Quem diria
Escrito por Valentine Dellacour | Revisado por Mariana
Por Thais de Oliveira
Valentina era uma adolescente tranquila. No auge dos seus dezoito anos, moradora de Armação de Búzios – na região dos lagos fluminense – e herdeira da maior rede de hotelarias da região, era considerada uma garota de beleza ímpar. Dona de olhos azuis quase cinza, cabelos castanhos ondulados e pele bronzeada, possuía um corpo esbelto e proporcionalmente distribuído ao longo dos seus 1,80m de altura. Apesar de tudo, nunca foi do tipo popular; muito pelo contrário, tinha poucos amigos, mas estes eram leais e sinceros. Também era muito inteligente, gostava de estudar, ler, ouvir música e escrever. Passava uma boa parte de seu dia com papel e caneta na mão, escrevendo as mais loucas e românticas histórias que sua imaginação fosse capaz de produzir. Além disso, adorava fotografia e chegou a fazer inúmeros cursos na área, já pensando em se profissionalizar.
Tudo seguia muito bem na vida da garota até ela conhecer Rafael, um garoto normal, de cabelos e olhos castanhos e estatura mediana. Na verdade os dois não se viram cara a cara, pelo menos num primeiro momento; Rafael se interessou por Valentina e pediu a Henrique, um amigo em comum, que comentasse com a garota a respeito. A princípio ela não se importou muito, afinal, quem se interessaria por alguém como ela, que apesar dos olhos azuis tinha uma personalidade cheia de altos e baixos, além de pais rígidos, que a vigiavam e não deixavam que levasse uma vida normal? Porém, com o passar dos dias, através de Henrique, ela o foi conhecendo pouco a pouco e começou a se interessar, mesmo que tentasse disfarçar.
Um belo dia, enquanto ia para o colégio atrasada, Valentina teve uma surpresa: Rafael, apesar de muito tímido, tomou coragem e falou com ela pela primeira vez. Os dois foram conversando até o colégio dela e só pararam quando o sinal tocou, indicando que era hora da garota ir. Conversaram sobre vários assuntos, descobriram afinidades, trocaram informações e combinaram de irem juntos pra casa – o que não aconteceu, já que ela saiu mais tarde e não conseguiu chegar no horário combinado.
Cerca de uma semana depois, após exatos três meses nesse clima de paquera, o casal ficou pela primeira vez.
Flashback
- Er... Acho que é isso, então. – ela disse, tímida, ao parar em frente a sua casa.
- É. – ele disse, sorrindo sem graça.
- Olha, sábado, depois da prova do Enem, o pessoal tá querendo se encontrar no Posto 6 pra beber alguma coisa, relaxar e tal. Se você quiser aparecer, vai ser bem legal.
- Aham. Se der eu apareço por lá. – ele disse e um silêncio se instalou. Diante disso, Rafael percebeu que era hora de agir e a beijou.
Fim do Flashback
Era ali o começo de uma bela história, que duraria cerca de três meses e terminaria por conta da insegurança da garota, que tinha medo de se apaixonar e sofrer, como nas outras vezes. O que ela não podia imaginar é que já era tarde demais. Valentina se apaixonou perdidamente por Rafael e não sabia como lidar com isso, era algo novo, contra o qual era difícil lutar.
Durante os primeiros meses, ter terminado o namoro pareceu a decisão mais acertada, visto quê, segundo havia dito à Rafael quando terminaram, teria que estudar de quatro a oito horas por dia para o vestibular de Engenharia Química, só quê, após algum tempo, ela percebeu que estava enganada. Até tentou esquecê-lo, ignorá-lo e seguir com a vida, mas o que sentia era muito mais forte. Foi pensando assim que decidiu tentar reconquistá-lo. Por ser muito tímida, escreveu uma carta dizendo ao garoto tudo o que se passava em seu coração, porém, não teve coragem de entregá-la, por achar que ele não se importava mais com ela – haviam se passado quatro meses e Rafael se mostrava indiferente.
Por algum tempo Valentina seguiu com a vida: Fazia cursos de Inglês e Informática duas vezes por semana, frequentava um cursinho pré-vestibular aos sábados e nas horas vagas se dedicava à escrita, quando colocava sua imaginação para funcionar em histórias com os mais diversos finais. Sua mãe algumas vezes implicava por causa disso, mas a garota não se importava; escrever era como terapia e ela preferia estar em um mundo só dela, em que podia ser o que quisesse, a encarar o mundo real, difícil e cruel. Apesar de tudo, a imagem de Rafael não lhe saia da cabeça, mesmo que se mantivesse ocupada o tempo inteiro para não pensar nele.
Um dia, quando voltava para casa depois de duas longas horas no curso de Informática, Valentina teve uma surpresa que mudaria sua existência, talvez para sempre. Sua tia Monica, que morava nos EUA e raramente vinha ao Brasil, apareceu para uma visita.
- TÔ AQUI NA COZINHA. VEM CÁ! – Natalie, mãe de Valentina, gritou e ela foi até a cozinha encontrando, além da mãe, a tia.
- Tia Monica? O que está fazendo aqui? – ela perguntou, confusa.
- Oi Nina, como você está, minha princesinha? – Monica perguntou, puxando a sobrinha para um abraço.
- Bem, e a senhora?
- Eu estou ótima. É muito bom te ver, está cada vez mais linda.
- Obrigada. – Valentina disse, envergonhada. – Er... Desculpa perguntar, mas aconteceu alguma coisa? A senhora quase nunca vem pra cá.
- Na verdade, sim.
- O que foi? O tio Mark e a prima Debbie estão bem?
- Estão todos bem. Eu vim aqui para te fazer uma proposta.
- Proposta? Que tipo de proposta?
- Você gostaria de passar um tempo comigo nos EUA? Sua mãe me disse que você se forma no curso de Inglês daqui a algumas semanas e eu acho que seria excelente para a sua formação profissional passar um tempo lá, praticando e aprendendo um pouco mais.
- E quando seria essa viagem?
- Talvez no dia seguinte a sua formatura. – Natalie disse.
- Mas eu nem tenho visto, não tirei passaporte nem nada.
- Nós já agendamos tudo e você tem que estar no Departamento da Polícia Federal no centro do Rio às 11h do próximo sábado. Em seguida, nós vamos até a embaixada dos EUA para a sua entrevista.
- Como assim? Sábado eu tenho aula o dia inteiro e não posso ficar faltando assim, sem mais nem menos! – a garota disse, surpresa.
- Valentina, de que adianta essa sua preocupação? Se tudo der certo nós vamos embora daqui a algumas semanas, sua faculdade vai ser nos EUA. – Monica disse.
- E quem falou que eu já decidi? Desculpa, tia, mas você me pegou de surpresa, preciso de um tempo para pensar.
- Você não está entendendo, meu amor. Você vai para os EUA com a sua tia, querendo ou não. – Natalie se intrometeu, frisando bem o verbo ir.
- Como é que é? Mãe, o que você pensa que está fazendo? Acha que só porque a gente mora sob o mesmo teto tem o direito de decidir por mim? Sinto te desapontar, mas você NÃO MANDA EM MIM!
- Não interessa. Você pode gritar, espernear, fazer pirraça, que eu não vou voltar atrás.
- Por que isso agora, hein? Até então estava tudo na mais perfeita ordem e de repente a tia Monica aparece, sem mais nem menos, querendo me levar pra morar com ela. Ah, e a minha mãe diz que eu não tenho escolha. Será que vocês não percebem que eu não sou mais uma criança e tenho todo o direito de decidir o que faço ou não da minha vida? – Valentina perguntou, irritada.
- Acontece que ultimamente a senhorita está muito mudada, não é mais a garota que nós conhecíamos, e tudo por causa daquele moleque. – Natalie disse, com raiva, ao se referir a Rafael.
- Então é isso? Quer me mandar pra fora do país por causa de uma implicância ridícula com o Rafael? Mãe, quantas vezes eu vou ter que te dizer que a gente terminou?
- Mas eu vi vocês conversando outro dia e não parecia que eram só conhecidos.
- Na boa, desisto de tentar conversar contigo. Quando resolver se comportar como uma mãe de verdade, me avisa. – Valentina disse e ameaçou deixar a cozinha.
- Valentina, espera. Antes que você vá para o seu quarto, um aviso: Se prepare, porque querendo ou não, você vai para os EUA. Sua vaga no curso de Medicina na Universidade da Califórnia em Los Angeles está garantida e nós não vamos deixá-la perder esta oportunidade.
- O que quer dizer com isso?
- O que você entendeu: Vai morar com a sua tia e estudar Medicina na Universidade para a qual ela trabalha.
- EU TE ODEIO, NATALIE BITTENCOURT! – Valentina gritou, antes de sair correndo em direção ao seu quarto.
Ao chegar ao cômodo, Valentina liberou as lágrimas que haviam se formado no caminho até lá. Como assim, sua mãe a mandaria para os EUA com a tia para estudar Medicina? E tudo por conta de uma implicância sem nenhum fundamento com Rafael, sendo que sequer estavam juntos? Não, isso ela não podia aceitar. Resolveu então conversar com seu pai, talvez ele não concordasse com essa ideia maluca da mãe e até convencesse-a a desistir de obrigá-la a estudar algo que detestava. Esperou que Armando chegasse do trabalho e foi conversar com ele, porém, diferente do que havia imaginado, seu pai manteve a decisão de sua mãe, argumentando que ela ainda dependia deles e por isso teria que obedecê-los.
Mais ou menos um mês depois, quando terminou o curso de Inglês, Valentina arrumou as malas e se preparou para a não esperada mudança para os EUA. Para a festa de despedida, reuniu os amigos do colégio – que há muito não via –, os parentes mais próximos, os professores e colegas do cursinho pré-vestibular, além de alguns amigos do curso de Inglês. A festa foi no clube em que era sócia e contou com a participação de um DJ famoso na cidade. Um Buffet foi contratado para servir os mais variados pratos – desde hambúrgueres e batatas-fritas até comida japonesa – e um mini bar foi montado para servir drinks aos convidados. Por algum tempo todos comeram e se divertiram, até que a hora das despedidas chegou. Valentina falou com cada um ali presente, abraçou os mais chegados e foi para o aeroporto Antonio Carlos Jobim com os pais, Monica e Lauren, sua melhor amiga. Contudo, antes de partir, tomou coragem e foi até a casa de Rafael, entregando a ele a carta que havia escrito cerca de quatro meses antes. Escolheu esse momento porque talvez não o visse por algum tempo e queria que ele soubesse de seus sentimentos. Também aproveitou e roubou um beijo do garoto, pra ter do que se lembrar quando a saudade batesse. Dessa forma, embarcou para os EUA, rumo a uma nova vida.
Assim que Valentina foi embora, Rafael se trancou em seu quarto, colocou seu CD preferido pra tocar, pegou a carta e a leu. Nela continham as seguintes palavras:
“Talvez eu esteja escrevendo algumas das palavras mais difíceis da minha vida...
Eu não sei exatamente porque estou fazendo isso, mas é o que o meu coração está pedindo nesse momento. Ultimamente minha cabeça está confusa, trabalhando muito rápido na tentativa frustrada de entender o que está acontecendo comigo. Eu ando perdendo o sono e não é por conta de uma noite na internet, como talvez você tenha imaginado, e quando consigo dormir, sonho contigo. Às vezes você é um desconhecido, às vezes é o cara que está comigo ou o que eu estou tentando ter de volta. Sabe, não acho que esses sonhos estejam completamente errados. Tentar te ter de volta e estar contigo são duas coisas que têm estado na minha cabeça constantemente.
Acho que posso estar sendo uma idiota ao escrever essa carta, mas eu queria que você soubesse que me importo e sinto muito a sua falta. Esse tempo que passamos separados – por uma situação que eu mesma provoquei, diga-se de passagem – serviu para me mostrar que eu estava errada sobre muitas coisas e estou disposta a arriscar um fora só pra não perder essa oportunidade.
Apesar de ter ficado com poucos caras – e você sabe sobre todos eles, porque eu te falei sobre um por um na primeira vez em que conversamos em frente à minha casa – você foi o mais importante. Por quê? A resposta é simples e até clichê: Quando estava contigo eu era eu mesma, sem nenhum receio; para você eu contei algumas das ideias mais idiotas que eu tenho sem aquele medo de parecer uma boba, juntos fizemos uma aposta que nunca saiu da imaginação – nós dois fazendo aula de guitarra, lembra? E eu ia tocar melhor que você! –; aprendi a não torcer o nariz pra música pesada... Enfim, uma série de coisas sobre as quais eu me pego pensando diariamente.
Não sei se você se lembra daquele sábado em que ficamos na praça conversando por horas a fio após o Pré-Vestibular. Naquele dia, depois que cheguei em casa, fiquei pensando em como foi bom conversar contigo, em como eu me senti feliz por isso ter acontecido. Quando você me abraçou, na hora de se despedir, eu vi que aquele abraço foi verdadeiro e percebi o quanto senti falta dele. Senti falta do seu abraço, de conversar contigo sobre as coisas mais legais e toscas, de perceber que ia começar a chover só porque a gente se encontrou, de ser apresentada aos teus amigos, de fazer parte da sua vida e poder te ajudar de alguma forma.
Termino essa carta com um trecho da música “Painting Flowers”, da banda All Time Low. Acho que essa canção, de certa forma, resume o que eu tentei te dizer ao longo dessa página.
‘Jogo minhas cartas, te dou meu coração. Queria que nós pudéssemos começar de novo. Nada faz sentido, tento abrir meus olhos. Estou esperando por uma chance pra fazer isso certo. Quando eu acordo, o sonho ainda não acabou. Eu quero ver seu rosto e saber que cheguei em casa. Se nada é real, o que mais posso fazer? Ainda continuo pintando flores pra você.’
Valentina, em 05/04/2009
P.S. (em 15/08): Oi Rafael. Quando você estiver lendo esta mensagem é provável que eu esteja bem longe daqui, talvez até já tenha chego aos EUA – minha mãe resolveu me mandar pra lá para estudar Medicina na UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles) e morar com a tia Monica. De qualquer forma, me desculpa por não ter tido coragem de te entregar essa carta antes; se tivesse feito isso, as coisas seriam bem diferentes. O que eu quero dizer é que sinto muito por ter terminado contigo, e aproveitar a oportunidade pra te falar o real motivo do fim do nosso namoro. Não foi porque eu teria que passar horas e horas estudando para o vestibular, como havia dito.
A verdade é que eu estava realmente me apaixonando e tinha medo de sofrer mais uma vez, tinha medo de gostar demais de você e não ser correspondida. O mais engraçado é que algumas horas depois de ter terminado contigo, o George – aquele meu amigo que você conheceu no Carnaval, alto, loiro, de olhos castanhos e super engraçado – me ligou, perguntando como nós estávamos e dizendo que eu era uma garota de sorte por ter te encontrado. Disse ainda que você gostava muito de mim e estava super feliz por estar comigo.
Depois dessa, só me resta te pedir perdão por ter sido burra ao ponto de não perceber o que estava na minha cara, e por ser covarde o suficiente para não ter te dito tudo enquanto havia tempo. Porém, saiba que apesar dos pesares eu vou guardar o que vivemos pra sempre; prometo que, se um dia a gente se encontrar e tiver uma nova chance, vou fazer tudo valer a pena, não te deixarei escapar tão fácil. Fica com Deus e promete que nunca vai me esquecer? Até qualquer dia.”
Rafael terminou de ler com um sorriso no rosto e de repente começou a rir descontroladamente, chamando a atenção de sua mãe, que apareceu no quarto e perguntou o porquê da gargalhada do filho. Ele apenas murmurou um “nada” e ela voltou aos seus afazeres. Quando se acalmou, o garoto disse, em voz baixa:
- Valentina, sua burra, por que não me falou isso antes? Teria evitado tanto sofrimento... Pelo menos eu sei que você não terminou comigo por causa de uma faculdade idiota que sequer vai cursar. Agora, uma coisa é certa: A gente vai se encontrar algum dia e vai ser muito feliz, eu te prometo.
E assim os dias se passaram. Quando chegou aos EUA, Valentina sentiu certa dificuldade de adaptação, apesar de já saber mais ou menos como era o estilo de vida dos americanos, porém, com o tempo, as coisas foram entrando nos eixos. Matriculou-se num curso de Inglês, foi obrigada a frequentar o curso de Medicina na UCLA e nas horas vagas acompanhava a prima Debbie ao trabalho do pai, que era produtor musical em uma grande gravadora. Com isso, conheceu muitas pessoas – desde bandas de garagem querendo uma oportunidade até astros do rock, com carreiras sólidas e milhares de fãs ao redor do mundo.
Enquanto isso, Rafael terminava seu curso técnico de Manutenção em vagões no Senai, além do Ensino Médio, e sonhava em tocar pelo mundo com sua banda de rock. O garoto tocava guitarra e se uniu a três amigos para “fazer um som”, como ele mesmo dizia. A banda, que se chamava Perdidos na Madruga e tocava covers, passou a ter suas próprias composições e os garotos perceberam que era hora de tentar uma coisa mais séria. Ensaiaram bastante, gravaram uma das musicas e postaram em sua pagina no My Space e no YouTube, esperando que alguém importante a ouvisse e se interessasse. Aguardaram pacientemente por seis meses, achando que alguma coisa aconteceria; como o resultado foi o oposto do esperado, desistiram e cada um seguiu seu rumo. Com isso, os pensamentos do guitarrista raramente eram direcionados à ex-namorada.
Ao contrário de Rafael, que procurava um rumo, Valentina fez o caminho inverso. Ficou amiga de uma famosa banda de rock e largou a faculdade para se tornar a fotógrafa oficial, acompanhando seus integrantes a todos os lugares: Festas, shows, gravações na TV, premiações e até mesmo ensaios diários. Por conta dessa mudança repentina, teve que adequar o visual ao novo estilo de vida, deixando de lado as habituais sandálias rasteiras e vestidos românticos e substituindo-os por calças jeans de marcas famosas, blusas decotadas e saltos altos. Os cabelos também passaram por uma transformação drástica, indo de castanhos e compridos para loiros e curtos, agradando a todos, principalmente à banda e ao time masculino da equipe de produção – os rapazes alegavam que, depois de toda essa modificação no visual da garota, o rosto de menina deu lugar à aparência de uma mulher, daquelas que param o trânsito quando passam, o que a deixou bem feliz.
Seis meses mais tarde, quando já havia se tornado a queridinha da equipe e da própria banda The Glory of Evil, Valentina surpreendeu a todos, principalmente seus pais e tios, ao iniciar um turbulento relacionamento com Caleb Harris, o vocalista. O casal se aproximou durante uma turnê pela Europa e o romance aconteceu de forma natural, fazendo com que a garota se esquecesse do ex-namorado. O que tornava o relacionamento meio tumultuado era o ciúme excessivo de Caleb, que detestava a amizade de Valentina com os outros integrantes, em especial com o baterista Nathan Scott. Na cabeça dele, ela lhe devia exclusividade e queria a garota por perto o tempo inteiro, deixando-a completamente irritada em alguns momentos. Às vezes o que ela mais queria era se isolar, voltar para casa e passar uma tarde com a melhor amiga vendo filmes e fazendo compras.
Com o passar dos dias as coisas foram piorando para a garota que, ao assumir o romance com o líder da banda, passou a viver sob os holofotes da fama, sendo cada vez mais cobrada pela imprensa e pelo próprio namorado, que exigia que ela estivesse sempre em dia com a aparência, se mantendo magra e linda. O que ninguém sabia é que fazendo isso estavam trazendo à tona um mal que a assolava desde muito tempo atrás: a anorexia.
Tudo começou por volta de 2002, quando Valentina tinha 12 anos e cursava a quinta serie do Ensino Fundamental. Mesmo sendo magra por natureza, era chamada dos mais diversos e maldosos apelidos pelos colegas, sentindo-se humilhada e rejeitada; em casa, sua mãe a cobrava diariamente, exigindo que ela se mantivesse esbelta e bonita, afinal, o que as pessoas pensariam se vissem a filha de Natalie Bittencourt gorda e feia? A menina, cansada de tanto ouvir as recomendações da mãe e os apelidos de mau gosto na escola, começou a ficar paranóica e iniciou uma exaustiva busca por regimes que prometiam verdadeiros milagres na internet. Experimentou muitos deles, mas nenhum surtiu efeito; sendo assim, decidiu parar de comer.
De maneira gradativa e sem que ninguém percebesse, a garota foi cortando de sua dieta os alimentos que “engordam” e começou a contar as calorias de tudo o que consumia. Depois, passou a se alimentar esporadicamente. Toda vez que se olhava no espelho, a imagem que via era a de uma pessoa gorda que precisava, a todo custo, perder peso. Além disso, nunca se alimentava na frente da família, o que era bem fácil, visto que os pais trabalhavam fora e era filha única; quando isso acontecia comia pouco, comportamento considerado normal por todos com quem convivia.
Durante algum tempo as coisas seguiram nesse ritmo, porém, numa noite comum, após um dia inteiro com apenas uma maçã no estômago, Valentina desmaiou e foi levada ao hospital, onde, após alguns exames, foi constatado que estava com anemia profunda. Seus pais, sem entender nada, decidiram conversar com o pediatra da garota e ele os alertou sobre uma possível causa para a anemia.
- Doutor Miguel, o que pode ter ocasionado essa anemia? – Armando perguntou, quando ele e Natalie se encontravam no consultório do médico.
- Bom, pelo que eu pude perceber a filha de vocês não anda se alimentando muito bem. Por acaso ela tem sofrido alguma pressão psicológica?
- Como assim?
- É muito comum que adolescentes na idade da Valentina não se alimentem de forma correta quando estão sob algum tipo de pressão psicológica, principalmente em relação ao peso e á imagem corporal. Hoje em dia, com a internet e outros meios de comunicação, a beleza e o culto ao corpo magro se tornaram as principais causas para o aumento dos transtornos alimentares em adolescentes e jovens adultos.
- O senhor está querendo dizer que a minha filha está com algum transtorno alimentar? – Natalie questionou um tanto assustada.
- Olha, eu não posso afirmar com toda a certeza, já que a anemia tem inúmeras causas, mas desde a ultima consulta a Valentina teve uma perda de peso significativa e o Índice de Massa Corporal dela está em 13.77, muito abaixo do ideal, que é 18.
- E o que nós podemos fazer para ter certeza?
- Primeiro de tudo, levem-na a um psiquiatra. Ele vai poder diagnosticar a doença e até prescrever uma medicação se for constatado que ela desenvolveu um quadro de depressão, o que é muito comum em pessoas com transtornos de alimentação. Em seguida, é bom que ela comece a fazer tratamento com um psicólogo e uma nutricionista.
- Por quê? – Armando perguntou.
- A Terapia Cognitivo-Comportamental é importante para ajudá-la a perceber o problema, a entender os motivos que a levaram a desenvolver o transtorno alimentar e a encará-lo. De que maneira isso ocorre? Através da diminuição da restrição alimentar, ou seja, ela vai reaprender a se alimentar regularmente e comer certos alimentos que deixou de lado por conta do medo de engordar. Além disso, é feita uma abordagem do distúrbio da imagem corporal e da auto-estima, cujo objetivo é fazer com que a paciente tenha capacidade de se ver da forma como realmente é, que ela se aceite e veja que para estar bem não precisa ser dependente de uma boa aparência ou um corpo magro.
- E onde entra a nutricionista nesse tratamento?
- Ela vai ajudar na reabilitação alimentar e recuperação do peso, indicando a dieta que mais se adapte ao caso da Valentina, além de monitorar o gasto calórico que ela possa vir a ter com a prática de exercícios físicos.
- O tratamento pode começar quando?
- A Valentina vai ter alta amanhã de manhã e eu sugiro que vocês procurem um psiquiatra imediatamente. No estado em que ela se encontra, quanto mais rápido o tratamento for iniciado, melhor.
- Ok doutor, muito obrigado pelos esclarecimentos. Tomaremos as devidas providências e assim que tivermos alguma noticia, entraremos em contato. – Armando disse, levantando-se.
- Não precisa agradecer, Armando. Quando precisarem, estou à disposição. – doutor Miguel disse e os dois se retiraram, Natalie ainda em choque pelo que havia acabado de ouvir.
No dia seguinte, como previsto, a garota teve alta do hospital e foi, imediatamente, a sua primeira consulta com o psiquiatra. No consultório, após uma longa conversa, o diagnóstico foi o esperado: Anorexia nervosa.
- Vocês só podem estar ficando doidos. Eu, com anorexia? – Valentina disse, nervosa.
- Sim. Eu sei que pode ser difícil pra você aceitar logo de cara o problema, mas é preciso que entenda e perceba que quanto mais cedo iniciarmos o tratamento, maior a sua chance de recuperação. – Dr. Lúcio disse.
- Eu sei, acontece que eu não estou doente. Tudo bem que eu posso estar um pouco magra, mas...
- Um pouco magra? Minha filha, o seu Índice de Massa Corporal está em 13.77! – Natalie a interrompeu, irritada.
- E daí? O que tem isso?
- O que tem é que o normal é estar em 18. Você tem que aceitar que está doente e parar de achar que nós estamos inventando esse problema pra te prejudicar.
- Mãe, pelo amor de Deus, você mesma vive dizendo que eu tenho que estar magra e bem arrumada o tempo inteiro! Não me venha com essa de que eu tenho anorexia e preciso me tratar.
- Valentina, por favor, ouça o que o Dr. Lúcio tem a dizer. – Armando pediu e a consulta prosseguiu de maneira um pouco mais tranquila, com a garota ainda um pouco revoltada pelo diagnóstico do psiquiatra, que após uma investigação detalhada, acabou por receitar um antidepressivo e indicou a Terapia Cognitivo-Comportamental como tratamento para o caso dela.
Alguns dias depois, como recomendado por Dr. Lúcio, foi à psicóloga a contragosto. Achava que todos, incluindo sua melhor amiga Lauren, estavam ficando loucos ao dizer que ela estava com anorexia nervosa. Em sua cabeça, não via problema algum em se preocupar com o corpo, em querer estar magra. Porem, como seu pai insistiu muito, acabou indo e se surpreendeu ao gostar de conversar com a médica, que lhe pareceu tranquila e se mostrou uma pessoa segura, em quem poderia confiar.
O próximo passo foi procurar uma nutricionista, esta tida como a pior parte por Valentina, que detestava seguir regras, principalmente com relação à alimentação. A doutora Patrícia, responsável por sua reeducação alimentar, lhe passou uma dieta que incluía carboidratos, alimentos que continham ferro, proteínas, vitaminas e outros importantes nutrientes que ela havia deixado de ingerir por conta da anorexia. A princípio ela detestou a dieta e deu um jeito de driblá-la, comendo só uma garfada e dando o restante para o cachorro, porém, sua empregada descobriu e contou a Natalie, que para garantir a segurança da filha, passou a fazer todas as refeições em casa, não levantando da mesa enquanto ela não terminasse de comer.
Por alguns meses, Valentina demonstrou certa resistência quanto ao fato de que estava doente e precisava de tratamento; comia o que lhe era mandado por obrigação, fingia que tomava o antidepressivo receitado pelo psiquiatra e sempre encontrava um jeito de sabotar o tratamento, mas com o passar do tempo e as conversas com a psicóloga, foi conseguindo aceitar a ideia e a terapia começou a fazer efeito, obtendo resultados significativos e a longo prazo. Sendo assim, alguns anos se passaram sem que ela apresentasse mais problemas com a alimentação.
Com a mudança para os EUA e o namoro com Caleb Harris, porém, a doença voltou, e dessa vez com um agravante: o álcool. Por ser uma banda mundialmente conhecida, a The Glory of Evil era presença certa nas mais diversas e badaladas festas do meio artístico. Valentina, por tabela, acabava indo também e enchia a cara, juntamente com o namorado e os outros integrantes. No inicio ela bebia apenas para se divertir; com o tempo, além de não comer, passou a ingerir bebidas alcoólicas no lugar das refeições, achando que dessa forma se manteria no peso ideal, sem causar maiores problemas. O que ela não sabia é que fazendo isso só estava piorando sua saúde.
Um belo dia, depois de beber todas numa festa, Valentina passou mal e foi levada ao hospital, onde foi diagnosticada com pancreatite aguda pelo médico plantonista. Nesse momento, Nathan, o único que realmente se preocupava, ligou para Lauren e a avisou sobre o ocorrido. Desesperada, foi até a residência dos Bittencourt para avisá-los sobre o estado de saúde da amiga. No meio do caminho, sem querer, encontrou Rafael.
- Ei Lauren. Está tudo bem? – perguntou, ao perceber o estado em que a garota se encontrava.
- Eu não posso falar agora, a Nina está muito mal no hospital e eu preciso avisar aos pais dela. – ela disse, continuando seu trajeto.
- Como assim? O que foi que aconteceu? – tornou a perguntar, impedindo Lauren de prosseguir ao pegar seu pulso direito com força.
- Será que dava pra me soltar? Caso não tenha percebido, ainda tenho que falar com os pais da Valentina sobre o estado de saúde dela. – ela disse, sem a menor paciência.
- Então me diz o que está acontecendo.
- É uma longa história, acho melhor você vir comigo e eu conto de uma vez só.
- Ok. – os dois seguiram para a residência dos pais de Valentina e, ao chegarem, encontraram Natalie e Armando na sala, vendo TV. Quando os viu, Natalie imediatamente mudou a expressão facial, que até então era de felicidade, por conta da presença de Rafael.
- Lauren, o que esse garoto está fazendo aqui? – ela perguntou, irritada.
- Tia, por favor, eu sei que a senhora não gosta do Rafael, mas agora não é hora para implicâncias, temos algo muito mais sério com que nos preocupar. – ela disse, limpando as lágrimas que teimavam em cair.
- Por quê? O que aconteceu? – Armando perguntou, impedindo que a mulher continuasse a implicar com o rapaz.
- A Nina passou mal e...
- Meu Deus, como ela está? Quero ir para lá agora mesmo! – Natalie disse, desesperada.
- Calma, vai ficar tudo bem. O Nathan disse que o estado de saúde dela não é dos melhores, mas está sob os cuidados de uma equipe muito competente. Nesse momento nós vamos ter que ser fortes, principalmente por ela.
- Quem é Nathan? Como ele sabe sobre a minha filha?
- Natalie, isso não importa agora! – o marido a repreendeu.
- Como não importa? É da nossa filha que estamos falando!
- Lauren, o que aconteceu, exatamente? – Armando perguntou, ignorando a esposa.
- Olha tio, pelo que o Nate disse, ela está com um quadro grave de pancreatite aguda. Parece que nos últimos meses a Nina andou tendo problemas com a alimentação por conta da pressão que surgiu por ela ser namorada do líder da banda. Ele me contou que o Caleb é o tipo de cara que exige que as namoradas estejam sempre lindas e magras e a imprensa, já sabendo disso, se aproveitou do fato da Valentina ter engordado alguns míseros quilos para sair por aí falando mal do casal. Com isso vocês já sabem o que aconteceu, não é? Ela achou que estava enorme de gorda e parou de comer, como nas outras vezes. O problema é que dessa vez ela começou a trocar a comida por bebidas alcoólicas e o pâncreas não aguentou. – a garota terminou de dizer, secando as ultimas lagrimas que ainda teimavam em cair.
- Não, isso não está acontecendo! Minha filha não pode estar doente de novo! – Natalie disse, desesperada, e abraçou o marido.
- Do que vocês estão falando? – Rafael, que até o momento estava em silêncio, perguntou.
- É uma longa história, mas eu vou tentar resumi-la: A Nina teve anorexia na adolescência e passou por uma série de tratamentos até ter alta. Com essa história do namoro com o Caleb, parece que tudo está vindo à tona novamente. – Lauren explicou.
- Meu Deus! Como eu nunca soube disso?
- A Nina é muito discreta com relação a esse problema, só mesmo eu e algumas poucas pessoas sabemos que ela tem esse transtorno alimentar. Mas agora isso não importa, temos que ir pra lá o mais rápido possível, antes que aquele irresponsável do namorado dela faça alguma coisa.
- Lauren, você se importa de ligar para a companhia aérea e remarcar nossas passagens para amanhã? Não estou em condições de fazê-lo no momento. – Armando perguntou, com Natalie ainda em choque abraçada a ele.
- Claro que não, tio. Assim que eu conseguir, te aviso. Rafael, vamos?
- Sim. – ele disse, ainda meio incrédulo e os dois se retiraram da residência dos Bittencourt, indo cada um para sua casa.
Rafael, ao chegar em casa, se trancou no quarto e pôs-se a pensar em tudo o que ele e Valentina viveram, todos os momentos que passaram juntos, todas as risadas que deram, todos os beijos, os presentes trocados em datas não-comemorativas... Foi aí que se sentiu culpado, já que nunca mais pensou nela desde que partiu; agora ela precisava de ajuda e ele sequer podia ajudar. E ainda tinha Mariana, a atual namorada. Garota loira, de olhos castanhos e corpo escultural, chamou sua atenção desde a primeira vez em que se viram, em um show da banda Iron Maiden. Os dois trocaram olhares durante a noite inteira e, quase no fim da balada, Mariana foi falar com ele – a ficada aconteceu na mesma hora e algumas semanas depois estavam namorando.
Enquanto isso, Natalie, Armando e Lauren se preparavam para a viagem aos EUA. A intenção do trio era viajar dali a algumas semanas, mas devido ao problema de saúde de Valentina decidiram adiantar a data de embarque. Com as malas prontas, partiram para o aeroporto Antonio Carlos Jobim rumo a Los Angeles, na Califórnia. Passados quarenta minutos desde que chegaram e fizeram o check-in, o avião decolou, chegando ao seu local de destino cerca de cinco horas mais tarde.
Ao desembarcarem, pegaram suas bagagens e foram imediatamente para o Hospital Central, onde a garota estava internada. Ao chegarem, encontraram Nathan, Monica, Debbie e Mark na sala de espera. Não demorou muito e o médico responsável pelo tratamento de Valentina chegou, avisando-os que o estado de saúde dela já não era tão grave e a infecção foi controlada; em alguns instantes ela iria para o quarto e poderiam vê-la, o que deixou a todos mais tranquilos.
No dia seguinte, após uma noite de sono sossegado, Valentina acordou e viu os pais, tios, a melhor amiga e Nathan no quarto, conversando baixo entre si.
- Onde eu estou? Por que vocês estão aqui? – ela perguntou, ainda sonolenta.
- Você está num hospital, meu amor. – Natalie disse, carinhosa, e foi abraçar a filha, juntamente com Armando e Lauren.
- E o que aconteceu pra eu estar aqui?
- A senhorita teve uma crise de pancreatite aguda por causa da bebedeira de anteontem. – Nathan disse, sério.
- Crise de quê?
- Pancreatite aguda, é um nome feio que os médicos usam para dizer que o pâncreas está comendo a ele mesmo.
- Ah ta, e o que vocês três estão fazendo aqui? Vieram do Brasil só pra me ver nesse estado? Eu devo estar horrível! – Valentina disse, em tom brincalhão.
- Claro, minha filha. Você não achou que nós iríamos ficar em casa, de braços cruzados, enquanto você estava aqui passando mal, achou? Nós podemos não ser os melhores pais do mundo, mas ainda nos preocupamos contigo, mesmo quando faz um monte de burradas por aí. – Armando disse, sorrindo.
- Tio Armando está certo. Você pode ser uma antinha, aprontar por aí afora, estar com um visual super diferente, mas ainda é a nossa Nina, jamais te deixaríamos passar por essa sozinha. – Lauren completou.
- Own gente, assim vocês vão me fazer chorar. – Valentina disse, com os olhos marejados.
- Ah bebê da mamãe, não chora não, se não eu vou chorar também. – Natalie fez todos rirem.
- Então tá, não vou chorar. Agora, alguém pode dizer onde está o meu namorado? Era pra ele estar aqui.
- Er... O Caleb foi pra casa do Falcon e ainda não voltou. – Nathan disse, envergonhado.
- O que ele foi fazer lá?
- Ontem foi aniversário do nosso querido guitarrista, esqueceu? Pra comemorar ele foi com o resto da banda numa boate e depois iriam dormir lá.
- Como é que é? O Caleb me deixou aqui, nesse estado, pra se divertir com o Falcon e o Elliot numa boate cheia de garotas e bebidas? Quero falar com ele agora! – Valentina disse, extremamente irritada.
- Sinto muito, mas o celular dele está fora de área.
- Prima, por que você não deixa esse garoto de lado e curte a sua família um pouquinho? – Debbie, que até então estava quieta, sugeriu.
- Boa ideia, Debbie. Gente, quero todo mundo aqui em volta de mim, me paparicando. – nisso, o celular de Lauren tocou. Era Rafael, querendo saber notícias da garota.
- Nina, telefone pra você. – Lauren disse, entregando-a o aparelho.
- Quem é? – perguntou.
- Atenda e você vai descobrir.
“Hello.” – Valentina disse, em inglês.
“Valentina?” – Rafael perguntou.
“É ela. Quem está falando?”
“Poxa, não está reconhecendo a minha voz?”
“Não, quem é?” – tornou a perguntar.
“Poxa, achei que eu era inesquecível.”
“Cara, para de gracinha e diz logo quem é. Caso não tenha percebido, eu to numa cama de hospital, me recuperando de uma pancreatite aguda, seja lá o que isso significa, e não tenho tempo pra brincadeiras.”
“Nossa, que emo. Tudo isso é influência dessas bandinhas gays que você ouve?”
“Ai, meu Deus! Rafa?” – ela perguntou, com o coração acelerado.
“Até que enfim. Achei que nunca fosse descobrir.” – ele riu, disfarçando o nervosismo.
“Desculpa, é que... Eu to aqui há tanto tempo e você nunca ligou, não deu sinal de vida.”
“É que eu andei um pouco ocupado com a banda e tal, nem tive como te ligar. Mas me diz como você ta? Pelo seu tom de voz parece que melhorou.”
“Ah, eu to me recuperando do susto aos poucos, acho que vou ter alta do hospital dentro de alguns dias.”
“Que bom. Saiba que estou torcendo pela sua recuperação e sinto muito a sua falta.” – nisso Rafael ouviu os passos da mãe. – “Tenho que desligar, mas fica bem, ta? Espero te ver melhor da próxima vez em que a gente se falar.”
“Mas você...”
“Beijo Nina, fica com Deus.” – ele desligou o telefone, não dando a ela direito de resposta. Apesar disso, ela ficou feliz por ter recebido aquela ligação. Com seu novo estilo de vida, não teve tempo para pensar no garoto e agora via o quanto ele fazia falta. Decidiu que, assim que tivesse alta, voltaria para o Brasil a fim de revê-lo, mas teria um longo caminho a percorrer antes de voltar.
Cinco dias depois teve alta do hospital e iniciou uma jornada já conhecida, que consistia em idas ao psicólogo, à nutricionista e ao psiquiatra, porém, dessa vez o tratamento foi muito mais intenso, devido à presença do álcool, que agravou o problema. Assim, oito meses se passaram e ela pode, finalmente, voltar para casa. Antes disso, mudou novamente a cor do cabelo – dessa vez para castanho-escuro – a fim de se livrar da aparência que a levou a passar por tudo o que estava passando.
Enquanto Valentina se tratava, Rafael seguia com a vida. Terminou o curso pré-vestibular, passou no vestibular para Educação Física em uma universidade perto de casa, foi morar com o melhor amigo e ex-companheiro de banda, Victor, e estava cada vez mais apaixonado por Mariana.
Ao desembarcar no aeroporto internacional, Valentina encontrou os familiares mais próximos e a melhor amiga – assim que ela teve alta, Lauren retornou ao Brasil por conta da escola. Depois de abraçar a todos, perguntou à amiga sobre Rafael e foi informada sobre tudo que aconteceu enquanto estava longe, principalmente a respeito da mudança do garoto. Impulsiva – qualidade adquirida enquanto levava uma vida agitada na terra do tio Sam –, decidiu procurar o ex-namorado assim que chegasse em casa. E assim o fez.
Já era noite quando o carro parou em frente à residência dos Bittencourt. Valentina, assim que pisou em casa, foi direto para o quarto, tomou um banho, se arrumou caprichosamente e saiu, com Lauren em seu encalço.
- E agora Lauren, onde o Rafael mora? – perguntou, enquanto as duas caminhavam pelo centro da cidade.
- Não sei, Nina, o Henrique só me falou que ele e o Victor estavam morando juntos.
- Caramba, o que eu faço? Preciso falar com ele hoje!
- Já passou pela sua cabeça que ele pode não estar em casa? Poxa, é sábado à noite, ele vai pra balada, com toda certeza. – Lauren lembrou.
- Meio cedo pra badalar, não?
- Ok, e o que você vai fazer? Caçá-lo pela cidade que nem uma louca?
- Não, mas conhecendo o Rafael do jeito que eu conheço, aposto que ele está na praça.
- Que praça, Valentina?
- Perto do píer.
- Bem pensado, vamos para lá. – a dupla se dirigiu até a praça e, como imaginado, ele estava lá com Victor. Lauren, ao ver a amiga se aproximar dos rapazes, foi encontrar o namorado Danilo no shopping.
- Er... Desculpa interromper a conversa de vocês, mas eu posso falar contigo? – ela perguntou, apontando para Rafael.
- Claro. – ele disse, meio surpreso, e se afastou um pouco com ela.
- Então, como você ta? – ela perguntou, meio envergonhada.
- Bem, e você?
- Também.
- Quem é você?
- Achei que soubesse quem eu era.
- Não, se soubesse não estaria perguntando.
- Poxa Rafa, achei que EU era inesquecível.
- Hã?
- É, na ultima vez em que nos vimos você disse que não ia me esquecer. Um ano e oito meses não é tanto tempo assim.
- Um ano e oito meses? Esse é o tempo que... Valentina?!
- Até que enfim! Achei que fosse demorar um século para perceber que era eu.
- Nossa, que bom te ver! – ele disse, abraçando-a.
- Também acho.
- Como você tá? Se tratou direitinho?
- Aham. Agora eu to sob vigilância em tempo integral, mas tudo bem. – os dois começaram a conversar e se sentiram felizes por isso. O papo transcorreu por algum tempo, até o celular dele tocar. Era Mariana, que estava o esperando.
- Nina, tenho que ir. Minha namorada está me esperando, mas foi muito bom ter te encontrado novamente.
- Namorada? Achei que quando eu voltasse, nós fossemos ficar juntos. – ela disse, não disfarçando a tristeza.
- Sinto muito Nina, mas as coisas mudam e nosso tempo acabou.
- Tudo bem, eu já devia imaginar. – ela disse, com cara de decepção e se afastou a passos rápidos.
Quando já estava bem longe, não conteve o choro. Era difícil acreditar que depois de tudo o que passou nos EUA, não teria mais Rafael para lhe dar força, para lhe abraçar e dizer que tudo ia ficar bem.
- Valentina, sua estúpida! Por que achou que ele ainda gostava de você? Por que perdeu o seu precioso tempo indo atrás dele? O Rafael jamais te esperaria, sua idiota. – ela resmungava enquanto caminhava sem rumo pelas ruas da cidade, chorando. Estava tão atordoada que quase foi atropelada – se não fosse por um garoto alto, de cabelos e olhos negros, que a puxou no instante em que um carro passava em alta velocidade pela rua, ela fatalmente teria sido atropelada, podendo até ter perdido a vida.
- Ei, cuidado! – o rapaz que a salvou disse, fazendo com que ela voltasse a si.
- Hã? Falou comigo? – ela perguntou, ainda um pouco distraída.
- Garota, em que mundo você vive? Acabei de te salvar de um quase atropelamento e você quer saber se eu falei contigo?
- Atropelamento? Meu Deus! Eu estava tão distraída que nem percebi. Desculpa, e obrigada por salvar a minha vida.
- De nada. – ele disse, olhando no rosto da garota. – Ei, eu não conheço você?
- Acho que não.
- Conheço sim. Apesar de você estar super diferente, acho que seria capaz de reconhecer esse rosto em qualquer lugar. Seus olhos são inesquecíveis.
- Nossa, você fala como se me conhecesse há tanto tempo.
- Mas eu conheço, e há pelo menos uns três anos.
- Continuo não sabendo quem você é.
- Show do Alexandre Pires na Exposição Agropecuária de Araruama, você dizendo que tava no segundo período da faculdade de Medicina quando na verdade nem tinha passado no vestibular. Ah, e você disse também que tinha um namorado que tava voltando dos EUA na semana seguinte, sendo que era mentira. Isso te lembra alguma coisa? – ao ouvi-lo citar esses fatos, ela imediatamente reconheceu o rapaz diante de si.
- Conrado? Franjinha, é você?
- Aham. Faz tempo que não te vejo.
- É verdade. Como você tá? – ela perguntou, tentando disfarçar que havia chorado.
- Antes de te responder, que tal sairmos do meio da calçada? Estamos atrapalhando as pessoas.
- E vamos pra onde?
- Sei lá, praça?
- Só se for a praça de alimentação do shopping. Faz tempo que eu não como um belo hambúrguer com batata-frita e coca-cola.
- Pode ser. – os dois foram em silêncio até o shopping e, para surpresa de Valentina, Rafael estava lá com a tal namorada. Preferiu ignorá-lo e focar sua atenção no garoto a sua frente.
- Então, Caco, como você está? – ela perguntou, depois que fizeram seus pedidos e sentaram numa mesa perto do Bob’s, lanchonete em que haviam pedido seus lanches. Eram mais ou menos 21h.
- To bem, e você?
- Digamos que eu andei tendo alguns problemas com a alimentação e a bebida, mas agora está tudo certo.
- A senhorita sumiu. Por onde tem andado nos últimos anos? – perguntou.
- Ué, você não ficou sabendo que eu fui pros EUA? Cheguei hoje, faz algumas horas.
- Não.
- Então também não sabe que eu namorei o Caleb Harris?
- Caleb Harris? Ta falando do vocalista da The Glory of Evil?
- Sim. Caco, que tipo de fã é você, que sequer sabe sobre a vida dos integrantes de uma das suas bandas preferidas?
- O tipo de fã que curte uma banda pelo som que ela faz, não pela beleza dos integrantes. Além do mais, nunca me interessei pela vida pessoal do Caleb – muito pelo contrário, sempre quis manter distância dessa parte. Ele pode ser um excelente músico, tocar um heavy metal de primeira, mas sempre o achei um esnobe, filho da mãe, que se acha o tal e nem tá com essa bola toda.
- Nossa, quanta revolta! Mas você tem razão, ele é um idiota que merece ser ignorado. – ela riu e os lanches chegaram. Os dois engataram um papo animado depois disso e só se ligaram na hora quando perceberam que a praça de alimentação estava se esvaziando.
- Que horas são? – ele perguntou.
- Meia noite! – Valentina disse, assustada, olhando para um relógio pendurado na parede da lanchonete. – Meus pais vão me matar quando chegar em casa.
- Calma aí, é só pegar um táxi. Liga pra eles e avisa que tá a caminho. – ele disse e se levantou da mesa, observando-a fazer o mesmo. Em seguida, foram caminhando até a saída do shopping.
- De jeito nenhum. Eles devem estar dormindo e não to a fim de ouvir bronca em pleno sábado de madrugada.
- Beleza, e o que você vai fazer?
- Acho que vou pegar o último ônibus pra Araruama e dar um pulinho no Plano Z. Meus primos vivem falando desse pub, dizem que é super divertido e costuma lotar.
- Já devo ter ouvido falar sobre esse lugar. É onde vende balde de cerveja long neck a R$28,90, não é?
- Exatamente. Se quiser me acompanhar, fique a vontade.
- Com certeza. Mas você não acha que eu estou muito desarrumado pra ir a um lugar como esse? – ele perguntou, se referindo a sua roupa, que consistia numa calça jeans de lavagem escura, tênis branco e regata branca por baixo de um blazer azul marinho.
- Ta brincando, Caco? Você tá um gato! – ela disse, sorrindo.
- Você também tá linda. Onde estava indo nessa arrumação toda? – ele quis saber, vendo quão arrumada ela estava, com um vestido preto curto de babados e rendas, cinto preto e dourado marcando a cintura e scarpim preto de salto alto.
- Er... Fui encontrar o meu ex-namorado. – ela disse, triste ao lembrar-se do ocorrido mais cedo.
- E onde ele está que não ta contigo?
- Com a namorada. Se eu não me engano, foram assistir a estreia de Homem de Ferro 3 na sessão da meia noite.
- Hum, entendi. Que bom então, se não fosse por ele você não estaria aqui comigo e nós não iríamos nos divertir sacudindo o esqueleto no Plano Z. – ele disse, fazendo uma dançinha meio boba.
- É, você ta certo. Vamos nos acabar de tanto dançar! – ela riu, esquecendo-se completamente do ex-namorado.
Por volta de meia noite e meia o ônibus com destino a Araruama passou e a dupla foi animada para a tal festa. Ao chegar ao local, se depararam com o pub lotado e a música que tocava era Don’t You Worry Child, do Swedish House Mafia. Não pensaram duas vezes antes de seguir para o meio da pista e se jogar na diversão. Acabaram encontrando um ou outro conhecido enquanto estavam por lá e passaram o tempo todo juntos, num clima de amizade muito forte. Num determinado momento da noite, porém, a situação mudou. Quando a música Stay, da Rihanna, começou a tocar, Valentina deu um passo à frente e colou seu corpo ao de Conrado, visto que a canção pedia uma aproximação maior do que a que tinham.
- Er... O que acha de bebermos alguma coisa? – ele sugeriu, nervoso.
- Ah, qual é, Caco? Ta querendo fugir de uma simples dança?
- Não, é só que eu não quero estragar a nossa amizade.
- E por que uma simples dança estragaria a nossa amizade?
- Na verdade esse não é o problema.
- Então qual é?
- Você ta absurdamente linda essa noite, não sei se resistiria.
- Não sabe se resistiria a quê?
- A você.
- E quem disse que eu quero que você resista? Vamos lá Caco, somos dois adultos, não precisamos de joguinhos. Se quiser me beijar, não vou te impedir ou fazer qualquer outra coisa.
- Tem certeza?
- Porra, Conrado, para de falar e me beija logo! – ela disse, sem paciência e ele a beijou. Dessa forma, entre beijos e carinhos, a noite foi passando e quando deram por si, já passava das quatro da manhã. Saíram do pub, pegaram o ônibus de volta a sua cidade e se despediram indo cada um para um lado.
Ao chegar em casa, Valentina encontrou os pais sentados no sofá da sala, com caras nada boas.
- Dona Valentina, onde a senhorita estava? – Natalie perguntou, irritada.
- Com a Lauren na boate Porão. Por quê? – mentiu.
- Tem certeza? Ela me ligou por volta de 23h30 perguntando por você e dizendo que tinha ido pra casa do Danilo. Por acaso você tava bebendo de novo?
- Como é que é? – Valentina perguntou, incrédula.
- Foi isso mesmo que ouviu, mocinha. Você estava pela cidade bebendo e sem se alimentar?
- Claro que não, mãe. De onde você tirou essa ideia absurda? Ta que há alguns meses atrás eu saia por aí aprontando todas e enchendo a cara sem colocar nada no estômago, mas agora é diferente, sei muito bem o que passei naquele hospital e jamais faria algo parecido outra vez.
- E como vamos saber se você não está mentindo?
- Liga pro Caco.
- Quem é esse cara? – Armando perguntou, interrompendo a conversa entre mãe e filha.
- A pessoa que me salvou de um quase atropelamento e tava comigo até agora no Plano Z.
- Atropelamento? Do que você ta falando, Valentina?
- Longa história pai, mas eu não vou perder meu tempo contando-a. O que importa é que eu cheguei e to bem, graças ao Caco. Agora, se me dão licença, vou pro meu quarto descansar; a noite foi muito divertida e eu to esgotada. – ela disse e foi para seu quarto, onde tomou um banho rápido, deitou na cama e apagou, tamanho cansaço. Seus pais resolveram não falar nada e lhe dar um voto de confiança, afinal, nos últimos tempos ela havia se comportado bem e não havia motivos para desconfiarem.
E assim quatro meses se passaram, com cada um seguindo seu caminho. Rafael continuou com a rotina de sempre, composta por idas a faculdade, passeios românticos com Mariana e musicas compostas com Victor. Já Valentina, cansada de ouvir dos pais que tinha que procurar algo para fazer, decidiu tentar o curso pré-vestibular novamente e, após cinco meses de estudo intenso e muita dedicação, foi aprovada no vestibular de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense, se mudando para um apartamento em Niterói com o então namorado Conrado, que passou no vestibular para o curso de Medicina.
*Quinze anos mais tarde...*
Quinze anos se passaram e algumas mudanças ocorreram na vida dos envolvidos. Valentina, após terminar a faculdade, foi trabalhar em uma revista adolescente e nas horas vagas ministrava palestras sobre transtornos alimentares à jovens de escolas públicas e privadas de todo o estado do Rio de Janeiro. Além disso, lançou seu primeiro livro infanto-juvenil intitulado “Sorte no Amor”, que conta a história de quatro garotas americanas que vêm morar no Brasil e descobrem o amor através de confusões e mal-entendidos.
Já Conrado se formou em Medicina e se especializou em psiquiatria, indo trabalhar em um conceituado hospital psiquiátrico da cidade do Rio de Janeiro. Enquanto isso, Rafael terminou a faculdade de Educação Física e, além de ser personal trainer numa academia, dá aulas numa escola particular de Cabo Frio.
No que diz respeito aos relacionamentos, Rafael se casou com Mariana assim que ela terminou a faculdade de Engenharia de Produção e o casal tem um filho de sete anos chamado Paulo. Já Valentina e Conrado permanecem juntos, mas não se casaram formalmente, apenas selaram um compromisso em uma cerimônia na beira da praia. Além disso, optaram por morar em casas separadas, o que está prestes a mudar, visto que um bebê está a caminho.
Quanto a Rafael e Valentina, eles se encontraram anos mais tarde, conversaram e acertaram os ponteiros; entre eles não há nenhuma mágoa ou ressentimento e até pode-se dizer que são grandes amigos. Pra quem pensava que esses dois ficariam juntos no final, a vida ta aí para mostrar que quando menos se espera o destino muda tudo e coloca diante de nós aquela pessoa feita sob medida, que vai nos completar e nos fazer felizes, mesmo quando desistimos de tudo.