Run

Escrito por Queen B | Revisado por Mariana

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   invadiu a casa que costumava ser do pai de seu amigo, onde ele morava sozinho desde a morte do homem, sem nenhum tipo de aviso prévio, sentindo-se, no mínimo, irritado.
   havia sido colocado para fora de outro bar na noite anterior e dormido na calçada, porque não vira o celular tocar de madrugada, quando tentaram te ligar para buscá-lo como vinham fazendo toda noite há semanas. Em algum momento, precisava dormir, afinal. É claro que o dia que não escutaria a ligação chegaria.
  Ele fora compreensivo, estavam sendo meses difíceis e o garoto sabia bem daquilo, mais do que ninguém, mas não tinha mais forças para assistir enquanto seu amigo se destruía. Precisava pará-lo.
  - . – ergueu o copo que tinha em mãos, sorrindo de maneira embriagada para ele. – Meu amigo!
   rolou os olhos, pegando o copo de sua mão e jogando contra a parede. Aquilo acordou , que olhou assustado do copo para . O mais novo sequer desviou o olhar para assistir os cacos caírem no chão.
  - Você vai parar de beber. Por bem ou por mal. – avisou sério, não soando nada como o garoto que estava acostumado a ter o amigo cuidando dele e não o contrário, como acontecia agora. pôde ver em seus olhos, bem lá no fundo, que ele estava assustado. Que não sabia o que estava fazendo, não como queria demonstrar.
  - . – chamou outra vez, cauteloso agora. – Você sabe que não pode tomar essa decisão por mim.
   rolou os olhos, como se achasse o argumento, no mínimo, estúpido.
  - Você perdeu o direito de falar isso pra mim depois de três semanas me fazendo buscar você no cacete do bar, ! Eu não aguento mais ver você se destruindo assim e não vou deixar. – impôs, vendo , até então sentado em seu velho e gasto sofá, se pôr de pé.
   estava passando pelo que, provavelmente, era o pior período de sua vida. Toda noite escutava sua mãe e o padrasto brigarem, culpando um ao outro por tudo que aconteceu, ainda via seu amigo morto toda vez que fechava os olhos e tudo pesava demais, ele não conseguia lidar, não depois de tantas despedidas, e não com agindo daquele jeito. nunca soubera se virar sozinho, sempre precisara dos amigos, sabia bem disso e ver tudo virar de cabeça, perder todos eles e ter que cuidar de quando sequer sabia o que fazer com ele mesmo estava lhe enlouquecendo, para se dizer o mínimo.
  - Eu faço o que eu quiser, . – soou mais sério agora, atingido pelo tom do outro. Depois de tanto tempo cuidando para que não se machucasse, lhe protegendo e ajudando a levantar depois das quedas que não conseguia evitar, aquilo, o jeito que estava agindo era, no mínimo, um murro em seu ego.
  Ele deu as costas ao mais novo, tentando pensar com clareza e puxou um maço de cigarros do bolso da calça de moletom, levando o isqueiro junto. Enquanto ele acendia o cigarro, olhava desacreditado a cena, sentindo a tristeza lhe dominar por conseguir ver em cada parte de , desde os olhos fundos e vermelhos, ate as roupas folgadas e largadas demais, o quão entregue a miséria ele estava. O quão tudo que acontecera acabou com ele.
  Acabou um pouco com todos, afinal.
  - Para com isso. – tentou se aproximar, mas recuou, esticando os braços como se pudesse lhe fazer parar.
  - Sai daqui, .
  - Você vai morrer se continuar assim, ! – esbravejou, a voz soando tão alta que pareceu reverberar em todo o primeiro andar da casa onde crescera, onde vivia sozinho há quase cinco anos.
   lhe encarou impassível, demonstrando que aquilo não o abatia. Como se quisesse deixar claro para que ele era um menino, um menino que não podia controlar o que o mais velho fazia ou deixava de fazer.
  - Para com isso. – repetiu, mais firme.
  Era uma ordem.
  - , eu... – suspirou, tentando se acalmar. Ele conhecia melhor que qualquer um, sabia bem que gritar não lhe ajudaria a conseguir nada dele. – Eu também estou deprimido. Não se passa um dia sem que eu pense nele, de verdade. Mas eu... , eu sei que não vamos superar nada desse jeito. Você precisa reagir, por favor...
  - , cala a boca. – lhe interrompeu, irritado, irritado com aquela conversa, irritado que ele estivesse tentando fazer aquilo com ele, irritado com tudo. – Só... Sai daqui, tá legal?! Me deixa. – ele deu as costas, levando o cigarro à boca.
  No instante seguinte, foi dominado pela maior onda de frustração dos últimos dias, e, sem que nenhum dos dois esperasse, se jogou em , tentando desesperadamente conseguir alguma reação dele, fazê-lo sair daquele torpor e parar de agir de maneira tão estúpida, quase derrubando , que lhe encarou assustado.
  - , porra! – empurrou o garoto para longe, dominado pelo que a surpresa e a impaciência fizeram, juntas, com ele.
  As costas de foram de encontro à parede e ele caiu, com lágrimas nos olhos. lhe encarou e viu novamente o garoto que sempre cuidara, a mascara que ele tentava sustentar de alguém responsável e maduro o suficiente para cuidar do mais velho indo embora de uma só vez. Os dois olhares se encontraram e tudo, toda a tristeza, a dor, o luto e a culpa que sentiam pareceu mais visível do que nunca para o outro.
  Quando seus amigos estavam ali, quando não eram só os dois, tinha certeza absoluta que teriam uns aos outros para sempre, que tudo que eram, tudo que faziam, nunca seria só uma lembrança, mas agora... Agora era exatamente o que se tornavam. E podia ver nos olhos de : Ele também estava prestes a se tornar só uma lembrança.

Alguns meses antes

  De cima da picape de , podia ver o rosto dos passageiros dos carros que estavam bloqueando com muita clareza. Podia vê-los conversando entre si, se perguntando o que estava acontecendo, alguns já ficando impacientes ou preocupados e outros simplesmente entediados, imaginando que se tratava de algum protesto político, concentrando-se em seus celulares para esperar acabar.
  Os outros garotos saíram do veículo, todos exceto , que ainda estava no volante e, de lá de baixo, , o mais novo no grupo, olhou para .
  - Estamos bloqueando o trânsito. – ele murmurou para , embora aquilo fosse obvio e, bem, intencional. O carro de estava atravessado no túnel, impedindo a passagem dos outros, que entre uma buzinada e outra, não podiam fazer muito além de esperar.
  - Isso é meio óbvio. – retrucou enquanto os garotos paravam todos lado a lado de frente para os outros carros, cada um segurando objetos muito aleatórios em mãos. não segurava nada e acabou aceitando, confuso, a tinta em spray que lhe estendeu.
  - O que estamos fazendo? – ele perguntou, mas o mais velho não respondeu e ele voltou a encarar , que riu.
  - É sua iniciação, . – falou, numa diversão quase gentil, se é que aquilo fazia sentido.
  Não fazia muito tempo que ele começara a andar com os garotos, se deram bem porque tinham personalidades parecidas, mas havia algumas coisas que eles faziam sobre as quais não tinha noção ainda. Nenhum dos garotos realmente achava que aquilo pudesse ser um problema, certos que era como eles e aquela noite provaria exatamente aquilo. Que ele se sentiria tão bem quanto eles fazendo coisas que sabiam que não fazia bem pra ninguém.
  Os motoristas ficaram mais impacientes, se perguntando o que aqueles garotos queriam lhes atrasando daquele jeito, e então berrou e buzinou, apertando e segurando o mecanismo que emitia o som estridente da buzina antes de ligar o som do carro, no volume máximo. olhou assustado para os garotos, entendendo cada vez menos do que acontecia ali e pulou do teto enquanto os meninos corriam em direção aos carros, batendo nas portas e janelas com intenção apenas de fazer baderna.
  - Você não vem? – olhou por sob o ombro para , que ainda estava parado perto do carro, confuso. Ele olhou de para , no banco do motorista.
  - O que eu tenho que fazer? – quis saber e riu, dando de ombros.
  - Esse é o momento em que você mostra a esses caras – apontou as pessoas nos carros. – que você não tem que fazer nada. Que, diferente deles, não vai se entregar a vidinha comum e sem nenhum propósito além de esperar a morte que eles vivem.
  - É... Tipo uma revolução? – perguntou, desviando o olhar para os garotos outra vez. pulava no capô de um carro, despejando o restante do conteúdo da latinha de cerveja que bebia antes todo no vidro. – A gente pelo menos sabe por quê? Por que estamos lutando?
  - Por nada, cara. – rolou os olhos. – Estamos lutando por nós mesmos, exercendo o nosso direito de nadar contra a correnteza morta que eles seguem. Agora, vai. Divirta-se. – ele piscou, subindo o vidro do carro.
   estreitou os olhos e virou a cabeça, fazendo rolar os olhos, lhe puxando pelo braço em direção ao mar de carros guardando motoristas revoltados, xingando e buzinando para a baderna que faziam. mostrou a língua para uma criança em um dos carros e riu na cara dos motoristas impacientes, então bateu em uma das janelas, como se perguntasse: o que vai fazer quanto a isso?!
  - Viu, está pegando o jeito. – deu um tapinha em seu ombro, como aprovação, e então correu para longe dele, aceitando a mão que lhe estendia e subindo em um dos carros junto com o amigo, que pulou para o próximo depois de estender para uma tinta em spray exatamente como a que dera a .
   balançou a lata de tinta e, enquanto o fazia, desviou o olhar para seus amigos, pulando nos carros, pichando-os e gritando enquanto alguma música alta que escolhera soava ao fundo.
  Ele adorava quando faziam aquelas coisas, coisas que não eram nem de longe corretas e qualquer dia lhes colocaria numa pior, mas que faziam com que sentissem vivos com uma eficiência que, céus, como valiam à pena. Ali, em cima daquele carro, pichando de maneira muito porca uma mão mostrando o dedo do meio, ria e parecia que o mundo todo desaparecia, que nada, nem ninguém, podia lhe atingir e aquela sensação simplesmente valia demais para se importar com as consequências.
  Além do mais, tinham pra isso, se importar com as consequências. Os garotos, os cinco garotos, desempenhavam bem seu papel, cada um o seu e era, sem dúvidas, o mais responsável deles. Era ele que sempre sabia a hora de parar, que sempre calculava como sairiam ilesos de cada uma das loucuras que aprontavam e, exatamente por isso, os meninos nunca iam contra ele.
  Quando buzinou, indicando que estava na hora, eles finalizaram seu trabalho com reverências debochadas e saíram correndo, as panturrilhas ardendo e o sangue pulsando rápido demais em todo o corpo dos garotos, que gargalhavam quando pularam para dentro da caçamba do carro.
  - Isso nunca perde a graça. – comentou, tirando uma das latinhas de dentro do cooler que deixaram ali. já acelerava para longe do túnel, despistando da melhor maneira possível os carros que tentaram segui-los.
  - está branco. – riu ao lado de , aceitando a latinha que ele lhe estendeu, jogando em seguida uma para e uma para , para quem ergueu as sobrancelhas ao ouvir falar.
  - Ficou com medo, ? – riu, debochado e deu de ombros, bebendo um gole da cerveja.
  - Aquilo foi... Foi muito louco, eu só fiquei pensando que poderíamos ter sido pegos ou um dos motoristas poderia, sei lá, estar armado e...
  - Relaxa, você não tem que pensar. – riu, lhe interrompendo. – É pra isso que temos o .
   olhou para a pequena portinhola que eles mantinham aberta, que dava para dentro do carro, e acenou para ele ao olhar pelo retrovisor e notá-lo lhe encarando. tinha olhos de quem sabia muito e, mais ainda, sabia que sabia mais que os outros e se divertia com aquilo. Ele sabia que informação era poder e parecia usar as que tinha muito bem.
  - sempre sabe quanto tempo temos, o que a policia está fazendo, sabe... essas coisas. – explicou a , que virou para lhe encarar ao ouvir. – Poderíamos assaltar um banco com ele.
  - E por que não? – perguntou, encarando cada um dos garotos. pôde ver que ele estava lhes testando, tentando sondar até onde eles eram capazes de ir. – Vocês, obviamente, são loucos o suficiente.
  - Loucos, talvez. Mas espertos, não. – deu de ombros, como se fosse bem simples. – Você precisa conhecer os seus limites, . Conhecemos os nossos.
   ficou em silêncio por um instante, pensando sobre aquilo e então balançou a cabeça, levando a lata em suas mãos a boca e bebendo mais um grande gole da mesma.
  - Não sei se conheço os meus. – ele disse, por fim e assentiu, dando de ombros. suspirou, vendo as luzes da cidade ficarem para trás ao olhar por sob o ombro. Nem mesmo sabia onde estavam indo. – Vocês sempre fazem isso?
  - Todo mundo precisa extravasar de algum jeito. De uma válvula de escape, sabe? – explicou. – Somos só garotos que vivem vidas de merda e encontramos paz fazendo merdas maiores ainda.
  - Pode dar muito errado, mas... – deu de ombros – Na maior parte do tempo, dá muito certo.
  Ninguém falou nada depois que dissera aquilo, constatando a verdade em suas palavras. Cada um ali tinha seus próprios problemas, uma cota grande demais de decepção, porém eles haviam encontrado um jeito de lidar com aquilo. De maneira nenhuma era o mais saudável, mas, dava certo. Dava paz aos garotos sentir como se nada, nem ninguém, pudesse lhes atingir e era exatamente daquele jeito que se sentiam quando desafiavam tantas pessoas, pessoas que ficavam de mãos atadas enquanto eles faziam a baderna que queriam.
  E, bem, tinham um ao outro também, tinham a paz de ter um ao outro, que era ainda maior. Era preocupante, imaginar o que aconteceria se um dia se separassem, se algo desse mesmo muito errado, mas eles achavam que não iam. Achavam que iam permanecer juntos.
  Honestamente, achavam.

...

  Ao amanhecer, os garotos haviam dormido muito pouco, passando a maior parte da noite conversando e rindo depois que estacionara num terreno baldio onde sempre acabavam indo depois de aprontar alguma pela cidade.
  Quando estacionou, se juntou a eles na caçamba e lhes entregou as mantas que estavam no banco de trás, mas acabou sendo o único a realmente usar, já que fora o único que não bebera também, levando em conta que teria que dirigir. Bom, ele e , quem não permitiu beber demais, sabendo que, exatamente como todas as vezes que aquilo acontecera, ele terminaria vomitando tudo em algum momento.
  Mesmo assim, recusou a manta e só quando dormiu recostado a um dos cantos da caçamba foi que lhe cobriu, só para os meninos lhe acordarem cerca de duas horas depois, jogando água em seu rosto depois de terem riscado com o resto da tinta.
   coçou os olhos e olhou, sonolento, para os amigos depois do susto.
  - Por que estão me olhando assim? – perguntou, vendo que os quatro lhe encaravam cheios de expectativa, fazendo uma careta quando, junto com , caiu na risada. Apressado, virou em busca de algo que mostrasse seu reflexo e rolou os olhos ao ver, pelo vidro da portinhola, vários coelhinhos desenhados em seu rosto. – Uau, vocês são verdadeiros artistas. – ironizou e os meninos riram, ignorando a ironia obvia em sua voz.
  - Fizemos a sua caricatura. – riu, apontando pra ele. Os olhos vermelhos e pequenos indicavam que ele não havia dormido ainda e, muito provavelmente, também não parara de beber. – Várias vezes. – riu mais e os garotos lhe acompanharam, exceto por , que apesar de encarar a cena com humor, não chegou a tanto.
   rolou os olhos.
  - Idiotas.
  - Ei, estou com fome. Por que não vamos comer alguma coisa? – sugeriu, ignorando suas palavras e o garoto rolou os olhos novamente.
   era o segundo mais novo, depois de e, mesmo que a diferença de idade não fosse tanta qualquer um podia notar que sempre precisava de mais proteção e cuidado que o outro. tivera que amadurecer do pior jeito, afinal.
  Os meninos não sabiam detalhes de sua vida, do que acontecera com seus pais, mas ele vivia sozinho num, bem, num barraco. O lugar era um lixo e contava apenas com dois cômodos, sendo um deles um banheiro, mas , por mais que amasse os amigos e confiasse neles, parecia preferir daquele jeito, já que sempre recusara quando tentara convencê-lo a morar com ele.
  Seu único luxo acabava sendo uma TV usada e minúscula que e se juntaram para comprar pra ele e o videogame que os garotos compraram juntos também antes de conhecer , mas que nunca realmente usaram quando era só os dois e decidiram levar para o amigo. Todos usavam, todos passavam horas jogando lá e não davam a mínima que morasse praticamente numa caixa, no fim das contas.
  - Eu voto no café da manhã do Martin. – falou, se referindo à lanchonete favorita deles. – Estou mesmo precisando de um café forte se quiser sobreviver para ir à escola hoje.
   vivia sozinho também, mas ainda assim tinha condições bem diferentes das de . Ele morava na mesma casa que sempre vivera com o pai, antes de o velho carpinteiro ficar doente e morrer. tinha uma identidade falsa, então preferira mentir ser maior de idade para continuar em casa do que deixar que lhe levassem para um orfanato, como fariam se soubessem da verdade. Seu pai, a única família que ele tinha, morrera quando tinha quinze anos e, desde então, era ele e só ele. Bom, e .
  Os dois se conheciam desde criança, o pai de sempre fora como um pai para também e sempre soube de seus problemas com a família, do pai que nunca tivera, do padrasto que era um verdadeiro pesadelo e tomava seu lugar, da mãe que, por mais que fizesse de tudo para conquistar seu amor, não dava a mínima para ele e do meio irmão encrenqueiro, que trabalhava com tráfico de drogas e vivia implicando com . sempre soube de tudo aquilo e sempre soube que precisava de pessoas, que não tinha condições de se cuidar sozinho e sempre estivera lá por ele, fazendo o que tinha que fazer e cuidando dele, protegendo-o.
  - Precisamos mesmo? – perguntou, se referindo à escola e os garotos riram do bico que ele não notou que fazia. chutou de leve sua cabeça.
  - Pare de agir como criança.
  - É exclusividade sua? – retrucou e lhe encarou como se perguntasse: não é óbvio?!, fazendo os garotos rirem.
  - . – chamou em seguida, olhando para algo por sob seu ombro e, confuso, seguiu seu olhar, fazendo uma careta ao ver o que ele olhava.
  Joshua.
   bufou, observando o meio irmão cambaleando de maneira embriagada com os amigos, mexendo com as garotas que passavam com cantadas grosseiras e ofensivas. De repente, todo o peso da vida real voltou para os ombros de , que sentiu todo o álcool que bebera mais cedo voltar e engoliu em seco, pegando uma garrafa de água no cooler sob o olhar preocupado de .
  Joshua era um cara perigoso, do tipo perigoso mesmo, que andava com uma arma na cintura e vendia drogas para menores, e, para piorar, tinha como passatempo favorito implicar com . sabia bem daquilo e sentia o sangue ferver sempre que via o outro provocar de alguma forma, desejando poder intervir e fazer alguma coisa, mas era mais complicado reagir quando, diferente de Joshua, não carregava uma arma na cintura também.
  - Argh, odeio esse cara. – resmungou, observando enquanto ele insistia em mexer com a mesma garota, até um comerciante se aproximar e mandar que ele fosse embora dali.
  - Pra casa, moleque! – reclamou e Joshua fez uma careta, apoiando a mão na barriga ao dobrar o corpo pra frente, vomitando no meio da rua. desviou o olhar, com nojo, enquanto afastava a manta que ainda lhe cobria.
  - Vou pra casa. – avisou aos garotos, preocupado com o que poderia acontecer se Joshua chegasse em casa alterado daquela forma. Ele já era violento e estúpido, exatamente como o pai, sem aquilo, tinha medo do que podia acontecer se ele chegasse em casa e encontrasse sua mãe sozinha lá, já que, exatamente como ele, o pai também devia estar perdido em algum bar por aí.
  - Ele é irmão do ? – sussurrou a pergunta para , porém respondeu antes que ele o fizesse, virando para lhe encarar depois de pular para fora da caçamba.
  - Não é. – murmurou. – Ele é filho do meu padrasto, não da minha mãe. Quando fomos morar com ele, Joshua já estava lá. A mãe dele morreu ou algo assim. – deu de ombros. não sabia os detalhes e não se importava, mas se importava que achassem que tinham o mesmo sangue. Joshua não era sua família, não era e ponto.
  - Ah. – murmurou, desconcertado. não era o mais sério do grupo, ao contrário, tinha o riso fácil e adorava implicar com os garotos, fazendo brincadeirinhas inocentes e bobas, porém, de repente, ele parecia sério como se fosse outra pessoa, alguém sendo perseguido por uma sombra muito escura.
  - Ei. – tocou o ombro de , fazendo com que ele virasse para lhe encarar. – Podemos ir para sua casa com você.
  - Não precisa. – garantiu, fazendo que não depois de afastar gentilmente a mão de de seu ombro. – Mas não devo aparecer na escola, então vejo vocês a noite. Pro aniversário do .
  - Ah, sim. Não esqueçam disso. – concordou rapidamente, arrancando um riso leve dos amigos. – De madrugada já é meu aniversário.
  - E seu presente vai estar esperando. – riu da fala tão típica de , que assentiu, sorrindo de lado. – Até mais tarde, . – murmurou em seguida, virando para encarar o mais novo, que assentiu, já dando as costas para ir embora e deixá-los ali, porém antes que chegasse muito longe, chamaram por ele novamente:
  - ! – gritou e ele virou, vendo o garoto lhe estendendo seu diário, que ele carregava consigo para todo lado, mas ia esquecer ali, na picape de , graças a tensão que sempre lhe invadia quando Joshua invadia sua mente.
   voltou correndo para pegar o caderno onde anotava tudo. Ele gostava de escrever, lhe fazia bem e seus amigos não se importavam que tivesse aquele lado, aquela parte de sua mente que não se sentia a vontade para compartilhar com eles. Eles respeitavam e aquilo fazia se sentir bem consigo mesmo, bem em ter aquele espaço.
  - Obrigado. – disse por fim, acenando com a cabeça para os amigos antes de, finalmente, sair dali, segurando o caderno com firmeza demais entre os dedos.

+++

  Depois da meia-noite, era oficialmente aniversário do e, bem, poucas pessoas ficavam tão animadas com o próprio aniversário quanto ficava.
  Os garotos achavam divertido de assistir, gostavam de ver alegre como se aquilo, o fato de ele estar fazendo aniversário, significasse que tudo ia mudar, mesmo que aquilo nunca acontecesse de verdade. O pensamento era, na verdade, um tanto quanto triste, porém era revigorante também, ver que , vivendo como vivia, acreditava que tudo podia melhorar em algum momento.
  Para , pelo menos, parecia revigorante.
  Na maior parte do tempo, ele não achava que nada ia mudar, mas, mesmo com os problemas de família, se é que podia chamar o que tinha de família, não ligava de verdade. Achava que, enquanto tivesse os garotos consigo, estaria bem. Pouca coisa, afinal, se comparava aos cuidados que sempre tivera com ele, ou ao olhar sempre sábio e sereno, de , ou o sorriso feliz de , genuinamente feliz, e a confusão, no mínimo, amável que parecia estar sempre presente na expressão de .
   apreciava demais todas aquelas coisas e, para ele, aquilo representava a paz, o equilíbrio no meio do caos que viviam dia após dia. Foi por isso que o garoto insistira em tornar aquele dia especial para , sabia que seus amigos não ligavam para comemorar aquele tipo de data, não quando não achavam que havia muito que comemorar, mas merecia mais. merecia um dia realmente incrível, em que pudesse se sentir como se, de fato, as coisas fossem melhorar, como se já estivessem melhorando.
  Era o jeito que se sentia tendo os garotos por perto, afinal.
  Naquele momento, olhava de maneira divertida enquanto e mostravam traços específicos de pichação para , que tentava imitar o que eles faziam.
  , do outro lado, desenhava nos muros cinza e sem vida de uma escola, lhes dando cores com caricaturas curiosas de personagens famosos do infanto-juvenil. Por algum motivo, notá-lo pichando para alegrar as crianças que estudavam ali não surpreendeu , que deu um tapinha no ombro de antes de se aproximar dos outros três.
  - . – ele lhe estendeu uma latinha de cerveja e o garoto assentiu em agradecimento, abrindo a latinha e bebendo um grande gole antes de passar para , que fez o mesmo e lhe devolveu.
   deu um tapinha no ombro de .
  - Se divertindo? – sondou. Gostava de , gostava de verdade, mas ainda não tinha certeza se ele estava tão fudido quanto os garotos, a ponto de realmente encontrar paz criando caos, ter prazer na bagunça. Não era comum, afinal.
  - Eu nunca achei que fosse dizer isso, e nem sei se faz sentido, mas nunca me diverti tanto. Parece que eu não tinha ideia de como viver podia ser divertido, até então. – riu e ergueu as sobrancelhas, vendo em sua expressão exatamente a mesma animação que contemplava quando encarava os outros garotos em momentos como aquele. O mais velho desviou o olhar para , que os observava, e riu, as poucas ruguinhas que apareceram do lado de seus olhos lhe dando uma aparência ainda mais juvenil.
  - É claro que faz. – deu de ombros. – É o que todos nós sentimos da primeira vez. É inusitado demais, mas é incrível.
  - É, é sim. – concordou, sorrindo pra ele, que retribuiu antes de voltar a se concentrar em seu desenho, não antes de lhe estender a latinha de cerveja que até então dividia apenas com .
  Não havia dúvidas, era um deles.
   riu fraco e desviou o olhar para a estrada, imaginando encontrá-la vazia e então xingou baixo, vendo de longe os faróis das viaturas da policia.
  - Garotos, garotos! – gritou, chamando a atenção dos amigos. – Corram! Vamos, vamos!
  Eles jogaram as latas de cerveja e de tinta de qualquer jeito no chão e, exatamente como dissera, correram, tentando se afastar do alcance dos veículos para conseguir despistá-los. Claro que aquilo seria mais fácil se estivesse de carro, mas seu pai tomou dele depois que fizeram baderna na noite anterior e, como era de se esperar, terminaram sendo jogados contra a parede e algemados.
   olhou para em pânico e, em resposta, recebeu apenas uma piscadela despreocupada e divertida.

  - Por que você não disse de uma vez que seu pai é o xerife?! – perguntou, irritado, dentro da cela enquanto ria, sentado perto da grade, com a coluna encostada na parede.
  - Apesar de tudo, eu queria evitar mais um sermão. – deu de ombros e lhe encarou desconfiado, não acreditando completamente em suas palavras. Ele não parecia o tipo que se importava e, ao notar no que o garoto pensava, bufou. – E odeio precisar dele.
  - Como agora? – lhe encarou e, com um suspiro pesado, o garoto assentiu.
  - Não temos o melhor relacionamento do mundo. – disse simplesmente, fechando os olhos.
  Os outros garotos sabiam daquilo, sabiam que e o pai tinham problemas, mas não sabiam detalhes, ou se a mãe do garoto, de quem nunca falava, tinha algo a ver com aquilo. Contar a história de merda de vida não era exatamente requisito para aquela amizade, afinal e, quando ficou em silêncio, os meninos também não disseram mais nada, sabendo que ele entendera que era hora de parar de perguntar.
   estava deitado no chão, batendo os dedos na barriga sem realmente pensar em nada, enquanto apoiava a cabeça em uma das pernas de , também deitado e quase fechando os olhos. tocava uma bateria imaginária, sem realmente sentir seu sistema desacelerar ainda, depois de todo o álcool e da correria. Aquilo não surpreendeu , que riu fraco quando lhe encarou, porém antes que pudesse fazer algum comentário a respeito, outra voz chamou atenção dos garotos, uma voz que conhecia melhor do que qualquer um ali.
  - Da próxima vez, vou deixar você passar a noite aqui. Quero ver entrar em alguma faculdade com ficha na policia. – seu pai falou ao destrancar a cela, fazendo sinal para que os garotos saíssem de uma vez. Um a um, eles saíram, todos de cabeça baixa, exceto , que rolou os olhos para as palavras do pai, sendo o último a sair, com um pirulito na boca. Não havia sido revistado e nem mesmo trocado de roupa, já que logo seu pai apareceria para tirá-lo dali e todos na delegacia sabiam bem disso, portanto acabou ficando com o pirulito que estava em seu bolso desde o inicio da noite.
  - Como se você fosse deixar que algo estragasse o seu sonho de me ver longe daqui. – retrucou irônico ao tirar o doce da boca. Ele nunca levou a sério as ameaças do pai e sempre deixou claro aquilo. Seu pai não podia jogar com ele como fazia com os bandidos que interrogava.
  - Pro carro, . – o homem ordenou impaciente. rolou os olhos, colocando o pirulito de volta na boca e passando por ele sem falar mais nada. Seu pai resmungou um xingamento e virou para encarar os garotos. – Eu não quero saber de vocês aprontando mais, ouviram bem?! não vai estar aqui pra salvar a pele de vocês, moleques, pra sempre e eu não me importo em deixá-los apodrecer numa dessas celas. – praticamente cuspiu as palavras, dando as costas em seguida para encontrar o filho no carro.
  Nada do que ele dissera era realmente novidade para os garotos, que saíram em silêncio da delegacia, seguindo juntos para o barraco de sem que fosse preciso palavras para entrarem naquele acordo, sem nem imaginar que, na verdade, o xerife não lhes odiava tanto assim.
  Ele acreditava no futuro daqueles garotos, de verdade, mas eles precisavam de uma orientação maior, adultos que se importassem, porém, bem, nenhum deles tinha nada disso e, se soubessem o que o xerife pensava, continuariam duvidando do tal futuro no fim das contas justamente por isso. Sozinhos, contando apenas uns com os outros, tudo que sabiam fazer da vida era, basicamente, bagunça.

+++

  - Cara, a gente devia ter comprado uns balões ou algo assim. – murmurou, sentado no colchão de com os garotos enquanto esperavam que voltasse furioso para casa depois de ter levado um bolo dos amigos, que marcaram de encontrá-lo do outro lado da cidade, só para surpreendê-lo com uma festa surpresa em casa. Exceto que ele provavelmente esperava pela festa depois do bolo e não estava furioso, devia estar animado, cheio de expectativa. O que era uma droga, porque não tinham uma festa pra ele.
  - Desencana, . – rolou os olhos, rabugento. Ele estava especialmente mal humorado naquele dia. – Ele só está fazendo aniversário, não é como se merecesse um prêmio ou algo assim. Acontece todo ano.
  - Não seja estúpido, cara. É o . – reclamou e o garoto rolou os olhos, se pondo de pé.
  - O que vamos fazer, então? – perguntou, impaciente. – Já tem meia hora que ele parou de ligar, já deve estar voltando. Não temos nada pronto além de uma caixa de cerveja no cooler.
  - Bom, tem a torta que vocês me pediram pra trazer. – respondeu, apontando para o saco no chão, ao lado do cooler. – Já é uma festa se temos um bolo e bebidas, não?
  - Não vai ter graça. já espera que estejamos aqui, levando em conta que, no dia do aniversário dele, fizemos com que sumisse por duas horas. – resmungou, incomodado. – Sabia que não devíamos ter começado partida nenhuma antes dele chegar.
  - Fica calmo, . – interrompeu, sorrindo quando os amigos lhe encararam, todos ao mesmo tempo. – Tive uma ideia.

...

  Quando entrou em casa, encontrou tudo no mais perfeito silêncio, o colchão do jeito que deixara quando saíra e olhou em volta sem entender. Tinha certeza que os meninos estariam esperando ali, mas, bem, não estavam.
  E nem era como se desse para dizer que estavam escondidos, não havia realmente onde se esconder em sua casa e suspirou, jogando-se decepcionado no colchão. Sabia que os meninos não ligavam pra aquela coisa de aniversário, mas esperava que pelo menos fizesse alguma coisa, aparecesse ali ou sei lá. No caso de não conseguir convencer os meninos a lhe surpreender como ele achava que sabia que o garoto tentaria, pelo menos.
  O garoto passou a mão pelos cabelos e resmungou, se pondo de pé para ir até o banheiro e tomar um banho antes de dormir, mesmo que fosse cedo. Ainda não havia tido uma noite de sono digna desde o outro dia no túnel e já que seus amigos não estavam ali, pelo menos teria aquilo.
  Ou isso foi o que achou.
  Quando abriu a porta do banheiro, foi surpreendido por gritos exagerados vindos de lá dentro, enquanto ria e lhe puxava para dentro do cômodo.
  - Vocês deram uma festa pra mim no banheiro? – ele perguntou, chocado, enquanto via os garotos apertados na banheira, de onde saíram logo em seguida, por motivo nenhum além de jogar lá dentro, fazendo com que ele risse enquanto lhe faziam mergulhar na banheira vazia, exceto, é claro, pelos confetes e lantejoulas jogados lá dentro. – Não acredito que fizeram isso. – ele riu, empurrando para longe quando ele se jogou por cima dele.
  - Não seja um bebezão, . – retrucou, fazendo um bico exagerado para ele, como se tentasse lhe imitar enquanto chutava sua perna. riu, como se achasse graça de verdade de tentando fazer parecer que aquilo não era nada demais, lhe chutando de volta. Era a cara de , na verdade, evitar o sentimentalismo e agir como se não fizesse diferença, como se aquela atitude fosse uma grande besteira, mas não era, não para . O garoto sabia, afinal de contas, que eles não ligavam para o aniversário de ninguém, nem mesmo o do próprio , mas saber que se importava, que tinha afeição pela data, fora o suficiente para que eles decidissem fazer algo e aquilo fez se sentir bem, completo. Tinha mesmo os melhores amigos do mundo. – É sério, pare de me olhar assim. Foi o que encheu o saco para fazermos alguma coisa. – reclamou e riu, desviando o olhar para .
  - Não estou surpreso.
  - É claro que não. – concordou e ele riu, se esticando na banheira para abraçá-lo. – Feliz aniversário. – murmurou, mais baixo.
  - Obrigado, cara.
  - É, hm... Eu meio que tenho uma coisa pra contar, já que estamos todos aqui. – murmurou em seguida, mesmo que não quisesse. Ele sabia que trazer o assunto a tona no mínimo abalaria a festa, mas sabia que, em algum momento, precisava falar, especialmente levando em conta a resposta que estava pensando em dar para a proposta que recebera.
  - O que você fez? – perguntou ao lhe encarar, preocupado e olhou feio pra ele.
  - Não fiz nada, bundão.
  - Não era bebezão? – retrucou e estapeou sua nuca.
  - Me deixa falar, . – riu e o outro fez o mesmo, esperando que ele continuasse. voltou a ficar tenso e hesitou por um minuto, respirando fundo antes de finalmente contar. – Joshua me ofereceu um trabalho com ele. Sabe, com aquilo. – Com aquilo, queria dizer as drogas, mas os meninos não precisavam realmente que ele especificasse para saber.
  Ninguém falou nada, ainda assim, virando para encarar como se esperassem ele dizer o que achava para decidirem o que achavam também. Fazia sentido, afinal Joshua era “família” de e não deles.
  - Você... Vai trabalhar com ele? – perguntou a , sentindo que precisava ouvi-lo dizer que aceitara o emprego, que ia mesmo fazer aquilo e entrar naquele mundo para acreditar. Aquele não era o que conhecia e ele não podia imaginá-lo andando com Joshua sem sentir seu estômago se revirar e ter que engolir a bile.
  - Eu... Não sei? – a intenção não era soar como uma pergunta, mas foi o que acabou acontecendo e quando deu de ombros, sequer pareceu com o sempre cheio de si que todos ali conheciam, demonstrando tanta insegurança. O único motivo para sequer pensar em aceitar aquele trabalho era, ironicamente, , que também era o maior motivo de ele estar tão inseguro. Sabia que ele não ia gostar da ideia, mas a expressão de tristeza e decepção em seu rosto atingiu em cheio, que soube naquele instante que nunca poderia aceitar aquele trabalho, que sequer pensar no assunto fora estúpido, que dirá mencionar aquilo para .
  Fazer aquela expressão surgir no rosto de parecia seu pior pesadelo.
  - . – interveio, olhando para o garoto como se lhe dissesse para desfazer aquilo, deixar claro que não ia aceitar trabalho nenhum. já passava por coisas demais para ter que lidar com mais aquele problema, mesmo que na verdade a intenção de fosse apenas protegê-lo do irmão.
  - Não, eu... Não vou trabalhar com ele. – se corrigiu de uma vez, balançando a cabeça várias vezes para enfatizar suas palavras. – Ele só... Só convidou. Eu não sei direito porque, mas não vou aceitar. Eu só... Só mencionei.
  - Não se envolva com ele, . – falou, sério, sério como só ficava quando o assunto era aquele. Joshua ou o pai de Joshua, sua família desestruturada. – Não... Não faz isso.
  - Não vou. – assentiu rapidamente, querendo garantir que não ia. – Juro que não vou, . Eu só... Eu...
  - Chega desse assunto. – interrompeu, fazendo que não para ele sem que visse. sabia por que ele pensara em aceitar o trabalho, afinal, não era difícil imaginar, mas não entendera e, se entendesse, ia ficar arrasado. Imaginar que se meteria naquele mundo justamente por ele devastaria o garoto, que se culparia para sempre se algo acontecesse com por causa de Joshua e, céus, se acabasse se afastando de por causa de Joshua também... Não dava nem para imaginar o que aquilo faria com o mais novo. De todos ali, sempre foi de quem mais precisava, afinal. A ligação dos dois era mais antiga e, por consequência, mais intensa. – Vamos beber, que tal? – sugeriu por fim e arrastou o cooler com as cervejas para mais perto do banheiro.
  - É, ainda é aniversário do ! Vamos comemorar! – falou, jogando as cervejas para os amigos junto com . – Temos torta também!
  - Temos? Não acredito! – gargalhou, chocado que os amigos houvessem mesmo comprado uma torta. Quer dizer, esperava pela comemoração, esperava pela surpresa, por qualquer besteira que fosse, sabia que daria um jeito de não deixar o dia passar em branco, porém pela torta ele definitivamente não esperava.
  Sequer conseguia imaginar seus amigos comprando uma torta só para comemorar seu aniversário.
  - É, mas não temos velhinhas. Não vá se animando muito. – retrucou e riu, assentindo.
  - Tudo bem. – disse. – Está bom assim.
  E, naquele momento, tudo pareceu estar mesmo.
  Eles jogaram cartas, comeram bolo e beberam cerveja, rindo e falando besteira, apreciando a paz de espírito que lhes tomava quando estavam juntos, festejando quando tinham motivos e quando não tinham.
  Aquele laço, afinal de contas, o laço que lhes mantinha juntos, que tornava sua amizade tão intensa e verdadeira, era eterno. Uns aos outros era tudo que de fato tinham e tudo que achavam que sempre iam ter.
  Sua única certeza.

+++

  Levando em conta a vida que cada um dos garotos vivia, os dias vinham se passando de maneira calma, e eles estavam, na medida do possível, bem. Pelo menos, era nisso que gostavam de acreditar.
  Joshua quase não vinha estando em casa e aquilo devia estar deixando aliviado, satisfeito de não ter que lidar com todo tipo de sensação aterrorizante que lhe invadia quando ele estava por perto, mas, ao em vez disso, o garoto estava sempre alerta, como se cada dia em paz representasse um grau maior de intensidade a dor e o sofrimento quando eles chegassem.
  , é claro, não sabia ainda, mas estava certo quanto aquilo.
  Naquele momento, naquela noite, ele viveria o momento que daria o gatilho para o pior período de sua vida, afinal.
  Quando não estava com os amigos, costumava ficar em seu quarto, trancado escrevendo em seu diário ou simplesmente jogando qualquer besteira que fosse no celular, já que qualquer coisa parecia melhor que aturar Joshua e seu pai e, naquele dia não teria sido diferente, se ele não houvesse escutado Joshua e os amigos sendo exageradamente ruidosos do lado de fora.
   desejou poder simplesmente colocar um travesseiro na cabeça e abafar o som, ignorar, mas sabia que não. Não quando sua mãe não estava de plantão no hospital, o que significava que estava em algum lugar em casa, ao mesmo tempo em que Joshua e seus amigos. Se já não confiava em seu padrasto, que fora o homem que sua mãe escolhera para casar, piorou em Joshua.
  Sua mãe não era famosa por fazer boas escolhas, sabia bem daquilo depois de anos tentando apartar brigas do padrasto com ela, mas Joshua, infelizmente, não fora uma escolha. Ele viera no pacote e não havia muito que ou sua mãe pudessem fazer além de tolerar, levando em conta que viviam na casa do pai do garoto. não sabia por que sua mãe ainda ficava, depois de todas as brigas, de todas as agressões, mas ela não lhe dizia também, ou dizia coisa alguma, levando em conta que ignorar e qualquer tentativa de aproximação do garoto era o que ela fazia de melhor.
  Aquela era outra coisa que não entendia: Por que sua mãe lhe odiava.
  Ela ainda era jovem, talvez simplesmente não quisesse ter tido um filho cedo, um filho que arruinou sua vida, fez com que ela se casasse com o primeiro homem que a quis, mesmo com uma criança a tira-colo, e precisasse aceitar um emprego como zeladora num hospital grande demais, grande demais para que, em algum momento, as dores no corpo da mulher passassem depois de tanto tempo limpando e limpando. Talvez, ela culpasse . Por tudo que deu errado em sua vida.
  Ainda assim, tentava, continuava a tentar lhe conquistar de alguma forma, conquistar seu carinho e afeição simplesmente porque sua mãe era tudo que ele tinha, tudo além dos meninos, claro. Era diferente com ela, a mulher lhe colocara no mundo, faria tudo por ela, mesmo que ela não merecesse e ele sabia que não merecia. vivia dizendo aquilo para ele, que não precisava ficar fazendo tanto por ela, mas não entendia. O pai de lhe amou muito por todo o tempo em que estava vivo e ele sempre pôde contar com ele, mas ... Ele só queria saber como era a sensação. Como era poder contar com aquela pessoa que devia lhe amar incondicionalmente, poder ter essa pessoa.
  Era em tudo aquilo que o garoto pensava enquanto seguia para a cozinha, fazendo uma careta para a visão de um dos amigos de Joshua tentando se aproximar de sua mãe perto da mesa de jantar enquanto ela, insistentemente, recuava.
  Joshua ria de maneira embriagada, soprando a fumaça de seu cigarro pro alto. Os garotos estavam alterados e sua mãe obviamente desconfortável, tentando desconversar qualquer que fosse a insinuação que o outro fazia quando finalmente tocou sua cintura, lhe puxando para perto.
  - Ei, solta ela! – passou por Joshua apressando, empurrando o garoto que ele trouxera pra casa para longe de sua mãe, que olhou assustada para antes que o amigo de Joshua lhe empurrasse de volta, fazendo com que as costas de batessem de maneira dolorosa contra o concreto. Precisando conter o ímpeto de fechar os olhos, ele mordeu o lábio, tentando não emitir nenhum som enquanto sua mãe lhe olhava de maneira opressora.
  - Volte para o seu quarto. – ordenou, mas Joshua se pôs de pé antes que pudesse realmente se mover ou mesmo respondê-la, fazendo que não com o dedo enquanto se colocava entre os outros três. – Mandei parar e ir embora, . – sua mãe rolou os olhos, lhe empurrando quando ele tentou se colocar a sua frente para protegê-la, muito mais como se a presença e proximidade do garoto incomodassem a mulher do que como se a ideia de fazê-lo se meter numa briga a preocupasse. Como se lhe causasse asco ou algo assim.
  - Por que expulsar o quando ele acaba de dobrar a diversão? – Joshua lançou a sua madrasta um bico, como se estivesse muito magoado com ela. Os olhos do garoto, no entanto, refletiam sua embriaguez de maneira assustadora de tão perturbada. sentira o desprezo da mãe e lhe machucou exatamente como ele sabia que machucaria, porém, justamente pelo modo como Joshua agira, ele sabia que devia ignorar e defender a mulher, deixar pra sofrer por aquilo depois, quando ela estivesse segura. – Quer dizer, eu sei que você adoraria dar pro Cameron agora, você é uma vadia, sem dúvidas, mas é sempre mais divertido implicar com o garotinho indefeso que insiste em tentar me enfrentar, como se tivesse alguma chance. – Joshua acrescentou em seguida, rindo enquanto falava com a mulher, como se houvesse algo de muito hilariante em suas palavras. Seus olhos, no entanto, estavam em enquanto falava com sua mãe. E não pareciam dispostos a deixá-lo.
   engoliu em seco, olhando de sua mãe pra Joshua.
  Queria pedir que sua mãe saísse dali, mas não encontrava sua voz e, no fundo, achava que mesmo se encontrasse, não teria coragem de fazê-lo. tivera e ainda tinha que crescer do pior jeito, mas qualquer um podia ver que ele ainda precisava de proteção, que não dava conta de muita coisa sozinho e, definitivamente, não dava conta de proteger outra pessoa. Ficava aterrorizado com a ideia de ficar sozinho com Joshua e Cameron, sabendo que só tinha um jeito daquilo terminar e era com o sangue dele sujando a cozinha.
   sabia quais eram as probabilidades para a briga que estava comprando, afinal, ele não tinha a menor noção de luta ou condições físicas para enfrentar aqueles dois, que eram mais altos e mais fortes, mas aquela era sua mãe. Tanto quanto sabia daquilo tudo, do fim obvio para o embate, ele sabia que haveria um embate. Era irônico que ele estivesse tentando protegê-la quando nem mesmo conseguia respondê-la, mas ignorou o pensamento. Seus problemas com sua mãe, o fato de ela odiá-lo até mesmo quando ele estava tentando fazer algo por ele, sem que ele sequer tivesse certeza do porque, não significavam nada se ela estava em perigo. Não devia significar e foi isso que manteve em mente.
  - A única coisa divertida aqui vai ser vocês dois deixando minha mãe em paz. –se esforçou para retrucar, não conseguindo, no entanto, impor a seriedade que gostaria, soando muito mais como um garotinho amedrontado, que quase tremia. Joshua arqueou as sobrancelhas, achando graça da pose e respirou fundo, fechando os olhos por um instante e cerrando os punhos. O garoto soava bobo e sabia disso, mas não tinha jeito de ser diferente. Joshua não tinha medo dele e tudo que podia fazer era enfrentá-lo e não tentar agir como se Joshua quem fosse ter que enfrentá-lo. – Olha, Joshua, só... Não seja estúpido... – pediu, nervoso, suas mãos realmente chegavam a tremer agora. – Posso chamar a policia, então você, só... Só para, ok?! Não... Só... Deixe-a em paz. – piscava de maneira incessante, se atrapalhando pra falar enquanto os dois garotos pareciam se divertir as suas custas. Os olhos de Joshua brilhavam como os de uma criança na Disney ou algo assim.
  - Não é, sei lá, contra a lei bater em gente com problemas mentais? – Cameron encarou Joshua. – Talvez devêssemos pegar leve com ele.
  Seu amigo lhe encarou divertido em resposta, como se ele houvesse feito uma piada boa demais, levando até mesmo admiração aos seus olhos.
  - Eu já passei do meu tempo de ter medo da policia, . – Joshua, por fim, murmurou para , claramente ignorando as palavras do amigo enquanto se aproximava do mais novo. – Mas bem que achei muito feio da sua parte tentar me ameaçar assim. Acho que vou ter que te ensinar uma lição, hm-hm... – ele fez uma careta pensativa e rolou os olhos, lhe empurrando para longe, fazendo com que o outro cambaleasse graças a surpresa.
  - Uau! – Joshua exclamou, arregalando levemente os olhos para , numa surpresa humorada. – Suas bolas cresceram, ? – riu, fazendo menção de levar a mão para o meio das pernas de e apertar seus testículos numa provocação pervertida e distorcida, mas antes que ele o fizesse, o mais novo agiu por puro instinto e lançou o punho em sua direção, acertando seu rosto em cheio.
  Devia ser sorte, afinal técnica não era algo que possuía e ele definitivamente não era o mais forte naquela cozinha, então... Caramba, só podia ser sorte.
  - Já chega, parem de confusão antes que o pai de vocês chegue e se irrite. – a mãe de interveio impaciente enquanto empurrava o mais novo, olhando apreensiva na direção da porta. Claro, aquela era sua única preocupação, que seu marido chegasse e visse a bagunça que ela estava deixando acontecer. Joshua riu com desprezo, agora realmente sentindo a fúria inflamar dentro de si depois do soco que levara, em conjunto com a voz daquela mulher que ele tanto odiava zunindo em seu ouvido.
  - Quieta! – ele gritou para mulher, lhe estapeando com força o suficiente para fazê-la gemer e cambalear para trás. arregalou os olhos e voltou a avançar nele, empurrando o garoto com toda força que possuía, conseguindo assim fazer com que ele caísse para trás, com o tronco batendo dolorosamente no granito da mesa.
  Joshua xingou baixo, fazendo sinal para que seu amigo avançasse e, antes que pudesse prever, levou um soco no estômago, gemendo e dobrando o corpo. Como concluído, não tinha técnica, afinal se tivesse, saberia que abaixar a cabeça e dobrar o corpo daquele jeito numa luta era uma péssima ideia e só faria com que ele fosse ao chão mais rápido, o que, aliás, foi exatamente o que aconteceu.
  Quando curvou o corpo e baixou a cabeça de maneira tão desavisada, tão ingênua, Cameron agarrou sua cabeça e, com os braços segurando ali e toda a extensão de seu tronco que alcançava para imobilizá-lo, desferiu uma joelhada no mesmo lugar onde socara, depois outra e então mais outra, antes de pôr um dos pés entre os de e derrubá-lo no chão, o que foi extremamente fácil depois de enfraquecê-lo o suficiente para que ele não conseguisse reagir.
  - Viu, ? – Joshua lhe encarou com uma interrogação no olhar quando ele caiu, olhando ao mesmo tempo em que o mais novo enquanto sua mãe corria para fora da cozinha. Um sorrisinho irônico surgia nos lábios sujos de sangue de Joshua. – Ela nem gosta de você, eu não entendo por que está preocupado em defendê-la. – Joshua riu outra vez, fazendo sinal para que seu amigo fosse em frente e então ele atacou , indo por cima do garoto para socar seu rosto.
   até tentou se defender e virar o rosto, mas Joshua ficava empurrando sua cabeça de volta para a linha de mira do punho de Cameron, que estourava seu rosto cada vez mais.
  As pálpebras de pesaram e ele soube que cairia na inconsciência logo, com os chutes na costela que Joshua lhe dava enquanto o outro continuava a socar seu rosto, fazendo com que ele passasse a cuspir sangue a cada vez que jogava o corpo minimamente para frente, o risinho convencido de Joshua sendo a última coisa que ele viu antes de tudo ficar preto, se lembrando apenas de desejar que sua mãe não houvesse fugido, que houvesse ido apenas procurar ajuda.

...

  No fim das contas, sua mãe não havia ido buscar ajuda.
   se deu conta disso quando despertou no mesmo lugar onde perdera a consciência, no chão da cozinha, sem a menor noção de quanto tempo passara fora do ar. Não que sequer estivesse pensando naquilo.
  Seus pensamentos estavam embaralhados demais para que qualquer pergunta que rondasse sua mente pudesse ser facilmente decifrada por ele e sabia que era por causa da dor. Que a dor que sentia pelo corpo, as pontadas que faziam todas as ligações de seu corpo arder lhe impediam de pensar em qualquer coisa. Inclusive, no fato de ter sido abandonado.
  Naquele momento, estava tão tomado pela dor que não era capaz de pensar. E ficou assim pelo que lhe pareceu uma eternidade, deitado no mesmo lugar no chão da cozinha, até que as palavras aleatórias, que sozinhas e comparadas com a dor que tomava seu corpo, não machucavam tanto, começaram a pesar mais, a se juntar e ganhar significado.
   estava sozinho.
  Sua mãe lhe deixara ali, apanhando e simplesmente fugira.
  Estava sozinho.
  Sozinho, sozinho, sozinho.
  A cada vez que pensava na palavra, que ela se repetia em sua mente, era como se derrubassem algo pesado em sua cabeça e ele sentia o ímpeto de se encolher, mas se encolher doía e tudo que terminava por fazer era gemer, choramingar enquanto fechava e apertava os olhos, com as lágrimas salgadas descendo e molhando seu rosto, fazendo arder às partes machucadas pelas mãos agressivas de Cameron.
  Ele ainda passou tempo demais ali, chorando com os olhos fechados enquanto era atingido de maneira intensa demais pela solidão, que começou a fazer com que o garoto, além de tudo, sentisse frio. Ou talvez fosse a surra que levara, talvez estivesse com febre, talvez fosse alguma reação a perder tanto sangue... nem imaginava, não entendia nem os princípios mais básicos da medicina e tudo que sabia era que sentia frio, que sentia dor e não era capaz de se levantar sozinho, de mover o corpo de qualquer forma sem sentir dor.
  O garoto ficou preso naquele estado gelatinoso de consciência, paralisado, sem conseguir se mover por mais vários instantes, ouvindo o ruído perfeitamente cronometrado dos ponteiros no relógio de parede da cozinha enquanto chorava. passou tempo demais sentindo pena de si mesmo, sem conseguir encontrar racionalidade o suficiente dentro de si para pensar com clareza, de fato pensar e tentar chegar ao que deveria fazer, a uma maneira de se salvar. De fazer a dor passar.
  Quando o fez, fechou os olhos e respirou fundo, tentando, num esforço sobre-humano, erguer a cabeça, porém jogando-a para trás e chorando por não encontrar forças em seu corpo para mantê-la erguida, que dirá o resto do corpo. Enquanto chorava, o garoto pousou as duas mãos abertas no chão, apoiando o peso do corpo nas pernas enquanto impulsionava o corpo para frente, sentando-se com um ruído alto e doloroso. Ele não parou de chorar em nenhum momento, embora não soubesse mais se pela dor física ou por todos os pensamentos embaralhados em sua cabeça. Os pensamentos eram como facas afiadas demais, vindo de todos os lados, sem nenhum controle, mas lhe atingindo sem precedentes.
  Ele mordeu o lábio e tentou fazer as lágrimas voltarem para dentro, elas estavam lhe atrapalhando. Não lhe deixavam pensar ou ver e ele precisava se concentrar no que estava fazendo e só no que estava fazendo.
  Sentado, foi mais fácil para apoiar as mãos no móvel mais próximo e se levantar, embora assim que se viu apoiado nas próprias pernas outra vez, ele houvesse abaixado a cabeça e encostado na parede, chorando enquanto fechava os punhos, os apertando com força enquanto sentia raiva, frustração, tristeza, tudo.
  Ele se sentia incapaz, indesejável, e, acima de tudo, sozinho.
  Céus, se sentia tão sozinho acompanhado apenas do ruído do relógio da cozinha, preso em seu próprio inferno, enlouquecendo dentro daquela casa vazia e escura depois de ter sido espancado sabe-se lá por quanto tempo. Cada parte de seu corpo doía, mas aquilo sequer se comparava a solidão que lhe assolava, apertando seu coração como se fosse uma mão muito grande e pesada, que lhe espremia e deixava sem ar, chorando e sentindo tudo aquilo, de novo e de novo.
  Como sua mãe pudera não voltar? Por que ela faria isso, por que lhe odiava tanto? Por que... O que será que ele fizera?
   não parava de se perguntar, de imaginar em que momento de sua vida podia ter feito algo para que aquele momento chegasse, o momento em que tomava uma surra e acordava sozinho, sentindo-se a pior pessoa do mundo, que simplesmente era deixado sozinho daquela forma por sua própria mãe.
  Ele afastou a cabeça da parede e limpou as próprias lágrimas de maneira agressiva, tentando caminhar para fora da cozinha e quase caindo por não ter se apoiado em nada. No último instante, apertou com uma das mãos no granito da mesa, o mesmo granito contra o qual, sabe-se lá como, conseguira empurrar Joshua antes de terminar daquele jeito.
  Joshua havia estapeado sua mãe e... Talvez fosse isso, talvez a raiva houvesse deixado mais forte, embora agora ele se sentisse estúpido por ter sentido raiva e empurrado Joshua contra aquele maldito granito para acordar sozinho depois da surra que ele sabia que levaria. O pensamento da raiva, no entanto, persistiu, fez com que voltasse de novo e de novo no momento em que empurrou Joshua contra o mesmo granito no qual se segurava agora, apertando com mais força a cada instante e então entendeu: A raiva que sentiu naquele momento foi em vão, servira apenas para lhe fazer acordar decepcionado e com dor, porém lhe dera força, uma força que nem achava que tinha de verdade. E era daquilo que ele precisava naquele momento, afinal: precisava de forças.
  Fechou novamente os olhos e respirou fundo, apertando os punhos fechados novamente e canalizando a raiva que sempre teve vergonha de sentir. A raiva que sentia toda vez que via sua mãe beijar seu padrasto depois de levar um tapa, que sentia sempre que Joshua lhe dava aquele sorriso esnobe e zombeteiro, que sentia sempre, absolutamente todas as vezes, que sequer pensava naquela família. A raiva que ele sentia até mesmo da própria mãe, por nunca conseguir ser bom o suficiente para ela.
  Ele nunca admitiu aquilo, a raiva que sentia dela, sempre se culpou e jogou para o mais fundo possível dentro de si sentimentos e pensamentos como aquele, em que culpava a mãe e pensava que, se ela lhe odiava tanto e ele nem ao menos entendia porque, talvez o problema fosse ela, mas naquele momento, só naquele momento, ele se permitiu sentir aquela raiva. E aquela raiva lhe deu forças, fez arrastar o próprio corpo em direção a porta da frente de sua casa, um passo atrás do outro enquanto pensava em todas as vezes que se encolhera em sua cama e chorara por ela, por todo o afeto que nunca teria de quem mais queria. Toda a raiva por cada um daqueles momentos, por cada lágrima, fez com que fizesse o caminho até a casa ao lado e batesse na porta, de novo e de novo até ela finalmente ser aberta.
  - ? – a voz de soou confusa enquanto ele coçava os olhos e voltou a chorar assim que ouviu, mal conseguindo enxergar o amigo graças aos olhos inchados e chorou mais ainda por isso, querendo mais do que tudo olhar para ele, ver com clareza o rosto conhecido e constatar que não estava mais sozinho. – Céus, . – deu espaço para que ele entrasse, abalado com a visão do amigo naquele estado, com as lágrimas que não paravam de cair, com todo o quadro. – O que houve? Foi seu padrasto? Foi...
  - Joshua. – sussurrou em meio ao choro, que ficou tão intenso quando ele falou o nome do irmão que, de repente, o garoto estava soluçando, soluçando e tremendo.
   não conseguiu reagir, vendo os olhos do amigo tão inchados que mal se abriam, a roupa suja de sangue e, céus, tudo nele parecia com qualquer que fosse o conceito de dor, de sofrimento. Era impossível olhar para sem sentir o coração apertar e, de repente, estava furioso, balançando a cabeça enquanto pensava em arrancar a cabeça de Joshua, em sair pela mesma porta por onde entrara e encontrar o filho da puta e estourar seu rosto também, dobrar a dor que ele fizera sentir.
  - Você... Você... Puta merda. – fechou os olhos, respirando fundo. precisava de um banho, precisava cuidar dos ferimentos, fazer curativos e de uma coberta, de um remédio pra dor... Ele não parou de listar as coisas que ele precisava na cabeça, porém não conseguia se mover e sentiu raiva de si mesmo por isso também. não parava de chorar e ele sequer conseguia falar, mas que merda. gritou pela frustração que lhe dominou e socou a parede. Era pra cuidar dele, cuidar dele. Ficou repetindo aquilo para si mesmo até, por fim, respirar fundo e voltar a se aproximar do mais novo. – , você precisa de um banho. – falou, tentando soar tão racional quanto precisava. Tentando não sentir nada enquanto via seu melhor amigo daquele jeito, tão assustadoramente destruído. – Precisamos cuidar dos seus ferimentos. Vou te dar um banho e então te conseguir roupas limpas e remédios, ok? – ele falou, chamando com a cabeça para segui-lo, sem saber se devia tocá-lo, se não acabaria lhe machucando mais. – Consegue andar?
   conseguiu depois de apertar os punhos outra vez e se concentrar na raiva, mas não enxergava muito bem e o amigo precisou se aproximar e lhe ajudar depois de seu segundo tropeço, passando seu braço pelos próprios ombros para apoiar seu peso no próprio corpo, sentindo a dor de como se fosse dele enquanto ele gemia.
  - Vou matar ele. – murmurou, entrando no banheiro junto com depois de chutar a porta para abrir. Ele estava com tanta raiva, céus. Podia realmente passar com um carro por cima de Joshua, enfiar uma faca em seu estômago e girá-la, podia, céus... A lista de coisas que podia fazer para machucá-lo era interminável. – Eu vou matar ele, . Juro pra você. – disse quando precisou segurar o amigo para impedi-lo de cair quando tentou se despir sozinho.
  Ele manteve as mãos segurando , lhe dando apoio para que ele não caísse e os olhos nos seus, sérios, firmes, tentando lhe passar alguma sensação de proteção ou estabilidade, o que fosse, mas só abaixou a cabeça e chorou mais, fazendo um nó se instalar na garganta de , que precisou virar e limpar o rosto no ombro para que não visse quando seus olhos marejaram também, esquecendo-se que o mais novo não estava enxergando muita coisa e não veria suas lágrimas. Não veria nada direito.

...

  Em algum momento, sentou no chão do banheiro e ficou daquele jeito, abraçando as próprias pernas enquanto chorava debaixo do chuveiro e sentou do lado de fora do boxe com a toalha no colo, as pernas também dobradas enquanto encarava o amigo.
  Ele decidiu que aquele era o melhor jeito de tomar banho e simplesmente deixou que a água lavasse suas feridas, mesmo que doesse, mesmo que ardesse como não tinha duvidas que acontecia. Algo dizia a que sequer estava sentindo, parecendo tão frágil e quebrado ali embaixo da água, com o rosto escondido no próprio abraço. Algo dizia a que aquela dor, aquele ardido do encontro da água com os ferimentos abertos, devia ser muito superficial para , que estava muito quebrado, em todos os sentidos possíveis, para que aquele leve incomodo sequer se fizesse presente em sua cabeça bagunçada, em seu coração triste.
  E pensar naquilo fazia se sentir triste também e fazia seu coração apertar, o espírito perder a luz, porque ver a luz de apagada apagava também a de qualquer outra pessoa.
  Depois do banho, quando conseguiu encontrar forças para fazer se levantar outra vez, para encarar seus olhos inchados e fazê-lo choramingar mais por obrigá-lo a andar, lhe ajudou a se vestir e foi buscar um analgésico para o garoto. Quando voltou para o quarto, lhe encontrou sentado na ponta da cama, com o olhar vago e a expressão abatida, abatida como quem levara uma surra muito maior do que a física, como quem tivera o espírito espancado também.
  - Ela tinha ido embora quando acordei. – murmurou quando se sentou perto dele, lhe estendendo o comprimido que o garoto não pareceu notar inicialmente, perdido em sua própria dor. – Joshua e seu amigo estavam mexendo com ela, então eu intervim, eu os fiz pararem e levei uma surra, mas ela... Ela não fez nada. – fungou e viu as lágrimas fazerem seu caminho por seu rosto, fazendo a expressão triste de seu amigo doer ainda mais aos seus olhos. – Eu a vi correr quando cai, mas quis acreditar que foi buscar ajuda, que ia me salvar. – ele balançou a cabeça, finalmente notando o comprimido que estendia para ele, tomando em sua mão e engolindo sem a água mesmo, ainda que também lhe estendesse um copo com o liquido. – Mas acordei sozinho. Ela... Ela não foi atrás de ajuda, ela... Ela me deixou sozinho, .
   podia estar com o rosto estourado, com cortes na boca e os olhos inchados, a região abaixo deles roxa, mas ainda assim, mesmo praticamente deformado, pôde ver a dor em sua expressão como se nenhum daqueles artifícios existisse, ele pôde ver cada parte do rosto de demonstrando a exata tristeza que ele sentia e suspirou, puxando com cuidado o garoto para seu abraço, tentando não machucá-lo ao consolá-lo e abaixou a cabeça, pousando a testa em seu ombro.
   sentiu suas lágrimas molharem sua roupa, mas não se importou, pousando levemente a cabeça no topo da sua enquanto pensava que era a melhor pessoa que ele conhecia, a alma mais pura e, céus, por que coisas como aquela tinham que acontecer com pessoas como ele?! Com pessoas que mereciam nada além das melhores coisas do mundo?!
  Além de inconformado, se sentia frustrado e com raiva, irritado para se dizer o mínimo, e enquanto abraçava , desejou poder privá-lo de qualquer mal, poder protegê-lo durante todo o tempo, e soube, soube naquele momento, enquanto seu amigo chorava, mais quebrado do que nunca, em seus braços, que não deixaria as coisas como estavam. Que retribuiria o que Joshua fizera e acharia um modo de atingi-lo também, de vingar .
  Ele ia vingar o amigo e então protegê-lo, garantir que nada jamais o machucasse de novo, mesmo que, para isso, precisasse tirá-lo a força da casa de sua mãe. Ou, ao menos, isso era o que achava.
  O problema é que a vida quase nunca tinha planos iguais aos dele.

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  Ainda não havia amanhecido direito quando acordou e ele chegou a conclusão que não havia passado tanto tempo quanto imaginou no chão da cozinha de sua casa. Uns dez ou cinco minutos, talvez, e então seguira para a casa de , que cuidara dele e lhe cobrira quando ele pegara no sono, para acordar três, três horas e meia depois, quando o céu já não estava mais tão escuro, porém ainda não havia clareado completamente também.
  Os meninos estavam todos juntos no quarto, conversando baixinho, com expressões tensas que refletiram no estado de espírito do garoto, que de repente não sentia apenas dor. voltou a sentir a preocupação que lhe acompanhava todos os dias de sua vida, dessa vez com uma dose extra de exaustão enquanto reconhecia o pesar no olhar de cada um dos garotos, que lhe encaravam com tristeza.
  - Ei, cara. – foi o primeiro a falar, abrindo um pequeno sorriso para o mais novo, embora seus olhos ainda revelassem muito do que seu sorriso tentava esconder. Havia algo errado.
  - O que... O que está acontecendo? – perguntou, se esforçando para se sentar na cama, fazendo com que os garotos sentissem coisa demais com a visão do amigo tão destruído, de tantas maneiras. Era impossível, afinal, não ver que a surra não doera só no corpo de .
  , em especial, sequer havia dormido aquela noite, com a mente viajando para os lugares mais sombrios a cada vez que ouvia reclamar em meio ao seu sono, o olhar preocupado e levemente inocente agora denunciando que ele nem tinha ideia que chorara enquanto dormia. voltou, enquanto olhava para ele, em cada um daqueles lugares, em toda a raiva, toda a tristeza, todas as sensações tóxicas que ficaram indo e voltando durante a noite enquanto via o mais novo dormir, enquanto ponderava se falava ou não com os amigos.
   sabia, afinal de contas, que ia tentar impedi-lo, de, nas palavras dele, fazer besteira, ou, agir por impulso, exatamente como passara uma hora inteira tentando fazer, desde que chegou com os outros garotos e lhes contou o que aconteceu.
  - Nada, está tudo...
  - Não diga isso. – interrompeu , rolando os olhos com desprezo. Ele não ia mesmo fazer aquilo, ia? Tentar tranquilizar de maneira tão porca depois de o garoto ter passado pela pior noite de sua vida? De ter constatado exatamente tudo que lhe dissera centenas de vezes a respeito de sua mãe? Céus, como queria estar errado a respeito dela, mas não, a mulher apenas provara ser exatamente quem ele pensara e sequer sabia de quem tinha mais raiva, de Joshua ou dela. – É só olhar pro garoto, . não está bem, nada está bem e, você pode falar o que quiser, pode tentar me convencer como for, mas eu não vou ficar parado. Eu vou fazer alguma coisa.
  - O que você vai fazer? – perguntou, parecendo perdido, e, bem, não era pra menos. Ele havia dormido durante toda a discussão, não sabia do que os meninos estavam falando.
  - O galpão onde ele e os amigos fabricam drogas fica no alto daquele penhasco, perto dos limites da cidade, não é? – encarou o mais novo, que assentiu, como se não houvesse entendido ainda onde ele queria chegar. deu de ombros. – Joshua é um fudido sem as drogas, então é o que vamos tirar dele. Sendo honestos, sabemos que é tudo que importa pra ele, então... É como vamos atingi-lo.
  - Podemos acabar mortos. – resmungou e olhou com certa raiva para ele, que deu de ombros. – Podemos, ! Ele é perigoso! Estou com tanta raiva pelo que ele fez com quanto você, mas precisamos ser racional, ok?! Isso não é uma boa ideia!
  - Bom, eu vou fazer. – declarou, dando de ombros. – Pode vir comigo ou não, mas estou decidido, .
  - . – chamou, falando um pouco mais alto para ser ouvido por cima da discussão. O timbre de , sempre mais doce e suave que qualquer outro, fez os meninos ficarem em silêncio, todos virando para lhe encarar ao mesmo tempo. Havia tanta coisa em seus olhos, tantos sentimentos misturados, esmagando uns aos outros de maneira tão agressiva que os meninos foram capazes apenas de imaginar a bagunça que estaria sua cabeça, em quantos pedaços seu coração estava quebrado. – O que você vai fazer? O que vai fazer com o galpão? – quis saber, encarando apenas e ficou tenso, entendendo que ele não estava com medo e aquilo era ruim.
  Depois da noite passada, parecia ter chegado a um extremo em que não havia espaço para o medo, estava quebrado e só queria quebrar Joshua de volta. E aquilo não era bom, porque o medo lhe ajudava a sobreviver, lhe lembrava que Joshua tinha uma arma e que não podia, por mais que quisesse, agir sem pensar por sentir raiva, por estar triste ou o que quer que fosse. Porque Joshua podia e ia matá-lo se precisasse.
  - Colocar fogo. – , por fim, respondeu a e a impressão que o mais novo teve foi que estavam todos prendendo o ar, que, de repente, pairava sem qualquer movimento acima de suas cabeças. Numa situação diferente, num momento diferente, teria imaginado o que significava ele ter aquela decisão em mãos, se iam ou não fazer aquilo. teria pensado no tipo de pessoa que era e que queria ser e em como reagir a Joshua, comprar aquela briga de maneira tão definitiva, lhe distanciava daquele pessoa, tanto de quem era, quanto de quem queria ser, mas naquela situação, naquele momento, não pensou em nada daquilo. Ao em vez disso, ele viu novamente Joshua de pé, empurrando sua cabeça sempre que ele tentava desviar de um soco de Cameron, Joshua rindo e zombando dele quando sua mãe fugiu, Joshua causando, junto com sua mãe, cada uma das feridas em seu corpo, muito longe de cicatrizar.
  O inchaço nos olhos de diminuíra e ele estava enxergando melhor, de forma que viu com clareza a expressão no rosto de cada um de seus amigos antes de voltar a encarar . , assim com , estava apreensivo, e triste também. Tristeza era algo que nunca conseguia esconder e ele parecia ficar mais triste a cada vez que olhava para e era obrigado a encarar seus ferimentos. não estava surpreso com aquilo, ou com o medo nos olhos de , que também sustentava um pouco de pesar na expressão, algo que ele tentava, sem sucesso, esconder.
  Nada daquilo, no entanto, impediu de encarar e assentir.
  - Então, vamos. – disse, travando a mandíbula um instante depois, a firmeza de sua expressão de repente vacilando quando seu lábio inferior tremeu e os meninos puderam ver o mesmo garotinho que sempre fora, o mesmo garotinho que só queria causar dor a outra pessoa, a pessoa culpada pela sua própria dor, na esperança que aquilo extinguisse o aperto em seu peito, que o transferisse para quem devia sentir aquilo desde o inicio.
  E nenhum dos garotos jamais seria capaz de negar algo para aquele garotinho.

...

   estava preocupado.
  Ele queria ligar para seu pai e contar do que estavam fazendo, queria pedir sua ajuda, pedir que aparecesse e impedisse os garotos de irem em frente, imaginando que assim, talvez, lhes salvasse de um destino pior, mas lhe conhecia bem, sabia no que ele estava pensando e lhe tomou o celular.
  O penhasco devia ter vinte, vinte e cinco metros de altura, e o tal galpão dos garotos ocupava grande parte dele, ou, pelo menos, a maior parte não coberta por mato.
  Os garotos deixaram o carro lá embaixo e subiram entre ofegos e puxadas bruscas de ar, num silêncio intenso. Não era como quando faziam baderna e se divertiam, aquilo era perigoso e todos estavam tensos, preocupados.
  Assim que subiram, enfiou as mãos no casaco e olhou em volta, para seus amigos. não dissera nada o caminho todo e não parecia inclinado a dizer nada naquele momento também, segurando um galão de gasolina enquanto segurava o outro.
  - Vocês têm certeza? – perguntou aos dois pela última vez. Era tarde demais para argumentar e tentar fazê-los pensar direito, ver os ricos daquilo, e perguntar aquilo era tudo que podia fazer. Não era como se sequer fosse pensar em dar pra trás e deixá-los sozinhos, mas estava, definitivamente, preocupado. Com medo do desfecho daquele dia, que sequer raiara direito.
  - Aqui. – lhe estendeu seu celular, rolando os olhos. – Se te faz sentir melhor, fique com ele em mãos. Ligue se as coisas ficarem feias, mas...
  - Elas não vão ficar. – assentiu, sabendo no que ele estava pensando enquanto guardava o celular no bolso, respirando fundo e pegando o isqueiro no outro bolso. – Vamos logo com isso.
   assentiu e fez sinal para que começasse, então ele desenroscou a tampa de seu galão, fazendo uma trilha com a gasolina em volta de todo o perímetro do galpão. se juntou a ele em seguida e tocou o celular no bolso, com um péssimo pressentimento enquanto desviava o olhar para os outros dois.
   e estavam pouco atrás dos três, em silêncio também, porém não era como se precisassem falar para que os amigos soubessem o que tinham em mente. Não tinham a menor certeza quanto ao que estavam fazendo, estavam com medo, assustados e preocupados, preocupados com o desfecho daquele dia como , com o mesmo pressentimento ruim que não conseguiam decifrar, porém nada daquilo importava. Estavam ali, porque, acima de tudo, era seu amigo e, se aquilo era o que queria, se era o que ele achava que ia lhe ajudar a curar as feridas, então eles iam enfrentar o medo, ignorar o pressentimento e fazer o que tinham que fazer.
  Ninguém chegou, no entanto, a atear fogo na gasolina depois que os dois garotos jogaram os galões vazios penhasco a baixo simplesmente porque foram pegos de surpresa pela chegada da companhia inesperada e, definitivamente indesejada, de Joshua e seus amigos.
  - Que porra é essa aqui?! – Joshua gritou assim que viu os garotos, no instante em que terminou de subir o penhasco. , imediatamente parou o que fazia, lhe encarando e os meninos fizeram o mesmo, todos calculando as probabilidades ao mesmo tempo, tentando chegar a uma fuga segura. – Eu fiz uma pergunta, porra! – Joshua gritou, estreitando os olhos enquanto olhava de um garoto para o outro, tentando decifrar o que estavam fazendo ali. – Estão me roubando? Tiveram o caralho da audácia de tentar me roubar?! – Joshua esbravejou, empurrando e fazendo com que ele caísse no chão, segurando o celular antes que ele visse quando escapou do bolso.
  - Peguem eles! – Joshua gritou para seus amigos, que já não acreditava ser algo além de seus capangas. e se entreolharam e, rapidamente, correram, para longe dos capangas e para cima deles, acertando um soco certeiro num deles antes de desviar do outro, que entrou numa luta com ele.
   olhou assustado para os lados, tentando pensar no que fazer, numa forma de defender e proteger os amigos, qualquer coisa e seus olhos encontraram os de , que viu o pedido de socorro em seus olhos e mordeu o lábio, olhando dos homens de Joshua para e então para baixo, para o celular escondido em suas mãos.
  No instante seguinte, virou de bruços sob os cascalhos onde caíra, como se houvesse caído daquela forma, e usou a discagem rápida para ligar para o pai, repousando nervoso a orelha por cima do celular, olhando simultaneamente em volta, para os amigos. estava perto demais da beira do penhasco e notar aquilo fez prender o ar, mas lhe puxou para longe dali quando o viu, murmurando algo para o garoto que não pôde ouvir.
  - ? – a voz de seu pai chamou sua atenção, fazendo com que ele voltasse a se concentrar no celular, olhando em volta para garantir que ninguém reparava nele antes de falar.
  - Pai, estamos no alto do penhasco nos limites da cidade. Pai... – ele parou, balançando a cabeça. Céus, ele estava entrando em desespero. Era o mais racional do grupo e deitado ali, vendo Joshua prendendo contra a parede e lhe enforcando, estava entrando em desespero.
  - O quê?! – seu pai esbravejou ao lhe interromper, não parecendo acreditar. – O que está fazendo num lugar desses, ? O que aconteceu?
  - Pai, vem, por favor. – choramingou, sem desviar o olhar de e, se seu pai respondeu, ele não pôde ouvir, pois, no instante seguinte, foi puxado para cima por um dos capangas de Joshua.
  - Seu garoto de merda, com quem estava falando?! – o homem gritou, lhe socando antes que ele pudesse responder. virou o rosto para o lado, sentindo a região abaixo do olho arder com o golpe. – Responde, desgraçado! – o homem fez menção de lhe socar novamente, mas conseguiu reagir e desviar, socando seu estômago e lhe desestabilizando com o golpe.
  Ofegante, ele procurou com os olhos novamente.
  - Sabe o que vai acontecer aqui, não é, ? – Joshua murmurava para o garoto, ainda lhe prendendo contra a parede. – Seus amigos vão morrer. Você não, eu nunca deixaria você se livrar tão fácil, mas eles? Eles vão morrer e você vai ficar sozinho. – riu, estapeando de leve seu rosto. – E vai ser tudo culpa sua.
   estava paralisado, queria reagir, socar ou chutar o garoto, fazer alguma coisa, qualquer coisa, porém não conseguia se mover. O funcionamento de seu corpo não parecia o mesmo e Joshua riu, como se soubesse de seu poder sob ele. Como se soubesse da raiva que estava sentindo naquele momento por nunca ser capaz de enfrentá-lo como gostaria, soltando o garoto e fazendo com que ele caísse no chão antes de tirar o revólver da cintura e atirar para o alto, chamando a atenção para si.
  - Chefe, o filho do xerife fez uma ligação! – um dos homens gritou e Joshua riu, desviando surpreso o olhar para , que engoliu em seco.
  - Pediu ajuda do papaizinho? – Joshua perguntou, lhe encarando com zombaria no olhar. – Seu pai nunca vai chegar a tempo, . Ele não vai poder impedir isso. – sem desviar o olhar de , ele disparou na direção de , fazendo com que a bala atingisse de raspão seu braço, assustando a todos os garotos.
   então correu em sua direção, pulando no garoto e passando um braço ao redor de seu pescoço para enforcá-lo, quase derrubando aos dois juntos por isso, mas realmente não se importou, apertando cada vez com mais força em seu pescoço enquanto Joshua gritava, perdendo a voz conforme sua traqueia ficava comprometida e precisou usar toda força de seu corpo para empurrar para longe, fazendo com que o garoto caísse.
   xingou e puxou o isqueiro do bolso, acendendo.
  - Joshua! – gritou, chamando atenção dele pra si. – Não viemos roubar a merda do seu material, viemos destruir e é exatamente o que vamos fazer. – ele estendeu mais a mão com o isqueiro na direção do galpão, que já estava encharcado com gasolina. – Já jogamos a gasolina, só o que falta é o fogo. E todos nós temos isqueiro.
  Joshua travou a mandíbula, olhando dele para o galpão.
  - Você está blefando. – olhou em seus olhos, como se o desafiasse a ir em frente, mesmo que em sua mente pensasse em toda a droga dentro do galpão, a droga que representava dinheiro demais para Joshua, dinheiro que ele, definitivamente, não estava disposto a perder por causa de e seus amigos. – Não teria coragem.
  - Você não pode contar com isso. Sabe disso, não sabe? – retrucou, arqueando as sobrancelhas como se perguntasse se ele queria mesmo arriscar e Joshua engoliu em seco, arrancando um sorriso dele por isso. – Deixe os garotos irem. Deixe irem agora. – ordenou e Joshua riu, olhando brevemente para algo atrás dele.
   não pôde deixar de notar e olhou para primeiro, como se perguntasse se ele também havia visto. Ao mesmo tempo, os dois viraram a cabeça e olharam para o mesmo ponto que Joshua focara um instante antes, vendo de pé na beira do abismo, com o cano de uma arma sendo segurado dentro de sua boca por um dos capangas, as mãos erguidas no alto, acima de sua cabeça. As pernas estavam a uma distância perigosa uma da outra, muito perto da beira de forma que um de seus pés estava curvado.
  A visão atingiu os meninos em cheio, que se perguntaram como chegaram aquele extremo. Cada um estava preso em seu próprio papel no embate e ninguém viu quando adquiriu o papel de refém, quando tomou para si aquele mártir e, de repente, seus olhos estavam arregalados, no mais puro terror, que refletia também o terror que tomava os garotos ao mesmo tempo. olhou para trás, como se tivesse esperanças de algo ou alguém aparecer e reverter a situação, e viu, viu, mas soube que mesmo que o xerife chegasse naquele instante seria tarde demais. Tudo que o capanga, do qual não sabiam o nome, precisava era um movimento de dedo.
  - Onde está todo seu fogo agora, ? – Joshua finalmente olhou novamente para o garoto a sua frente, que, no entanto, não desviou o olhar de . Ele queria correr em sua direção, queria salvá-lo, queria fazer alguma coisa, mas não conseguia se mover, preso ao pior estado de paralisia no qual já estivera, antes de ouvir o disparo. O disparo que, ironicamente, indicou que era tarde demais, que perderam , foi o que devolveu os sentidos a .
  Junto com os garotos, ele correu em uma falha tentativa de impedir o que já era iminente, o que já havia acontecido. No fundo, todo o desespero que sentiam deixava óbvio que não tinha mais volta, tinham perdido . O tiro foi certeiro, afinal, não tinha como errar e, pior, não havia qualquer possibilidade dele ficar vivo depois de recebê-lo. Não que isso os tivesse impedido de correr, tendo tempo apenas de vê-lo despencar desfiladeiro abaixo, posteriormente manchando com seu sangue as pedras na beira do rio para onde o fim de sua queda o levaria.
  Ele já estava morto quando seu corpo finalmente atingiu o fundo, mas mesmo sem ver, as mentes traiçoeiras dos garotos corroídas de maneira agressiva pelo choque e pela culpa lhes mostraram imagens que não existiam de se debatendo na água, de seu corpo pouco a pouco perdendo forças, mesmo que, na verdade, ele já estivesse morto quando caíra. Sem nenhuma gota de vida restante, morrera com o gatilho da arma e não com a queda, que só serviu para aumentar o pesadelo que aquela manhã seria, para sempre, na vida dos garotos.

Atualmente

  O xerife não demorou nem mais um minuto inteiro pra chegar, mas já era tarde demais para . Joshua e seus subordinados ele prendeu, mas era tarde demais para . E continuou sendo tarde demais para quando se ajoelhou e agarrou a própria cabeça, chorando.
  Continuou sendo tarde demais quando descontou toda sua dor no pai, gritando e lhe acusando, lhe culpando por não ter chegado a tempo e continuou sendo tarde demais quando os joelhos de cederam e seu corpo foi ao chão, enquanto ele repassava o exato momento em que Joshua sorriu e ele seguiu seu olhar, que viu rendido da pior maneira possível. Enquanto repassava tudo antes disso, tomando para si toda a culpa da tragédia.
  E continuou sendo tarde demais por todos os meses que se seguiram, enquanto os garotos choravam inconformados no enterro e, depois, em suas camas, até que o sono e o cansaço finalmente vencessem a dor e as lágrimas.
  Não era tarde demais, no entanto, para os garotos e cada um encontrou sua própria salvação de uma forma diferente, porém todos longe dali. Ninguém conseguia seguir em frente naquela cidade, afinal de contas.
   devia ter imaginado que, uma hora ou outra, iria também. Errou por não acreditar que ele fosse capaz, mas agora sabia, sabia antes mesmo dele falar.
  - Consegui um emprego. – , por fim, quebrou o silêncio e o contato visual, abaixando a cabeça como se sentisse culpa. – Vou embora.
   não disse nada, levando tempo demais para absorver suas palavras, mesmo que já soubesse que elas viriam antes que o garoto falasse.
  - Você também? – foi o que acabou saindo, a voz baixa denunciando sua vulnerabilidade, denunciando quão despreparado ele estava para o momento, ainda que, no fundo de sua mente, devesse saber que aquilo aconteceria, devesse saber desde que partira antes de todos para fazer faculdade.
  , no entanto... Céus, era . Doía, não havia como negar, doía que, de todas as pessoas, ele fosse houvesse chegado ao ponto de dar adeus também. Dar as costas.
   bufou, dando as costas como se não pudesse lhe encarar enquanto fazia aquilo e arregalou os olhos, só então entendendo o que ele queria dizer: Ia embora agora.
  - ! – se pôs de pé, a urgência em sua voz era óbvia. Doía e não teve coragem de lhe encarar, então puxou seu ombro de maneira agressiva para fazê-lo virar de frente para ele, obrigá-lo a olhar em seus olhos. – Como pode fazer isso? – o brilho de tristeza e decepção nos olhos de era intenso demais. Ele havia parado de chorar desde que caíra, mas sabia que não ia aguentar muito mais tempo. Ia chorar novamente e ele não ia conseguir ver e saber que, daquela vez, a culpa seria dele e só dele.
  - Eu não posso reagir, superar, seguir em frente... Seja lá como você queira chamar, preso nessa cidade, . – ele resmungou, se desvencilhando do garoto e pegando a mochila onde já havia enfiado suas coisas. Não ia dar pra levar tudo, é claro, mas talvez fosse bom. Talvez ele precisasse deixar algumas coisas para trás também. – Não posso ficar preso aqui porque você acha que tem que ficar com uma mãe que nem mesmo se importa com você. – foi a última coisa que ele disse, passando por e logo depois pela porta, sem olhar para trás.
  Sozinho, sucumbiu às lágrimas e a solidão no momento em que a porta foi fechada, separando definitivamente os dois garotos.



Comentários da autora


NOTA: Oi, gente, tudo bem? ~aparecendo só com metade da cabeça pra fora do esconderijo.
Seguinte, esse plot não é meu, é da Mayara, minha amiga de longa data e uma das autoras que eu mais amo e admiro. Mas, como vocês podem notar por essa fic, ela é má. Escrevemos duas fics entrelaçadas, eu escrevi essa e ela a outra, sequência independente dessa, que se chama “I Need U”. Eu vou deixar aqui o link do grupinho de leitores dela no Facebook, assim vocês vão poder descobrir onde encontrá-la, tá?
Enfim, se vocês estiverem com raiva, querendo xingar, matar, e etc, é com ela, pelo amor de Deus, eu não tenho seguro de vida não HAHAHAHAHA
Mas, falando sério agora: Quando a Mayh sugeriu que escrevêssemos as histórias entrelaçadas, eu nem pensei muito, só fui. Fiquei meio tensa porque nem tinha ideia de plot e depois mais tensa ainda quando ela me contou o plot e eu só consegui pensar "eita!".
Primeiro que, eu nunca nem escrevi sem uma pp na fanfic, a presença feminina sempre existiu e essa foi a minha primeira que eu consigo me lembrar que o foco é inteiramente e amizade dos garotos. Eu fiquei com bastante medo de pegar e, no meio da história, desanimar por isso, mas, para a minha surpresa, cada pedacinho do processo de escrita dela foi fe-no-me-nal, e, enfim, eu até comentei com a Mayh sobre como foi satisfatório escrever sem precisar ficar desejando acabar logo, porque tava fluindo muito bem e eu estava realmente gostando do que estava saindo.
Eu espero, portanto, que vocês tenham gostado, pelo menos um pouquinho que seja, também HAHAHA peço que comentem, por favor! Beijos, leiam I Need U, comentem lá, comentem aqui, stay safe! <3