Rivers
Escrito por Karol Oliveira | Revisado por Francielle
Profundo, selvagem. ¹
- 3, 2, 1... Vira, vira.
Aqueles gritos vinham de pessoas que nunca havia visto, virei meu décimo copo, ou sei lá em que número eu estava. Senti o líquido descendo e quase me rasgando por dentro. Corri para o banheiro, tranquei a porta e depositei meu corpo naquele chão imundo. Os pensamentos que me invadiam agora eram aqueles que eu tanto desejava esquecer. Levantei-me, olhei-me no espelho e não reconheci aquele rosto. Magro, com olheiras profundas que provavelmente nenhuma maquiagem seria capaz de esconder.
Ignorei meu próprio pedido de socorro. Fingi mais uma vez que nada estava acontecendo. Lavei o rosto, pretendia voltar para a festa. Já não importava mais mesmo, era só mais uma noite. Ao abrir a porta, um corpo caiu sobre o meu. Era maior e mais pesado, então, consequentemente também fui para o chão. Olhei aquilo sem entender, era um anjo talvez? Um anjo cheirando a vômito e provavelmente bêbado.
Ele abriu os olhos e sorriu, não pude evitar o sorriso que já se formava em meu rosto por aquele simples gesto de alguém que parecia estar pior que eu, mas que ainda assim conseguia ser incrivelmente lindo.
Com alguma dificuldade, mais dele do que minha, consegui o fazer sentar no vaso sanitário. Peguei uma toalha molhada e passei em seu rosto. Ele mais uma vez abriu os olhos calmamente e sorriu. Balbuciou um obrigada que eu praticamente fantasiei, mas ele havia dito aquilo mesmo, só era difícil entender.
- Você já sentiu como se o mundo estivesse desmoronando? – ele me disse com um brilho triste nos olhos.
- Todo tempo. – respondi.
- Olha só, nós somos dois fodidos então? Temos algo em comum. . –ele esticou a mão esquerda para me cumprimentar
- . Sim, nós somos dois fodidos.
Eu não acreditava que aquele viciado de merda estava levando os amigos panacas para minha casa outra vez. Agora minhas “coisas” eram minhas, do e dos outros drogados que frequentavam minha casa porque lá nunca faltava nada. Em um acesso de raiva, gritei, falei merda e mandei todos embora. não expressava nenhuma reação e eu sabia por quê. Ele tinha o rosto tão sereno, por vezes sorria para o nada. Era como eu queria estar, não queria aquele ódio dentro de mim. Sentei-me ao lado dele, vi o pacote em cima da mesa. Dirigi-me até ela, ainda com algum juízo que tinha na cabeça, pensei em parar. Irrelevante.
Meu braço doía e eu sentia a cabeça pesada, nos primeiros segundos eu queria me matar por estar fazendo aquilo de novo. Nossos planos nas últimas semanas era de que ficaríamos limpos. Mas eram apenas palavras, palavras que nunca iriam ser cumpridas. Depois da dor, vinha à excitação, a parte “boa” daquilo. Boa só para nós. Olhei para e ele me parecia tão lindo como antes, eu não percebia naquele momento como ele estava magro, com os olhos fundos e sem brilho, nós estávamos acabados.
Nos olhamos por alguns instantes, sentir os lábios de nos meus me levavam ao meu paraíso particular, um lugar onde nem a droga e a bebida me levariam. Beijos, caricias, toque, era tudo que eu precisava sentir naquele momento, um sentimento bom. Já que o que viria a seguir seria merda total.
Passava a mão em minha testa, sentia o cheiro do suor. Eu estava doente, não, eu era doente. se contorcia ao meu lado, ele ainda estava dormindo. Ele suava e dizia algumas coisas que eu não conseguia entender.
O que aconteceu? O que deu errado com a gente? Era pra ser tudo diferente.
Esses pensamentos martelavam em minha cabeça constantemente. Fui até a cozinha, sabia que acordaria com fome, e pra dizer a verdade eu gostava de cozinhar, de ser uma mulher de verdade para ele. Apesar de todos os problemas, eu sabia que nós éramos perfeitos e tudo iria mudar. Vi aquele rosto que antes me parecia angelical, mas que agora não passava de uma mancha negra e sem vida parado na porta.
- Oi. – ele disse quase sem emoção.
- Oi, que bom que acordou. Vou fazer panquecas, então nós vamos arrumar a casa e jogar todas as coisas que nos fazem mal fora. O que acha? – respondi tentando animá-lo.
- Você realmente acha que vai dar certo?
- Claro , nós queremos não queremos?
Ele deu de ombros, me deixando na cozinha perguntando a mim mesma se aquilo daria certo. Não tem nada que eu queria mais do que deixar o vício para trás e ser feliz ao lado de , mas essa era uma coisa que nós tentamos desde que nos conhecemos e nunca havia dado certo.
Ouvi o barulho da porta, saiu sem me dizer aonde ia. Mais uma vez. Mais uma coisa na nossa rotina, ele saia sem avisar e algumas horas depois alguém me ligava dizendo que ele estava jogado em algum lugar, bêbado. Fui até a sala, percebi que minha televisão não estava mais lá. Qual a novidade? Eu sabia exatamente onde ela estava, provavelmente na casa de algum “amigo” que sustentava nosso vício. Respirei fundo sentido aquele cheiro que impregnava a casa inteira. Dei mais uma olhada e vi como tudo estava sujo, o tapete manchado, coisas caídas no chão e comida por toda parte. Se meus pais soubessem como eu vivia, era certo que não me mandariam mais dinheiro. Tomei uma decisão por mim mesma, sairia daquela vida. Quando chegasse nós iríamos conversar, se ele não aceitasse, então que fosse embora. Abri a cortina, uma forte luz entrou. Havia algum tempo que nenhuma luz entrara naquela casa.
Já passava das 3h da manhã e nada de chegar, resolvi não esperar, eu precisava dormir. Acho que nem consegui dormir, depois de um breve cochilo meu celular começou a tocar insistentemente. Droga, só podia ser dizendo que esqueceu a chave. Foda-se ele, não vou atender, vai ficar pra fora de casa.
Mais alguns toques e aquilo me irritou, olhei para o visor e lá estava um número desconhecido. Mas eu sabia que era .
- Alô. – disse zangada.
- , me tira daqui. Vem rápido. – disse do outro lado da linha com a voz meio falha.
Meu corpo se enrijeceu na cama, eu tinha medo de onde ele estava. Tinha medo do que ele poderia ter feito.
- Caramba , onde você tá? O que aconteceu? – minha voz ficava mais preocupada a cada segundo.
[...]
Eu já pensava todas as besteiras possíveis enquanto me encaminhava à delegacia, não tinha detalhes sobre o que havia feito, só que eu precisava ir buscá-lo. A cada segundo eu tinha mais certeza que queria sair daquela merda em que vivíamos, mas a cada segundo eu tinha mais certeza também que talvez eu saísse sozinha.
Quando entrei por aquela porta de vidro, pude ver sentado, estava algemado. Não consegui ter nenhum tipo de sentimento, nem pena, nem medo, nem dor. Pela primeira vez eu olhava para ele e sentida NADA.
Aproximei-me dele, sem dizer nada. Fiquei ali do seu lado parada até que ele percebesse minha presença. Quando me viu, ele apenas me olhou. Um olhar triste em que estava estampado o pedido de desculpas. Não me deixei abater, continuei firme.
- Quem você pensa que é? – eu disse o olhando com frieza, como se tivesse gelo dentro de mim.
Antes que ele pudesse dizer algo, um dos policiais apareceu. Não me disse muito, tirou as algemas de e disse que na próxima vez ele não teria tanta sorte.
Voltamos para casa em um completo silencio, eu não queria ouvi-lo, estava saturada daquilo. Ele sabia exatamente o que eu estava sentindo, já havia ido buscá-lo inúmeras vezes bêbado, em lugares estranhos, mas nunca em uma delegacia. Qual seria o próximo passo? Reconhecer o corpo dele?
Quando chegamos em casa, ele me olhou por um segundo, queria dizer algo mas ele sabia que eu não ouviria uma palavra. Voltei para meu quarto, precisava dormir, tentar tirar da cabeça certas coisas que estavam me deixando doida.
- Bom dia meu amor. – acordei com me dando um beijo.
Um sorriso começou a se formar em meu rosto, mas eu me lembrei da noite anterior e logo ele foi desfeito.
- Bom dia . – eu disse ríspida.
- Não me trata assim, eu sei que sempre faço merda. Mas vai ser diferente, hoje a gente vai tomar um rumo diferente na nossa vida. Sabe qual a primeira coisa que farei? Trabalho, arrumarei um trabalho. Nós vamos ficar limpos juntos, JUNTOS. – ele deu ênfase na última palavra.
Tentei não demonstrar que estava feliz com aquilo, talvez um choque de realidade fosse bom.
- Ótimo, porque se você não quiser se curar fique sozinho. Eu cansei. – disse eu saindo da cama em direção ao banheiro.
Olhei-me no espelho, isso tinha virado uma rotina. Eu apenas me martirizava com aquela imagem, parecia gostar daquilo. As olheiras não haviam diminuído, meu rosto continuava magro e eu não tinha expressão. Parecia que não sentia dor, felicidade, remorso, nada.
Tomei um longo banho, tentando tirar de mim meu próprio cheiro, cheiro de derrota.
Após o banho fui até a sala, me surpreendi quando achei dançando uma música qualquer com uma vassoura. Não pude segurar o riso. Ao me ver ele me puxou para participar da dança desengonçada. Dançamos aquela música que nem era tão divertida, mas ver animado e sem ter consumido nada, era uma vitória. Pela primeira vez em todo aquele tempo eu sentia que poderíamos sair dessa juntos.
- É bom ter você aqui. – eu disse em meio a gargalhadas.
- É bom estar aqui. – respondeu.
Fui até a cozinha, deixando um animado para trás. Pensei no que fazer para comermos, há dias não tínhamos uma refeição de verdade.
- Panquecas. – pensei em voz alta.
Comecei a retirar os ingredientes do armário, surpreendentemente, não faltou nada. Era horas de fazermos compras, nesse momento esse era meu único pensamento.
Preparava as panquecas incrivelmente animada, irradiante, poderia até dizer que meus olhos brilhavam. chegou silencioso, me abraçando por trás e sussurrando algo em meu ouvido. Foi quando ele atirou um pacote com uma pequena quantidade de pó branco em cima da mesa. Meu sorriso se desfez, será que ele iria ter uma recaída depois de tudo que disse?
- Jogue fora. – ele disse e se virou voltando para a cozinha.
Sorri involuntariamente com aquilo, ele realmente queria mudar. Joguei o conteúdo do pacote na pia e abri a água, deixando que aquilo fosse ralo abaixo. Isso sairia de nossas vidas.
Voltei para a sala, que já tinha um cheiro bom, com as panquecas. Sentei-me e colocou um filme em meu notebook, De volta para o Futuro, o preferido dele. Percebi que meu notebook era uma das únicas coisas que ele/nós não havíamos trocado por drogas.
Havia uma panqueca meio queimada, e sem olhar para o prato, foi exatamente essa que ele pegou. A cara feia ao morder foi inevitável, eu ri.
- Que coisa ruim, você esqueceu como se cozinha? – ele disse engraçado.
- Vai se ferrar. – eu disse fingindo estar emburrada.
- Me abraça.
- Vá achar alguém que não queime as panquecas.
- Me beija.
- Vai embora .
- Te amo. – ele disse com ternura.
Olhei-o nos olhos e sorri, seguindo com um beijo, beijo que me levou às nuvens.
Uma semana se passou, a casa continuava limpa e saia todos os dias a procura de emprego. Sem sorte. Não importava, ele estava tentando.
Duas semanas, eu conseguia ver o desânimo em seu olhar, mas ele até que estava resistindo bem. Na quarta-feira eu estava sozinha, alguém bateu a porta e eu pensei ser , mas estava muito cedo. Quando abri a porta, minha surpresa não podia ser maior. Meu pai estava ali parado, com um sorriso no rosto. Há quanto tempo ele não me visitava mesmo?
Eu pude ver o sorriso do meu pai desaparecer quando ele passeou com o olhar pelo apartamento, desde a última vez que ele me visitara, as coisas deveriam estar bem diferentes.
- Onde estão as coisas que comprei pra você? Onde está sua Tv? Onde está tudo? – a essa altura ele já gritava
- Pai, calma. É que... Eu precisei vender para pagar algumas coisas.
- Que coisas, o dinheiro que te mando não é suficiente? Quando não dá você me liga e eu mando mais.
Ele entrou sem ser convidado e passou como um flash por quase todo apartamento. Quando ele estava na cozinha chegou. Sem que eu tivesse tempo de dizer a ele que meu pai estava ali, ele começou a falar todo animado.
- Meu amor, eu consegui nossa TV de volta. O cara disse que ia devolver sem problema porque aquele dia os caras estavam tão chapados que deixaram a TV e não pegaram a droga. Tivemos sorte.
Tarde demais, meu pai ouvira tudo e saiu como um trovão da cozinha. Indo pra cima de que nem teve tempo de se defender e já estava no chão. Corri para ajudá-lo a se levantar. Meu pai esbravejava como se o mundo estivesse acabando, mas eu não ouvia uma palavra sequer. Em meio aos gritos ele dizia o quanto estava decepcionado e que não iria me dar mais um tostão, que eu sustentasse meu vício e do “vagabundo” sozinha.
Ele saiu batendo a porta e eu nem tive tempo de me explicar. Ele não acreditaria mesmo. se levantou do chão e foi até o banheiro. Lá ele se trancou, tentei algumas vezes, em vão, conversar com ele.
Mais alguns dias se passaram, voltou a ficar frio. Ele se sentia culpado pelo que havia acontecido entre mim e meu pai. Ele saia cedo e chegava tarde, mas não dava sinais de que estava drogado. Eu continuava na mesma, apesar de não estar me drogando, eu só ficava cada vez mais magra e sem vida. Íamos (eu) para 1 mês limpos. havia saído cedo, como de costume. O esperei chegar, mas nada. Não aguentei e então fui dormir. Era madrugada quando meu telefone começou a tocar, logo meu coração disparou, eu sabia o que era. Atendi sem ânimo, e era Evan, um amigo. Ele me dizia meio enrolado que estava caído em algum lugar, drogado. Aquelas palavras fizeram doer cada centímetro do meu corpo. Levantei-me para ir buscá-lo, mas eu estava cansada daquilo. Era hora de deixá-lo crescer.
Algumas horas depois escuto murros na porta, levantei-me para atender e ao abrir a porta um corpo cai ao chão. Exatamente como aconteceu quando conheci . E era exatamente ele. Apenas me virei e voltei ao quarto. Tentei dormir em vão, o ouvia gritar e pedir para entrar no quarto, o ouvia chorar e chorava junto. Era a morte. Morte, eu nunca tinha pensado tanto nela quanto enquanto eu estava com . Engraçado pensar em morte quando você deveria pensar em vida.
No dia seguinte me levantei decidida, decidida a não sei o que. Mas iria fazer algo. Já não encontrei jogado no chão da sala. Não sabia aonde ele havia ido.
Subi até o terraço, abri aquela pequena porta que parecia me levar ao paraíso. Olhei a cidade cinza em volta. Respirei aquele ar que mesmo poluído me dava uma sensação de pureza.
Era hora de acabar com aquilo. Alguém sentiria minha falta? Quanto tempo demoraria até que alguém procurasse por mim? A manchete do jornal seria “Mais uma drogada se mata”? Não sei, não iria descobrir porque não estaria mais aqui. Era o momento.
Liberdade.
Senti braços a minha volta, me puxando para o chão.
- Me solta. – gritei.
- Não vá. – reconheci a voz de .
- Me deixa.
- Me abraça.
- Vá embora. – eu gritava ainda mais
- Me beija.
- Vá embora. – gritava com todas as forças
- Eu te amo.
- Para sempre.
¹ trecho extraído da musica “I follow rivers – Lykke Li”