Reza a Lenda

Escrito por Gaby Pingituro | Revisado por Luba

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Prólogo

  O céu brilhava acima de nós.
  Eu e meu pai estávamos deitados na grama, as estrelas cintilando como pequenos vaga-lumes na noite mais escura, os sons da natureza criando a própria melodia ao nosso redor, uma perfeita sinfonia. Cigarras, corujas, o farfalhar das folhas com a fraca brisa e as águas do rio correndo ao fundo, tudo soando em uníssono como uma orquestra. Meu pai sorria sem motivo, os olhos perdidos no horizonte e eu o acompanhava sem dificuldade. A paz serpenteava ao nosso redor com leveza, como se o tempo não importasse.
  Naquele instante, realmente não importava.
  - Está vendo aquelas estrelas ali, ? – Meu pai apontou o indicador para cima. Ao primeiro momento parecia apenas um amontoado de pontos brilhantes, mas se eu me esforçasse um pouco e prestasse mais atenção, pensasse que uma linha imaginária conectava todos eles, uma figura começava a surgir bem acima de nós.
  - Parece um escudo – respondi baixinho, forçando minha vista e minha imaginação ao mesmo tempo. – Como aqueles de desenho animado.
  - É sim. – Ele sorriu em satisfação. – Essa é a constelação de Órion.
  Me esforçando para lembrar de onde ouvi aquele nome antes, juntei minhas sobrancelhas e franzi minha testa.
  - Ele era um guerreiro, não era?
  - Menina sabida. As histórias gregas dizem…
  - Mitos – eu o corrigi rapidamente, a palavra saltando da minha boca junto com a petulância que erguia meus lábios para cima. – Não histórias, mitos. É só uma lenda.
  Meu pai me observou por um instante e rapidamente se sentou, os braços apoiados nos joelhos, me olhando com o ar divertido que parecia esconder muitas coisas por trás de si e eu não entendi muito bem sua reação.
  Ele sempre agia assim, quieto e observador como se tudo trouxesse um mistério a ser desvendado, bem-humorado como se tudo fosse leve demais, como se um sorriso e uma risada pudessem resolver qualquer coisa na vida, quaisquer machucados, problemas ou palavras erradas. Eu gostava dessa suavidade. Minha mãe costumava brigar com ele por não parecer nunca levar as coisas a sério, mas eu não concordava. Enquanto ela era amarga, ele pintava o mundo com mais cores que qualquer pessoa pudesse ser capaz de nomear. Eu preferia assim. Mesmo quando tudo parecia sem sentido, como agora.
  - Por que está me olhando assim? – Outro riso escapou da sua boca e ele respondeu minha pergunta com outra:
  - Você estava lá para dizer isso com certeza, minha filha?
  Senti minhas bochechas corarem pela súbita repreensão, mas não demorou mais que alguns segundos para eu me recompor. Que tipo de pergunta era aquela?
  - Não, mas eu sei disso – respondi, empinando meu nariz com toda a satisfação e atrevimento que uma menina de dez anos poderia juntar. – Eu estudei isso na escola. Todos os mitos gregos, romanos, egípcios e mais tantos outros serviam só para explicar ao povo de alguma região as forças da natureza, como eles surgiram, o porquê das coisas, tudo o que eles não conseguiam entender. Era como eles achavam um significado para o que existia e acontecia antes da ciência. Entendeu?
  Meu pai continuou me fitando, sem piscar, como se estivesse chegando enfim a compreensão do que eu falava para ele, e acabou assentindo levemente em minha direção, mas não pareceu assim tão convencido do que eu falei.
  - E por que você acha que existe o... – ele fez uma pausa, como se escolhesse a próxima palavra com cuidado. – mito de Órion?
  - Não sei. – Dei de ombros, sem real interesse, a grama sob mim parecendo bem mais interessante que a resposta que ele esperava de mim. – Talvez para explicar a constelação no céu, o desenho que tem. Às vezes você me faz ver formas nas nuvens. Eles podiam fazer isso com as estrelas, não é?
  - Pode ser. – Ele torceu sua boca numa careta e eu não sabia dizer se ele dizia a verdade sobre concordar ou apenas queria acabar com a conversa sem lógica. – Eu não estava lá, não é?
  Meu pai começou a rir com o que disse, animado, e fiquei tentando entender onde a graça estava naquilo tudo. Após segundos sem qualquer compreensão, desisti e o acompanhei com uma risada baixa, sem saber muito bem o que fazer, seu riso por fim me contagiando como sempre fazia.
  De qualquer forma, o momento não perdurou, e logo estávamos encarando o céu mais uma vez, imersos no silêncio doce que a floresta voltava a instalar de bom grado, o frescor das plantas sob nossa pele, a lua sobre nós como única fonte de luz.
  Mas mesmo depois do assunto parecer ter se encerrado para o meu pai, eu ainda continuei pensando nele por bastante tempo, suas palavras se repetindo em minha cabeça como se me provocassem, como se quisessem me fazer duvidar de tudo o que eu sabia. Quando menos percebi, soltava um riso nasalado de confusão, quebrando a quietude plena e falando em voz alta:
  - Sei lá, pai. Eu só acho isso tudo muita bobagem! Acreditar que existem... coisas espalhadas por aí com poderes e tudo mais, nos observando o tempo todo, criando caos ou realizando desejos, toda aquela palhaçada de “forças superiores”. Eu não acho que nada disso exista. É muita fantasia! Coisa de criança. Você também não pensa assim?
  Meu pai virou-se para mim, a testa franzida e os olhos inquietos me observando. Então abraçou as pernas contra seu tronco e sustentou meu olhar com o seu, sua face sem qualquer sinal de diversão. Nenhum sorriso desenhado em seus lábios dessa vez. Intrigada eu imitei seu gesto, sentindo a brisa fria em minhas costas jogando meus cabelos sobre os ombros e fiquei esperando que seu silêncio se transformasse em palavras:
  - Quem determina o que é bobagem e o que não é, ? – Ele me olhou intensamente talvez como nunca tenha feito comigo, repleto de carinho, com as rugas debaixo dos olhos ainda mais aparentes que o normal. Marcas recebidas por muitos sorrisos dados durante a vida. Sorrisos que ele nunca deixava de dirigir a mim. – O mundo é muito grande, minha filha. E o universo é maior ainda. Não estamos sozinhos. Eu sinto isso, e talvez um dia você sinta também.
  - Isso não faz muito sentido, pai – eu retruquei, minha convicção já não tão certa quanto antes. O olhando de onde eu estava, ele parecia muito mais seguro de si do que eu jamais conseguiria ser, e essa percepção me encheu de dúvida. – Está tentando me dizer que o Órion existe de verdade?
  Sua gargalhada encheu o ar a nossa volta.
  - Agora talvez não faça sentido mesmo, menina sabida. Mas ver e tocar não são as únicas dádivas que temos. Às vezes precisamos sentir também.
  Eu estreitei meus olhos para ele, as questões pipocando dentro de mim.
  - Como eu vou poder ter essa certeza que você tem? Acreditar em coisas que só sinto?
  - Vivendo, . – Ele sorriu para mim, seus olhos tão brilhantes quanto as estrelas acima de nós. – Você vai descobrir tudo isso se abrir os olhos e se permitir viver. E aí, o que você sentir vai se tornar tão palpável que então poderá tocar.
  Pisquei meus olhos algumas vezes, meu pai voltou a encarar a valsa das folhas se desprendendo das árvores e eu gravei aquele momento como uma fotografia em minha mente. Ele sorria tanto para mim, para o nada, para tudo, que eu jamais seria capaz de dizer a ele que suas palavras me deixavam confusa, que tudo soava muito irreal para eu poder acreditar de alguma forma.
  Eu me sentia boba, não entendia o que ele queria dizer de verdade. Mas meu pai parecia tão convencido de si mesmo que não consegui negar suas palavras, dizer que não concordava ou mostrar todas as dúvidas que ainda tinha. Não queria estragar aquele momento. Por isso, fiquei calada, com mil pensamentos correndo soltos em minha cabeça, mas nenhuma palavra a ser proferida.
  Quem sabe, quando eu crescesse, conseguisse enfim entender tudo o que ele dizia?
  Um arrepio subiu por meu braço, pela minha pele exposta e sacudi a cabeça de leve. Sorri de volta para o meu pai, muito pouco convencida e sem qualquer coragem de expressar isso. Voltei a me deitar na grama enquanto víamos o céu escurecer ainda mais sobre nós dois, deixando os sons intercederem nesse conflito enquanto ele não podia ser resolvido.
  Mas a verdade é que os anos passaram, e, nunca, nunca mesmo, consegui compreender o mundo da maneira como ele fazia. Cheio de fé, esperança e compreensão. E eu tentei. Tentei muito seguir suas palavras, ser igual a ele. E mesmo depois que ele já não estava mais aqui comigo, eu continuei dando chances. Querendo um sinal de que ele estava certo.
  E não consegui nada.
  Bobagem, de fato. Sempre havia sido uma grande bobagem. Imaginação minha. Dele. De todos e qualquer um. No fim, minha mãe é quem estava certa o tempo todo, com suas rabugices e reclamações. Eu só podia confiar naquilo que era tocável. Capaz de ser visto integralmente. Porque o sentir, ouvir, essas coisas que ele tanto clamava serem essenciais, elas eram falhas e nos enganavam. Mitos, histórias, lendas, todo o resto... todo o resto já não importava mais.

Capítulo 01

Sete anos depois…

  Soltei um suspiro longo e folheei as páginas ilustradas com desdém. Mas que livro mais idiota, pensei. Mula-sem-cabeça, Iara, Curupira, será possível que alguém ainda hoje acha legal esse tipo de história sem lógica? Será que alguém, justo numa sociedade onde tudo é tecnologia, ciência e fatos, ainda se interessa por algo tão ultrapassado quanto isso?
  Com desgosto, devolvi o achado de volta à prateleira. Duvidava que o tal conto fosse sair dali tão cedo, principalmente em uma cidade do interior tão pacata e sem graça quanto a que eu vivo. As pessoas aqui, eu sabia bem, ligam mais para fofocar sobre as vidas umas das outras que ler algo por mais inútil e irreal que seja, como esse livro qual acabei de descartar.
  O homem grisalho e gorducho sentado atrás do balcão do caixa me olhou com a testa franzida e um bico nos lábios, aparentemente não gostando nem um pouco da minha reação anterior para com suas mercadorias. Acabei por revirar os olhos. Só o que me faltava agora era ele querer discutir sobre meu gosto literário. Mereço. Eu tinha mais o que fazer a ficar ali naquela banca.
  Virei as costas e voltei à calçada, qualquer coisa para me distanciar logo das lembranças que aquilo me trazia, pronta para desmanchar o nó que se formou na boca do meus estômago, o cutucão dentro do meu peito que sempre atiçava minha curiosidade para prestar atenção no que ele antes teria me provocado a olhar.
  Fiz menção de atravessar a rua e desisti da ideia imediatamente, interrompendo meu passo no ar ao notar a comoção de garotas do outro lado, rindo alto enquanto jogavam os cabelos de um lado para o outro achando que estavam fazendo charme ou impressionando algum cara, que, pela maneira teatral como elas agiam, não devia estar dando a mínima para elas.
  Minha curiosidade, sempre grande demais, me fez buscar a fonte de tanta atenção feminina. Contudo, depois de girar no mesmo lugar duas vezes e nada ver, balancei a cabeça, impaciente.
  A careta em meu rosto se retorceu ainda mais enquanto as assisti continuar naquele furdunço e mudei de direção a fim de evitá-las, agradecendo a mim mesma internamente por nunca ter passado essa vergonha na frente dos outros, mas não consegui completar sequer três passos rumo ao centro de lojas que eu queria ir antes de ter minha caminhada interrompida pela súbita – e óbvia – causa de todo aquele rebuliço cheio de hormônios que vinha direto da outra calçada até ali.
  - Onde pensa que vai com tanta pressa, ?
  Paralisada pela voz que eu ouvi e pelo meu nome soando como a melodia de um rio em sua boca, fixei os pés no chão e olhei sobre o ombro, desconfiada. Não pode ser, pode?
  Eu precisei de alguns segundos para assimilar o que acontecia, e de repente as coisas pareceram fazer todo sentido. Garotas sorrindo bobamente é igual a aproximação de rapazes muito bonitos. E aqui nessa cidade, rapazes bonitos se resumem a…
  - ? – inquiri em descrença, forçando os olhos para enxergar melhor na noite que começava a cair como um véu de cores intensas, um degradê que tingia o céu do laranja ao azul.
  - Surpreso em me ver, ?
  Eu vi a expressão apaixonada no rosto das meninas se desfazer assim que o viram se dirigir a mim enquanto as ignorava sem qualquer força. Pisquei e engoli em seco no mesmo lugar, virando-me de frente para ele.
  O garoto, que antes estava atrás de mim, sorriu em deboche enquanto caminhava em minha direção, os passos lentos e deliberados como se desfilasse, como se tivesse todo o tempo do mundo para fazer o que quisesse à medida que me estudava calmamente.
  O chapéu em sua cabeça cobria parte do seu rosto, mas não escondia sua beleza. Se é que era possível, ele estava ainda mais bonito que da última vez que eu o vira, semanas atrás. O mesmo olhar sedutor, o mesmo brilho magnético cintilando em suas pupilas escuras e bem escondidas pela aba do chapéu. Porém, eu notei, tinha o perfil mais atlético agora, parecia mais alto e mais musculoso, os ombros ligeiramente mais largos, quase como se tivesse passado horas extras nos treinos de natação nesses últimos tempos. As linhas do rosto mais definidas, o sorriso ainda mais charmoso e galanteador que antes, passando um ar bem mais quente do que já costumava.
  Os cantos dos seus lábios se inclinaram ainda mais para cima sem desviar os olhos dos meus, como se estivesse vendo algo muito divertido acontecer, e foi aí que percebi, de súbito, que o calor todo que eu sentia emanar dele, na verdade, vinha de mim. Subindo por minha pele e corando desde o meu pescoço até meu último fio de cabelo.
  Acho que já não posso mais recriminar aquelas meninas ali, pensei. E soube, pela forma descarada – e quase indecente – que reagi enquanto olhava para o , que o mexerico cedo ou tarde já estaria na boca de todos da vizinhança. Bastaria que as garotas ainda imóveis do outro lado da rua se dispersassem para longe de nós e as histórias mirabolantes se espalhariam como folhas ao vento pela cidade inteira, mais rápido que a vermelhidão que cobriu todo meu rosto segundos antes.
  Não interessava que não foi nada demais. Elas fariam parecer que foi tudo e mais um pouco.
  Me senti completamente desconcertada e tola. Eu precisava de mais vergonha na cara.
  - Talvez. Não muito – respondi um tanto perplexa depois de controlar meus batimentos cardíacos enquanto olhava para ele, desejando que minha pele já não estivesse da cor de um tomate maduro. – Acho que já me acostumei com seus sumiços repentinos. E reaparições sem aviso também.
   soltou uma gargalhada e parou de frente para mim, praticamente invadindo meu espaço, tão perto que eu podia tocá-lo, se quisesse. E por que isso é relevante? Balancei a cabeça para os lados.
  - Isso não é verdade, está exagerando. Você sabe onde me encontrar, .
  - Claro que sei – afirmei no automático, minha voz mais seca e cheia de sarcasmo. – Se tem uma festa, lá está você. Não tem erro.
  Meu amigo assentiu ainda rindo, achando graça da minha irritação mascarada com zombaria e sem aviso passou um braço pelo meu ombro, pegando-me completamente desprevenida, fazendo com que eu me aproximasse aos tropeços junto dele e do seu calor. Logo eu o acompanhava em sua caminhada, sem qualquer relutância.
  Honestamente eu não estava prestando muita atenção para o rumo que tomávamos.
  Suas ações súbitas também não tinham mudado nem um pouco, notei.
  - É, eu não resisto a uma boa diversão, você sabe.
  - Sim – concordei. – E nem a uma garota bonita.
   não negou minhas palavras, apenas me olhou de canto e alargou o sorriso sem diminuir as passadas, me obrigando a manter seu ritmo. Se percebeu minha intenção de provocá-lo, não disse. Mas não havia motivo para mentir, ele sabia disso, sempre havia sido um livro aberto comigo. E por isso seu sorriso que mostrava todos os dentes perfeitamente brancos e alinhados bastou como resposta para mim.
  Ele tem essa fama de “pegador” desde antes da época que nos conhecemos, alguns anos atrás, e não se importava nem um pouco com o que diziam sobre si por suas costas, ou mesmo na sua cara. Por isso ignorou todas aquelas garotas de antes com tanta facilidade. sabia que elas o procurariam de novo em algum momento, e querendo ou não, elas também sabiam disso. E sabiam que ele iria embora no instante que a primeira noite acabasse, mas tentariam conquistá-lo mesmo assim, como se quisessem provar algo para si mesmas, ou quem sabe, até para ele próprio. Como se fosse possível mudar o perfeito mulherengo que ele era.
  Ao mesmo tempo em que eu não o julgava por isso, também não aprovava. Se ele preferia passar suas noites em festas, cada uma com uma garota diferente, pulando de cama em cama, problema dele. É seu jeito de aproveitar a vida. Eu só não compartilho desse mesmo gosto, mas esperava sinceramente que ele fizesse bom proveito.
  Há quem diga que isso é ciúme da minha parte, mas discordo. Somos amigos. Já aceitei o fato que ele nunca vai me olhar com os mesmos olhos que vê as outras garotas da cidade. Com desejo.
  Tenho dezoito anos, idade o suficiente para perceber quando alguém quer algo comigo. E – infelizmente – sei que não é um desses caras.
  - Por que está fazendo careta, ?
  - Que careta? – Passei a mão sobre o rosto, livrando-me do meu devaneio.
  - Essa que você acabou de desmanchar.
  Instintivamente levei a mão até os brincos de ouro em formato de trevo de quatro folhas pendurado no lóbulo de minha orelha. Uma pequena mania que adquiri através dos anos para disfarçar meu nervosismo. Algo irônico, pois o gesto não era nada sutil e qualquer um poderia perceber o tique se quisesse.
  Mordi o lábio inferior sem nem perceber enquanto pensava no que responder para ele. Eu não poderia dizer a que estava debatendo internamente sobre seu hábito de ficar com todas as meninas da cidade menos comigo, podia? Óbvio que não. Por isso tentei disfarçar da melhor maneira que consegui.
  - Ah, não é nada, estava distraída – neguei ao mesmo tempo em que algumas crianças passaram correndo e gritando por nós como uma avalanche enquanto um garoto mais velho, usando uma máscara colorida e toda trabalhada que lembrava um dragão chinês, ia atrás delas gritando algo como “o Boitatá vai pegar vocês!”. Revirei os olhos para a cena perdendo a pouca concentração que havia juntado até ali. – Na verdade isso está me irritando muito.
  - O que, as crianças?
  - Não, todos esses mitos bobos. Essa história de folclore – expliquei a . – Primeiro o livro aleatório na banca de jornal, agora essas brincadeiras aqui. Não consigo acreditar que ainda contem essas coisas às crianças!
  Ele me olhou de canto e arrumou o chapéu em sua cabeça.
  - E o que tem de errado nisso? Elas gostam e estão felizes.
  - Não é essa a questão, se gostam ou não do que ouvem e fazem. É elas acreditarem no que escutam e acharem que é verdade – tentei explicar. – É isso que simplesmente não faz sentido para mim. Justo no século XXI essa cidade de interior estúpida de fim de mundo ainda faz as crianças acreditarem em coisas irreais que as fazem morrer de medo ou fantasiar até o cérebro cansar.
  - Preferiria que elas vivessem sem magia nenhuma? Isso é triste.
  - É ridículo, !,br />   - Ridículo por quê? – Sua expressão mudou repentinamente para algo perto da confusão. – Folclore é a nossa cultura!
  - São lendas – repliquei. – Mitos! Nada mais que isso. Se ainda fosse perto do dia 22 de agosto eu entenderia, mas estamos no meio das festas juninas. Deviam estar brincando de pular a cobra e correndo ao redor da fogueira, roubando comida da mesa de doces e dançando quadrilha como se os pés não cansassem, não o que estão fazendo agora achando que o Boitatá ou sei-lá-que-maldito-personagem-seja vai pegá-las se não conseguirem se esconder atrás do arbusto e sumir da sua vista imediatamente.
  - Não sei se eles estariam correndo menos perigo assim.
  - O quê?
  De repente parou de andar, afastou-se de mim e cruzou os braços sobre seu tronco, ignorando completamente o que havia dito antes.
  - Você só pode estar brincando. Elas são crianças! Podem acreditar até que as minhocas falam e voam – ele disse, a ironia e mais algo se misturando em sua voz. – Vai me dizer que nunca acreditou em nada? Que não acredita em nada, ?
  Sua pergunta súbita, apesar de me pegar despreparada, não me intimidou como eu acreditava ser seu objetivo.
  - Eu acredito naquilo que vejo. Naquilo que toco – devolvi imitando sua pose, alongando minha coluna e empinando meu queixo. – O resto é imaginação.
   continuou me encarando, seus olhos nos meus, desacreditado. Não sei bem porque, mas ele parecia estar esperando outra resposta, outra reação. Por fim, riu secamente e deu um passo para trás, esvaziando sua face de qualquer emoção legível.
  - Você é uma incrédula.
  - Vai dizer que você não é? – rebati em seguida, sem entender o objetivo dele com aquilo. Mas pelo menos o assunto já não era mais ele e as coisas que eu pensava sobre ele.
   permaneceu imóvel por um tempo aparentemente longo demais. O que exatamente ele esperava ouvir de mim, não sei, mas confesso que sua análise inexpressiva e silenciosa me incomodou mais do que eu gostaria de admitir.
  - Não – respondeu simplesmente, mas o tom em sua voz estava completamente diferente. – Na verdade, vou dizer que talvez você devesse rever e reavaliar seus conceitos, .
  Por um curto momento enquanto seus olhos brilhavam fixos nos meus, eu me lembrei de outra noite, muitos anos antes, que eu havia compartilhado com outra pessoa, uma conversa parecida e ao mesmo tempo tão diferente que fez aquele cutucão em meu peito vir ainda mais forte que antes, e por isso quase me deixei levar por suas palavras, minha postura suavizando levemente, meus lábios se entreabrindo enquanto a lembrança ficava mais forte.
  Entretanto, antes que eu pudesse pensar em dizer qualquer coisa ou ao menos empurra-lo de leve e mandar que enchesse o saco de outra apenas para encerrar o assunto de uma vez e fugir de uma resposta descente, de súbito um vulto vermelho passou tão rápido quanto o vento por entre nós dois, trombando em meu tronco com tanta força que me tirou o ar e me fez perder o equilíbrio, tropeçar nos meus próprios pés e cair sobre meu amigo.
  Não foi uma cena bonita. amorteceu a queda, ficando sob mim, e eu acabei com o rosto enterrado na curva do seu pescoço – o que em outro momento até talvez fosse ser algo bastante interessante, mas não agora com nós dois perplexos demais no meio da rua e com um monte de gente observando. Demorou um pouco até que a vertigem passasse por completo e eu conseguisse inspirar bem fundo novamente.
  As crianças riam ao fundo e eu não precisava ser muito inteligente para entender o motivo.
  - Idiota – murmurei entredentes mesmo sabendo que fosse quem fosse que havia nos derrubado já não escutaria mais. O esperto já devia estar bem longe dali.
   segurou meus ombros e afastou-me dele apenas o suficiente para me observar, procurando algo de errado. Envergonhada, eu rolei para o lado não dando-lhe muito tempo para isso. Ele colocou-se de pé primeiro e me ajudou a levantar em seguida, mas não disfarçou sua atenção dividida. O vi olhar seriamente para algum ponto além das minhas costas nem um pouco contente e franzi a testa. Na verdade, parecia até bem irritado. Eu estava prestes a virar-me também para ver o que ele tanto olhava, quando enfim ele voltou-se para mim, esquecendo o que quer que tenha visto, todo seu foco sobre meu rosto.
  - Você está bem?
  Esfreguei a mão sobre minha cabeça dolorida e respirei fundo. Talvez eu ficasse com um ou dois hematomas, mas não seria nada absurdo.
  - Estou – falei completamente sem ânimo, incomodada mais com sua reação anterior que com a queda propriamente dita. A turma que antes ria do nosso tombo saiu correndo quando me viram olhar de relance para eles. Bufei audivelmente, minha cara devia estar bem feia se nem pestanejaram em ficar. – Foi algum deles, não é? Essas crianças estão me deixando maluca!
  - Não sei, às vezes acho você tão maluca quanto elas.
  Eu revirei os olhos para , o canto da minha boca se repuxando, quase vencendo o mal humor.
  - Só vamos sair daqui, ok? Esse lugar já está me dando nos nervos!
  Meu amigo arrumou seu chapéu e mais uma vez abriu um sorriso para mim, soando sincero com o gesto, quase como se nossa pseudodiscussão ou o tombo de segundos antes jamais tivessem acontecido.
  Pelo menos mais um assunto infeliz havia sido findado antes mesmo de começar de verdade. Eu não negaria que estava grata por isso.
  - Você tem razão – concordou de pronto. – Vamos sair daqui e ver a roupa que você vai usar na festa junina de amanhã.
  Os vincos em meu cenho se intensificaram e meu raciocínio continuou precário. Por que nunca parava de sorrir? Atrapalhava meus pensamentos de um jeito ridículo.
  - Que festa? – Eu o olhei sem entender, provavelmente ainda lenta demais por causa da queda. Eu preferia acreditar nisso.
  - Aquela que você vai comigo, à noite. – abriu ainda mais o sorriso como se isso explicasse tudo e meu coração, irresponsável, perdeu uma batida. Estávamos quase de volta ao assunto número um que eu queria evitar. – Acha que vai fugir de mim assim tão fácil?
  Soltei um suspiro, entorpecida. Quem eu estava tentando enganar, afinal? Não. Eu não achava que fugiria dele. Na verdade, nem de longe era o que eu queria. E por isso, como a completa tola que eu me sentia, o segui mais uma vez sem sequer questionar o destino.

Capítulo 02

  – Não acredito que você me fez comprar essa coisa horrorosa.
   olhou para dentro da sacola de papel enquanto eu fazia o mesmo, espiando a fantasia dobrada cuidadosamente ali. Após um instante ele deu de ombros, como quem não liga para nada, e seguiu caminhando pela calçada. Soltei um longo suspiro e a careta veio em seguida ao passo em que eu o seguia.
  Todas aquelas lantejoulas e camadas de tule cheias de fitas... Se minha mãe me visse com esse vestido, pensaria que eu não estou batendo bem das ideias. Todas aquelas garotas que vi mais cedo que não perdem uma fofoca? Ririam tanto que rolariam no chão com os músculos da barriga doendo com a primeira visão minha naquele monte de pano. Eu nem sequer me lembrava a última vez que havia usado uma roupa que não fosse jeans e camiseta. Só sabia que, na época, meu pai ainda era vivo. E que ele ia adorar me ver vestida assim amanhã.
  O fantasma de seu sorriso e o som de sua risada quase me atingiram. Eu abracei meu corpo com o braço livre, apertando as alças da sacola com mais força entre meus dedos e apressando meu passo para acompanhar meu amigo. Tinha tanto tempo desde que eu fizera algo como o que estava me convencendo a fazer, que sinceramente eu me sentia estranha. Boba. Não estava ansiosa para repetir esse feito, e ficava cada vez mais e mais nervosamente inquieta.
  E já não sabia bem se isso tudo era só por causa da tal da fantasia…
   me olhou com o canto dos olhos pela sombra que escurecia seu rosto e esbarrou propositalmente seu braço no meu, uma provocação nada velada para chamar minha atenção.
  – O que tem de errado? – reclamou em seguida, a voz leve, mas o rosto neutro e avaliador. – É festa junina, dia de São Paulo e São Pedro. Tem que se divertir e entrar no clima, .
  – Clima de frescura, só se for. – Revirei os olhos enquanto ele me lançava um sorriso de canto após sua justificativa nada convincente e eu mantinha a nostalgia crescente longe de mim enquanto podia.
  – Clima de alegria – ele devolveu dando mais ênfase à última palavra, se inclinando um pouco em minha direção. – Tente sorrir de vez em quando. Faz muito bem pra alma, você devia experimentar. E, só para constar, tenho certeza que essa fantasia não vai te matar se usa-la por algumas poucas horas. Posso te garantir isso.
  – Será? – logo objetei, cheia de sarcasmo. – Eu ainda acho que aquele corpete é uma arma a qualquer pessoa com problemas respiratórios e uma ameaça afrontosa aos direitos humanos! Você realmente não sabe do que está falando.
  A risada espontânea dele encheu o espaço ao nosso redor e eu sorri em resposta, olhando para a frente. Como não retrucou, continuei meus passos por mais alguns segundos, desmanchando minha expressão de volta à seriedade, seguindo até a minha casa no fim da rua, mas me concentrar nessa tarefa ao mesmo tempo em que me analisava de cima a baixo parecia impossível. Seu olhar avaliativo sobre mim me fazia sentir como se eu fosse tropeçar a qualquer instante, e, simplesmente cair pela segunda vez em menos de duas horas estava completamente fora dos meus planos.
  Ele mantinha seu olhar sobre mim com tanta intensidade que eu estava tensa em expectativa. Nervosa. Até constrangida.
  Dando-me por vencida depois de muitas tentativas falhas de ignorá-lo, soltei outro longo suspiro e, ainda sem o encarar, inquiri prontamente:
  – Ok, o que foi, ? Tem alguma coisa grudada no meu cabelo? Algum bicho andando pelo meu braço?
  – Não – Ele soltou um riso baixinho. – Aparentemente está tudo no lugar aí.
  Eu pisque duas vezes sem parar a caminhada, o desconforto crescendo lentamente.
  – Estão por que você me olha como se eu tivesse dois raios-laser no lugar dos olhos?
  – Estou só me perguntando se esse seu mau humor todo hoje é por fome, sono ou por acaso falta de uns beijos. Está precisando sair com alguém?
  Mas que merda...?
  Parei onde estava imediatamente e me virei de frente para ele com olhos estreitos, a luz do poste nos iluminando parcamente de cima, mas revelando com muita clareza cada traço do meu rosto, toda minha postura completamente perplexa, indignada e irritada pelo seu comentário sem noção.
  – Qual o seu problema, ?
  – O meu? Nenhum. Mas se você quiser, conheço alguns caras e até umas garotas…
  – Não pode estar falando sério. Que tipo de pessoa você acha que eu sou? Quem você pensa que é? – Minha voz soou tão sem emoção que imaginei que imediatamente ele fosse começar a se defender ou se justificar enquanto eu preparava meu discurso sobre o empoderamento feminino onde mulher nenhuma precisava de homem (ou mulher, que seja) para seja o que for – muito menos para melhorar o humor como ele acabara de ressaltar.
  Contudo, para me mostrar que eu estava errada, ou pelo menos indo muito além da reação que ele esperava observar, sua resposta foi uma gargalhada estridente e exagerada que me fez ficar ainda mais atônita, entendendo imediatamente que ele estava tirando uma com a minha cara. De propósito.
  Senti meu rosto ficar completamente vermelho, ele me desarmando.
  – Qual a graça?
  – Você, . – O calor em meu rosto se intensificou ainda mais. – Esse não era bem o objetivo, mas com certeza isso foi muito melhor que toda essa sua apatia constante. Sinceramente achei que fosse me mandar para o inferno, e só. Eu não estava falando sério sobre o que disse.
  – Tem certeza, ? – eu insisti irônica e petulante, nada convencida do que ele falou. Então seu riso começou a morrer conforme via que eu realmente não via graça naquilo. – Por que não parecia ser só uma implicância.
  – Sim, eu tenho certeza. – Ele me olhou com seriedade absoluta e qualquer traço de diversão desapareceu inteiramente de si. – Eu queria te provocar, sim. Você está tensa o dia todo e eu nunca te vi tão carregada.
  – E falar essas coisas ajuda como, sr. Esperto?
  – Pensei que te distrair com brincadeiras idiotas fosse ajudar, porque é isso que amigos fazem. Fazem os outros rirem com coisas estúpidas – ele respondeu de imediato e eu pisquei meus olhos enquanto o encaro, quase atônita demais por sua franqueza. – Mas se soubesse que ficaria assim, ainda mais irritada, tinha ficado quieto. Você não sabe brincar, .
  Dei um passo para trás. E aquelas simples palavras inflaram dentro de mim, além da mágoa, do amargor e da percepção fria, algo que eu sequer sabia que estava segurando para dizer, mas que quando dei por mim, já era tarde demais para impedir de sair:
  – Não, você tem razão, eu não sei – rebati de imediato. – Desde que minha vida ficou essa bagunça, eu não sei mais brincar. Não sei mais ser aquela pessoa. Me desculpe por te decepcionar.
  Ele sustentou meu olhar com incompreensão e em um segundo eu tive vontade de tomar as palavras de volta, a confissão que eu nunca deveria ter feito em voz alta.
  Geralmente não faço o tipo de pessoa que sai por aí reclamando sobre a vida para os outros. Ser irônica e sarcástica? Sim. Ser rabugenta de propósito? Também. Mas os comentários eram sempre só comentários, nada mais. Minhas verdades sempre foram só minhas. E não sei porque agi exatamente da forma contrária e impulsiva à que costumo justo agora, justo com . Só sei que não dava para voltar atrás.
  Vacilei em minha postura nos segundos seguintes, e meu semblante rígido começou a se desfazer. Por outro lado, apertei meus lábios um contra o outro. Eu devia tomar cuidado para não deixar mais nada sair deles sem pensar.
  – Bagunça? – perguntou , a voz suave e aveludada, provavelmente tentando entender o ponto daquilo tudo, o que eu queria dizer. – Que bagunça, ?
  Tive que respirar fundo três vezes antes de tomar coragem e dizer alguma coisa. Pensar no que dizer antes de me arrepender depois. Eu podia mentir, inventar alguma desculpa esfarrapada para ele sobre eu estar muito cansada e ter acabado falando coisas da boca pra fora ou até sair andando e deixa-lo ali sem qualquer resposta enquanto entrava pelo portão que levava até minha casa. Mas de todas as pessoas que eu possuía alguma proximidade nessa cidade, era uma das únicas em quem eu podia de fato confiar. Que eu sabia que se importava comigo, ao menos um pouco. E só por esses motivos que fui honesta. Dei a ele um pouco da verdade, ainda que incompleta e muito evasiva.
  – Eu pensei um pouco em voz alta – falei tentando manter a voz firme, meu olhar erguido e sobre o seu. – Não devia ligar para o que eu digo, é bobagem. Só estou me sentindo nostálgica.
  – Nostálgica sobre o quê?
  – Nada com que você deva se importar.
  – Mas eu me importo – ele insistiu e se aproximou de mim, o cenho franzido. – E quero entender o que está acontecendo para poder te ajudar. Conversa comigo, . Me explica o que foi.
  Segurei a respiração como se isso me desse tempo para raciocinar o que fazer. Mas não deu. Eu sabia que agora não poderia simplesmente fugir do que ele queria saber, porque conhecia já há muito tempo, bem o suficiente para ter certeza que ele não iria embora enquanto tudo não estivesse claro para si. Não me deixaria enquanto não tivesse certeza de que eu estava bem.
  Irônico saber que justamente sua gentileza, suas melhores características, era o que ele mais tentava esconder de todos os outros, principalmente das garotas com quem ficava. Contudo, jamais negara um pingo de bondade para mim.
  Toda a força que eu estava fazendo para segurar as palavras se desfez com a veemência com a qual sustentou seu olhar.
  – Minha família. Ou o que resta dela – disse por fim, sentindo a voz tremer e a respiração falhar com as lembranças inevitáveis que eu tentava refrear. – Eu não sei o que deu em mim hoje, eu não sou sentimental assim. Mas sinto falta dele, . Sinto falta do meu pai. E essas coisas que fizemos hoje, a época do ano em que estamos... tudo isso me lembra ele e o que ele adorava fazer comigo. E eu sei que desejar que meu pai estivesse aqui não vai mudar nada, mas é tão... é tão difícil suportar a ausência dele!
  Qualquer outra pessoa talvez tivesse me abraçado, tentando passar algum tipo de conforto imediato e dito que tudo ficaria bem, blá, blá, blá. Mas não . Ele nunca ia pelo caminho mais fácil ou mais óbvio. Nunca era ordinário. Meu amigo trocou o peso do corpo de pé e ajeitou o chapéu em sua cabeça sem tirar os olhos de mim, completamente calado, analisando minha face como se procurasse o significado daquilo por baixo dos meus traços, aquilo não pronunciado entre as palavras das minhas falas. Por um instante sua postura ficou mais ereta, porém sua boca se torceu num gesto como se não soubesse bem o que fazer ou dizer em seguida.
  Meus ombros se curvaram um pouco. Soltei um suspiro exausto e fechei os olhos como se a escuridão das minhas pálpebras pudesse ajudar, porque pensar demais sobre todas as sensações que me tomavam consumia minhas forças, e o silêncio de me dava apenas mais um motivo para evitá-las a todo custo.
  – Vamos esquecer isso tudo e…
  – Está querendo desistir, ? É isso? – Surpresa pelo que ele insinuava, eu arregalei meus olhos para ele. Sua voz soava sugestiva demais e suas íris brilhavam levemente em desafio.
  Foi algo diferente do que de fato eu esperava ouvir e confesso que demorei um pouco para entender onde ele queria chegar. Mas veja bem, era quem estava ali. Esperar o comum dele nunca dava certo.
  E talvez eu tenha me expressado mal.
  – Não. – Chacoalhei a cabeça para os lados. – Eu não quero desistir. Não vou desistir. Essa não é a questão, é que eu simplesmente não sei o que fazer com a minha mãe, ou comigo, ou com todo o resto! – respondi sentindo o gosto amargo em minha boca conforme explicava aquilo que vinha tomando quase todos os meus pensamentos ultimamente. – As coisas nunca foram fáceis para os meus pais aqui no interior, principalmente para ela. Eu honestamente nunca esperei que isso fosse mudar, a criança boba que eu era achava que ia ser pra sempre, os risos do meu pai contra tudo, inclusive a melancolia da minha mãe. E estava tudo bem assim!
  “Só que desde a morte dele tudo ficou ainda mais difícil, e agora minha mãe descobriu que... – Levei a mão até minha orelha para brincar com o brinco preso ali enquanto reformulava os pensamentos. – Eu sei que já fazem anos, , sei que essa névoa pesada e cinzenta já devia ter se desfeito e que eu devia estar lutando para conseguir coisas boas, para fazer coisas boas por mim e por minha mãe, mas eu não sou como ele, eu não consigo acreditar em... – me interrompi de súbito, passando a mão pelo lóbulo de minha orelha direita e depois pela esquerda e não sentindo brinco nenhum em nenhuma delas. As palavras se perdendo no ar e minha mente se esvaziando. – Cadê?
  Ele franziu a testa para mim.
  – ? O que foi? Não vai continuar?
  Eu, pela primeira vez na vida, o ignorei completamente com muito vigor e olhei ao nosso redor como se a poeira no chão fosse mais interessante que ele. Em outro momento talvez eu me sentisse vitoriosa. Agora eu só queria achar o que não estava onde devia.
  – , onde estão meus brincos?
  – Brincos?
  – Sim, meus brincos de ouro, os que eu estava usando hoje quando você me encontrou! – minha voz soou exasperada. – Os que uso desde sempre, de trevo de quatro folhas!
  Comecei a remexer na sacola de fantasia desesperadamente, afastando os tecidos do vestido de forma desajeitada e então os chacoalhando como uma louca para todo lado esperando que caíssem e tilintassem aos meus pés. Eu não poderia perder aquela joia. Nunca.
  Por um instante achei que podia ser outra brincadeira sem graça vinda de , mais uma provocação, mas pela forma como ele me olhava agora, com o semblante torcido e a confusão o tomando de cima a baixo, foi fácil entender que não era.
  – Eu só me lembro de você os usando quando te encontrei hoje mais cedo, . Você não os tirou? – Balancei a cabeça para os lados em negação, enrolando meu cabelo para o lado, o frio em minha barriga me deixando quase enjoada. Eu os havia perdido.
  – Devem ter caído – concluí com a respiração errática e o coração batendo forte. – Em algum lugar entre a banca de revistas e aqui. O que vou fazer? – resmunguei entredentes, me sentindo uma completa idiota. – Foi o último presente que meu pai me deu. Era a última lembrança que eu tinha dele!
  Lá estavam os sentimentos novamente, mais fortes do que eu costumava me permitir, e agora não conseguia controlá-los.
  Meus olhos começaram a arder. Odiava chorar na frente dos outros, principalmente por algo que para muitos soaria fútil e dispensável, afinal, era só um par de brincos. Facilmente substituível. Mas saber que eu havia perdido o presente mais importante dado pelo meu pai me deixou em pânico. Aqueles brincos já eram parte de mim.
  – Podemos refazer nosso caminho de hoje, voltar para onde nos encontramos – sugeriu. – Talvez seus brincos ainda estejam caídos em algum lugar por lá. Ou quem sabe você não os deixou na loja de fantasias enquanto provava as roupas? Alguém pode ter encontrado e deixado nos achados e perdidos! Não custa tentar, posso ajudar você a procurar.
  Balancei a cabeça para os lados, meus braços igualmente inquietos enquanto eu gesticulava sem parar. Eu apreciava a ajuda de , mas não acreditava em nenhuma das opções que ele me dava.
  – São brincos de ouro. – Ou ao menos eram, me corrigi mentalmente. – Qualquer pessoa que os tenha encontrado os pegou para si. Talvez já tenha até vendido para outro alguém.
  Esfreguei as mãos na cabeça tentando me acalmar. Não é o fim do mundo, ! Controle-se, pensei por vezes seguidas. Controle-se, controle-se, controle-se.
  – Você não pode ter certeza.
  – Mas eu tenho! – gritei exasperada tapando minha boca em seguida. Claramente eu estava falhando em me controlar também. Ótimo.
   soltou um suspiro e deixou que seus ombros murchassem. Com sua postura relaxada ele parecia um tanto menos intimidante que o costume, mas não foi isso de fato que prendeu minha atenção em si. Foi a maneira como os músculos do seu maxilar se tensionaram, como suas pálpebras desceram e estreitaram sua visão por trás das sombras, como ele pareceu subitamente, com tanto afinco, pensar em encontrar uma solução para o meu problema que o fez.
  Ele olhou ao redor rapidamente, seus olhos brilhando como nunca antes vi, duas ônix perfeitamente lapidadas contra a luz, reluzentes. Apertou os lábios numa linha fina e de repente pareceu tão aflito e desconcertado quanto eu há alguns poucos minutos. Eu diria que ele havia empalidecido, contudo, a fraca luz sobre nós parecia confundir minha visão.
  Eu não sabia dizer o que se passava em sua mente, mas sabia que ele parecia realmente incomodado, como se mais tarde pudesse se arrepender do que pensava. Do que poderia me dizer.
  Concluir isso não me animou nem um pouco.
  A brisa soprou mais forte, fria, traindo o clima abafado que tomava a região. Eu estremeci no mesmo lugar e pareceu sentir o mesmo. Sua vista se levantou para o horizonte. Ele prendeu a respiração.
  – Amanhã à noite, na festa junina... – disse e se interrompeu para soltar um longo suspiro. – Sei de alguém que pode ajudar você.
  – Como assim? O que quer…
  – Só confie em mim, ok? – cortou quando começou a se afastar, repentinamente e com pressa. – Vai dar certo, , sei que vai. Mas para isso você vai precisar ter a mente aberta.
  – Mente aberta? Do que raios você está falando, ?
  Ele virou as costas, abaixando mais seu chapéu sobre sua cabeça, colocando as mãos no bolso e caminhando a passos rápidos.
  – Amanhã, ! – Sua voz começava a soar mais baixa conforme se distanciava, seus passos ecoando abafados contra a calçada. Ele não se deu ao trabalho de virar em minha direção, nem de diminuir a velocidade enquanto eu o seguia. – Lembre-se do que eu disse hoje mais cedo.
  – Quê? Pare de palhaçada! – outra vez gritei, o seguindo por alguns metros esperando que ele me desse alguma bola ou no mínimo alguma explicação. – Volte aqui! Eu não estou entendendo! ! !
  Ele virou a esquina, sem me dar a chance de eu alcançá-lo, obrigando suas pernas longas e velozes a me deixarem para trás. Já era longe demais e quando cheguei à curva, seu nome pronto para deixar meus lábios mais uma vez, eu me deparei com a rua de terra completamente vazia, só a vegetação escurecida pela noite e o vento balançando os galhos das árvores, as águas do rio inquieto ao fundo.
  Contrariada, parei onde estava, pisando com ainda mais força contra a terra, minha cabeça começando a doer.
  Lembre-se do que eu disse hoje mais cedo, ele havia dito. Mas me lembrar do quê? Que história era aquela? O que queria dizer com aquilo tudo?
  Me dando por vencida, terminei o caminho até minha casa, percebendo que não conseguiria decifrar nenhuma das tais perguntas que eu formulava sem a ajuda dele. O que me restava era esperar até a festa de amanhã. Como eu lidaria com isso já era outra história.
  Pesarosa e irritada, esfreguei o lóbulo da minha orelha, olhei para o céu e contemplei a lua cheia que já aparecia sem nenhuma timidez.
  Quando eu o encontrasse na noite seguinte, teria muito que explicar.

Capítulo 03

  Tentar me concentrar no sabor da pipoca, da paçoca, da canjica e do cachorro quente para me distrair e diminuir a ansiedade funcionou durante mais ou menos os vinte primeiros minutos, depois me entediou durante os outros trinta. Definitivamente isso agora já não estava mais dando certo.
  Infelizmente eu tinha essa mania de comer descontroladamente quando me sentia nervosa, mesmo sabendo que de nada adiantaria me empanturrar de comida e que depois meu estômago cobraria seu preço. Contudo, ainda assim, o pé de moleque era o próximo aperitivo da lista a ser apreciado.
  Dona Marta realmente havia caprichado nas receitas esse ano.
  O atraso de com certeza era um ótimo pretexto para eu sair provando tudo de comer que existisse na festa junina de São Pedro deste 29 de junho, não fossem algumas questões.
  Primeira, seria muito mais confortável se a fantasia de noiva que meu amigo me escolheu não fosse assim tão justa em todo o tronco. Eu teria que me controlar muito se quisesse andar e respirar ao mesmo tempo sem desmaiar no meio do caminho e fazer cena no meio de toda aquela gente.
  Segunda, eu não era lá uma pessoa muito confiável para usar roupas brancas. Geralmente elas terminavam com uma ou duas manchas no final do dia, e eu estava precisando redobrar minha atenção para não derrubar nem um pingo do molho vermelho da salsicha ou um pouco do vinho quente com gengibre e de repente me transformar em uma noiva zumbi. O que, sendo sincera, deixaria a fantasia muito mais interessante.
  Mas tudo bem, eu podia guardar a ideia para o Halloween.
  E mesmo depois de avaliar os dois pontos anteriores, eu decidi por continuar comendo.
  Andei por entre as mesas coloridas, com laços e cheias de fitas, feliz em ao menos estar de tênis e não de salto ou sapatilha para torcer meu pé no piso irregular. Achei uma cadeira vaga um tanto distante da fogueira onde a maior parte das pessoas de fato estava reunida, e grata, me sentei ali sozinha.
  Não que eu fosse antissocial, longe disso. Só não queria interromper as cantigas e a agitação de todos eles com minha falta de interesse pelas superstições e tradições, por isso decidi ficar ali, de longe, apenas observando.
  Exatamente como faziam as meninas da tarde anterior, hoje vestidas de xadrez rosa choque e chapéus de palha, com trancinhas nos cabelos e pinturas no rosto, me olhando com mais atenção do que jamais eu tinha visto, cochichando e rindo sem nem parar para respirar.
  Ah, sei bem o que elas devem estar falando…
  Dois goles do vinho quente depois, eu fui capaz de ignorá-las com mais sucesso.
  Acima de mim muitas bandeirinhas cruzavam o ambiente aberto da fazenda de dona Marta, os fios presos em galhos de árvores ou em postes de luz improvisados pelo campo que criavam um entrelaçado confuso e cheio de cor, emoldurando o céu escuro. As mesas estavam cobertas por toalhas de cores chamativas assim como as cadeiras, porém poucos descansavam como eu. As pessoas estavam divididas: enquanto alguns tocavam suas sanfonas e cantavam as músicas alto e com vigor, outros arriscavam alguns passos da quadrilha, sem contar ainda aqueles que brincavam com as crianças gritando “olha a cobra! É mentira!”.
  Não havia uma pessoa ali não fantasiada de caipira (como se já não fosse assim diariamente), vestindo camisas quadriculadas, calças jeans, botas de couro e chapéus largos. E graças a seja-lá-o-que-controla-o-cosmo, eu não era a única garota passando mico usando vestido de noiva naquele quintal. Ao menos assim eu não chamava toda a atenção só para mim, e aí as fofoqueiras da cidade podiam dividir o foco dos sussurros e olhares de esguelha para outras igualmente.
  Me sentiria péssima se fosse só eu com os holofotes delas e provavelmente xingaria muito por causa disso também, afinal, a ideia de usar essa roupa espalhafatosa cheia de brilho não foi minha.
  Seu Jorge, marido de dona Marta, me viu de longe e acenou animadamente, surpreso e muito feliz por minha presença. Quase não consegui esconder a careta. Talvez minha postura de tédio enquanto segurava minha cabeça com a mão apoiada na mesa não tenha sido o suficiente para afastar as pessoas, porque ele começou a vir em minha direção.
  Suspirei. Tudo bem, pode ser que eu fosse sim um pouco antissocial. Mas simplesmente estava tentando evitar as mesmas perguntas de sempre que eu já não aguentava mais ouvir, sobre a minha família, sobre como estávamos indo, se estávamos precisando de alguma coisa, etc., etc., etc.
  Ensaiei o sorriso apenas para desfazê-lo em um segundo.
  - Ainda mal-humorada, ?
  A voz me pegou de surpresa e quase pulei da cadeira. Contudo, não precisei olhar sobre o ombro para descobrir quem era. Só vi de longe seu Jorge interromper seu caminho com um sorriso sem graça e mais um aceno rápido, dessa vez se despedindo, deixando a conversa para outra hora.
  Salva pelo timing perfeito.
  - Pensei que não viesse mais – reclamei e me virei para olhar , de cima a baixo, pronta para implicar com ele, mas acabei completamente embasbacada o observando. Bonito, animado, bem vestido e charmoso. Existe algum elogio que não serve para descrevê-lo?, ousei me perguntar.
  - Não duvido. Desconfiada do jeito que é. – Ele me dirigiu um sorriso que mostrava todos os dentes, obviamente tentando me contagiar, mas não aderi ao seu senso de humor. Eu continuava me sentindo péssima e irritada. E também não havia esquecido o jeito estranho como ele havia me deixado no dia anterior, sem mais nem menos.
  - Por que demorou tanto? – Não me dei ao trabalho de retrucar sua provocação. – Estou esperando você já tem mais de uma hora.
  - Estava resolvendo um problema. Vamos dançar?
  Imediatamente pegou em minha mão, mudando o foco da conversa tão rápido e natural quanto respirar, sem me dar a chance de recusar, me conduzindo em seguida até o meio da festa onde todos estavam cantando, tocando e dançando, se divertindo exatamente da maneira como eu não estava.
  - Não, ! Eu não sei dançar! – reclamei no meio do caminho, sentindo meu coração acelerar em apreensão pelo desastre que poderia acontecer em seguida. – Tá maluco? Vai passar vergonha se fizer isso.
  - Talvez – ele respondeu após me girar no mesmo lugar, quase me fazendo tropeçar. – É só me acompanhar que vai dar tudo certo. Festas juninas são as minhas favoritas e não vou deixar você ficar lá sentada como se quisesse desaparecer debaixo da toalha e do arranjo da mesa.
  Não me atrevi a respondê-lo. Não adiantaria.
   tentou me conduzir no ritmo da música, com paciência e animação, porém eu estava sendo um fracasso total, maior a cada segundo que passava, pisando em seus sapatos vezes seguidas, tropeçando em meus próprios pés sem qualquer coordenação.
  Definitivamente eu não servia para aquilo, era o verdadeiro significado de negação.
  Eu gemi e fiz uma careta quando tentou me girar em seus braços outra vez.
  - Você não pode estar querendo continuar com isso – falei após uma ou duas músicas, já rindo da minha própria desgraça. Ele fazia exatamente a mesma coisa, deixando minhas bochechas vermelhas de vergonha pela situação horrorosa que provocávamos. – Vai afastar todas as garotas da festa com esse mico absoluto. E só eu sei como você se importa com elas!
  - Não, . Você está enganada. – Ele me girou de surpresa e segurou mais forte em minha cintura para não me deixar cair. – Na verdade eu ficaria muito feliz em levar isso adiante!
  - Você nunca recusa atenção feminina, admita – retruquei sem acreditar nele. – Então quanto antes me contar o que disse que contaria, mais cedo poderá se divertir com as outras garotas da festa e eu enfim poderei ir embora, tirar essa roupa e maquiagem ridículas. Só quero meus brincos de volta, é isso.
  Ele revirou os olhos para mim.
  - Talvez eu não esteja interessado em outras garotas ou em qualquer tipo de diversão como você está pensando, .
  - Mentira. Você está sempre interessado! – Ele me abriu um sorriso de deixar as pernas bambas. – Para me dizer uma coisa dessas ou você está doente ou…
  - Ou o quê?
  - Você está me enrolando! – Tentei fixar meus pés no chão e impedir que ele me arrastasse para mais um giro desordenado enquanto sentia a indignação me tomar por completo. – Pare com isso, , você disse que conhecia alguém que poderia me ajudar a encontrar os brincos. Era mentira?
  - Só uma música, !
  - Já foram mais de três!
  - Não seja estraga prazeres.
  - Então não mude de assunto! – Consegui afastar seus braços do meu corpo e assim raciocinar melhor, ainda que sentisse o seu calor chegar até mim mesmo através das roupas. – Era ou não mentira? Fez isso só pra ter certeza que eu viria na festa com você?
  - Não é nada disso, eu não menti. – Seus olhos escuros brilharam por baixo do chapéu. Tão intensos que quase perdi minha concentração. – Sei de alguém que pode ajudar sim, o que não sei é como você vai lidar com tudo isso depois.
  - Quê? Do que está falando? – Minha voz soou alta e aguda. Algumas pessoas ao redor começaram a nos olhar com curiosidade. Aquelas meninas nos fuzilando já não basta? Balancei a cabeça para os lados. – Será que consegue ser um pouco claro, por favor? Eu não sei aonde quer chegar com todas essas explicações pela metade! E não consigo ver através da sua cabeça teimosa cheia de mistério.
   olhou para os lados, parecendo incomodado com toda a súbita atenção que recebíamos das pessoas e rapidamente e sem aviso nenhum tomou minha mão com a sua, a passos largos nos conduzindo para um ponto distante de quaisquer ouvidos intrometidos e olhos curiosos, onde nem mesmo a música chegava direito.
  Só que sua atitude repentina apenas me deixou um pouco mais incomodada, e quando finalmente paramos, eu puxei minha mão para longe do seu toque.
  - Olha – eu disse para com a voz firme, apesar de estar um tanto sem fôlego pela corrida sem aviso e toda a dança anterior. –, eu não sei o que você pensa de mim, se acha que tudo ontem não se passou de charme ou birra minha, e não sei se hoje você está fazendo alguma brincadeira qualquer comigo, como adora fazer, mas te garanto que eu não exagerei. Eu faria qualquer coisa para ter aqueles brincos de volta, entende? Genuinamente.
  - Eu compreendo, , e te garanto que isso não é enrolação minha – respondeu após um instante, sua voz baixa e rouca. – Só que você precisa saber que, se quiser mesmo isso, o que tiver de ser feito para conseguir o que você quer de volta não será nem de longe tão simples como talvez você pense que seja. – Seu olhar se tornou sombrio como se escondesse mil segredos e eu pisquei algumas vezes.
  - Eu nunca pensei o contrário, . Sei que as coisas não vão cair do céu. Mas ainda assim não entendo onde você quer chegar com todo esse lero-lero. Pode ou não me ajudar? É isso que quero saber.
  Um minuto inteiro se passou em silêncio enquanto me olhava taciturno, com atenção e dúvida mesclando seu olhar carregado. Eu não entendia os motivos dele para me dizer tudo isso, mas antecipadamente já sabia que não iria gostar de nenhum deles.
  - Eu posso te ajudar, , de verdade, eu posso – me garantiu e eu senti a convicção em sua voz, a confiança em sua postura. –, mas você vai precisar acreditar.
  - E eu acredito – disse por fim, juntando minhas sobrancelhas para ele. – Acredito em você.
  - Não. Não o suficiente, não de verdade – foi o que ele respondeu, sombriamente. Ao passo em que eu o olhava transbordando confusão, ele respirou fundo e olhou para trás enquanto soltava um suspiro pesaroso. – Vem, . Precisamos ir agora.
  - Ir para onde?
  - Para lá. – Ele apontou para o ponto onde as árvores começavam a se juntar tanto que mal dava para se enxergar o que existia por entre elas.
  - Não pode ser. Você não pode estar falando sério, não tem nada no meio do mato! – Eu soltei uma risada incrédula, olhando para e ele esperando que me dissesse que era apenas uma pegadinha. Mas seu olhar estava sério e eu não conseguia decifrar nada através dele.,br />   - Temos até o nascer do sol, . E essa vai ser uma longa noite – ele continuou, estendendo-me a mão, esperando que eu decidisse. – Você vem ou não?
  Um arrepio subiu por minha espinha, minha respiração tornou-se errática conforme alternava meus olhares entre e a escuridão que ele parecia tão ansioso em seguir.
  O que minha mãe diria se me visse seguindo um homem para o meio do breu, longe dos olhos e ouvidos de qualquer ser humano? Algo bom não seria. Provavelmente me alertaria para não ir, que coisa boa não aconteceria, que eu não fazia ideia de onde estava me metendo.
  Engoli em seco e respirei fundo.
  De fato, eu não sabia. Mas era ali. Meu amigo. Alguém que eu confiava. Que mal poderia acontecer?
  Aceitei a mão dele engolindo todas as minhas dúvidas. Logo em seguida eu o segui para seja lá onde fosse, sem qualquer pista do que aconteceria depois.

Capítulo 04

  – Mato idiota! – esbravejei após tropeçar de novo em uma pedra no chão justamente por não conseguir ver nada direito graças às plantas que cobriam cada centímetro do espaço onde eu pisava.
  Se não fosse a lanterna do meu celular, eu provavelmente já teria caído há muito tempo, muitas e muitas vezes entre as raízes sobressalentes das árvores.
  – Você está exagerando – disse logo a minha frente, desviando graciosamente de um galho retorcido que se interpunha em seu caminho. Eu já não tive muita sorte e arranhei minha palma ao tentar afastá-lo para longe enquanto me curvava.
  – Ou você está simplesmente se divertindo às minhas custas – retruquei e ele me olhou sobre o ombro sorrindo, confirmando minhas suspeitas. Acabei soltando um grunhido em resposta.
  Vendo o lado positivo da situação, no fim, a aventura estava sendo menos perigosa do que eu tinha cogitado ser. Até o momento, pelo menos, meu pseudo amigo ainda não tinha tentado me matar para esconder meu corpo naquela terra de ninguém, como costumava acontecer nos filmes, o que miseravelmente me deixava um pouco mais tranquila.
  Por outro lado, o lado negativo da história, a caminhada estava sendo ainda mais irritante do que eu pensei que seria, e eu ainda não fazia ideia de aonde estávamos indo.
  Se soubesse que acabaria fazendo um passeio noturno por aqui teria passado um repelente nas pernas e quem sabe colocado um par de botas. Os insetos estavam devorando minhas pernas expostas.
  E ainda por cima, toda a calma de
  – Sério, ! Se isso for apenas algum tipo de brincadeira sua, eu juro que nunca mais falo com você!
  Sua gargalhada soou despreocupada.
  – Relaxa, ! Não estamos brincando de João e Maria, se é o que pensa. – Revirei os olhos ao passo em que ele apontou para trás de mim, seu sorriso ainda mais aberto. – Se bem que você parece estar entrando bem no personagem, hein?
  Eu olhei intrigada para onde ele estava apontando e então me deparei com uma trilha de trapos brancos e fios soltos da mesma cor que iam tão longe para trás de nós que desapareciam de vista. Olhei para a minha saia da fantasia de noiva, cheia de camadas de tules com alguns buracos em sua cobertura, e respirei fundo. Roupa estúpida. Eu ficaria pelada antes de encontrar meus brincos.
  – Será que agora pode dizer de uma vez para onde estamos indo? Ou por que meus brincos estariam aleatoriamente aqui, no cruzamento do Nada com o Lugar Nenhum?
  – Não fique assim tão indignada.
  – Ah, claro que não – respondi com a voz transbordando ironia e sarcasmo, desviando de mais um galho grosso e retorcido. – Só estamos no meio do mato, provavelmente perdidos, perto da hora mais escura da noite enquanto minha fantasia se desmancha pouco a pouco e meus braços e pernas ficam cada vez mais arranhados por causa de todas essas plantas ridículas que cutucam minha pele que fica cada vez mais descoberta. Jamais quis soar indignada, . Acho que você entendeu errado.
  Soltando o ar nem um pouco satisfeito, ele se virou para mim rapidamente.
  – Estamos indo até uma amiga minha, ok?
  – Uma amiga? – devolvi imediatamente. – E ela vive aqui nesse nada rodeado por árvores infinitas, tipo a vó da Chapeuzinho Vermelho?
  – Na verdade ela mora no rio.
  – Quem? – ironizei. – A vó da Chapeuzinho ou a sua amiga?
   parou de andar, pela primeira vez parecendo irritado.
  – Certo, você está começando a confundir as coisas, . – Eu acabei por dar de ombros e revirei os olhos depois de rir sem qualquer emoção.
  – Não é simples para mim levar isso com naturalidade – falei, minha voz soando tão baixa que mal sabia se ele tinha ou não escutado. – Precisa admitir que o que está fazendo é estranho demais, e mesmo assim, por respeito a você, eu estou me esforçando de verdade para não virar as costas e voltar correndo de volta para a festa.
  – Pensei que odiasse festas.
  – E odeio. – Ele soltou uma gargalhada. – Mas tudo bem. Por mais difícil que esteja sendo, eu prometi acreditar em você e é isso que vou fazer.
  – Ah, ... – A risada dele a seguir acabou soando um tanto quanto enigmática. Imaginei que talvez fosse pelo ambiente sombrio onde estávamos. Ao menos, era o que eu pensava, pois as sombras que nos cobriam pareciam evocar pensamentos nem um pouco felizes. – Você sempre foi assim tão cética em relação a tudo e todos?
  Não respondi de imediato. Precisei dar mais alguns passos em silêncio para conseguir absorver bem a pergunta de e organizar meus pensamentos enquanto ouvia o uivo do vento balançar a copa das árvores sobre nós.
  – Não. – A palavra teve um gosto amargo em minha boca, assim como meus pensamentos. – Mas chegou um momento onde aprendi que a vida não se trata de um conto de fadas.
  – A morte do seu pai? – perguntou sem rodeios e me olhou sobre o ombro. Não era todo mundo que falava com tanta franqueza comigo, sem antes amaciar o terreno. Eu ficava feliz por isso, mas não o suficiente para apagar as sensações ruins que me tomavam agora. Assenti rapidamente após alguns segundos, ainda sabendo que minhas dúvidas surgiram muito antes do meu pai morrer.
  – Ele era uma boa pessoa – me ouvi dizer enfim, com mais raiva do que deixava transparecer. – Não merecia o que aconteceu com ele, . Um acidente de carro onde ele fratura as pernas e tem um derrame cerebral irreversível, enquanto o outro motorista, o bêbado que bateu nele, sai ileso apenas com alguns arranhões. Depois disso você ainda quer que eu acredite em seres que cuidam e fazem o bem para as pessoas? Ele acreditava nisso, e olha no que deu! Quando eu passei noites em claro orando e rezando por ele, pedindo e implorando pela vida e recuperação dele, nada aconteceu. Nenhum santo milagre, nenhuma mágica, absolutamente nada.
  Prendi a respiração e pisei com mais força no solo, o farfalhar das folhas secas ficando mais fortes sob meus pés, assim como os batimentos do meu coração.
  – Essas crenças não serviram de nada. Eu não consegui ajudar meu próprio pai! – aumentei o tom da voz. – Então me poupe dessas histórias fantasiosas. Ele sofreu muito, . E não merecia isso de forma alguma.
  Seus olhos entristeceram de repente e ele esperou por um momento antes de voltar a sua caminhada silenciosa. Por um instante achei que fui muito dura com minhas palavras. não tinha nada a ver com o que aconteceu. Não adiantava despejar as coisas desse jeito agora, como se ele pudesse fazer algo a respeito.
  Abri e fechei a boca para dizer isso em voz alta, mas nada saiu. Vários segundos em quietude se estenderam enquanto andávamos.
  – As coisas não se resumem somente a fé, . Existe muito mais. Às vezes... – respirou fundo, pacientemente. – Às vezes coisas ruins acontecem com pessoas boas. O mal está aí, e, infelizmente, as tragédias não escolhem suas vítimas.
  Tomada pela raiva súbita, em dois largos passos eu parei ao lado dele.
  – Está tentando justificar o que aconteceu com meu pai?
  – Na verdade, estou sim – disse simplesmente, sem sequer me olhar de verdade. – Ou acha que o outro motorista planejava o que aconteceu?
  – Ele podia ter evitado!
  – Talvez sim, talvez não. Você não estava lá para saber. – Suas palavras me deixaram paralisadas. A memória me tomando de repente, de muito tempo atrás quando as ouvi em uma noite tão diferente dessa. – Tudo acontece por uma razão, às vezes só não compreendemos os porquês.
  Soltei uma gargalhada carregada de incredulidade.
  – Vai me dizer que o universo tem alguma lógica então? Que tem raciocínio próprio? , eu não nasci ontem!
  – E mesmo depois de tudo o que viveu, ainda assim acredita em casualidades? – Seus olhos brilharam para mim. – Realmente acha que surgimos do nada e que para o nada vamos voltar?
  Eu queria retrucar, fazê-lo fechar a boca e me dar razão no que dissera, mas nenhuma palavra deixou meus lábios, porque eu não sabia o que responder a ele em seguida. Não tinha uma resposta pronta além de um patético “não sei”.
  Tranquilamente, ao ver que eu nada falaria, meu amigo voltou a caminhar, tão convicto e pleno do que ele próprio havia falado que me deixou desconcertada e me sentindo uma completa tola.
  Fiquei para trás e não me esforcei em alcançá-lo.
  – Vamos – ele pronunciou após minutos em silêncio. – Estamos quase chegando, já posso até ouvir o rio.
  Levantei os olhos do chão irregular e olhei ao redor confusa, apertando a vista enquanto tentava enxergar algo além de onde a claridade da lanterna do celular me mostrava. Eu ouvia cigarras cantando, folhas balançando ao vento, e às vezes o piar de algumas corujas mais ao longe. Fora isso, não havia som de mais nada, rio nenhum.
  – Tem certeza?
  – Absoluta! – Ele se virou para mim sorrindo de novo e apertou o passo adiante, como se há poucos instantes não estivéssemos nós dois discutindo sobre nossos diferentes pontos de vista sobre a filosofia do mundo e da vida. – Venha, ! Precisa se apressar.
  E então, mesmo presa num estado constante de confusão e incerteza, desatei a correr para não perdê-lo de vista. Minha saia perdeu mais alguns centímetros de pano pelo caminho conforme eu me embrenhava ainda mais entre as árvores, e meu braço ganhou mais alguns vergões avermelhados, mas finalmente quando alcancei segundos depois, de fato vi o rio a minha frente, com forte correnteza e um barquinho solitário em sua margem.
  Procurei com afinco no horizonte, perpassei meus olhos por cada superfície. Havia água e mais água, porém nenhuma casa.
  Olhei para juntando as sobrancelhas. Algo não estava certo.
  – Tem certeza que é aqui? – questionei enquanto recuperava o fôlego. – Não tem nada nesse lugar! Nenhuma casa, nenhuma oca, sequer uma barraca! Tudo o que tem é aquele barquinho caindo aos pedaços que devia estar no fundo do rio agora. Sua amiga mora nele, por acaso?
   soltou outra gargalhada e balançou a cabeça para os lados. Como ele podia estar sempre tão animado?
  – Quando você vai confiar em mim, ? – Ele segurou em meu pulso e me fez acompanhá-lo de perto, um arrepio subindo por meu braço a partir da maciez de onde sua pele encontrava a minha. – É daquele barco que precisamos, e vamos seguir a correnteza até achar minha amiga.
  – Simples assim?
  – Simples assim.
  Eu podia ter recuado. Devia ter voltado atrás. Mas me ajudou a entrar no que restava da embarcação, ouvindo a madeira ranger em protesto sob nosso peso, e eu abracei meu próprio corpo como se pudesse me proteger da estranheza de tudo aquilo.
  Engoli em seco olhando para a correnteza. Se eu achava que aquilo não podia piorar... Eu realmente estava muito enganada.

Capítulo 05

  Apertei meus braços ainda mais contra meu próprio corpo e soltei uma lufada de ar. Aquele passeio estava saindo pior que a encomenda. Eu tentava de verdade acreditar em , mas meus instintos gritavam que meu amigo só estava querendo tirar uma com a minha cara e ficava cada vez mais difícil acreditar no contrário.
  Respirei fundo e contei até dez, procurando acalmar meus nervos que ficavam cada vez mais atacados. Antes de surtar por completo, precisava de algumas informações.
  - Então... Como vamos achar sua amiga?
  - Ela quem vai nos achar – disse após um curto instante remando sem pressa e apenas sacudi a cabeça em afirmação, apesar de não estar levando nada daquilo mais a sério.
  Estávamos sentados no barco, ele de frente para mim. Mas eu não enxergava onde estávamos indo, era que controlava nossa direção e desviava das pedras enquanto eu apenas observava o desenho das árvores ficarem para trás e iluminava nosso espaço, a água espirrando em nossas pernas com pequenas gotas geladas.
  - Certo. E por que ela mora aqui? – Fiz um gesto amplo indicando o rio, um tanto insegura, porque até então as únicas coisas que eu conhecia que moravam de fato na água eram infinitas espécies de peixes, algumas plantas que eu não sabia nomear e mais uma porção de mamíferos. Às vezes alguns répteis e anfíbios também.
  Já pessoas no geral... Só se fossem marinheiros ou pescadores. Talvez até algum esquisito excêntrico. Mas honestamente eu não achava que era esse o caso, porque nós dois éramos o único tipo de vida que eu via por toda parte e não achava que isso ia mudar de repente.
  - É uma história um pouco longa – Meu amigo virou a cabeça para trás como se evitasse me olhar naquele momento, como se fugisse da luz. –, na verdade ela foi amaldiçoada pelo pai.
  Talvez ele esteja louco, uma parte do meu cérebro pareceu gritar conforme estreitei os olhos. Mas toda a outra que restava... havia conseguido minha atenção.
  - Amaldiçoada?
  - É, bem... – Mas meu amigo não terminou sua frase, foi interrompido de súbito por uma bela melodia vinda de algum ponto à frente, além de onde conseguíamos ver, para onde o fluxo da correnteza seguia. Eu senti meus pelos do braço se eriçarem e minha pulsação aumentou conforme o formigamento em meu estômago.
  Com pressa, apertou os olhos e começou a observar ao nosso redor, procurando por alguma coisa. Eu fiz o mesmo, mas ao contrário do ânimo que tomava conta dele, o que transbordava em mim era a apreensão do que podia ser aquilo tudo. E no momento em que eu quase quebrava nosso silêncio para despejar mais um monte de perguntas, um sorriso reluzente finalmente se abriu em seu rosto. Então ao passo em que meu coração disparava ao vê-lo tão lindo daquele jeito espontâneo, unido àquela expectativa e ansiedade de entender porque ele parecia, de repente, tão contente, não consegui mais ignorar o som contínuo e melodioso cada vez mais próximo de nós. Quando virei-me para trás na direção da música, com a luz do celular já direcionada ao local, enxerguei uma silhueta sobre a pedra.
   estava deslumbrado. Eu também estava.
  Por um instante, não consegui mais respirar ou acreditar no estava ali.
  A garota que eu via diante de nós era linda, de uma beleza atemporal que impressionaria qualquer um que pusesse os olhos nela. Tinha pele como mel, a humidade a fazendo reluzir. Os longos cabelos castanhos, brilhantes e sedosos, desciam por seus ombros e busto desnudo até a cintura como uma cascata de fios de cobre. Os olhos amendoados, as íris da cor das pedras olho de tigre, eram tão profundos quanto a noite, como se carregassem uma constelação inteira dentro de si, e a sua voz... com uma palavra cantada ela era capaz de hipnotizar qualquer pessoa que cruzasse seu caminho, seria capaz de ter tudo aos seus pés, se assim quisesse, com apenas uma palavra.
  O calor subiu por meu pescoço e eu apertei meu punho contra meu quadril, meu olhar jamais se distanciando dela. Percebi num ímpeto que eu invejava a garota sem sequer conhecê-la. Desejava ser tão bela quanto ela. Desejava ser exatamente quem ela era.
  - Iara! – a saudou, de alguma forma conseguindo parar o barco em meio a toda a correnteza forte bem de lado para a pedra.
  - Há quanto tempo não te vejo – ela devolveu o cumprimento, abriu um sorriso sedutor em seus lábios carnudos e bem desenhados e se inclinou em direção ao meu amigo.
  Mas se a garota esperava um bate papo cheio de novidades, a ignorou completamente – e confesso que isso me deixou estranhamente satisfeita.
  - Preciso de sua ajuda – ele disse sem rodeios e me obriguei a sair de meus devaneios para prestar atenção nos dois, porque afinal, a garota de quem ele tanto falou realmente existia, e eu queria saber quem ela era. – Na verdade, nós precisamos. Essa é , minha amiga.
  - Nós? – Foi quando ela finalmente pareceu notar minha presença, e, ignorando a menção do meu nome, seus movimentos até então delicados se tornaram duros, o olhar me atingindo tão gélido quanto cubos de gelo. – Quem é essa humana?
  O encanto que eu tinha por ela se desmanchou imediatamente, tão rápido quanto um piscar de olhos. Humana? Mas quem diabos essa tal Iara pensava que era? Cruzei os braços, me coloquei de pé, endireitei minha coluna e a encarei de cima a baixo, pronta para colocar aquela indiazinha em seu devido lugar, mas pelo susto, quase caí na água gelada do rio antes de sequer colocar meus pensamentos em ordem.
  Na verdade, tudo de repente pareceu incrivelmente sem nexo, girando como um redemoinho. Eu me senti imediatamente enjoada, minha cabeça latejando.
  Eu estou louca, só pode ser isso. Louca de pedra!
  - Você não tem pernas! – gritei escandalizada, tropeçando nos meus próprios pés em cima do barco, desequilibrando sob o balançar da água. – Onde estão suas pernas?! Ai, meu santo planeta Terra, isso são escamas? Não podem ser escamas! Que merda está acontecendo? ! !
   imediatamente me envolveu em seus braços e me afastou da beirada do barco, tão calmo que me fazia pensar que na verdade realmente a louca da história era eu.
  - , preciso que você mantenha a calma.
  - Manter a calma? – berrei de novo, sentindo que a qualquer instante meus olhos saltariam das próprias órbitas e eu teria uma síncope ali mesmo. – Ela tem escamas! Escamas! É metade peixe!
  - Eu sou uma sereia.
  - Ela é uma sereia! – gritei após a intromissão de Iara. Então depois de uma pausa carregada de silêncio, desatei a rir feito uma idiota. – Sereia! Que coisa mais infantil! Sereias nem existem! Deve ser só uma fantasia qualquer igual a minha. Cadê o zíper?
  E então um balde de água – ou ao menos foi o que pareceu na hora – me atingiu e me encharcou por completo, da cabeça aos pés, sem deixar nem um pedacinho de fora. Agora sim minha fantasia estava arruinada. Toda esfarrapada e suja de água barrenta.
  - Qual é a sua, garota?
  - Hey, Iara! Pega leve com ela. – se interpôs entre mim e a índia. – Ela não sabe…
  - Você não contou a ela? – ela devolveu o grito. – Você trouxe uma incrédula para me ver? Isso é uma falta de respeito que eu não vou tolerar!
  Iara parecia realmente completamente indignada, e apesar da encenação dos dois estar muito boa, eu já não estava mais a fim de continuar aquela brincadeira. A vontade de rir tinha passado, a diversão súbita tinha sumido. Agora o que eu sentia era raiva por ter sido feita de boba tão fácil e completo desgosto por aquela garota que havia simplesmente me banhado inteiramente como se estivéssemos no verão e não no meio do inverno pleno.
  Se não me levariam a sério, eu iria embora. Queria dar o fora dali antes que enlouquecesse de uma vez.
  O vento frio me atingiu em cheio e senti uma tremedeira dos pés à cabeça, fosse raiva ou frio, eu não sabia. Naquele momento, percebi, eu mais parecia um cachorro pinscher vestido que qualquer outra coisa. E faltava pouco para minha voz se transformar em latidos raivosos e estridentes.
  Comecei a apalpar os panos do meu vestido, não parando de torcer as camadas de saia daquela roupa ridícula enquanto sentia a pele machucada por todos os cortes e arranhões arder como nunca. A fantasia pesando sobre meu corpo. O que mais viria em seguida?
  Bufei irritada e sem qualquer paciência, totalmente frustrada.
  - Já podem parar com o fingimento! – reclamei para ambos, que me olhavam com interesse e sentei-me mais uma vez, os braços cruzados e o nariz empinado para o céu. – Foi ótimo, parabéns pelo teatro! Apesar de não ter absolutamente nada a ver com as nossas festas juninas do momento - que sinceramente, eu esperava como tema - vocês atuaram muito bem. Enganaram direitinho, podem espalhar a fofoca por aí, não importa. Mas agora me levem pra casa. Já!
  Então de súbito Iara segurou em meu antebraço firmemente, puxou-me para frente com um tranco até que nossos rostos estivessem no mesmo nível e ela pudesse me olhar no fundo dos olhos, fazendo me prender o fôlego pela força que ela empregava sobre mim.
  Desequilibrada, quase não consegui agarrar a borda do barco e nem foi capaz de prever a atitude dela. Olhando para ela com um misto de descrença e surpresa, percebi que a tal Iara não estava mais sentada sobre a pedra. Mantinha a metade do corpo desnudo para fora d’água e a outra dentro da mesma, como se flutuasse no rio, ou nadasse nele.
  - Iara, solta ela!
  - Que merda você está fazendo?
  - Eu não pareço real para você, garota? – ela sibilou para mim, tão próxima que me vi paralisada, e de dentro das suas íris, enquanto ela me encarava, consegui visualizar imagens que começaram a passar rapidamente como um álbum de fotos, um filme.
  Eu teria gritado, caído com o susto da percepção, mas seus dedos me seguraram com ainda mais força, as unhas afundando em minha pele, e me obriguei a ver o que ela me mostrava, uma longa história, ainda sem fim.
  Contava sobre uma bela jovem invejada pelos irmãos, quase morta pela cobiça deles. Ela defendeu sua vida da própria família e isso tornou o falecimento deles inevitável, porque era matar ou ser morta. Seu pai a perseguiu, a amaldiçoou e lançou-a para morrer em águas profundas pelo que havia feito, pelo sangue que havia derramado. Era o que uma assassina merecia, o que alguém que matou sangue do seu sangue devia receber em troca. A noite de lua cheia iluminava o rio enquanto o corpo da garota afundava sob as águas turvas e turbulentas. Ninguém chorava por ela. Ninguém na superfície. Mas criaturas se aproximaram por curiosidade pura, se apiedaram ao compreenderem tudo, porque elas não conheciam a crueldade que os homens espalhavam como folhas ao vento. Não entendiam a sede de sangue deles. Mas Iara sim. Ela nunca esqueceria. Não se permitiria esquecer.
  Com o último grito de seu último fôlego veio a transformação. As pernas se colando, mudando, virando algo novo e diferente. A cena se foi antes que os movimentos se concluíssem, antes que a agonia dela tivesse fim, porque a dor era maior do que ela jamais acharia possível suportar.
  Agora, não se tratava mais de uma garota tentando se salvar. Agora o que eu via era a história de uma sereia amargurada pelo seu destino, pela nova chance que havia sido dada a ela sem a possibilidade real de escolha. Iara mudara, tudo isso a mudara, porque o presente que lhe foi concedido, era também uma condenação.
  As íris escureceram e as pupilas dilataram, brilhando vigorosamente para mim. Havia tanta dor, tanta escuridão dentro delas. Tanta solidão. Tanto remorso. Mostravam infindáveis imagens de homens atrás da sua beleza, seduzidos pelo seu canto, sendo guiados para o fim pela carne fraca que possuíam. Eram guiados para as águas do fundo do rio que os abraçava para sempre sem piedade alguma por causa do desejo avassalador de vingança dela. De anos e anos presa nesse ciclo sem término. Uma existência solitária, triste e eterna que a moldara para ser exatamente como era agora.
  Imediatamente eu impulsionei meu corpo para trás e me soltei de Iara, atingindo o fundo do barco com uma pancada dolorida, balançando-o de um lado para o outro me deixando completamente tonta. Tudo à minha frente parecia girar à velocidade da luz e mesmo minha respiração parecia forte e descompassada demais, assim como meu coração arrítmico.
  - Não é possível! – eu disse num sussurro exasperado tentando fazer meu cérebro voltar à realidade. Mas a forma como me olhava de cima dizia que não existia outro lugar para ir. A única realidade era essa. – ? – pedi num tom suplicante, e tudo o que ele fez foi me olhar com ternura. Quase como se se desculpasse.
  Entre a loucura e a realidade... eu preferia estar louca. Eu queria que isso fosse insano.
  - Eu não consegui contar antes – meu amigo justificou-se com calma, com mais calma do que seria capaz ajuntar para me dizer. – Você não acreditaria em mim se não visse com seus próprios olhos, . Não tinha jeito mais fácil de fazer isso.
  Eu encarei Iara novamente, mas sua expressão vazia só mostrava que o que dizia era verdade. Era real.
  Minha sanidade começava a se perder por entre meus dedos, bem diante de mim, escorrendo para longe, como as gotas de água que caíam do meu vestido.
  - ? – ele me chamou. – , olhe para mim. Olhe somente para mim!
  Mas eu fechei os olhos com força e pressionei minhas mãos ao lado da cabeça só querendo acordar daquele pesadelo bizarro. Sussurrei para mim mesma que já era hora de levantar e esquecer aquele sonho, porém nada aconteceu. Senti se abaixar enquanto eu ainda brigava comigo mesma em minha própria cabeça, e quando abri os olhos, ainda em estado de choque, ele apenas ficou frente a frente comigo.
  Suas mãos tomaram as minhas com urgência e extrema delicadeza, afastando-as das laterais da minha cabeça, e depois tocou meu rosto, com uma palma de cada lado, me fazendo olhá-lo nos olhos, sem possibilidade de desviar dos dois pontos escuros emoldurados pela preocupação.
  Sem dizer uma palavra, ele permaneceu me segurando até que minha respiração entrecortada se acalmasse, até que tudo entrasse em foco de novo. Quando isso aconteceu, após longos minutos intermináveis, com os lábios numa linha fina ele se pôs de pé novamente, e não tive forças para impedi-lo de fazer o contrário.
  Eu mal conseguia prestar atenção no que os dois falavam enquanto tentava me recuperar do quase colapso.
  - Droga, Iara. Eu vim aqui com um propósito, algo longe disso que aconteceu – ele resmungou para ela. – Preciso encontrar a Mãe de Ouro.
  - Já não acha que fiz o bastante por você mostrando o mundo a essa garota? – A sereia voltou a se sentar na rocha com um movimento rápido e fluido. Queria ter olhado para ela e sentir toda sua frieza, mas tive medo dela me prender em mais um momento alucinante como o anterior. Eu não teria forças para fugir dos seus olhos dessa vez. Não conseguiria fugir do seu passado, assim como ela própria.
  - Por favor – pediu quase implorando e coloquei as mãos nos ouvidos em seguida, escutando meu próprio coração bater, voltando ao normal. De repente não ouvia nada além de sussurros. – Por favor, Iara. É importante!
  Ir embora. Eu queria ir embora. Na minha casa, bem distante, longe daqui eu poderia fingir que isso não se passou de muita imaginação minha. Poderia achar uma explicação racional e razoável. Quem sabe efeito de todo o açúcar que ingeri na festa?
  Ao que parecia ser muito longe, ouvi a... sereia... bufar.
  - É por ela, não é? – Eu podia estar enganada, mas existia amargura na voz dela. – Está fazendo tudo isso por essa humanazinha. E o que você fez por mim além de me magoar, ?
  Não. Eu não devia estar ouvindo certo. Alucinações. Mais alucinações. Fechei os olhos novamente evitando olhá-los após a compreensão daquela frase. Então Iara e , eles... Quê? Como seria possível?
  Havia melancolia na voz dele:
  - Você sabe que não é assim, Iara, eu…
  - Eu sei – ela o interrompeu subitamente. – Sua natureza não permite. Assim como a minha também não.
  Abri os olhos, arregalados, desfocados, e os encarei com expectativa. ficou olhando-a em silêncio, calmo e paciente, se mantendo com a expressão inalterável. Se foi atingido pelas palavras dela, não demonstrou. Mas certamente havia muito mais entre os dois do que aquelas três frases deixaram transparecer.
  Era quase palpável no ar.
  Iara soltou um suspiro derrotado após olhá-lo por completo. Ela gostava dele. E pela forma como me encarou, já havia decidido que me odiava.
  - A Mãe de Ouro fica para aquele lado. – Se dando por vencida, a sereia apontou para o outro lado da margem do rio de onde viemos, mata adentro. – Vai encontrá-la em uma caverna próxima ao descampado que os humanos tomaram posse e destruíram.
   assentiu rapidamente e então voltou a se sentar no barco, se preparando para descer um pouco mais o rio e então deixá-lo de uma vez. Voltou a acender a lanterna do meu próprio telefone, pronto para pegar o novo caminho que devíamos seguir, mas interrompeu-se antes de fazer qualquer outro movimento, virando-se de novo para Iara.
  Vi, pela primeira vez, a hesitação tomar toda sua postura, e por isso fiquei sem palavras.
  - Eu... Sinto muito, Iara – ele disse com arrependimento. – Por tudo o que aconteceu.
  E por um instante a face superior e blindada de Iara se desfez por completo enquanto o olhava.
  - Não sinta – foi o que ela respondeu em seguida, empertigando sua postura novamente enquanto me olhava com desprezo. – Não sentir é a melhor coisa que você pode fazer, .
  Com um ágil movimento ela mergulhou de volta na água, desaparecendo nas profundezas do rio, nos deixando sozinhos em meio a toda aquela imensidão e silêncio avassalador.
  Enquanto o súbito alívio tomava conta da sanidade que eu ainda tinha, começou a nos guiar para longe dali. E pela primeira vez na vida, assim como eu, ele parecia verdadeiramente desorientado.

Capítulo 06

  Eu não conseguia distinguir os sons. Não conseguia me mexer. Não era mais capaz de identificar a passagem do tempo, já não tinha mais noção de espaço. O ar era pesado, e respirar parecia algo difícil demais para se fazer, quase como se não fosse natural.
   precisou praticamente me carregar para fora do barco e depois me arrastar por vários metros pelo caminho da nova trilha no meio do nada. As árvores pareciam nos engolir, os vultos que passavam por mim criavam formas obscuras, e onde as mãos de me seguravam eu sentia a pele queimar. O choque e estupor me consumiam, me sobrepujavam. Eu não conseguia agir normalmente.
  Simplesmente era muita coisa para absorver de uma vez.
  Quando a névoa que tomava meus sentidos começou a se desfazer, quando eu comecei a sentir algo além da confusão que se agarrava a mim como a umidade do ar, depois de algum tempo, eu me desvencilhei dos braços de e arrisquei alguns passos sozinha.
  Eu andava aos tropeços, desnorteada, mal conseguindo manter minha visão focada na trilha pouco iluminada pela lanterna seguindo diante de nós dois. As forrações no solo me confundiam e eu não enxergava as raízes com clareza.
  Tantas perguntas rondavam minha cabeça que eu começava a ficar tonta. Meu cérebro persistia em tentar separar o que era verdadeiro do que era invenção e não conseguia. Não mais. Incoerente. Sem sentido. Em resposta às tentativas falhas, minha cabeça doía, latejava, porque quanto mais ela trabalhava nisso, mais inútil via que era. Não existia separação. Tudo era a mesma coisa, tudo era real.
  Tropecei mais uma vez em uma raiz de árvore protuberante e não tardou a me alcançar, segurando meus braços por pura preocupação que eu caísse.
  - Eu consigo andar sozinha! – Me soltei dele um pouco acuada após meu cérebro parecer finalmente chegar a uma conclusão não muito confiável, e quase desejei que tivesse me esborrachado contra a árvore e quem sabe ter uma perda de memória repentina.
  - , deixa eu te ajudar…
  - Não! – o cortei, sua voz repleta de pena antes que terminasse a frase. – Eu tô bem.
  Mas era obviamente uma mentira. E sabia disso.
  Passei pela frente dele e segui na dianteira sem sequer saber para onde estava indo, mantendo os olhos sempre no chão esperando não tropeçar ou prender a saia do meu vestido mais nenhuma vez em lugar nenhum. Se mais tecido fosse arrancado dela, eu estaria nua antes da próxima hora e teria que procurar meus brincos à moda de Eva, cobrindo-me com míseras folhas secas de árvores quaisquer.
  Se é que o acharíamos minhas joias em algum momento desse passeio maluco. Eu já começava a duvidar disso. E honestamente? Se eu soubesse que a procura fosse virar meu mundo de cabeça para baixo…
  Continuamos dessa maneira, comigo na frente, por mais alguns vários metros até a mão de alcançar meu braço e me obrigar a dar-lhe algum tipo de atenção:
  - , eu…
  - Essas histórias... – o interrompi com a mente cheia. –, esses mitos…
  - Não são coisas da imaginação – me respondeu, entendendo a pergunta antes mesmo que eu a completasse. Se adiantou um passo e segurou minha mão firmemente enquanto andava, como se não me quisesse distante de si depois dos últimos acontecimentos desastrosos. Ou apenas fosse seu modo de impedir que eu saísse correndo e gritando para longe, visto que, pelo meu estado, era uma opção bastante plausível. – São de verdade, . Sempre foram e sempre serão. Queria que as coisas tivessem sido diferentes. Eu devia ter te contado antes, mas você me chamaria de louco, teria rido na minha cara e nem teria terminado de me ouvir. Sinto muito pela maneira como isso aconteceu.
  Balancei minha cabeça. Piquei tantas vezes que meus olhos estavam vendo estrelas. Infelizmente, no momento, era eu que provavelmente estava louca.
  Respirei fundo e não tive coragem de encara-lo na face.
  - Como é possível isso tudo existir? Como é possível que essas coisas... Eu não entendo, ! Tudo isso, é demais! É bizarro, é…
  - Eu sei, – a voz dele se amaciou e isso fez com que eu me sentisse ainda pior. – Eu posso tentar explicar. O que você quiser.
  - Você e a Iara... Vocês... Vocês já…
  - Faz muito tempo – ele falou após interpretar minhas meias palavras. – Não foi uma relação duradoura. Iara diz que eu a magoei, e é verdade, eu admito isso. Mas ela também me magoou.
  - Por quê? Por causa da "sua natureza", como ela disse? – questionei juntando as peças do quebra cabeça que me foram dadas. – O que isso quer dizer afinal, ?
  Ele franziu o cenho quando me olhou e percebi que tinha tocado num assunto no mínimo complicado. Ele ficou pálido, branco como vela. Poderia até dizer que era o brilho da lua refletido em sua roupa branca (agora suja e meio molhada), que mesmo assim eu não acreditaria nele. Por mais confusa e irritada que eu estivesse naquele momento, por maior que fosse minha vontade de entender qualquer parte que fosse de tudo aquilo, me arrependi da pergunta que fiz imediatamente.
  - Eu…
  - Deixa pra lá – o interrompi. – Sua vida amorosa não diz respeito a mim.
  - Pelo contrário – ele respondeu, soando apesar de rude, forte e decidido. – Eu te devo uma explicação, .
  Então eu apertei sua mão e fixei os pés no chão, endireitando minha postura e levantando meu queixo, o obrigando a parar e me olhar nos olhos, como há alguns segundos eu mesma vinha evitando fazer. Talvez eu não devesse, mas ainda assim…
  - Tudo bem, . Então me explique. Eu quero entender onde estou me metendo.
  Mas não explicou. Permaneceu em silêncio e voltou a caminhar, soltando sua mão da minha sem dizer uma palavra, seguindo dessa maneira durante vários e vários segundos.
  Sem outra alternativa, voltei a segui-lo, meus lábios pressionados um contra o outro numa linha fina. Percebi que eu ainda tremia de frio, apesar do vestido já começar a secar em meu corpo, e imaginei que a uma altura dessas eu já parecia mais com uma noiva cadáver que com uma noiva de festa junina de fato. Eu devia estar pavorosa.
  - Lembra há quanto tempo nós nos conhecemos, ? – Me surpreendi por ouvi-lo falar de novo, o tom de voz sombrio e incerto. Não combinava com o cara confiante que eu conhecia.
  Abaixei-me ao passar por um galho especialmente baixo para o padrão das árvores e então tomei fôlego para falar:
  - Três anos atrás – respondi pouco depois. – Eu tinha quinze, estava indo para minha primeira festa com uma amiga da escola. Você estava lá. Veio falar comigo.
  - Sim. – Ele sorriu de canto. – E desses três anos para cá, , eu pareci envelhecer pra você?
  Talvez ficar mais bonito, mas envelhecer…, pensei e então juntei as sobrancelhas por me dar conta da verdade.
  - Não.
  - E isso nunca pareceu estranho pra você?
  Ao menos até aquele momento, não. Muitas pessoas demoravam para mostrar idade, não era como se eu devesse me incomodar com isso. Virei-me para ele, sem saber bem o que dizer.
  - Por que está perguntando isso agora?
  Seus olhos encontraram os meus. Zombavam de alguma coisa que eu ainda não sabia o que era. Um sorriso preencheu seus lábios lentamente, e apesar do meu aguardo, ele não respondeu minha questão, ao contrário resolveu colocar outra em seu lugar:
  - Nunca se perguntou por que eu sempre apareci apenas nos dias em que tinham festas aqui na cidade? Dias de lua cheia? Ou por que estou sempre usando chapéu? Por que simplesmente desapareço em dias comuns?
  Meu coração voltou a acelerar fora de ritmo.
  - Não.
  - E sempre achou que tudo fosse coincidência, ?
  Eu diminuí o passo conforme tentava juntar todas as informações, mas não havia nexo entre elas.
  - O que quer dizer?
  De repente ele não sorria mais quando ouviu meu fio de voz. A sensação era que eu devia conseguir enxergar algo que não estava lá, que era invisível aos meus olhos. Eu buscava raciocinar logicamente, mas a lógica já não se adequava mais ali. Se sereias podiam existir, então uma fonte da juventude poderia igualmente muito bem ser verdade. Ou…
  Uma possibilidade maluca, que extrapolava a escala da sensatez, se fez em minha cabeça. Eu olhei para ele com os olhos tão arregalados que chegava a doer.
  Agarrei sua mão com força.
  - Você é o Peter Pan?
   desatou a rir. Tanto que chegou a se curvar para frente com gosto e precisou se apoiar no tronco de uma árvore em seguida.
  - Boa tentativa, – ele respondeu recuperando o fôlego. –, mas talvez você tenha errado o país.
  E apesar de ele estar rindo, não consegui me contagiar com seu súbito bom humor. havia acabado de confirmar algo que eu temia e desejava não ser verdade.
  - Então você é como Iara. – Ele imediatamente percebeu o terror em minha voz. – É uma criatura, é um…
  - Sim – ele me interrompeu friamente e sua expressão voltou a se tornar vazia, a voz sem emoção, e os olhos cheios de tristeza. – Eu também não sou humano. Não totalmente.
  Cambaleando eu soltei sua mão com um pouco mais de violência do que pretendia e dei vários passos para trás, o que o fez deixar o celular cair desajeitadamente no chão. Acabei batendo as costas em galhos secos que arranharam minha pele exposta e por um segundo impediram minha movimentação.
  -
  - Eu preciso de espaço! – adiantei quando quis vir até mim. Mas algo o deteve antes.
  Atentamente ele movimentou os olhos ao redor, empalidecendo. Em antecipação, meu estômago formigou e a sensação de algo ruim me invadiu por completo. A raiva se desfez em um segundo.
  - O que foi? – quis saber, preocupada, girando no mesmo lugar, querendo saber o que o alarmava, batendo contra os galhos secos sem sequer poder me desviar deles. Mas levou o indicador até os lábios apressadamente e pediu silêncio ao mesmo tempo que me segurava com os braços firmes para que eu ficasse parada e quieta.
  Eu estreitei meus olhos para ele, achando que era um truque para que eu não me afastasse de novo, que não tentasse fugir, e já estava pronta para empurra-lo, gritar com ele. Mas estranhamente a brisa insistente, de repente, não existia mais. As árvores estavam quietas, os galhos imóveis. O único som era o de nossas respirações aceleradas e curtas.
  Algo estava errado. A floresta sentia isso.
  Dei um passo para trás, a expectativa do medo crescendo, e o toque das mãos de ficaram mais intensos, mais insistentes. Escute!, seus olhos me alertavam, arregalados. Preste atenção.
  Mas no quê?
, eu queria devolver.
  Foi quando eu ouvi, de algum lugar não muito distante, um cavalo relinchar estridentemente. Tão alto e agudo que chegava a ser doloroso escutar aquilo. Galopes fortes e rápidos acompanhavam o som cada vez mais próximo. E foi quando percebi porque parecia tão agitado.
  Fosse o que fosse, vinha exatamente em nossa direção.

Capítulo 7

  Meu coração dobrou a velocidade de suas batidas, gostas de suor escorreram da minha nuca e parecia que eu estava de novo sendo encharcada pela água gélida do rio. Eu engoli em seco sentindo arrepios involuntários subirem desde a coluna e até meu couro cabeludo, o ar se tornando ainda mais frio à nossa volta, a temperatura caindo, e imediatamente me afastei de com o susto, indo em direção ao celular caído a alguns passos de nós, desligando a lanterna do mesmo com pressa, deixando que a escuridão tomasse conta de todo o ambiente à nossa volta, como se isso pudesse nos camuflar. Qualquer coisa que nos ajudasse a chamar menos a atenção.
  Quando o breu de fato nos atingiu, como uma onda que engole a praia, instintivamente tentei me aproximar mais do meu amigo, para saber onde ele estava, para saber o que fazer. Mas minha falta de visão e o assombro que só aumentava quase me fez entrar em pânico, e de repente eu não conseguia mais encontrá-lo em parte alguma.
  – ? – eu sussurrei, tateando o vazio a sua procura, tentando acostumar meus olhos àquela iluminação parca da lua por entre as copas das árvores sobre nós, mas não conseguia. – Onde você está? O que está acontecendo?
  Um passo para a frente e minhas tentativas de manter o silêncio foram levadas pelo vento conforme minha saia estúpida esbarrou em tudo que encontrou no caminho, cada maldito galho dos arbustos ao meu lado, cada maldita folha seca aos meus pés, e escuridão nenhuma me ajudaria a disfarçar isso agora.
  Foi quando duas mãos seguraram meus ombros e por puro reflexo eu gritei, jogando meu punho para trás, acertando o que quer que fosse, e recebendo um gemido em protesto.
  – ! Minha nossa! – Eu virei-me de frente para ele, uma mão sobre a minha boca, tentando estudar com meus olhos arregalados se eu havia causado algum estrago em seu belo rosto. – Desculpe, eu não…
  – Silêncio, ! – ele respondeu, uma mão pressionada contra a maçã de sua face, tão próximo de mim que eu podia sentir sua respiração contra meu nariz. – Tá tudo bem, eu estou aqui.
  Mas não parecia que alguma coisa estava bem. O sobressalto na postura do meu amigo, o receio que consumia seus olhos, a força com a qual ele me segurava perto de si... Tudo indicava exatamente o contrário de bem.
  – O que está acontecendo, ? – perguntei num sussurro, a voz tremendo após ouvir outro relincho ao longe, não tão distante quanto eu gostaria. – O que é isso?
  – Que dia é hoje? – Ele ignorou minha pergunta, perceptivelmente tentando manter a calma por nós dois. – Que dia da semana é hoje?
  – Quinta-feira! – respondi a ele. – 29 de junho, é quinta-feira.
  Sua respiração parou.
  – Precisamos correr, pediu após um instante que pareceu interminável, sua voz se tornando urgente e me atingindo até os ossos. – Precisamos ir agora!
  Ele não precisou pedir duas vezes. No segundo seguinte eu corria como se pisasse em um chão repleto de lava, como se meus pés possuíssem vontade própria, como se minha vida dependesse daquilo.
  E parecia depender mesmo.
   voltou a agarrar minha mão e logo tomou a dianteira, indo mais rápido, me puxando sempre em frente. Eu não sei como ele conseguia ver naquela negritude infinita, como conseguia identificar os obstáculos sem diminuir a velocidade, mas de alguma forma seguiu perfeitamente a trilha sem sequer tropeçar, numa confiança e agilidade tão grandes que impressionariam um maratonista.
  – Do que estamos fugindo? – eu quis saber, saltando para não tropeçar em um tronco caído. – O que está vindo atrás de nós?
  – Se tivermos sorte – disse sem fôlego, sem desviar sua atenção do caminho –, não precisaremos nos preocupar com isso!
  E como se para garantir que a sorte não desse as caras naquela noite para nós dois, um clarão irrompeu das árvores atrás de nós, tão forte que eu e cobrimos o rosto com nossas mãos por vários segundos, sem nunca diminuir os passos. Eu olhei sobre o ombro, tomada pelo susto, bem na direção da luz, e soltei um grito com a visão que contemplei.
  O animal que relinchava vinha exatamente ao nosso encalço, galopando rápido como um guepardo, forte como um touro, determinado em nos alcançar. Tinha a pelagem tão negra que conseguia se camuflar nas sombras produzidas pelas árvores, podia consumi-las, quase se fundir à noite mais escura, e a luz que antes havia confundido minha vista, o clarão que quase nos sobrepujou, na verdade se tratava de fogo. Chamas altas, vermelhas e intensas. A cabeça do animal estava em chamas.
  – Não, não, não! – gritei completamente esganiçada. – Colocaram fogo naquele cavalo! Ele está pegando fogo, !
  – , você…
  – Precisamos ajudar! Temos que fazer alguma coisa! Ele vai morrer, ele…
  – Você não está abrindo sua mente! – ele me cortou entredentes, o desespero se misturando a adrenalina, aumentando ainda mais a velocidade da corrida, me obrigando a acompanhá-lo. – Veja, ! Olhe outra vez! Olhe direito!
  Eu olhei. E quase caí novamente, o grito entalado em minha garganta.
  A cabeça do animal não estava queimando, justamente porque não havia cabeça. As chamas eram expelidas de dentro do pescoço da fera, como uma tocha que queima contra o combustível até extingui-lo. Mas não havia qualquer combustível para o fogo consumir além do oxigênio para mantê-lo aceso. E isso bastava para eu entender que justamente por isso o animal não pararia enquanto não nos alcançasse. Enquanto não estivéssemos nós dois queimando.
  O choque tentou me paralisar, senti a bile subir por meu esôfago.
  – A Mula-sem-cabeça. – A voz de ecoou em meus ouvidos, puxando-me com mais intensidade, ainda mais rápido que antes. – Corra, . Precisa se apressar!
  Obedeci, meus músculos sendo levados ao limite ao passo em que o terror tomava conta de cada célula do meu corpo, e entrei no modo automático enquanto tentava pensar, a certeza esmagadora de que não conseguiríamos continuar correndo por muito mais tempo tentando me consumir.
  O cansaço nos venceria. E quando isso acontecesse, o bicho estaria bem atrás de nós, pronto para nos pegar. Apenas esperando.
  – Como se mata essa coisa? – me ouvi dizer no desespero.
  – Essa coisa não morre! – meu amigo respondeu ao mesmo tempo em que gemi desolada. – Mas tem como reverter o encanto.
  – Como?
  Tivemos que nos abaixar para desviar de um grande galho retorcido sobre nossas cabeças em seguida e imaginei se aquilo conseguiria retardar a criatura uns segundos que fossem, mas quando olhei para trás, sobre o ombro, a madeira já estava destruída e em chamas, o rastro de destruição apenas aumentando pelo caminho que a Mula deixava à galope.
  Se não fôssemos rápidos o bastante nós seríamos os próximos a fazer companhia para a finada árvore.
  – ! – inquiri em pânico.
  – Conhece a lenda da Mula-sem-cabeça?
  – Não é hora para uma aula de história! – reclamei após saltar uma raiz protuberante. – Vá direto ao ponto porque não temos tempo!
  – A Mula-sem-cabeça na verdade é uma mulher amaldiçoada! – ele explicou ignorando completamente meu pedido. – Amaldiçoada porque manteve algum tipo de relação romântica com um padre, então seu castigo é virar esse animal. Ela se transforma todas as noites de quintas-feiras até que o encanto seja desfeito! Enquanto isso não acontece ela continua assim, vagando e destruindo qualquer um e qualquer coisa que esteja no seu caminho! E aparentemente estávamos no lugar errado e hora pior ainda.
  – Mas como revertemos a maldição?
  – Há duas maneiras – ele disse após virar-se para conferir a distância entre nós e a Mula. – Ou um de nós tira o freio de ferro do pescoço dela, ou a fura com algo até sair sangue.
  Olhei na direção da criatura, e, como se soubesse que eu a encarava, as chamas em seu pescoço cresceram e se intensificaram ainda mais, tão fortes que atingiram as folhas das árvores acima, de forma que eu quase pude sentir o calor das mesmas me alcançar junto com o cheiro de queimado.
  A primeira forma parecia impossível, mas a outra…
  – Eu voto na segunda opção!
  – Ótimo! – respondeu com a voz entrecortada. – Porque ali a frente com certeza vai ter algo para usarmos.
  E de fato, agora a poucos metros de distância encontrava-se um depósito entulhado de objetos recicláveis há muito sem uso. O “descampado que os humanos tomaram posse e destruíram”, como Iara havia declarado, não era nada mais o que um lixão a céu aberto.
  Eu quase senti alívio por estar ali.
  Comecei a fazer uma varredura pelo amontoado de coisas mesmo de longe, meu cérebro já funcionando com toda sua rapidez.
  – O plano – falei sem fôlego – vai ser o seguinte: você corre e distrai a Mula! Eu a furo com algo pontudo. Ou pelo menos tento fazer isso.
  – Por que eu tenho que ser a maldita isca? – reclamou, verdadeiramente incomodado e cheio de medo.
  – Porque você é rápido e, portanto, nossa única chance de conseguirmos dar um fim nisso! Se eu for a isca, vou virar churrasquinho de em dois segundos! – E enquanto assistia sua expressão indignada crescer graças a claridade do fogo produzido pela Mula-sem-cabeça cada vez mais próxima, me distanciei dele, indo direto me esconder atrás da primeira pilha maior e mais larga que eu que apareceu em meu caminho.
  Felizmente, sem sequer hesitar, continuou a correr em disparada por entre os objetos, atraindo a criatura exatamente para o lado oposto de onde eu estava, dando o tempo necessário para encontrar o que era necessário para nos salvarmos daquela situação irracional.
  Respirei fundo e comecei a procurar qualquer coisa que fosse para conseguir salvar nossa pele, algo que poderia salvar quem quer que fosse aquela mulher também, mas a busca estava sendo exatamente como achar uma agulha em um palheiro.
  Bonecas de borracha, materiais de plástico, folhas de papelão... Tinham tábuas com pregos em vários cantos, mas eu não conseguiria chegar perto o suficiente da Mula para atingi-la com algo tão pequeno sem acabar morrendo no processo.
  – Será que dá pra ver isso mais rápido? – gritou de algum lugar não tão longe dali.
  – Eu estou tentando!
  – Então tente com mais vontade! – Sua voz voltava a se aproximar.
  Levantei os olhos, exasperada, para ver sua situação e me arrependi na mesma hora. Meu amigo ainda corria empregando todas as suas forças nisso, mas era uma batalha perdida. A Mula-sem-cabeça estava em sua cola, não mais longe que três metros. Se eu não fosse rápida o suficiente, tudo o que sobraria de seria um punhado de cinzas misturadas com toda aquela tralha ao nosso redor. E eu não duraria muito mais para contar a história.
  Virei-me de novo para o monte de objetos. Quem carrega essas coisas até aqui? Entre um pneu enorme de caminhão e uma geladeira toda amassada, havia uma caixa metalizada, toda enferrujada, meio aberta. Com a lanterna do meu celular acesa novamente consegui distinguir com dificuldade que dentro dela tinha exatamente tudo o que eu precisava naquele momento. Todas as ferramentas que eu quisesse escolher.
  Bingo.
  Se aquilo era um tipo de milagre, eu não sabia e com certeza não reclamaria se fosse.
  Com toda a força que eu ainda tinha, soltando um grunhido do fundo da minha garganta, puxei a caixa do espaço que ocupava entre a geladeira e o pneu. Algumas coisas voaram de dentro dela com o impulso, como um alicate e um estilete velho e enferrujado que serviriam perfeitamente ao propósito do momento. Mas eu não teria tempo para procurá-los entre todas as outras coisas espalhadas pelo chão, já estavam longe demais para mim.
  Remexi dentro da caixa suja e nojenta em completo desespero. Não podia ser só isso, tinha que ter algo mais…
  – ! – gritou de algum ponto atrás de mim.
  – Eu já vou! Preciso de tempo!
  – Não temos mais tempo!
  Um xingamento escapou dos meus lábios quando cortei o dedo em alguma coisa.
  – Trinta segundos!
  – Agora!
  Olhei para ele no exato momento em que passava ao meu lado agarrando firme em meu braço, me puxando aos tropeços para longe dali ao passo que a Mula-sem-cabeça vinha diretamente em minha direção.
  Tudo, depois disso, aconteceu em câmera lenta.
  Quando me puxou acabou tropeçando em algo no chão, e se não fosse isso, a criatura teria me atingido em cheio. A chama passou tão próxima que eu senti a quentura em minha pele, chamuscando parte da roupa que eu usava enquanto os objetos queimavam a poucos centímetros de mim tão rápido que mal dava para entender o que acontecia.
  A velocidade qual o animal passou foi tão grande que o impacto poderia ter quebrado todos os ossos do meu corpo.
  Sem tempo para pensar eu simplesmente joguei a chave de fenda em sua direção como quem joga um dardo rumo ao alvo, a única coisa pontiaguda o suficiente que restara naquela caixa que seria capaz de atingir a Mula e nos dar uma chance. No segundo seguinte eu também estava no chão bem ao lado de .
  A dor do impacto me fez fechar os olhos já cheios de lágrimas no instante que ouvi o animal relinchar, um som tão alto e angustiante que precisei tapar os ouvidos com a sensação de que eles sangrariam por isso. Senti me puxar para próximo de si, colocando seu corpo sobre o meu como se quisesse me proteger de alguma forma e não demorei a entender o motivo disso. Percebi que agora que estávamos no chão, esse era o nosso fim. Não tinha mais como fugir daquela besta.
  Ele me pressionou ainda mais contra si e eu o pressionei contra mim. Encolhi meu corpo machucando-me ainda mais com o atrito causado pelas coisas quebradas abaixo de mim como se pudesse nos fundir a todo aquele entulho e sumir de vista.
  Segurei minha respiração, aguardando pelo golpe final e o rosto de afundou na curva do meu pescoço. Mas de repente, enquanto esperávamos o impacto certo que acabaria conosco, a iluminação capaz de nos cegar diluiu até sumir por completo e o som cessou até não existir mais.
  Em meio ao silêncio devastador e ao abraço apertado de meu amigo, abri os olhos de novo, morrendo de medo do que poderia encontrar. Mas ao invés da Mula-sem-cabeça, no chão, com um corte na lateral do braço que escorria sangue, vermelho vivo e brilhante, havia uma mulher nua e inconsciente.
  Tardiamente percebi: havíamos revertido a maldição.
  – ! – Eu o sacudi de leve até que ele, relutante, afrouxou o braço em minha cintura e levantou o rosto levemente, ainda com os olhos apertados e a respiração acelerada. – Está tudo bem, estamos bem! Olhe! Veja!
  Ele abriu os olhos lentamente, seu peso apoiado sobre os antebraços enquanto investigava, incerto. Em seguida soltou o fôlego com força ao mesmo tempo em que abria um sorriso imenso conforme se dava conta do que estava bem diante de si.
  – Você conseguiu! Conseguiu mesmo! – Ele se atirou sobre mim novamente após nos sentarmos desajeitadamente e me abraçou, tão apertado como nunca tinha feito, e quase esqueci as dores que eu sentia em minhas costelas por causa disso. Deixei-me perder naquele gesto por um rápido instante, tomada pelo alívio e surpresa. Por saber que estava tudo bem agora.
  – É, acho que sim – disse por fim, começando a rir, sem forças. Risos nervosos sem qualquer nexo. – Eu diria que foi sorte de principiante, mas acho que foi o desespero.
  – Não, não foi só isso, . – Ele gargalhou ainda mais. – Você é demais. Você nos salvou!
  E enquanto eu permanecia extasiada em seus braços, aproveitando aquele pseudo momento de calma, pela claridade da lanterna que ainda permanecia acesa, percebi um vulto passar ao nosso lado, o som de algo rastejar.
  Eu arrumei minha postura, olhos atentos e movimentos mínimos.
   também notou a movimentação e imediatamente se colocou de pé, deixando-me no chão sem dizer qualquer coisa. Pensei que ele estivesse procurando a origem da sombra, mas a confusão em seus olhos, a raiva brilhando ali, me dizia que ele já a havia encontrado, e visualizava a presença bem atrás de mim, franzindo a testa e gritando com quem quer que fosse que estivesse vendo para se explicar.
  De repente, no que aconteceu em uma fração de segundos, algo atingiu na cabeça com um baque surdo que me retorceu por dentro. Tomada pelo susto, tudo o que fiz foi gritar seu nome e tentar segurar meu amigo para aliviar sua queda.
  Assustada, com metade de sobre mim, me virei em direção ao agressor, mas antes que pudesse distinguir qualquer coisa além do vermelho em sua roupa, a pessoa também acertou minha cabeça com força.
  Eu atingi o chão ao lado de com o ouvido apitando e a visão escurecendo, meu coração retumbando cada vez mais baixo. Ouvia vozes que não consegui entender e nem distinguir, e a última imagem que vi foi de alguém se abaixando ao nosso lado, de patas verdes e unhas encardidas bem a minha frente.
  Quis gritar, mas minha voz se perdeu dentro de mim. Minhas forças se esvaíram. Enfim, eu desmaiei.

Capítulo 08

  Quando meus sentidos começaram a voltar, meu nome foi a primeira coisa que ouvi, parecendo vir de quilômetros de distância, ecoando em minha mente ininterruptamente. Forcei meus olhos a se abrirem, mas a nuvem negra que cobria minha visão demorou a dissipar. Percebi tardiamente que estava sentada e logo um latejar em minha cabeça se fez presente. Fiz menção de levar a mão até aquele ponto dolorido, mas nenhum dos meus braços se moveu, mesmo eu me esforçando para isso. Percebi depois de um tempo que existia algo ao redor dos meus pulsos impedindo meus movimentos. Eu estava amarrada.
  A constatação súbita me fez despertar de uma vez, amedrontada.
  – Graças aos céus! – disse ao meu lado com olhos arregalados e lábios pálidos. Perpassando rapidamente minha visão sobre si, me dei conta de que estávamos ambos na mesma situação. Presos a uma cadeira. – Você não acordava, , e-eu pensei que…
  Ele se interrompeu e suas palavras se perderam no ambiente.
  Pisquei lentamente com o cérebro ainda demorando a funcionar, e esperei enquanto olhava-me atentamente por um momento, numa análise firme, e então soltou um longo suspiro dolorido em seguida.
  – Você está machucada – falou.
  De fato, eu sentia todo o lado direito do meu corpo arder. Vi alguns pontos vermelhos e hematomas na parte exposta da minha perna e logo imaginei que meu braço, meu ombro e o próprio lado direito do rosto não devia estar muito diferente, provavelmente todos pontuados com pequenos cortes, arranhões e esfoliações. Uma herança dolorosa da Mula-sem-cabeça e de toda aquela caminhada estressante meio sem rumo.
  Olhei para em seguida e vi que ele não estava numa situação contrária à minha. Havia um corte em seu rosto manchado de sangue, agora seco e misturado com poeira. Ele não havia escapado exatamente ileso, mas parecia bem, apesar dos pesares. Assim como eu, estava preso pelos pulsos no ferro enferrujado da cadeira e pela careta que fazia e tentava inutilmente esconder, sua cabeça também devia estar latejando tão intensamente quanto a minha própria.
  – Onde estamos? – Minha voz soou rouca e fraca e minha garganta ardeu pela secura, me fazendo tossir em seguida.
  – Eu não sei – respondeu, olhando ao redor completamente desanimado.
  A sala onde estávamos era muito escura, de forma que eu quase não conseguia enxergar as paredes a nossa volta, desformes e ásperas, como se fossem feitas de pedra, bloco sobre bloco, sem nenhum pingo de capricho. O chão era forrado por uma camada inteira de lixo. Pedaços rasgados de tecidos estavam por toda a parte junto de embalagens diversas que pareciam ter semanas ou meses, resultando num cheiro nada agradável que me obrigava a respirar pela boca caso não quisesse vomitar.
  Fora as cadeiras onde e eu estávamos presos, o ambiente era vazio de qualquer outra mobília. A única fonte de iluminação eram as aberturas zenitais no teto afunilado, permitindo que raios lunares difusos nos alcançassem brevemente. pareceu perceber a abertura no mesmo instante que eu, e quando fez, ficou ainda mais pálido do que já se encontrava.
  – Há algo errado? – Ele negou, balançando a cabeça vagarosamente. – Por quanto tempo ficamos desacordados?
  – Tempo demais – respondeu ainda olhando para cima. – Pela posição da lua, foram bem mais que apenas alguns minutos. Precisamos sair daqui, agora mesmo – ele me disse entredentes, forçando os pulsos contra as cordas que o prendiam firmemente.
  Aquilo foi inútil, tentativas completamente falhas que só aumentaram as feridas em sua pele. Olhou ao redor então, como se procurasse uma saída que não tivesse notado antes, mas estávamos presos ali, e eu via pelo brilho taciturno em seus olhos que ele sabia disso tão bem quanto eu.
   soltou o ar com força, grunhiu em completa frustração e chutou algumas embalagens com raiva para longe dos seus pés.
  – A culpa é toda minha.
  – Sua? – Acabei soltando um riso seco sem qualquer humor. – Não estaríamos aqui se não fosse pelo meu par de brincos, meu desespero para tê-los de volta – murmurei com pesar, meus ombros se curvando para a frente.
  – Quem te arrastou para cá fui eu, .
  – Foi escolha minha vir. Eu poderia ter ido embora se quisesse – falei –, mas queria as joias de volta. Fui completamente egoísta.
  – E daí? – ele devolveu sem pestanejar. – Eu também fui. Fiz disso um pretexto para ficar perto de você.
  Eu virei a cabeça tão rápido em sua direção que meu pescoço estralou, e por um instante eu o encarei perplexa, totalmente surpresa, e lutei para segurar seus olhos firmes nos meus enquanto o observava sob a parca luz do luar que ainda me permitia ver alguma coisa que fosse em sua expressão.
  Por vezes eu tentei me convencer de que não me importava com o fato de me querer apenas como sua amiga, de que preferia qualquer outra garota a mim. Mas agora, depois de palavras tão simples saírem da boca dele, com tanta naturalidade, sabia que seria impossível negar ou continuar me enganando.
  Todas as paredes que eu vim construindo durante tanto tempo para colocar minha cabeça no lugar e não mostrar interesse por ele de repente desmoronaram e eu não sabia o que fazer.
  Que péssimo momento para descobrir isso.
   percebeu minha confusão e quase incredulidade, e hesitante rapidamente desviou o olhar para longe do meu, dirigindo-o para o alto, para a abertura no teto, inspirando e expirando várias vezes seguidas, como se controlasse sua respiração subitamente errática.
  – Sabe, essa não era bem a reação que eu esperava. – Ele soltou um riso nasalado e sem graça. – Você realmente não é o tipo de garota que fica sem resposta para alguma coisa, mas tudo bem, eu aceito isso. E antes que você pergunte, não, eu não menti sobre encontrar seus brincos, e sim, eu realmente achava que encontraríamos a Mãe de Ouro com a ajuda de Iara. Não sabia que viraria essa loucura toda no meio do caminho e que esse seria nosso destino. Honestamente eu só queria ajudar você.
  Por uns dez segundos eu não consegui encontrar minha voz para responder.
   – O que disse? – Eu pisquei três vezes seguidas, ainda confusa. – Você não pode simplesmente falar que gosta de mim e mudar de assunto, ! Está brincando?
  – Como assim, ? Você me olhou como se eu fosse um doido!
  – Não, eu te olhei como se você não dissesse coisa com coisa.
  – Como um doido!
  – Por que decidiu falar isso justo agora? – O ignorei, forçando os pulsos contra a corda por pura frustração. Não era justo. – Por quê, ?
  – Porque já não tenho mais nada a perder! – respondeu. – E em breve o sol vai nascer. Estamos presos aqui e não faço ideia de como nos soltar ou sair.
  – Isso não faz sentido – resmunguei aceitando o fato de que ele não me daria nenhuma explicação sobre seus supostos sentimentos, ainda mais agora quando tínhamos coisas mais urgentes como prioridades, tipo tentar sair desse poço de fim de mundo que estávamos agora contra nossa vontade. – A não ser que tenham feito rapel nessas pedras, se alguém nos colocou aqui, é porque tem de haver alguma entrada térrea, alguma coisa que não estávamos vendo! Algo como…
  Eu olhei para cima, então para baixo e estreitei meus olhos. Só existiam duas opções: ou a saída seria escalar as paredes até a abertura no teto, ou havia alguma passagem coberta por todo aquele lixo, ofuscada e escondida. E pode ser também que o cheiro ruim estivesse afetando nosso cérebro e nossa capacidade de raciocinar, impedindo que nós nos concentrássemos para achar o que estávamos buscando, porque depois de uma lufada de ar, comecei a tossir sem nem disfarçar a ânsia imediata.
  Segundos depois, retomei a minha observação atenta enquanto meu amigo ainda lutava contra as cordas.
  – ... e se estivermos procurando no lugar errado? – Ele aquietou e cuidadosamente seguiu meu olhar, apenas para balançar a cabeça vigorosamente em seguida.
  – Não – ele disse firme, convicto. – Sem chance, vir debaixo para ele seria uma desvantagem.
  Minha face se transformou em uma careta.
  – Ele? Como assim ele? pareceu prender a respiração. – Você sabe quem nos trouxe aqui?
  Sem mencionar um “a” até então, eu havia deduzido que com a pancada na cabeça e a queda seguida disso teria feito ele não se lembrar do que tinha visto antes de vir pra cá. Achava que após nosso período de tempo compartilhado aqui dentro meu amigo estava tão perdido quanto eu estava.
  Entretanto, pela expressão com a qual me encarava naquele instante, imaginei ter me enganado erroneamente com esses detalhes.
  – Você sabe?
  – É, bem, mais ou menos. – Eu arqueei a sobrancelha em indignação. – Ok, eu sei!
  – E não pensou que devia me explicar?
   não pareceu satisfeito com meu pedido. Se remexeu em sua cadeira como se quisesse achar uma posição mais confortável e desistiu após um instante com um suspiro derrotado.
  – Antes de eu cair no chão feito um saco de batatas, eu vi alguém se aproximando de nós. – Eu assenti rapidamente, querendo que ele pulasse para a parte que importava. Aquilo não era novo, eu havia presenciado sua queda, e até aí, nenhuma surpresa. – Eu reconheci a pessoa que vinha.
  – Quem era?
  Ele me encarou por alguns segundos antes de soltar:
  – O Saci.
  Por um longo segundo, não havia nada além do silêncio serpenteando entre nós dois. Eu pisquei demoradamente. A situação já estava tão bizarra que eu sequer me atrevi a rir com suas palavras. E ainda assim…
  – Aham, será que o Curupira não gostaria de se apresentar também? A gente pode fazer uma festa.
  Sua expressão tornou-se dura e irritadiça.
  – Não zombe, ! É sério! Não o viu também antes de desmaiar? Sequer um vulto?
  Eu acabei soltando um riso incrédulo e completamente forçado.
  – Não pode ter sido o Saci. – Balancei a cabeça para os lados em negação. – A última coisa que vi antes de apagar foi um pé verde, cascudo e muito nojento, nem um pouco parecido com um humano, e, até onde eu saiba, o Cara do Gorro Vermelho não é verde! subitamente empalideceu e engoliu em seco. – O quê?
  – Isso é impossível!
  – Há! Bem-vindo ao meu mundo! O mundo onde nada é impossível!
  Ele balançou a cabeça, seus lábios comprimidos em uma linha quase cinza. Por alguma razão isso me irritou ainda mais.
  – O que é agora, ? Por que está fazendo essa cara de pavor? – Eu virei a cabeça sobre os ombros tentando olhar ao redor sem muito sucesso. – Outro monstro está atrás de nós? Quem agora? O Boitatá?
  – Quer parar de agir assim?! –ele ralhou, mas não lhe dei ouvidos.
  – Como você espera que eu reaja, ? – gritei para ele, incapaz de me conter por mais um segundo. – Eu sinto que estou endoidando um pouco mais a cada piscar de olhos! Quando na minha vida eu pensei que um dia eu ia acordar e descobrir que todas as histórias do folclore que eu desprezei durante tantos anos na verdade eram todas reais?
  O instante se prolongou, o silêncio se expandindo entre nós dois enquanto eu o olhava fixamente e ele retribuía o olhar.
  – Eu sinto muito.
  Minha raiva se esvaneceu quando senti a culpa em sua voz. Minha respiração ficou mais calma, apesar de eu não me sentir nada mais confortada.
  – Não tem que sentir. – Abaixei a cabeça e fechei os olhos com força. – Estou fazendo meu melhor para entender tudo.
  – Queria te ajudar melhor com isso. – O tom doce de voz era macio e baixo, compreensível. Eu levantei meus olhos até ele e senti todo o carinho que ele tentava passar com suas palavras. Então antes que eu pudesse retribuir de alguma forma, ele suspirou e jogou sua cabeça para trás. – Mas meu tempo está acabando, .
  Juntei minhas sobrancelhas, lembrando-me subitamente de suas palavras confusas e sem sentido: tenho até o nascer do sol.
  – O que quer dizer?
   pegou fôlego e coragem para explicar o que quer que fosse que estivesse preso em sua garganta, mas o som de algo pesado se aproximando encerrou nossa conversa antes mesmo de começar.
  Eram passos lentos, pesados e arrastados, que só se tornavam notáveis pelo barulho de plástico se contorcendo com a força que era implicada sobre eles. Tentei identificar a direção do barulho até perceber que vinha de algum lugar da parede às minhas costas, a parte mais escura de todo o ambiente, onde nenhum de nós enxergava direito.
  Junto do que quer que fosse que entrasse no ambiente, vinha uma frieza congelante que parecia se arrastar sobre nós. Uma força muito antiga, algo que ia além do que eu estava preparada para ver.
  Prendi minha respiração conforme se fez completamente imóvel.
  – Ele não contou a verdade ainda, humanazinha insignificante?
  Minha pele gelou, se arrepiou por completo até meu último fio de cabelo. Eu encarei com olhos arregalados e a boca seca, os lábios tremendo pela sensação avassaladora que aquela presença causava. A voz sibilante, arrastada, penetrou até meus ossos e reverberou em minha alma.
  – Quem é você? – Minha voz saiu entrecortada, ridícula, como a de uma criança.
  Quem quer que fosse atrás de mim não respondeu, mas continuou a se aproximar com calma e paciência, como se quisesse ver que reação nos causava a cada segundo que nos fazia aguardar.
  Meu amigo acompanhava o movimento com os olhos e os lábios comprimidos numa linha fina. Pela sua expressão facial, não gostava do que via e tinha medo do que poderia acontecer em seguida.
  Eu queria virar a cabeça e descobrir quem havia nos prendido ali naquele buraco, quem estava tão interessado em nos fazer seus prisioneiros, mas não me sentia muito corajosa para isso no momento.
  Honestamente, não seria nem um pouco difícil eu começar a chorar a qualquer instante, como a pessoa patética que eu me sentia.
  – Talvez deva perguntar quem ele é – a criatura respondeu. Àquela altura eu já sabia que não se tratava de algo humano nos fazendo companhia. Olhei para sentindo minha respiração falhar e o medo começar a crescer em cada célula de mim, com ainda mais força que quando aconteceu com a Mula-sem-cabeça.
  – Ou você deva explicar porque estamos aqui – respondeu, me impressionando com sua frieza e seriedade. – O que acha disso, Cuca?
  Então a criatura se colocou à minha frente e se não fossem as cordas me prendendo, eu teria corrido para muito longe dali logo em seguida sem sequer pensar por um segundo. Sua aparência era literalmente um pesadelo transformado em realidade.
  Um jacaré fêmea bípede enorme, atingindo facilmente cinco metros de altura. A pele esverdeada tinha um tom doentio de algo apodrecendo. As unhas enormes e encardidas de sujeira denunciavam que aquela era uma de suas armas mais poderosas e eu sabia que sem esforço algum ela podia me dilacerar por completo com um único movimento. Seu corpo roliço não deixava dúvida que sua força era uma chave para o combate, mas meu pavor atingiu seu mais alto nível quando meus olhos alcançaram sua cabeça.
  Uma vez, quando eu ainda estava na escola, lembro-me de em uma aula de ciências ouvir minha professora dizer que "um jacaré tem uma mandíbula tão forte que é capaz de quebrar o casco de uma tartaruga com apenas uma mordida". Fiquei tão assustada que prometi a mim mesma naquele dia que jamais chegaria perto de um animal como aquele. Entretanto agora a vida tentava fazer uma piada comigo, porque pairando sobre minha cabeça a apenas alguns metros, bem menos distante do que eu gostaria, a boca de Cuca salivava entreaberta com todos seus dentes expostos, afiados, amarelos cheios de tártaro, com restos de alimento entre eles, prontos para abocanhar qualquer coisa ferozmente num único bote.
  – Ah, . – A criatura arrastou as patas até ficar de frente para meu amigo, as pernas grossas e curtas se movendo com tamanha lentidão que raspavam uma na outra. – Ao contrário de você, eu não traí minha própria natureza. Eu continuo a mesma... Sabe o que isso significa?
  O maxilar dele tencionou-se.
  – Que natureza? – me intrometi subitamente testando a sorte que nenhum de nós tinha, já irritada com aquele papo que esse povo do folclore parecia ser obcecado. – Até onde eu saiba, tudo o que você faz é sequestrar crianças desobedientes! Nós não somos crianças!
  A Cuca soltou um som gutural que fez todo meu corpo tremer. Ainda, percebi, que pela maneira como ela jogou a cabeça para trás, aquilo não se passasse de uma tentativa falha de gargalhar.
  Os olhos amarelos e suas fendas negras se fixaram em mim sem dificuldade em meio à pouca luz.
  – Ah... Eu adoro como essas histórias de nós são contadas hoje em dia – ela falou com um sibilo vagaroso. – Sempre ocultando a pior parte de quem somos. Não concorda comigo, ?
  Virei-me para ele, sentindo minha pele arrepiar. Sua expressão não estava muito melhor que a minha, e havia algo sombrio em seu olhar.
  – E sabe o que a história não conta, sua humana intragável? – Ela aproximou suas centenas de dentes da minha face e seu bafo bateu certeiramente contra meu rosto. – Em como eu devoro aqueles que prendo em meu covil.
  Naquele instante, eu soube que nós dois seríamos sua próxima presa.
  E não tinha volta nisso.

Capítulo 09

  - Tem pontas soltas nessa história! – meu amigo se pronunciou percebendo que eu estava incapacitada de falar, completamente apavorada, e tentava nos ganhar tempo. – Você não nos pegaria, você só pega crianças!
  A besta recuou levemente, endireitando sua pose agora um tanto indignada e por um instante pareceu que ela colocou a mão, vulgo, garra, na cintura. Com esse pequeno distanciamento quase pude respirar direito mais uma vez. Quase.
  - Ora, para alguém que só dorme uma vez a cada sete anos é preciso procurar novas coisas a se fazer, um pouco mais de diversão para o dia a dia – ela tentou justificar, mas aquilo não convenceu meu amigo que a observou dos pés à cabeça com completo desdém enquanto eu ainda estava atônita demais para me pronunciar.
  - Vamos lá, nos conhecemos melhor que isso. O que você não está me contando, Cuca?
  Ela soltou uma gargalhada rouca e estreitou os olhos, fixando as fendas em que sequer mexeu um músculo.
  - Será que você já não sabe? – Eles se encararam por um momento, juntando as peças enquanto sustentava o olhar.
  - Alguém te ajudou.
  - Está começando a entender.
  - Mas por quê?
  - Porque era o que vocês mereciam. – Uma voz, dessa vez evidentemente humana e masculina, se fez presente, vindo do mesmo lugar que antes a Cuca aparecera.
   conseguiu visualizar o ser antes que eu, e, a contragosto, sorriu para o outro com uma expressão muito próxima do descontentamento.
  - Saci – ele disse sem emoção e não muito depois um garoto estava diante de mim e de , se equilibrando em um só pé, com um sorriso travesso chegando até os olhos enquanto um cachimbo pendia por entre seus lábios grossos.
  Era exatamente como eu o imaginei um dia quando criança. Um garoto completamente inquieto, magricela e de pele morena como chocolate, apenas um tom mais claro que seus cabelos curtos e encaracolados. O sorriso de dentes brancos, o gorro vermelho em sua cabeça e a bermuda presa por um único suspensório também da mesma cor acabavam se destacando na pouca luz. Quando eu o vi, ao contrário dos outros seres que conheci, não senti medo. Não senti nada além de uma profunda curiosidade.
  Não era uma criatura, era apenas um menino mirrado.
  Um menino que estava fumando um cachimbo e com um brilho acusador em seus olhos, mas ainda assim, só um menino.
  - Talvez eu não tenha me apresentado devidamente. – Ele se curvou ligeiramente, em deboche, para mim e para . – Por onde vocês querem que eu comece? Minha história ou meu nome? Sou só um guri, menino Saci-Pererê, como bem sabem, ou apenas Saci para os mais íntimos, o Garoto de Uma Perna, às vezes chamado de Aquele do Gorro Vermelho ou…
  - Fique quieto, moleque tagarela! – a Cuca ralhou, o cortando. – Não devia estar aqui. Já fez o que queria, começou com tudo isso, mas agora sou eu quem vai finalizar!
  A boca da Cuca se abriu lentamente, a saliva escorrendo por seu beiço junto de um sibilar terrível e eu vi claramente como seria a nossa morte. Sem muitas possibilidades, só um desfecho.
  Desesperada para ao menos retardar o fim iminente, tomei o fio de coragem que me restava e comecei a enrolar o tanto que podia, na esperança de que pensasse em algo para nos tirar dali nesse ínterim. Porque era nele que toda minha esperança estava depositada.
  - Ao menos explique o porquê de tudo isso! – gritei para a Cuca e o Saci, a dupla mais esquisita que já imaginei ver, interrompendo a conversa silenciosa de olhares que tinham entre seus próprios movimentos. – Foram vocês que mandaram a Mula atrás de nós, não foi? Ela não devia estar em nosso caminho!
  Por um instante ninguém disse nada e tudo que ouvi foi minha própria respiração alta.
  Saci começou a rir histericamente, virando-se para a Jacaré e então de volta para nós.
  - Claro! – ele confirmou sem suspense algum. – Ou por acaso achou que tivesse sido coisa da Iara por estar com ciúmes de você com o ?
  - O quê?
  - Ah, é. – Novamente ele começou a rir enquanto rodeava a minha cadeira aos pulos, tornando cada vez mais difícil para mim acompanhar seus movimentos. – A sereia está mesmo com ciúmes, mas não teve coragem de se vingar de você, ao contrário de mim.
  - Ao contrário de você? – Pelo canto do olho vi que tentava ininterruptamente desfazer os nós de sua corda. Pela sua concentração, eu esperava que estivesse funcionando, pois naquele momento tudo o que eu conseguiria fazer seria dar mais tempo a ele. A conversa teria de se estender fosse como fosse.
  Mas de repente Saci me dirigiu um olhar tão cheio de ódio que seu sorriso se tornou medonho, até a fumaça que saía do seu cachimbo pareceu ficar mais misteriosa ao redor do seu rosto de criança.
  - Como você se sentiria se fosse chamada de mito, de uma mentira? Coisa feita pela cabeça dos outros? O tempo todo. – Sua expressão brincalhona se transformou em algo perto do exasperado. – Acha que é legal andar por aí e de fato ouvir alguém dizendo que você não existe? Você merecia uma lição por causa disso! Realmente acha que foi tudo coincidência? Seus brincos sumirem, a Mula aparecer no caminho entre vocês e a Mãe de Ouro... Acha que foi o acaso, ? É, eu sei seu nome, sim. Assim como você devia saber o meu.
  Dos pés ao meu último fio de cabelo, todo o meu corpo se arrepiou conforme o quebra cabeça era finalizado bem diante de mim. As imagens perpassando por trás das minhas pálpebras, todas as cenas se desenrolando. A conversa com na rua, nosso tombo, o vulto vermelho sumindo tão rápido quanto surgiu, a desconfiança de , o desaparecimento dos meus preciosos brincos em seguida.
  Foi tudo ele, por causa do Saci. E por minha causa, por minha falta de fé.
  - Você fez tudo isso de propósito? – eu choraminguei me sentindo uma idiota. – Tudo o que aconteceu aqui não se passou de uma brincadeira de mau gosto?
  - Você merecia essa lição!
  - E eu já entendi tudo! – devolvi desesperada. – Me desculpe por como fiz você se sentir. Eu não conhecia nada disso!
  - Não é tão engraçado agora, é, menina?
  Eu chacoalhei a cabeça para os lados.
  - Como pode me culpar pela minha ignorância? Não é justo!
  - Não é justo o que fez comigo também!
  - Eu não queria nada acontecendo assim – falei para ele com toda a sinceridade que eu tinha, e algo na postura do garoto vacilou quando olhou em meus olhos. Mas o riso áspero da Jacaré desmanchou qualquer compreensão que de repente existisse entre nós dois.
  - Talvez ele só quisesse ver a reação de vocês quando os pegasse e não a culpe de verdade por sua falta de crença, humanazinha – interrompeu-nos a Cuca. – Mas adivinhe só? Eu sim.
  Uma tensão crescente começou a se solidificar no ar ao nosso entorno. Engoli em seco conforme percebia que as intenções do Saci-Pererê não iam ao mesmo ponto que as da Cuca chegavam, e ele compreendeu isso até mais rápido que eu e .
  - Espere aí – disse o garoto, subitamente desconfiado. – O que quer dizer, senhora?
  - Ora, moleque intrometido. – A Jacaré se arrastou até ele, esmagando o lixo sob seus pés a cada passo, chacoalhando a cauda com violência para os lados. – Achou mesmo que as coisas terminariam assim, simplesmente? Nada disso foi à toa! Eu não sou fraca igual você.
  Naquele instante me encarou, e juntos nos demos conta que aquela era uma cilada não só para nós dois, mas para Saci também. Ele estava tão perdido quanto meu amigo e eu desde o começo. Não sabia nem metade das intenções da Cuca.
  - Você disse que íamos apenas dar um susto neles! – o garoto de uma perna só protestou.
  - Achou que eu deixaria que essa garota ridícula e esse traíra continuassem por aí sem mais nem menos? Eles não merecem o ar que respiram! Merecem só a dor! – ela urrou de ódio, tão forte que eu senti o chão e as paredes tremerem. – Ela vai morrer por seu ceticismo e ele por tentar mudar seus instintos! É isso que vai acontecer. E você, querido Saci, de hoje em diante vai me obedecer e fazer tudo o que eu mandar, porque está preso a mim pelo nosso acordo. Sua promessa é dívida. Recuse! Negue! Eu acharei um jeito de puni-lo por desobediência. E você sabe como eu adoro uma criança desobediente.
  Ela entreabriu a boca, sibilando, e todos os seus dentes se tornaram visíveis mais uma vez, parecendo maiores, mais afiados. Meu estômago embrulhou e por um instante quase esqueci de respirar enquanto a olhava com nojo, tentando achar uma brecha no ardil que todos nós estávamos.
  Saci olhava para ela totalmente sem ação, perplexo, caindo na armadilha que ele mesmo ajudara a criar, sem saber agora onde estava pisando. A que mais ele teria que se sujeitar simplesmente para continuar respirando? O que mais ele podia fazer se não a obedecer sem questionar?
  Ao menos era sua chance de viver, uma opção que eu e não tínhamos.
  - Saci, não! – gritou exasperado e de súbito percebi que eu estava completamente paralisada olhando para eles como uma mera expectadora, minhas palavras roubadas de mim assim como minhas escolhas. – Ela não pode te controlar! Ela não pode exigir nada! O Rei não permite isso, você sabe! Nos ajude e nós te ajudamos. Nos tire daqui!
  Rei? Quem era essa Rei?
  Mas enquanto mais dúvidas surgiam e falava sem parar, o garoto apenas o olhava perdido, sem rumo, percebendo que literalmente fez todo o trabalho sujo de uma criatura má como Cuca achando que não estava fazendo nada mais que aquilo que já estava acostumado a fazer: pregar peças.
  Eu olhei para no mesmo instante que ele olhou para mim, a mesma conclusão em nossos olhos. Estávamos por nós mesmos.
  - Basta! – a Cuca gritou e imediatamente arrastou seu rabo na direção de querendo calá-lo com o golpe irrefreável. Eu gritei exatamente no momento em que ele saltou e se soltou das amarras, a cauda da Jacaré atingindo a cadeira velha e enferrujada como se fosse um brinquedo de plástico, jogando-a contra a parede de rochas com força o suficiente para destruí-la com o impacto que reverberou em ecos por todo o ambiente.
  Eu encolhi meu corpo para me proteger dos destroços metálicos que voaram pela câmara enquanto a Cuca soltava um grito gutural de raiva ao ver livre. Nossa única vantagem naquele momento era tomar proveito da sua locomoção lenta, até que ela recuperasse sua ação.
  Não tinha percebido que em algum momento entre todo o falatório e acusações, de alguma forma, conseguira desfazer todos os nós que o prendiam e agora vinha em minha direção para fazer o mesmo e me livrar.
  Mas infelizmente era tarde demais. Os olhos dela faiscavam, seus músculos retesados se preparando para o próximo golpe. Ele não chegaria a tempo para me salvar. Saci tampouco não nos ajudaria, e a percepção de predador que a Cuca tinha já se dava conta que eu era a presa mais fácil de todos nós, e não me deixaria escapar inteira. Muito menos em pedaços.
  Sua mandíbula se abriu em minha direção e tomei meu último fôlego. Que seja rápido, pensei, e fechei os olhos com força.
  Um clarão irrompeu por trás das minhas pálpebras e abri os olhos a tempo de ver a luz pela abertura do teto, assustando o monstro tão perto de mim e a fazendo cair para longe de onde eu estava, na direção oposta, tombando contra todo o lixo acumulado, seu peso fazendo o chão tremer sob nossos pés.
  Procurei por com o coração quase saindo pela boca imaginando que ele de alguma forma me salvara, mas sua expressão de surpresa denunciava que ele nada tivera a ver com aquilo e Saci compartilhava do mesmo sentimento que nós, os olhos estarrecidos, sem qualquer compreensão.
  Segui o olhar dos dois, minhas pupilas doendo pela súbita luz, e no espaço vazio acima de nós consegui distinguir a figura feminina, uma mulher pairando, literalmente flutuando a vários metros do chão, como um anjo. Ao redor dela uma luz bruxuleava em tons de dourado, tão forte que sequer parecia mais noite, parecia a constelação de mil estrelas.
  Sua pele era branca como a porcelana mais fina e o vestido longo de seda da mesma cor aderia perfeitamente a cada curva do seu corpo, com a leveza que uma fada teria. Seus cabelos longos e loiros resplandeciam, brilhavam tanto que poderiam estar refletindo o próprio sol, e seus olhos eram tão iluminados que pareciam feitos inteiramente de ouro derretido salpicados de diamantes da mais rara lapidação.
  Os traços de seu rosto eram delicados como os de uma boneca, os lábios rosados apenas um tom mais forte que suas bochechas, mas a expressão que ela carregava no rosto era rígida. Não trazia gentileza gratuita. Era uma beleza austera que podia ao mesmo tempo impressionar e intimidar quem a olhasse.
  Ela era lindamente inalcançável e eternamente bela.
  - Mãe de Ouro. – curvou a cabeça rapidamente em sinal de respeito. Eu ainda estava embasbacada demais para imitá-lo, engasgando com minhas próprias palavras enquanto observava a mulher com seus movimentos delicados se virar para nós.
  - Rápido! – ela respondeu, sua voz suave parecia reverberar por um longo caminho além de onde estávamos, se prender em nossa cabeça numa lembrança macia e apaziguadora. – Vocês precisam sair daqui.
  Eu ainda a olhava completamente perplexa, assimilando o que acontecia ao meu redor em câmera lenta, meus olhos piscando para clarear minha vista e pensamentos.
  Quando a Mãe de Ouro finalmente adentrou o espaço por meio da claraboia, parte da parede de pedra veio abaixo exatamente em cima da Cuca. Eu, e o Saci tentamos nos proteger da poeira e destroços que vieram em nossa direção. Por alguns minutos, se tivéssemos sorte, ela ficaria imobilizada ali sem forças para impedir nossa fuga.
  Saci olhava para os lados assustado, como se não soubesse o que fazer em seguida, perdido dentro de si. corria em minha direção e rápido como um marinheiro desfez todos aqueles nós complicados que me prendiam com uma habilidade incrível e invejável.
  - Vamos, ! Vamos! – Seu grito ecoou em minha cabeça enquanto meus membros começavam a repentinamente voltar à ativa, a adrenalina me dando a coragem e força que eu precisava para seguir em frente.
  - Pelos túneis – disse a Mãe de Ouro tomando a dianteira, sem jamais tocar os pés no chão ou mostrar um pingo de expressão que fosse em seu rosto. – É por lá que vocês devem seguir. Iluminarei o caminho até a saída, e então estarão livres.
   me conduziu até a passagem enquanto eu o seguia aos tropeços por entre o lixo, aquela abertura na parede de blocos escondida pela negritude, a mesma que Cuca e Saci usaram para entrar. Com esse repentino pensamento eu parei de segui-lo e olhei para trás instintivamente. Saci continuava parado no mesmo lugar sem mexer um músculo sequer, como se seu pé estivesse pregado no chão.
   pareceu se dar conta do que me atormentava no mesmo instante e tomou a iniciativa:
  - Saci, vamos! – gritou para ele. – Siga a gente para fora! Você não tem que ficar aqui!
  - Tenho sim – o garoto respondeu, os olhos vazios presos onde a Cuca estava e em todos os escombros acima dela. – não disse, mas a expressão dela não mente e tem razão. A culpa é minha. Preciso me redimir com vocês.
  - Não precisa! – Me ouvi dizer. – Só vamos dar o fora daqui.
  A Cuca começou a se movimentar e a estrutura inteira do seu covil tremeu com o esforço.
  - Vão vocês! – disse Saci. – Eu vou impedi-la de persegui-los. É o mínimo que posso fazer depois do transtorno todo. Eu não queria que as coisas chegassem a esse ponto.
  - Não, não, não! Você sozinho contra a Cuca? Está louco? Vai ser uma briga perdida!
  Mas o Saci não mudaria de ideia, estava explícito em seu rosto, não importava o que dissesse a ele. Então ainda nos olhando, o garoto abriu um sorriso triste, sincero, e começou a pular inquietantemente sobre sua única perna.
  - Minha especialidade é pregar peças, não é? Vou conseguir distraí-la – ele garantiu. – É hora de vocês irem.
  - Mas…
  - Vão – Saci cortou e insistiu. – Vou dar um jeito nisso. E , seus brincos... A Mãe de Ouro vai levá-la até eles. Desculpe mais uma vez.
  A Cuca urrou sob todos os escombros e mais pedras começaram a cair do topo das paredes como uma chuva de meteoros. Era a nossa deixa. Mãe de Ouro olhou para Saci e um consentimento concretizou-se entre eles. Num instante ela se transformou numa chama, um ponto brilhante no meio da escuridão e desapareceu pela saída atrás da parede, pelos túneis onde devíamos seguir.
   segurou em meu braço, e nós dois, ainda que contrariados pela escolha que assistimos Saci tomar, corremos o mais rápido que conseguimos para fora daquele covil, para salvar as nossas vidas.

Capítulo 10

  Minha cabeça girava tanto que se não fosse segurando meu braço apertado entre seus dedos eu já teria ficado para trás. Ouvia os gritos guturais da Cuca às nossas costas, mas não tinha coragem de olhar e entender por que ela urrava. Eu segurava o choro e só torcia para que Saci desse um jeito de escapar das garras daquele monstro. Ele não merecia sofrer, mesmo com suas perspectivas distorcidas sobre lição de moral que achava que tinha que dar aos outros.
  No meio do caminho acabei tropeçando em uma pedra e precisou me amparar para eu não cair. Ele também estava com a respiração entrecortada, abalado, mas ao contrário de mim, parecia muito mais ativo e me incentivou a seguir.
  – Vamos lá, já estamos perto! – ele garantiu e continuamos a correr.
  Quando por fim saímos daqueles túneis e o ar gélido atingiu minha pele, senti o alívio tomar conta de mim junto do ar puro, mas sabia que não podíamos nos dar o luxo de parar. Enquanto tivéssemos força, precisávamos correr para mais e mais longe, mesmo que nossos pulmões ardessem e reclamassem, mesmo que nossos músculos tremessem.
  Dentro da mata outra vez, procurei por meu celular no corpete do meu vestido apenas para me dar conta que ele não estava lá. Provavelmente havia se perdido em algum lugar daquele depósito enquanto corria da Mula, e era óbvio que eu não voltaria lá para procurá-lo. Depositei toda minha confiança em e deixei que ele me guiasse para fosse onde fosse assim como fizera com a perseguição da Mula-sem-cabeça.
  Eu olhava para o céu e via a lua descer, desaparecendo mais um pouco a cada passo nosso, o azul escuro se transformando em tons mais claros, apagando a luz de algumas estrelas.
  A Mãe de Ouro, ainda em movimento, nos guiando, se transformou em pleno ar, voltando a sua forma de anjo iluminando o caminho.
  – , você precisa…
  – Eu sei – ele respondeu a ela de imediato. – Mas primeiro os brincos da . Você sabe onde eles estão, não sabe?
  – Você pode não conseguir – ela insistiu para ele, o tom sábio de alguém que já viveu muito. – Não tem mais que alguns minutos.
  – Eu sei, eu…
  – Quem é você? – acabei me intrometendo na conversa e cortando a discussão dos dois, mas sem saber para quem exatamente estava me dirigindo. Quem era essa mulher em forma de anjo, de fato? E quem era , no fim das contas?
  Por que a floresta era tão sombria e cheia de segredos? Quem era a mulher que foi transformada em Mula? Por que Saci escolheu a nós entre tantas pessoas? Como ele podia andar por entre o mundo sem ser percebido? Quem era o Rei? Por que tudo isso estava acontecendo? Por quê? Por quê?
  Eu levei a mão livre até minha têmpora como se isso pudesse amenizar o desconforto que crescia em minha cabeça, a avalanche de perguntas incapaz de ser contida. Os olhos de encontraram os meus, tristes, culpados. Me lembrei de suas palavras na caverna. Queria te ajudar melhor com isso. Mas meu tempo está acabando, .
   virou-se para frente mais uma vez, desfazendo o contato e apertando seu passo.
  A mulher virou a cabeça para o lado e fixou o olhar brilhante em mim, prendendo-me em si, o ouro em suas íris se intensificando como se conseguisse ler cada um dos meus pensamentos, ouvir cada uma das minhas questões, todas as minhas dúvidas e angústias, ver cada pedacinho da minha alma.
  Se ela conseguia mesmo fazer isso, não sabia, mas acabou sorrindo para mim por um instante, o olhar de uma mãe que sabe o que está acontecendo antes mesmo de perguntar. Vacilante, me afastei do seu olhar.
  – Você é corajosa, – ela disse suavemente e eu prendi a respiração. apertou minha mão em resposta e eu queria muito poder olhar em seu rosto para saber qual expressão ele carregava, mas a Mãe de Ouro continuou a falar antes disso: – Sou protetora das mulheres maltratadas pelos homens, seja de qual maneira for. Eu cuido para que esses sofram o que seja necessário para jamais tocarem agressivamente em uma mulher de novo. Mas além disso, também protejo o ouro dessa terra, todas as jazidas inabitadas são de minha propriedade, meu domínio. Eu cuido do que é puro. Do que é honesto de coração. E nessa noite... Nessa noite também sou protetora de vocês dois. Estavam à minha procura, não estavam?
  – Está brincando? – levantou os olhos até ela, recebendo em troca um olhar sublime.
  – Eu vim acompanhando a trajetória de vocês desde que adentraram a floresta, horas atrás – ela respondeu. – E o que fizeram para quebrar a maldição da Mula foi digno de ajudá-los.
  – Ah, caramba! – gritei quando me dei conta de que a mulher ainda devia estar naquele descampado ao relento da madrugada, que acordaria sozinha e completamente despida naquele lugar horroroso. – O que vai acontecer com ela? Ela está bem? Vai ficar bem?
  – Sim, ela vai. Já está a salvo – a Mãe de Ouro me garantiu. – Eu a guiei de volta para casa, para onde estaria segura. E quando acordar, eu garanto que a mulher não se lembrará de nada.
  – Viu só? – me olhou sobre o ombro, um sorriso crescendo em sua boca. – Deixe as preocupações para mais tarde, . Vai dar tudo certo! Falta tão pouco agora.
  E ainda assim eu quis protestar contra sua confiança readquirida, porque de tudo o que eu queria saber, o que eles me falavam não respondia nem um quarto do que me afligia. Mas um aperto em meu peito me lembrou de outra coisa, algo mais sério que minhas questões em aberto.
   suava, respirava alto, seu cansaço visível em cada poro do seu corpo. Mas não era só toda a maratona pela qual passávamos que fazia isso com ele. Por trás do seu sorriso lindo, havia um quê de preocupação. Havia medo em seus olhos. Temor pelo que poderia, pelo que ele sabia que iria acontecer.
  A Mãe de Ouro assentiu sombriamente, como se concordasse com meus pensamentos, como se afirmasse que algo estava muito perto de dar errado, e ainda assim não mudou seu semblante inexpressivo esculpido no mármore.
  Apertei a mão de contra a minha. Quanto mais ele estava escondendo de mim? O que eu poderia fazer para ajudar?
  Olhando no horizonte, de repente nosso anjo salvador moveu as mãos com gentileza naquela direção.
  – Estão vendo aquele ponto brilhando em dourado? – ela disse enfim. – Estamos perto.
  E de fato, não muito distante de onde estávamos eu via a luz, como uma aura ao redor de uma grande árvore que afastava as sombras sem qualquer esforço.
  Nos aproximamos diminuindo o passo com cuidado, apenas o farfalhar e nossas respirações aceleradas quebrando o silêncio da mata. Observando ao redor, com a testa franzida, não foi difícil perceber que ali era a moradia de alguém, com todos aqueles objetos espalhados pelos cantos, a coleção mais estranha que já vira.
  As madeiras estavam organizadas como uma cobertura sobre a clareira, uma rede pendendo entre dois grandes galhos e o resquício do que teria sido uma fogueira bem ao centro. A luz misteriosa, por outro lado, destoava de todo o resto. Vinha de dentro de um tronco. E eu sabia que era uma magia da Mãe de Ouro.
  – O que é isso? – me ouvi perguntar sem fôlego.
  – É onde o Saci mora – respondeu soturnamente enquanto mergulhava a mão dentro do tronco oco da árvore sem sequer pestanejar. – Que local mais apropriado para ele, distante de todos os outros, apenas sua própria companhia e tudo que um dia roubou.
  Eu ignorei seu resmungo enquanto observava com atenção cada detalhe ao nosso redor. Era ali onde ele escondia seus espólios, as lembranças de seus desaforos. Tantos brinquedos, sapatos, roupas penduradas e perdidas em galhos, até mesmo panelas jogadas pelo chão, almofadas amontoadas bem sobre as raízes.
  Eu era apenas uma pessoa entre tantas outras a quem ele dera o ar da graça.
  – ! – me chamou e eu corri até ele. Percebi que um sorriso se abria em seus lábios ressecados pela corrida que fizemos. Mas era sincero e satisfeito. Genuinamente feliz. – Acho que isso te pertence.
  Ele abriu a mão e a estendeu para mim. Bem no centro de sua palma jaziam dois pequenos brincos dourados no formato de trevos de quatro folhas. A sorte que jamais me abandonaria, como disse meu pai no dia em que os deu para mim.
  As palavras se prenderam em minha garganta assim como fizeram em minha mente. Só esperava que meus olhos transparecessem para toda a gratidão que eu tinha por ele e pelo que ele havia feito simplesmente para me ajudar. Por tudo o que tínhamos passado juntos.
  – Meu trabalho está feito aqui. Cuidarei para que a Cuca não os encontre. Por enquanto – disse a Mãe de Ouro após um momento sombrio olhando o horizonte, o caminho que havíamos feito não tantos minutos antes, vendo além daquilo que humanamente era possível. – E você precisa ir, . Logo.
  Eu virei meu rosto imediatamente para ele, vendo algo murchar em sua postura. Algo dentro de mim não gostou do que viu e tremeu em reação.
  – Ir para onde? – consegui perguntar, mas não sem tremer a voz levemente.
  – Minha casa – ele respondeu.
  – E você deve ir para a sua – aconselhou-me a Mãe de Ouro, com a voz terna exatamente como se quisesse me proteger, interrompendo as tantas perguntas que eu tinha a proferir para . – Sua mãe te espera. Ela está preocupada com você, .
  – Minha mãe? – Eu me virei para ela em sobressalto, com medo. – E-ela…
  – Ela está bem – confirmou e pude soltar um arfado de alívio. – A luta dela é mais forte quando você está por perto. Ainda há esperanças, . Não veja os distúrbios dela como uma doença sem cura. Sua mãe precisa mais de você do que imagina, e vai superar a escuridão. Se você a ajudar.
  Eu assenti levemente, em transe. Incapaz de contrariá-la.
  Como ela sabia de tudo aquilo eu não fazia ideia e percebi que não valeria a pena questionar no momento. Simplesmente parecia que era certo ela saber.
  A mulher sorriu para mim pela primeira vez na noite, os olhos formando duas meias-luas de diamantes e então virou-se para .
  – Adeus, queridos. Talvez ainda nos vejamos em outro momento. – E então num clarão de luz que ofuscou nossa visão e nos fez cobrir os olhos com os braços, ela desapareceu, nos deixando ali sozinhos, dessa vez por conta própria.
  Respirei fundo como se de repente o ar fosse revigorante para a minha alma e percebi meu amigo fazer o mesmo, em completo silêncio. Coloquei os brincos com um minuto de atraso enquanto via assistir aos meus gestos lentos, mas foi só quando consegui enxergar o piso sob nós de fato, que o susto me atingiu.
  Eu me virei de frente para novamente, segurando seus braços com firmeza quando me dei conta de que a escuridão na mata começava a ceder.
  Ele percebeu o desespero em meus olhos antes que eu sequer dissesse:
  – O sol já está nascendo.

Capítulo 11

  Mais uma vez corríamos pelo meio da mata, dessa vez sem uma trilha para ajudar nosso caminho, nossos corpos se espremendo por entre os troncos, folhagens e galhos, nos dando mais uma coleção de arranhões por nossos membros que ardiam e protestavam.
  Eu ainda tentava compreender, sem diminuir minha velocidade, as últimas palavras de para mim, quase como se tivesse ouvido errado e estivesse alucinando pelo cansaço.
  – Está brincando comigo?
  – Claro que não, ! Acha que eu brincaria em um momento como esse? – ele resmungou enquanto eu me esforçava para correr tanto quanto ele. – Eu preciso chegar até o rio! Lá é minha casa, e se eu não estiver dentro d’agua quando a noite se transformar em dia…
  Eu não entendia, mas pensamentos horríveis se passaram por minha cabeça mesmo assim, tão rápidos que sequer tive tempo de organizá-los corretamente em minha mente. Meu estômago formigou com as sensações ruins. Porém, outra possibilidade, que parecia tão ruim quanto as outras, tomou mais forma.
  – Você vive com a Iara? – Dizer aquilo teve um gosto amargo em minha boca. Quase inebriou meus sentidos e me deixou incapaz de verbalizar algo ainda pior. E o que acontece se você não chegar ao rio antes do sol nascer?
  – Não, sua boba! – ele acabou soltando um riso enquanto me respondia, e eu ainda não compreendia como ele conseguia sorrir em momentos tão tensos quanto esse e todos os outros anteriores, sem perder a pose. – Não sou como ela, não sou um tritão... ou uma sereia macho, como preferir.
  – Então o quê? Quem você é? – Sobre o ombro, ele me encarou por um momento. Delicadamente puxou meu braço para eu me colocar ao seu lado, assim conseguindo me olhar com mais facilidade sem se distrair muito, sem perder o todo o ritmo que mantinha pelo que pareciam ser já quilômetros sem fim.
  – Sei que te devo uma explicação – falou sem diminuir o passo, sem perder o rumo. – E vou tentar explicar tudo da melhor forma que eu conseguir no curto tempo que ainda tenho.
  – Tudo bem, vá em frente.
  Ele assentiu sombriamente.
  – Quando Iara disse que não deu certo entre eu e ela por causa da nossa natureza, ela estava certa – contou em descontentamento. – Eu não fui criado para ter relacionamentos, , assim como ela também não. Eu não sou algo bom de verdade.
  Eu virei meu rosto para ele com o cenho completamente franzido, revoltada e indignada com as palavras que tinham acabado de sair de sua boca, vendo que elas pesavam como mil toneladas de ferro sobre si.
  Desviei-me de um galho antes de tomar fôlego para falar:
  – Como pode dizer isso? – soltei rapidamente. – Percebe tudo o que fez hoje? Tudo o que se habilitou a fazer por outra pessoa? Quantas vezes você me salvou nessas últimas horas? Quantas vezes me ajudou? Até mesmo o Saci e a própria Mula! Se não chama isso de bondade, chama de quê? A Mãe de Ouro não teria vindo até você se você não fosse bom, !
  – Você não entende! Não sabe do que está falando. Você me odiaria se soubesse a verdade, teria nojo de mim. – Ele ignorou-me com uma careta infeliz.
  – Eu não conseguiria te odiar, . Nunca! – Eu o apertei mais firme. – Não depois de tudo o que você fez por mim.
  O riso seco deixou sua garganta a arranhando, arrepiando a minha pele de um jeito que me fez engolir em seco. Seu olhar sempre cheio de vida de repente completamente frio. E ainda assim, mesmo com a mudança brusca, eu não me afastei.
  – Sabe o que eu faço a cada lua cheia? Sabe qual é minha missão de vida nesse lugar? – ele praticamente cuspiu as palavras para fora da sua boca, a raiva intrincada em cada uma delas com algo ainda mais profundo que isso. – Não tem nada a ver sobre austeridade, sobre fazer o bem ao próximo, . É ir às festas e buscar as garotas mais bonitas, as mais cheias de si, as que têm o maior ego e que acham que podem ter qualquer garoto em suas mãos, que podem ter tudo o que quiserem aos seus pés às custas dos outros, sabe pra quê? Para ensinar a essas garotas, cada uma delas, uma lição que nunca vão esquecer.
  Um suposto entendimento, um péssimo pressentimento começou a se formar dentro de mim e subir por minha espinha conforme eu absorvia tudo o que contava. Meu coração redobrava a velocidade dos seus batimentos, cada um deles ecoando em meus ouvidos.
  – Quer dizer que…
  – Eu as seduzo e então as abandono – ele concluiu duramente com tanta frieza em sua voz, que eu senti o gelo em minha pele. – Exatamente como elas faziam antes de mim. Devolvo na mesma moeda. Sem pesar, sem arrependimentos. Como uma brincadeira de criança.
  Eu balancei a cabeça como se isso pudesse apagar suas últimas palavras.
  Não sei como esperava que eu reagisse, não sei o que ele esperava que eu dissesse, porque claramente ele levaria essa declaração para o túmulo consigo se pudesse, e só me contava pois sabia que me devia ao menos essa explicação dentro de tantas outras questões em aberto que eu possuía.
  Mas perplexa demais, tudo o que fui capaz de fazer por segundos depois disso foi manter minha expressão limpa. Estava desacreditada e só consegui dar a ele o meu silêncio vacilante como resposta, até que meus olhos encontraram os dele, e ele viu algo em minhas íris que eu não conseguia pronunciar, mas que ele claramente entendia com muita clareza.
  – Sim, . Isso não é tudo – me respondeu com a voz rouca e grave demais. – Às vezes tudo aquilo não é o suficiente. Às vezes, sou obrigado a fazer ainda pior…
  – Como assim obrigado? – Eu consegui cortá-lo e sua boca se fechou numa expressão fina. – Quer dizer que você luta contra esses... esses instintos? Você pode fazer isso?
  – Eu juro que eu tento, . A cada vez que eu me transformo, eu juro que luto contra isso! Mas não consigo. Nunca consegui. – Ele soltou um suspiro sem conseguir me olhar diretamente, e havia sofrimento em seu rosto, como se essa admissão tirasse algo de dentro de si, como se tudo o que ele já havia feito até aqui arrancasse algo que o fizesse ser quem era, ou quem um dia ainda seria. – Acredite em mim, eu faço tudo o que posso, mas estou preso a esse destino assim como Iara está presa ao dela. É o nosso fardo. Para sempre ser cumprido.
  – Não, não existe para sempre, – eu lhe respondi, surpresa com minha própria convicção. – Não existe isso de não conseguir! Você pode fazer tudo o que quiser!
  – Não é tão simples assim, , o Rei, ele... – Sua frase se perdeu no meio do farfalhar de folhas que nos atingiu em cheio. Eu abri a boca para questionar o que ele queria dizer com isso, mas bruscamente ele mudou a direção tanto de nossos passos quanto a de seus pensamentos e foi difícil demais acompanhá-lo com isso, pois minha cabeça quase explodiu com suas palavras seguintes: – Entende então por que nunca fiquei com você?
  - O quê?
  – É isso mesmo que ouviu! Entende o porquê agora? – ele continuou despejando suas palavras, como se nem ele próprio tivesse mais poder sobre todas elas. – Entende por que durante todo esse tempo sempre me viu com uma garota diferente, e, apesar de estar sempre contigo, nunca estar de fato com você? Não quero te arriscar, . Tenho medo de repetir a história, medo de não conseguir parar antes de ser tarde demais. Já tentei uma vez e temo que, assim como anteriormente, eu não seja capaz de driblar aquilo que sou. Eu gosto demais de você para te magoar como sei que vai acontecer!
  Subitamente ele se calou, como se dizer aquilo em voz alta expusesse algo que ele sempre quis esconder. Mas era impossível retirar o que disse, e mais impossível ainda fingir que nada foi dito.
  Deixei que nossos passos duros contra o solo preenchessem o silêncio pesado ao nosso redor enquanto a parte racional do meu cérebro tentava subjugar os meus desejos imediatos e tudo o que eu de fato queria dizer a ele. Como eu poderia contestar todas os temores que havia me confessado se ele praticamente estava dizendo em outras palavras aquela frase tão ridícula de “não é você, sou eu” sem ter sequer me dado a chance de falar o que eu mesma sentia por ele? Não era justo! Completamente egoísta!
  Meu rosto se contorceu em uma careta e tentei manter a voz inalterada, mas ela me traiu e tremeu ainda mais que o imaginado:
  – Então por que está me dizendo isso tudo? – Ele franziu as sobrancelhas para mim. – Por que está falando que gosta de mim se não pode ficar comigo? Se essa é sua tentativa patética de não me machucar, não deu certo, . Nem de longe!
  Isso também pareceu atingi-lo. Como se tivesse muito que dizer e não encontrasse as palavras adequadas, sua boca abriu e fechou por vezes seguidas, exatamente como um peixe, soltando bolhas em direção a superfície. Ele não tinha tempo suficiente para encontrá-las, para organizar tudo o que era transpassado por sua face.
  Não com muita gentileza um galho acabou nos pegando desprevenidos, nos atingindo na altura dos ombros, presenteando-nos com alguns outros arranhões e nos tirou consequentemente do nosso devaneio súbito.
   me ajudou a recobrar o equilíbrio e, de alguma maneira, apertou ainda mais o passo assim que o barulho de água corrente fez-se audível para si. Eu podia não ter a mesma sensibilidade auditiva que ele, mas sabia que estávamos chegando, que nosso tempo juntos escorria como areia em uma ampulheta agora.
  – Uma coisa que eu aprendi com o passar dos anos – ele retomou a falar de repente. –, é que pessoas vêm e vão o tempo todo, . Eu sempre fui esse tipo de pessoa, alguém passageiro na vida dos outros. E você pode não acreditar, porque talvez seja a coisa mais boba que um dia já deixou a minha boca, mas a mais real também. Eu percebi que não quero estar apenas de passagem na sua vida.
  Um último passo e a escuridão formada pelas árvores deu lugar ao céu refletido na água corrente do rio, as estrelas desaparecendo com a luz do sol que parecia cada vez mais próximo de se levantar, o lilás e rosa pintando o horizonte.
  Nós paramos bruscamente de frente para a margem, nossos pés derrapando no solo barrento, e, enquanto eu recuperava o ar perdido e me segurava contra o braço firme de , a coisa mais inteligente que consegui dizer para ele foi:
  – O que foi que disse?
   abriu um sorriso estonteante e ficou de frente para mim, num gesto rápido tomando meu rosto com suas mãos quentes, tão naturalmente que me fez encará-lo como uma completa boba sem reação.
  – Sei que fiz muita coisa errada no meu passado. Durante toda a minha existência estive e ainda estou preso a um destino que perdeu o sentido há muito tempo. – Seus olhos procuraram os meus e de repente eu estava perdida na escuridão dentro deles. – Você tem razão, eu posso continuar lutando. Eu devo fazer isso. Já tomei minha decisão, .
  – E o que decidiu? – sussurrei contra seu rosto.
  – Que é hora de tentar de novo. De me libertar dessas correntes – respondeu num sussurro. – E dessa vez estou disposto a fazer o possível e impossível para ser diferente.
  Eu queria ter dito algo para em seguida, tinha muita coisa em minha mente que eu gostaria de traduzir em palavras naquele instante. Contudo, não fui capaz. Seus lábios tocaram os meus no segundo seguinte, iniciando o beijo mais terno, intenso e envolvente que tive o prazer de receber. Como a água morna de uma terma que aquece. Um carinho que vai além do toque.
  Se fosse possível eu teria derretido naquele mesmo lugar, teria me desfeito como folhas ao vento enquanto meus dedos se embrenhavam em seus cabelos sedosos, me deixando levar por sua proximidade, por seu corpo contra o meu, por segundos preciosos enquanto a noite ia embora dando lugar ao crepúsculo.
  Senti o sangue correr mais rápido por todo o meu corpo e minha mente perdeu o foco de qualquer outra coisa que não fosse , do calor do seu toque contra mim, e quando ele afastou seu rosto do meu, apenas o suficiente para abrir os olhos e me observar por um momento rápido demais, me vi sem fôlego, perdida num caminho sem retorno.
  – Vou descobrir uma maneira de reverter o que sou – ele disse num rouco murmúrio. Uma promessa.
  – E como vai fazer isso?
  – Quem sabe com um pouco de sorte? – Seu sorriso se alargou mais enquanto arrastava a ponta dos dedos por meu rosto até dedilhar o lóbulo de minha orelha, exatamente onde os brincos de trevo de quatro folhas estavam colocados. Então num rápido movimento me deu um último beijo e começou a se afastar vagarosamente, a expressão conspiradora de quem guarda um grande segredo. – Depois de hoje você ainda se atreve a dizer que algo é impossível?
  Pega de surpresa, senti-me desamparada com a distância que ele tomava. Quis andar até ele, mas minha mente dizia que eu não devia e me mantinha imobilizada com os pés fixos no chão. Meu peito se apertou com uma súbita tristeza e meu coração pareceu perder uma batida conforme ele caminhava de costas para o rio, sem desviar seus olhos do meu.
  – Eu vou voltar, – ele garantiu firmemente. – E dessa vez vai ser diferente.
  Mais um passo para trás e antes sequer de eu poder soltar um grito para impedi-lo, esticar o braço para segurá-lo, já estava dentro da água, mergulhando fundo apenas para voltar a superfície nadando tranquilamente apesar da correnteza forte, sorrindo para mim como se isso não o incomodasse.
  – Fique de olho na lua cheia! – ele disse por fim e submergiu em meio a água barrenta.
  Com medo de que ele se afogasse por causa da velocidade do rio, me debrucei sobre a margem enlameada para estender a mão na água e trazê-lo de volta à superfície. Foi quando o sol irrompeu no horizonte e com a luz que se propagava com ele, simultaneamente outra veio debaixo da água e ofuscou minha visão completamente.
  De joelhos, piscando sem parar até enxergar com clareza novamente, senti minha pulsação acelerar enquanto o procurava. Não importava o que de fato fosse, ele não podia simplesmente evaporar. Não passamos por tanta coisa para você sumir assim!, quis gritar enfurecida para ele, como se minha raiva, de alguma forma, pudesse fazê-lo reaparecer magicamente à minha vista.
  Prestes a ser consumida pelo terror do seu desaparecimento, vi um chapéu vir por debaixo da água, alcançar a superfície e flutuar em minha direção. Prendi a respiração quando, logo ao seu lado, um boto cor de rosa apareceu exatamente onde meu amigo antes estivera e me encarou dócil, firmemente, quase como se me conhecesse.
  Tomada pelo susto, segurei o ar e não consegui me mexer. Eu conhecia aqueles olhos. Os mesmos olhos escuros e sugestivos que há três anos vinham me acompanhando; os mesmos olhos brilhantes que há tão pouco conseguiram mudar toda a minha percepção do mundo, que me levaram e me acompanharam pela maior aventura jamais imaginada. Que enxergaram minha alma, que literalmente mudaram minha vida.
  Pude jurar que a criatura sorriu para mim antes de desaparecer nas águas turvas e profundas com um único rápido movimento.
  Eu agarrei o acessório flutuante diante de mim com as mãos trêmulas e o entendimento clareou minha mente em apenas um segundo. Comecei a rir em meio ao nervosismo, olhando para o chapéu como se fosse a coisa mais fascinante que já pusera os olhos na vida, encontrando um bilhete manualmente escrito, perfeitamente seco, colado no interior do tecido. Meu caminho para casa estava escrito ali. Quando ele havia feito isso? Não importava.
  Desacreditada, soltei alguns risos fracos, piscando os olhos com força. Eu precisaria de muito para me acostumar com aquilo e com todo o resto que presenciara naquela noite.
  Coloquei o chapéu em minha cabeça com um aperto dentro do peito, baixei os olhos para o que um dia havia sido um vestido de noiva de festa junina e ri audivelmente dessa vez. Que belo dia de São Pedro havia sido esse.
  Ainda sorrindo, me levantei e soltei um suspiro, meus joelhos, canelas e palmas das mãos um tanto enlameados, grudados contra minha pele. Fitei o rio e o horizonte à minha frente, mas não havia mais nada se movendo além da própria água, e ainda assim…
  – , o boto – as palavras soaram estranhas em minha boca e acabei rindo sozinha novamente. De repente tudo fazia sentido, um belo trocadilho qual me lembrar. No fim, terminei por sussurrar para o vazio: – Vou esperar por você.
  E quando chegar a hora, completei mentalmente, estarei esperando pelo impossível acontecer.

Epílogo

  O lugar não era bonito ou aconchegante. Não havia sido projetado para provocar sensações boas ou calorosas naqueles que adentravam e permaneciam ali. Era escuro, e úmido, e ainda pior que o covil da Cuca. Mas Saci engoliu em seco e se obrigou a manter a postura, mesmo que todo o seu corpo quisesse tremer com a frieza do ambiente que impregnava até em seus ossos.
  Os dois homens parados, cada um ao lado do arco esculpido na pedra, sequer moveram suas mãos sobre as lanças afiadas e brilhantes ou baixaram o olhar para visualizá-lo. Seus rostos eram vazios de expressão, pintados de vermelho e preto com símbolos que o Menino-de-Uma-Perna-Só conhecia muito bem. Guerreiros. Preparados para seguir ordens, e fariam exatamente o que seu Mestre ordenasse. Até mais.
  Saci sentiu sua garganta fechar conforme o som agudo e enervante da rocha sendo arrastada por outros homens guerreiros reverberava pelo salão. Não existia porta separando aquela espécie de átrio, onde estava de pé e inquieto, da parte mais profunda da caverna. Quem decidisse entrar, ou sair, precisava ser autorizado. E enquanto isso não acontecia, o caminho era bloqueado pela rocha gigantesca, pesando toneladas, tão negra quanto basalto.
  A passagem se revelou pouco a pouco diante de si, e o ar, que já era diferente ali embaixo, pareceu se tornar ainda mais denso. Ácido. O menino jurou ter escutado choramingos vindo de algum canto, mas a escuridão nas bordas laterais era tão intensa que sua visão o traía e ele não sabia se era verdade ou se estava sendo enganado pelo medo que sentia.
  - Você pode seguir – uma senhora, de pele muito bronzeada, longos cabelos brancos e rosto marcado pela idade, disse após um instante, seus lábios franzidos pintados com urucum de uma forma que ele sabia que não era para embelezá-la. Significava apenas que era uma serva do Rei. Mais uma, dentre tantos.
  Ela se afastou até ser engolida pela negritude, e sequer sua respiração era possível de ser ouvida depois disso.
  O menino segurou seu gorro vermelho nas mãos e o retorceu, a pele suada sobre o pedaço de pano. Então avançou. Mais rápido do que talvez estivesse preparado, ainda que fosse um ritmo mais lento que o que seu coração batia.
  No final do largo salão sombrio estava o Rei. Sobre um elevado, em um trono grosseiro e quase disforme, forjado nas pedras negras daquela caverna, se sobressaindo na parca claridade. Apenas os membros inferiores do ser eram distinguíveis no breu. Seu rosto e seu torso estavam ocultos pelas sombras. Ou talvez as sombras se formassem dele.
  Rezava a lenda que o Grande Rei era o dono da escuridão. A comandava. Fazia parte dela. Era ela.
  Saci não sabia a verdade. Era uma história tão antiga quanto a Terra. Ninguém sequer sabia como a aparência daquele ser sentado nas pedras era de fato. Ou, ao menos, jamais sobrevivera para contar ao mundo. Mas de uma coisa o menino tinha certeza: agora, perante o Rei, quase podia sentir a pouca luz vinda das aberturas no teto ser engolida por sua presença.
  - Turusu. – Ele se curvou. O máximo que conseguia fazer, visto que possuía apenas uma perna.
  - Ajoelhe-se. – A voz grossa e imponente ecoou pelo salão.
  Saci ergueu os olhos para o rosto que não conseguia enxergar e franziu o cenho. Abriu e fechou a boca.
  - Meu Rei, eu não consi…
  - Tem coragem de desobedecer a uma ordem minha, diante de mim?
  O silêncio pesou sobre as costas do menino como se fosse algo tangível.
  Ele conhecia a história daqueles que não seguiam as ordens. Conhecia seu destino. E não queria ter o mesmo.
  Pressionando seus lábios grossos um no outro, tentando não soltar nenhum gemido ou grunhido pelo esforço, Saci dobrou sua única perna, apoiando o braço oposto ao membro que possuía, equilibrando seu corpo conforme ajoelhou e se prostrou diante do trono.
  - Turusu – ele repetiu. Grande. Um dos muitos nomes que o Rei possuía. Um dos muitos nomes que não era o seu verdadeiro. Outra coisa que havia se perdido na história do mundo. – Venho aqui, humildemente, pedir sua ajuda, meu Rei.
  - Poucos são aqueles que ousam vir até aqui pedir isso de mim – o ser respondeu. A pele de Saci se arrepiou com o tom impiedoso. – Conte-me. Deixe-me ouvi-lo, súdito.
  Primeiro Saci hesitou. Parte dele temia o fim daquela conversa. O resultado de sua última tentativa contra o erro que ele mesmo havia cometido. Mas a outra parte sabia que era também sua última chance de se libertar.
  Por isso, tremendo desde seu último fio de cabelo até a ponta do dedão do pé, ainda no chão, com a cabeça baixa, o menino explicou a história de Cuca. Os motivos que o influenciaram a seguir tal escolha e o acordo que fizeram em seguida. Como ela o havia enganado, exigindo sua servidão de agora em diante, e como aquilo ia contra as leis mais antigas que os governavam.
  Se o Rei decidisse tomar seu lado, poderia romper aquela magia que o ligava a Cuca, que mesmo proibida, antiga e muito difícil de ser executada, ainda era possível de ser feita por seres mais fortes. E mais cruéis.
  Turusu poderia castigá-la pelo atrevimento de mexer com o que era há tanto censurado e libertar o menino. Podia enxergar a inocência em Saci-Pererê e deixá-lo livre para fazer tudo aquilo que vinha fazendo desde os primórdios da existência, distante de problemas tão grandes como esse que havia se envolvido erroneamente.
  Ou, podia deixá-lo ser o bichinho de estimação daquele monstro para sempre. Seja lá quanto tempo isso durasse.
  Saci encostou a testa sobre o piso gelado. Sentiu gotas de água caírem sobre suas costas nuas. Pingos ritmados vindos das estalactites logo acima, permeando o teto onde as aberturas não irrompiam, e esperou, tentando manter a calma, enquanto seu soberano permanecia quieto e completamente atento.
  - Você quer que eu desfaça o laço? – A voz preencheu cada pedacinho do ambiente e pareceu alcançar até a alma do menino.
  - Sim, meu Rei.
  - E por que espera que eu faça isso por você?
  Saci abriu e fechou a boca mais uma vez, as palavras fugindo de sua língua. Seus dedos pressionaram mais firmemente a rocha gélida sob seu corpo, essa que parecia arrancar o calor de si como o vento de uma tempestade que arranca as folhas das árvores.
  - As leis antigas, Turusu, tenha misericórdia…
  - Mas você também quebrou as leis – o ser o relembrou. – quando decidiu mostrar sua verdadeira forma àquela humana.
  A boca do menino se encheu com o gosto amargo de ferro. O ar ficou mais pesado, mais frio, e as paredes pareceram se mover em sua direção, fechando-se sobre si.
  Demorou apenas um instante para Saci perceber que não eram as rochas se movendo. Eram as sombras.
  - Meu Rei…
  - Misericórdia, você disse. – Saci cambaleou até estar sentado sobre seu único calcanhar, jogando seu tronco para trás, tentando se afastar daquela massa negra que se movia como um animal incontrolável em sua frente. – Eu sou um ser misericordioso.
  Saci-Pererê sentiu seu coração pular contra seu peito em um ritmo anormal, a respiração se tornar áspera. O que aconteceria, o que seria dele ali embaixo, tão longe da superfície? Alguém se lembraria dele? Se importaria?
  O menino prendeu o ar em seus pulmões e fechou os olhos. O que quer que fosse acontecer, não queria gravar em sua mente.
  Entretanto, no mesmo instante aquela súbita movimentação parou tão rápido quanto havia começado.
  E o silêncio se ajustou.
  - Desfarei o laço – o Grande Rei disse de repente. O menino abriu os olhos e encarou o breu em completa perplexidade. – Você não será mais servo de Cuca. A partir de agora não estará mais conectado a ela.
  Demorou alguns segundos para que Saci entendesse o que aquilo significava e sentiu o estômago tremer de alívio. O riso quase escapando de seus lábios conforme, com muita dificuldade, se colocava de pé mais uma vez, equilibrando-se sobre sua única perna.
  Um susto. Tudo não havia se passado de um grande susto.
  Devolveu o gorro sobre seu cabelo crespo, piscando vezes seguidas, desembaçando a visão, mais calmo, o sorriso teimoso crescendo em seu rosto.
  Achou que seria engolido pelo ar. Achou que iria morrer.
  Mas Turusu era realmente Grande.
  - Meu Rei, eu não sei como agradecer... – o menino começou a dizer, a voz baixa demais, e o som morreu quando a gargalhada do ser escondido na escuridão preencheu todo o espaço e arrancou a alegria repentina de Saci, transformando-a em dúvida. – M-meu Rei?
  - Tolo – Turusu murmurou entre seu riso e as sombras densas do salão que ocultavam sua figura se juntaram às outras que se estendiam pelas extremidades, movendo-se em um turbilhão excessivo que tornou o ar rarefeito e derrubaram o menino com a visão avassaladora e destrutiva que formavam. – Você deixará de servir a ela, para servir a mim.
  - Meu soberano! – Saci tentou pronunciar, tentou protestar às palavras que eram ditas, mas a magia impregnava tudo e ele sentiu o poder agora se intrincando em sua alma. Não havia saída.
  O menino gritou de dor e gritou também pelo que viu. Um par de olhos ferozes e mortais entre as sombras, brilhando, o atormentando. Um sorriso atrevido, tão belo quanto grotesco se firmando em sua visão.
  - Você me deve servidão eterna, Saci – Turusu disse, se tornando maior, crescendo diante do menino como o monstro de um sonho ruim. Perverso. – Olho por olho. Dente por dente.
  Gritando, Saci sucumbiu ao breu e a dor, ao feitiço que o sobrepujava.
  Estava feito.
  Seu maior pesadelo começava agora.

Fim



Comentários da autora


Antes de fechar mais essa história, preciso fazer alguns agradecimentos, pois, afinal, são muitos apoiadores, e se não fossem essas pessoas maravilhosas, eu não teria chegado até aqui (clichê, eu sei. Porém, tudo verdade).
Belle Rangel: muito obrigada por lá em 2017 ter lançado aquele desafio maravilhoso! Não fosse ele, talvez essa história jamais tivesse sido escrita. E, se não fosse o resultado daquela competição saudável e super divertida, eu talvez jamais tivesse tido coragem de postar essa história finalmente.
Rafaella Barros, Maria Eduarda Batista e Leticia Martins: as críticas de vocês e a empolgação que tiveram, cada palavra serviu como um incentivo. Vocês leram e amaram, e eu amei proporcionar isso a todas vocês! Obrigada de coração.
Belle Castro: obrigada por ter me acompanhado em mais essa jornada. Minha parceira de crime! Eu amo poder ter ideias loucas e contar com você para desenvolver elas comigo. Obrigada por todos os últimos anos de parceria. Você é totalmente incrível! Luba: você é a melhor beta que alguém um dia pode sonhar em ter! Obrigada por tornar possível mais essa long ser postada aqui no site. De coração!
E por fim, queridos leitores: Obrigada por todos os comentários, visualizações, e por terem subido Reza a Lenda para o Top Fics e Ascenção aqui do EC. Não foi à toa que demorei três anos para postar essa história (me autossabotei muito no processo, confesso). Quem me conhece sabe que saí completamente da minha zona de conforto, pulando de cabeça em uma fantasia (meu gênero favorito de leitura), quando tudo o que já tinha escrito haviam sido romances e mais romances. Justamente por isso, foi um presente gigante ver Reza a Lenda crescendo cada dia um pouquinho mais, e sei que isso não teria sido possível sem vocês!
Meu coração se aquece por tudo isso.
Pra terminar: quem sabe não vem “Reza a Lenda II” daqui um tempinho? Deixem comentários aí embaixo, quero saber o que acham disso! Hahaha
E enquanto a próxima história/fanfic não vem, que tal aproveitar para ler alguns trabalhos mais antigos?

A Vida Volta a Seguir Seu Rumo (outros/finalizada) – Oneshot
Dear Diary (One Direction/finalizada) – Longfic
Don’t Go (outros/finalizada) – Oneshot Desafio Songfic 3ª temporada
I Want You In Every Single Way (outros/finalizada) – Oneshot
Me Ame ou Me Deixe (outros/finalizada) – Oneshot
My Best Crush Friend (outros/finalizada) – Oneshot
Oops, Baby, I Love You (outros/finalizada) – Oneshot Especial de Fim de Ano
O Que (Não) Me Resta (outros/finalizada) – Oneshot Desafio Songfic 9ª Temporada
Shameless (outras/finalizada) – Desafio Songfic 17ª Temporada
That’s Enough (outros/finalizada) – Oneshot
Uptown Girl (outros/finalizada) – Shortfic Desafio Songfic 1ª temporada
What a Wonderful Confusion (outros/finalizada) – Shortfic

Beijos e até a próxima :)
(Sempre tem uma próxima)