembranças que fizeram com que ela também suspirasse. Depois daquele dia em que nos divertimos em um dos melhores pubs da cidade, eu havia me deixado atrair completamente na teia de luxúria dela. Uma das melhores noites da minha vida. Mesmo com altas expectativas diante daquela estranha garota, ela conseguiu superar cada uma delas. Aprovetei que a tinha no meu colo. Alisei seus braços, sentindo a pele macia e algumas cicatrizes.
  - Eu te conto no táxi à caminho de casa, pode ser? Você pode me levar de volta pra casa?
  Sorri.
  - Claro. – levantamos da cadeira. – Vamos logo. Pegue suas coisas.
  Ela pediu mais um tempo para que terminasse de se arrumar; penteou os cabelos e colocou uma maquiagem que quase me convenceu de que não estava doente. Pegou apenas uma bolsa grande e colocou nas costas. Então puxou-me pela mão e saímos do quarto de um jeito que me pareceu suspeito, já que ela olhava de um lado pro outro como se tivesse prestes a roubar alguma coisa. Foi então quando passamos pela recepção e a mulher da recepção falou alto algo como “Ei! O que você está fazendo fora da cama? Peguem essa menina!” e puxou minha mão com força para correr que eu percebi que estávamos fugindo.
  - CORRE, DANNY! – ela gritou entre risos, enquanto saíamos como dois loucos do hospital. Quando olhei pra trás ainda vi uma enfermeira apontando para nós com um segurança ao seu lado, e então foi minha vez de acelerar o passo e puxar para o meu lado.
  - O beco! – indiquei um beco a nossa frente para nos escondermos. – Cuidado com a poça!
  Glasgow estava chuvosa, o tempo estava frio e isso parecia dificultar ainda mais para que conseguisse correr. Eu tinha quase certeza de que ela estava naquele hospital por motivos muito maiores do que uma overdose. Ela quase escorregou na poça que eu alarmei sobre a existência, e eu acabei por pegá-la no braço e coloca-la na frente da escada de emergência do pequeno prédio.
  - Sobe rápido. – disse-lhe.
  Ela apenas obedeceu, e subimos até o segundo andar, ali nos escondendo atrás de uma geladeira descartada. Ouvimos alguns gritos que chamavam o nome de uma tal , mas logo os gritos desapareceram gradualmente.
  Nossos corações estavam acelerados. Sorriso em ambos os rostos e não conseguimos controlar a risada – na verdade eu comecei a rir como um retardado antes e creio que ela estava rindo da minha risada.
  - Você é maluca? Como é que foge do hospital desse jeito? Eu pensei que você tinha tido alta!
   riu alto.
  - Eu nunca te disse nada sobre alta. – levantou as mãos como quem é inocente. – E você deu um bom fujão.
  Sorri, encarando-a. Lá estavam eles. Os olhos que eu havia comentado. Os olhos que possuíam um brilho estúpido. Os olhos que poderiam convencer um homem a se matar se ela apenas pedisse. Fiquei sério repentinamente. Tive que lembrar como eu acordei naquela manhã.
  - , eu...
  - Por favor, não. Está tudo bem. Vamos esperar só mais um pouco e vamos pra casa, tá? – ela se aproximou de mim, tocando meu rosto, aproximando nossos lábios. Fechei os olhos, sentindo seu hálito quente contra minha boca. Não consegui segurar meu impulso de chocar nossas bocas de uma vez, mas assim que o fiz, percebi que era a coisa mais errada que poderia ter feito. Aliás, eu estava fazendo tudo do jeito mais equivocado possível; não podia me deixar levar pelos seus encantos. Eu não sabia o que havia de errado com ela. Não sabia por que estav a com ela, se me fazia tão mal. Não sabia nem ao menos o seu nome verdadeiro.
  Afastei-me repentinamente.

“What are we doing?
I was so in love with you”

  - Não. Agora você vai ouvir. – falei sério, e ela pareceu se assustar. Eu não costumava falar sério. – Quem você acha que é pra sair iludindo as pessoas, fazendo com que elas se apaixonem por você quando tudo que você quer? Quem você acha que é pra me fazer de idiota desde a primeira vez que nos vimos? Você é a única coisa que me prende nessa cidade. Passei dias em que eu ficava para no hotel ou no pub que nos conhecemos, esperando que você aparecesse, que desse notícia, ou que pelo menos me ligasse e dissesse que simplesmente não gostava de mim.
  - Danny...
  - Mas olhe, eu to cansado disso. To cansado de esperar que você seja uma pessoa com um coração que, aliás, eu sei que você tem. Eu sei que você sente mas... Eu não tenho condições de me machucar desse jeito. Já me machuquei uma vez, e eu não quero sentir aquilo nunca mais na vida. Por mais que hoje, quando acordei, acho que senti algo muito pior. Senti que fui rejeitado sem que ao menos me dissessem “não”.
  Ela olhou nos meus olhos, mas logo levou seu olhar para o chão, pensativa. Vi quando quis pegar um cigarro na sua bolsa, mas segurei sua mão.
  - Comece do começo, . Aliás, eu sei que não é seu nome. Você nem ao menos me disse seu nome. Apareceu num hospital depois de quatro dias de sumiço para depois fugirmos sem que você tivesse alta ou ao menos eu soubesse o que estava acontecendo com você. E o que mais eu posso citar? Como toda vez que eu acordei depois de uma noite contigo, você não estava mais ao meu lado na cama.
   sorriu, abaixou os olhos novamente. E então, finalmente, eu vi as lágrimas caírem dos seus olhos. Parecia que algo que eu tinha falado havia enfim feito algum sentido para ela. Foi então que ela tirou o casaco – mesmo com o frio excruciante que fazia lá e me mostrou os braços. Tinham cicatrizes apagadas de cortes feitos provavelmente com gilete.
  - Essas fui eu que fiz. Porque eu não consigo me amar. Imagine como vou amar outra pessoa? – ela disse com a voz a falhar – Essa – mostrou uma marca no pescoço, perto da mandíbula – Foi um homem que fez. Porque eu me recusei a dormir com ele mês passado. – E tem várias outras, muito piores. Nas pernas, nas costas, dentro de mim. Sei que você não se importa com essa cicatrizes do corpo. Vo... – soluçou – Você nunca se importou. Nunca nem parou para observá-las. E eu nunca te dei tempo pra isso. Não quero que você veja quem eu sou. Não quero nem que você saiba meu nome. Eu não estou te evitando, só estou te poupando da minha existência na sua vida.

“That’s when she said I don’t hate you, boy
I just wanna save you while there’s still something left to save”

  - Pra me ligar de hospitais depois? - olhei sério pra ela - Não. Já é tarde demais pra isso. Já é tarde pra você me poupar disso.
  Ela levantou. Enxugou os olhos com as mãos e pegou a bolsa, saindo correndo pelas escadas.
  - ! Volte! – corri atrás dela.
  - Não, Danny. Você não merece isso. Você não me merece, é um fardo muito grande pra você carregar. – Ela parou de correr e olhou pra cima, eu estava apenas a cinco degraus acima dela. – Você tem fãs, tem banda, tem família. Você tem uma vida pela frente. E eu estou, de verdade, me lamentando por não terem me deixado morrer em paz. Deixe-me ir embora. Eu vou ser sucedida hoje. Vou acabar de vez com minha dor.
  - Essa é a maior besteira que eu já ouvi.
  - Não, não, não! – ela voltou a correr, dessa vez mais rápida. Eu corri atrás dela, e por ser obviamente mais rápido a alcancei, puxando seu braço, beijando-a de um jeito quase esmagador. Abraçava-a com uma força tremenda, prendendo-a comigo, forçando-a a permanecer ali, a me beijar, a ser minha.
  Minha mão então prendeu em seus cabelos, e eu percebi que as coisas estavam se molhando. Foi então que parei de ouvir algo que não fosse o gemido reprimido de , ou sua respiração acelerada. Chuva. E não qualquer chuva; era uma daquelas com pingos grossos que só faltavam perfurar a pele. Mas eu não parei. Não queria me sentir vazio de novo. Queria continuar beijando-a por uma eternidade.
  Mas antes de continuar beijando pela eternidade, eu precisava lhe falar algo. Afastei-me com cuidado, sem tirar as minhas mãos de sua cintura ou deixar possível que fugisse de meus braços.
  - Se eu te salvar, você pode me salvar também. Porque eu estou destinado ao pior apaixonado por uma louca como você. Mas se você me der uma chance, então eu te dou uma chance de me curar dessa obsessão por você.

“If I just save you, then you could save... you could save me too”

  Ela ainda deixou cair uma lágrima que logo se misturou à água da chuva. Os olhos brilhavam, como sempre, mas dessa vez seu sorriso deixava a melancolia de lado.
  - Você é ridicularmente lindo. Eu não consigo acreditar na sua existência.
  - Não tem problema, eu te provo que sou real. – disse-lhe, voltando a beijá-la com ainda mais intensidade. Ouvi um trovão que resolvi que eram os céus dizendo que aquilo era a coisa certa a se fazer, por mais insano que parecesse. Mordi o lábio inferior de , e ela riu baixinho.
  - So pinch me, I must be dreaming. My life has lost all its meaning but I like the way I’m feeling now.
  - Você me disse que não ouvia McFly. – eu estranhei.
  - Menti descaradamente. – ela sorriu. – A propósito...Meu nome é . . Mas pra você pode ser . – ela pôs a mão para um cumprimento formal. Eu finalmente tirei meus braços de sua cintura para fazer o mesmo, e apertar sua mão como se estivesse a conhecendo pela primeira vez.
  - Eu sou Daniel Jones. Mas pra você pode ser Danny. Dan nos momentos íntimos. – puxei-a pelo braço para sussurrar em seu ouvido – E todos os apelidos possíveis quando estivermos na cama.
  Ela gargalhou, logo depois espirrando. É, eu não deveria ter deixado uma menina que quase se matou por overdose e saiu do hospital sem alta na chuva daquele jeito.
  - Vamos para casa, . Antes que você pegue um resfriado.
  - Agora você vai me tratar como uma criança? Vai me dar chazinho e cuidar do meu dodói? – ela riu de novo. Eu estava adorando o quanto ela estava rindo.
  - Talvez... – suspirei, pegando sua mão e saindo daquele beco. A chuva ainda caindo nas nossas cabeças, porém agora mais fraca. – Ou talvez eu te prenda na cama e te ensine a ser uma boa menina.
  Mais uma vez, ouvi sua risada. E meu objetivo na vida, além de ser um músico reconhecido, dar orgulho à minha mãe, irmã, companheiros de banda e, é claro, fãs, seria de todo dia fazê-la rir. Gargalhar. Todo dia, uma dose de replay do riso daquela louca que havia me salvado apenas por ter escolhido sobreviver.

FIM



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