Primórdios

Escrito por Lelen & Natashia Kitamura | Editado por Mariana

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— Julho de 2013

  Zeno Strings encarou o teto com as marcas de infiltração. Kiera já havia dito ao proprietário do apartamento dezenas de vezes sobre o problema do andar de cima, que estava começando a atrapalhar a moradia deles; para ela, as coisas deveriam ser resolvidas na hora que ela pedia, pois dizia suportar muito do problema até chegar ao ponto de reclamar. Zeno sabia que sua namorada apenas era uma pessoa que foi mimada o tempo inteiro pelos homens — inclusive seu pai e irmão mais velho — e que se mostra aborrecida porque ele não era da mesma maneira.
  O que lhe chamava a atenção em Zeno era o mistério que o rodeava e como as mulheres queriam sempre descobrir o que havia por detrás daqueles olhos azuis inexpressivos. Todas as vezes que Kiera começava seus dramas sobre um possível término, as mulheres alheias a convenciam de que ela não podia perder o que as demais queriam. Ela sabia que ele a amava. Zeno era do tipo passivo, que não gostava de tomar iniciativa para assuntos amorosos; o máximo que fez, foi cantar uma serenata em baixo de sua sacada quando seu pai a proibiu de sair do quarto durante um final de semana inteiro porque havia achado um saquinho de cocaína dentro de sua bolsa. Foi naquele dia que ela decidiu que Zeno era o seu amor.
  Mas, como ela costumava dizer, não dá para se viver só de amor. Zeno é um homem que veio de uma situação familiar difícil, não tinha suporte de ninguém e tudo o que fazia eram bicos em supermercados e fábricas, para que pudesse pagar pela moradia e alimentação. A única coisa que fazia com paixão era compor. Ele podia ficar trancado dentro do banheiro por dias compondo; quando isso acontecia, Kiera saía de casa para dormir nas amigas, onde aproveitavam todas as festas possíveis e impossíveis de se entrar. Mesmo tendo saído da imensa moradia que seu pai lhe dava, recusado a cobertura que seu irmão oferecera, para morar em um cubículo que Zeno podia pagar, ela ainda possuía todos os contatos da vida rica e o dinheiro do cartão de crédito que seu pai lhe dera quando disse que queria “tentar” viver uma vida simples.
  Durante os dias que passava na casa de amigas, não necessariamente dormia na casa delas. Em torno da quinta ou sexta festa que foram, Kiera traiu Zeno com um cara. Ele nunca descobriu, por isso, na festa seguinte, foram dois caras. E então três. E assim foi, lembrando Kiera de que ela poderia ter qualquer homem que quisesse e não precisava se remeter à pobreza com um compositor pobre, mas com uma voz hipnotizante quando cantava.
  — Terminarei essa semana. — ela sempre dizia, se não para suas amigas, para o homem da vez. — Ele está me tirando do sério.
  Todas as vezes que Zeno entrava em tempo de hibernação, o que acontecia toda semana, Kiera ia para as festas, voltando decidida a terminar com ele. Mas mesmo quando o amor não é o suficiente para sustentar duas bocas, sendo uma delas de gosto de primeira classe, ele ainda assim possui peso suficiente para fazê-la desistir de deixá-lo.
  E assim foi durante meses. Então um ano.
  Depois de um ano e meio, um de seus casos disse pensar ir até o apartamento que os dois moravam para levá-la de vez para longe de Zeno. Este era um fracassado que só sabia se expressar pelas palavras escritas. Suas músicas nem ao menos possuía rima, mostrando que não tinha tanto talento quanto achava ter.
  Naquele dia, Kiera foi falar com Zeno. Ela havia tomado sua decisão. Seu caso estaria lá em alguns minutos para levá-la de volta à vida de ouro. Zeno não lhe dava o que queria e provavelmente jamais daria. Ele era um perdedor. Não queria mais o seu amor.
  — Zeno… — ela disse, quando chegou no apartamento. Não conseguiu terminar de falar o que queria, pois o local estava vazio. Sem móveis, sem nada. Por um momento, ela imaginou que ele a havia deixado e a raiva começou a se formar em seu âmago.
  Um som chamou-lhe a atenção, em seguida, Zeno apareceu com o violão coberto pela capa protetora, a alça pendurada em seu ombro.
  — O que é isso? — ela olhou ao redor, assustada. — O que está acontecendo?
  — Nós vamos nos mudar. — ele disse, sempre em seu tom tranquilo. — Estou em uma banda.
  — O quê? — ela abriu a boca, deixando sua bolsa cair no chão. — Banda?
  — Sim. Da empresa X. — ele falou, como se a empresa X não fosse uma das mais bem-sucedidas do país. — Eles me ligaram no início da semana passada para eu comparecer na gravadora e mostrar minhas composições. Então me apresentaram a uns caras que tocam bem. E agora somos uma banda.
  — E iremos nos mudar?
  — Eles disseram pagar essa grana, que informaram ser pouco, mas consegui comprar um espaço mais perto do centro, naquela área que você diz gostar. Perto do parque central.
  Kiera manteve-se parada, estática, em frente à porta ainda aberta. Zeno a encarava como se fosse comum vê-la de tal maneira, como se nada de ruim tivesse acontecido. Para ele, de fato, nada de ruim havia acontecido; mas para Kiera, que passou o tempo todo se divertindo com diferentes homens para não se esquecer do quão magnífica ela era, tê-lo ali mostrando que a primeira coisa que fez com o dinheiro que recebeu foi comprar um lugar melhor para ela morar… Se aquilo não era amor, então ela jamais saberia o que era.
  — Estava indo buscar você na casa de Sabrine. — ele disse, arrumando a alça da capa que carregava o violão, no ombro. — Tem uma mulher na empresa que disse ter se formado em um curso em que as pessoas decoram casas. Ela decorou o nosso espaço. Ele é novo e ainda está da maneira que ela deixou, mas é nosso.
  Kiera podia ver que Zeno estava empolgado. Mesmo não falando sem parar no contrato que havia acabado de assinar e na grana que poderia vir a ganhar se ficasse famoso, ela sabia que ele finalmente estava prestes a ser o que sempre quis ser. Um rockstar.
  A ideia de ter um namorado celebridade tornou as coisas diferentes. Se ela continuasse com Zeno, ele poderia levá-la nas festas ainda melhores das que já participa, com pessoas influentes e maravilhosas, estar nos holofotes e ser invejada por mais mulheres que aquelas que passam por eles na rua.
  Encarou os olhos azuis de Zeno e abriu um pequeno sorriso. Tudo o que ela precisava fazer era incentivá-lo a ficar famoso e então aproveitar tudo o que a fama de namorada de Zeno Strings iria lhe proporcionar.

— Dezembro de 2014

  Um ano e meio havia se passado. Para Zeno, a vida estava boa. Bem melhor do que há anos, quando ainda dependia de responsáveis — não necessariamente seus pais — para viver. Além disso, sua namorada, Kiera, estava ainda melhor, pois a felicidade estava sempre estampada em sua cara quando entrava pela porta da mansão que havia conseguido convencer Zeno a comprar. Para ele, tanto fazia como ela gastava o dinheiro; se estava feliz com ele, então nada mais importava. A mansão era em um condomínio de luxo que estava na moda para os jovens milionários; ele era um novo milionário, mas não sabia bem como usar esse dinheiro — Kiera, por outro lado, vinda do berço de ouro, sabia exatamente como “administrar” todos os zeros que aumentavam na conta do namorado. Contanto que ele tivesse seu espaço, não reclamaria se a mansão ocupasse um quarteirão inteiro, o que era quase o caso.
  Era a primeira festa de natal que teriam com comida de verdade. A gravadora estava celebrando mais um sucesso que a Dukhan havia feito logo de cara. Conseguir bater recordes de vendas e downloads em apenas meia-hora… talvez nem a Adele havia feito a proeza. Mas festa nenhuma era boa sem sua garota. Zeno ouviu durante toda sua vida sobre como o natal é feito para passar com as pessoas que ama; Kiera era tal pessoa, mas ela ainda não havia chegado.
  — Relaxa, ela é mulher e extremamente vaidosa. — Maddox, seu guitarrista, falou. De todos os integrantes, ele era o que mais se esforçava em permanecer ao lado de Zeno, não por suas intenções secundárias, mas por ser um cara do bem. — Deve estar perdendo um tempo para fazer “A” entrada.
  Zeno assentiu, tranquilo. Devia ser aquilo mesmo. Kiera era realmente uma mulher, e talvez a mais vaidosa dentre todas. Pacientemente, decidiu aguardar a chegada de sua garota para que finalmente pudesse começar a aproveitar sua noite e celebrar como deveria, assim como seus companheiros de banda.
  Mas uma hora havia se passado e nada de Kiera.
  Sem chamar muito a atenção, conseguiu se desvencilhar dos produtores que elogiavam o sucesso do grupo e a qualidade das composições feitas por Zeno, e seguiu até seu carro, onde dirigiu da maneira mais sóbria que conseguiu, se é que era possível, até sua mansão, onde o carro de Kiera ainda estava estacionado.
  Subiu as escadas calmamente, imerso em seus próprios pensamentos. As luzes, como sempre, estavam acesas, uma ordem dele para todos os empregados e até mesmo Kiera. Ele não gostava de viver na escuridão, e isso também se dava à noite. Ao se aproximar da porta de seu quarto, diminuiu os passos, cujo som fora abafado pela conversa que se passava do outro lado:
  — Vamos logo com isso, tenho uma festa para ir. — Kiera dizia.
  — Gata, não apresse um homem quando ele está nessas circunstâncias. Eu já não havia dito que hoje você seria minha?
  — Querido, eu não sou de ninguém. Além disso, o dia que você pagar as minhas contas como o Strings faz, poderá pensar em me querer para você.
  Zeno permaneceu calado ouvindo a conversa em que os dois faziam piadas sobre todas as vezes que transaram sem ele saber; o quanto Kiera o usava para aparecer na mídia e ficar famosa às custas dele.
  Era óbvio que ele estava aflito. Mas tinha sua própria maneira de sentir as emoções que lhe atacavam como patadas de urso no peito. Ele só precisava morrer, se seu coração não fosse tão forte e tivesse tanta vontade de continuar batendo. Encostou-se na parede oposta à porta do quarto e acendeu seu quinto ou sexto cigarro, já que não tinha algo mais forte e não passou pela sua cabeça sair dali. Aguardou os dois treparem até chegar ao segundo, terceiro orgasmo e então, depois de muitos gemidos e gritos, saíram entre risadas da porta. Risadas que sumiram ao ver Zeno em frente a eles com o cigarro em mãos.
  — Amor, o que está fazendo aqui? — Kiera olhou para o lado, onde o homem, bem mais atraente que Zeno, estava parado.
  — Aqui é minha casa. — ele respondeu, olhando para Hugh, o baterista de sua banda. Sabia desde o início que era ele. Hugh tinha uma maneira grotesca de falar com as pessoas, e na maioria das vezes descontava a força na bateria; Zeno sempre olhou para este jeito dele como algo positivo para a banda, mas, pelo que parece, ele foi ingênuo demais. — O que você está fazendo aqui? — ele voltou a olhar para Kiera, que abriu a boca para responder, mas nada saiu.
  — Zeno, cara, vamos conversar. — Hugh, pela primeira vez desde quando se conheceram, baixou seu tom de voz para falar com o vocalista.
  — Eu não gosto de conversar. Principalmente com pessoas inescrupulosas.
  — Amor… — Kiera começou a falar, mas Hugh a interrompeu com um riso. — Cale a boca… — murmurou, com raiva, para o baterista.
  — É, ela te trai, Zeno. — o cara lhe disse, estufando o peito e se pondo à frente da amante. — Transamos todo final de semana, porque você não tem pau o suficiente para saciá-la. Alguém tem de ser melhor que você em algo, não é? Porque o grande e poderoso Zeno Strings é o único com talento na Dukhan. Maddox só sabe lamber seus pés e Morgan, um pau mandado.
  — Cala a boca, Hugh! — Kiera lhe deu um imenso tapa, fazendo o baterista apenas soltar mais um riso na cara de Zeno e descer as escadas em direção à porta da mansão. — Amor…
  — Apenas chame uma pessoa de amor quando se realmente ama ela. — Zeno a encarou.
  — Mas eu te amo, Zeno…
  — Parece que temos concepções diferentes sobre esse abstrato.
  — Não, claro que não, amor, o sentimento é sempre o mesmo…
  Zeno suspirou. Era a primeira vez que a via submissa a ele. Gostava da Kiera de personalidade forte, algo que ele próprio não tinha. Mas pela primeira vez em muito tempo sentiu uma força para ser aquilo que todo ser humano é: cruel.
  — Quando sair, deixe as luzes acesas.
  Ignorou as chamadas de Kiera por seu nome. Quantas vezes não quis que ela o chamasse com tamanha urgência? Quantas vezes não quis que ela viesse até si para chamá-lo de amor? De fato, o ser humano era maquiavélico. Aquilo o deixava triste. Viver em um mundo com pessoas assim era deprimente… E ele era o esquisito. Com suas músicas, ele era o ser incompreendido.
  De maneira tão simples e rápida, o sentido do natal deixou de existir para Zeno. Porque a única pessoa que amou, mostrou-se indigna de seu amor.
  Tudo o que ele precisava então, era de um bom copo de whisky e seu cigarro favorito.

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  O Center Bar era reconhecido por ser um local aonde as pessoas iam para se divertir, não flertar. Com um ambiente menos trabalhado, o foco principal do estabelecimento era, como o nome do local diz, o bar central. Com um serviço impecável, Zeno guiou-se como um fantasma pelas pessoas alegres e se encolheu no último banco, onde pediu uma garrafa de whisky e escreveu no guardanapo o número do celular de Maddox, para que o resgatasse quando estivesse bêbado e/ou drogado o suficiente para deixar suas pernas moles como gelatina derretida.
  — Acompanhado ou disponível? — uma voz lhe soou ao lado. Virou o rosto para dar de cara com uma mulher que, aos seus olhos embriagados, era atraente. Balançou a mão para que ela se sentasse, caso quisesse, mas não havia dado indício de ser uma boa companhia.
  Annelise Mills se acomodou no banco ao lado de Zeno. Suas costas corcundas e o capuz do moletom escuro escondendo sua cabeça a fez saber, logo de cara, o tipo de pessoa que estaria por detrás daquela camada de tristeza que emanava do homem. Em uma noite de natal, qualquer um que estivesse sob aquelas circunstâncias poderia se dar com um coração partido ou dificuldade financeira no histórico. Sua surpresa foi grande quando viu a pessoa mais bem-sucedida entre todas presentes naquele bar. Quando se aproximou de Zeno, viu a possibilidade de ser de grande utilidade para mais uma pessoa triste; mas ao saber que ele era Zeno, sabia que não poderia ser pouca coisa.
  — Dia difícil? — ela perguntou, fazendo o pedido de sua própria bebida. Zeno não lhe respondeu, mas com um simples olhar, soube exatamente expressar como foi seu dia. — Por que não canta o que está sentindo?
  — Porque não há palavras que expressem uma dor como a minha. — ele murmurou. Lis não esperava ouvir palavras tão depressivas. Por alguma razão, ele fazia parecer que elas tinham um tom de tristeza maior do que uma pessoa comum faria em um momento assim. — Você já amou?
  Ela não soube responder. Não soube, porque sabia que aquilo tudo não era sobre ela, mas sobre ele mesmo. Era como se ele estivesse em sua própria seção psicoterápica com ela. Tudo o que tinha de fazer, era diagnosticar a razão de sua dor e prescrever uma cura.
  — Dizem que o amor oferece uma dor maior do que a alegria que deveria nos dar, mas que o positivo dele faz com que nada seja em vão.
  — O amor não é em vão. — Zeno disse. — As pessoas quem faz dele, algo inútil.
  Decepção. Ela sabia que era exatamente o que ele sentia. Seu amor havia o decepcionado. Mexeu em seu celular por um tempo até encontrar o nome e a foto de Kiera relacionado a ele. Estava na cara que ela era uma mulher que amava se amar. E continuaria se amando, mesmo se isso machucasse alguém. Annelise não suportava esse tipo ego²: egocêntrica e egoísta. Remexeu-se em sua cadeira, voltando sua atenção a Zeno.
  — Traição? — chutou, vendo as respostas nos ombros encolhidos de Zeno. Ele não precisou respondê-la para que soubesse que aquela era a razão. Soltou uma risada inaudível; odiava pessoas que traíam.
  — Trair é uma forma de se revelar. — Zeno olhou para o teto, onde as luzes coloridas do bar refletiam incessantemente. — É como quando um cachorro aprende a erguer uma pata para mijar.
  — Belo exemplo. Coloque isso em sua música. — Lis comentou. — Você é quem deve ser forte agora. Se ela era tudo para você, então arranje outra coisa em que focar.
  — Eu foco em minha vida. — ele disse. — Mas eu não tenho mais uma. — ergueu seu copo de whisky alterado pelo gelo derretido e passou a observá-la. — Talvez este seja o limbo que tanto falam.
  Annelise apertou os lábios. Devido ao seu dom, sentia a dor de Zeno na mesma intensidade que ele próprio sentia. Sabia que toda dor era pior na pessoa afetada, mas ela conseguia dividir a angústia e agonia, tornando a sensação quase idêntica. Sabia um pouco da história de Zeno Strings. Como ele foi deixado de lado pelos pais que, depois de se separarem, jogaram suas responsabilidades para o outro até Zeno atingir sua maioridade. Como passou de casa em casa dos familiares até ser rejeitado por todos. Se a mulher que o traiu era sua única fonte de felicidade, ela deveria ter feito um bom trabalho em pelo menos ter sido sincera em não fazê-lo se apaixonar tanto. Mas seu egoísmo a fez usar o cara que já não era forte. Um homem que precisou utilizar seus próprios meios de sobrevivência.
  Encarou Zeno mais uma vez. Ele cantarolava algo que não se lembraria no dia seguinte, por isso o celular estava no modo de gravação. Zeno Strings poderia parecer um cara avoado, mas se conhecia bem. Ele sabia quando estava no momento certo para compor, assim como também sabia exatamente o que sentia. Annelise sabia que podia ajudá-lo.
  — Seus olhos brilham como o reflexo da lua no mar… — ela finalmente pode discernir as palavras que saíam melancólicas da boca do compositor. Para ela, Zeno Strings não era somente um cantor ou somente um rockstar; ele era compositor. Romancista. Crente no amor. No ser humano. — Eu poderia viver por eles, torná-los meus…
  — Então é assim que sai uma música do Dukhan, huh? — ela cruzou seus braços e encostou-se no encosto da cadeira, observando Zeno sussurrar palavras desconexas que, juntas, formavam uma bela melodia.
  — Observei suas pupilas me observarem com interesse… — com um meio sorriso, Zeno ergueu o copo quase vazio para Annelise, que ergueu uma sobrancelha. — Curiosa em saber se eu estava vivo, mesmo tendo certeza sobre minha respiração…
  Annelise soube. Uma hora sentada com Zeno Strings e ele sabia exatamente como fazê-la sentir algo em seu estômago que nenhuma pessoa, nem mesmo sua mãe, conseguiu. A música que Zeno cantava, ao contrário do que ela imaginava, não era sobre a ex que o traiu e fez perder seu chão; não era sobre as dores de ter perdido a única pessoa que confiava em vida; era sobre ela, Annelise, a mulher que se dispôs a ouvi-lo enquanto bêbado em um bar cheio na noite de natal.
  — O nome dessa música será — ele encarou Annelise enquanto descia seus lábios mais próximo do celular, provavelmente para não perder nenhuma palavra do título da música que havia escrito: — “Olhos de diamante”. — anunciou, seus olhos bem presos à surpresa disfarçada de sobriedade da mulher diante de si. — Em homenagem à mulher que ousou sentar-se ao lado de um homem que poderia ser comparado à morte, de tão sem vida que estava. — Zeno encheu seu copo com a bebida que estava quase no fim na garrafa e ergueu novamente em direção à Annelise: — Um brinde à sua coragem, mulher dos olhos de diamante.
  — Você faz isso com todas as mulheres que se aproximam de você em um ato de solidariedade?
  — Você não está aqui por solidariedade, moça. — Zeno sorri. — Você está aqui porque é aqui que você deve estar. — ele voltou a corrigir sua postura, deixando suas costas eretas e batendo em seu peito. — Junto a mim.
  — Para mim, isso parece um tipo de consolo.
  — Eu não preciso ser consolado. — ele balançou a cabeça, mexendo suas madeixas louras e descuidadas esvoaçarem em frente ao rosto. — Eu preciso do brilho dos teus olhos.
  Annelise trocou olhares com Zeno. Abriu um pequeno sorriso. Então era isso o que as fãs viam nele. Seu charme. Suas palavras que eram jogadas despretensiosamente no ar, ao mesmo tempo que pareciam ter sido programadas para serem perfeitas; e isso o tornava excepcional. Zeno Strings era o rei das palavras. Seu porte poderia ser mirrento, um tipo magricela charmoso, mas a partir do momento que sua boca se abre e o som de sua voz rouca é liberada, não há escolha alguma senão se deixar sentir a turbulência de sensações que suas palavras emanam.
  — Achei que estivesse doente. — ela sussurrou para ele, mas o homem, bêbado, não pode ouvir, graças à barulheira do local que, quase às três e meia, ainda era pura algazarra. — Parece, porém, que você já arranjou a cura de sua dor.
  “Em meus olhos.” Ela pensou, sem admitir sua alegria.
  O celular de Zeno saiu do modo gravação assim que começou a tocar. O homem estava perdido demais em sua própria embriaguez para perceber. Mas Annelise estava ali para protegê-lo. Proteger o homem que se declarou para seus olhos. O nome de Kiera apareceu na tela junto com uma foto dela e de Zeno. Então aquela era a mulher traidora, Annelise pensou. Abriu um pequeno sorriso. Não era médica, mas sabia que o caso do artista à sua frente estava em suas mãos. A prescrição do tratamento para a cura de sua suposta dor havia sido definida.
  Encarou a cabeça de Zeno bambear de um lado para o outro, quase perdendo para o sono e o cansaço.
  — Está na hora de ir para casa. — ela anunciou, indo fechar a conta do homem que presenteou com uma bela melodia sobre seus olhos; olhos estes que tudo vê, até o que não gostaria. — Meu nome é Annelise, a propósito. — Murmurou, mesmo sabendo que provavelmente ele não se lembraria. Ele balbuciou um “Lis” meio embolado em resposta.
  Orientado pelo funcionário que havia recebido informações de Zeno sobre quem chamar ou para onde mandá-lo, Lis fez, ela mesma, o serviço gratuito de garantir que Zeno estaria em sua cama são e salvo.
  Por outro lado, não poderia garantir essa mesma segurança à Kiera, dona vitalícia da embriaguez do homem. A única coisa Lis sabia sobre ela, era que a mulher era fundamental no tratamento da cura da dor de Zeno, e o processo seria extremamente doloroso.

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  Annelise caminhava de forma entediada de uma lado para o outro. Aquela parte era a mais tediosa para ela no que fazia: Esperar que acordassem para enfim a diversão começar. Kiera Bettel estava a um canto da espaçosa sala de estar da mansão de Zeno Strings, as mãos presas aos braços de uma cadeira por tiras de couro firmes e apertadas; as pernas presas também. Ela tinha a cabeça pendida para a frente, ainda desacordada.
  Do outro lado, logo à frente, se encontrava Zeno Strings. Ele estava com os braços seguros por uma algema e também desacordado, porém, apenas aquilo o mantinha de certa forma preso. Annelise brincava com seu canivete enquanto esperava que seus dois convidados despertassem. Encarou Zeno e sua feição tranquila. Com o pouco tempo que haviam passado juntos, Lis aprendera a gostar um pouco da companhia filosófica do rapaz. E por ter gostado dele, ela estava decidida a vingar seu coração partido.
  Lis suspirou mais uma vez enquanto fechava seu canivete e o guardava no bolso. Aproximou-se de um pequeno rádio disposto entre os dois convidados, na mesa de centro, e aumentou o volume ao máximo, fazendo um apito agudo soar, irritante o bastante para despertar Zeno e Kiera. Ambos estavam desnorteados e confusos, mas a expressão de surpresa predominou as feições de Strings quando percebeu que se encontrava algemado em sua própria sala de estar na companhia de uma moça um tanto familiar e Kiera
  — Boa noite, meus queridos. — Annelise murmurou baixando o som e encarando os dois a sua frente.
  — Quem… Quem é você? — Zeno perguntou confuso.
  Annelise fingira uma espécie de careta de desgosto, mas logo sorrira na direção do rapaz.
  — Meu nome é Annelise caso as memórias estejam um tanto turvas por aí, Zeno.
  — Lis… — Um fio de lembrança veio à mente de Strings, mas tudo ainda permanecia bastante confuso.
  — Eu decidi que não era justo uma pessoa como você, tão… Especial no mundo e com uma mente tão brilhante estar sofrendo da forma como está. — A mulher sorriu enquanto se voltava para encarar o rapaz. — Mas eu percebi que você é bom demais para fazer qualquer coisa contra essa injustiça. Então eu me vingarei por você. — Murmurou apontando teatralmente em direção à Kiera.
  — Zeno, o que está acontecendo? Quem é essa daí? — A voz aguda da outra fez-se ouvir.
  — Kiera Bettel. Onde estão seus modos? — Annelise virou-se em direção à sua convidada. — Deveria esperar a sua vez de falar. — Sorriu.
  — Me solta agora ou…
  — Ou o quê? Vai continuar gritando com sua vozinha irritante? — Lis curvou-se a frente da moça, um sorriso nada são brincando em seus lábios.
  — Annelise… — Zeno murmurou tentando chamar sua atenção.
  — Zeno, eu lhe disse que sei como se sente. E sei mesmo. — Lis soltou num suspiro, mas não voltou seu olhar para o rapaz que tentava se levantar de onde estava, mas suas pernas estavam fracas demais para tal feito. — Eu conheço bem o seu tipinho, Kiera. — Continuou. — Já lidei com vadias da sua classe antes.
  — Quem você está chamando de… — O protesto da moça fora interrompido por Annelise que segurou firmemente seu maxilar.
  — Shhh… Já disse que deve esperar a sua vez de falar, querida. — O sorrisinho estava a mostra novamente. — Eu não gosto do seu tipinho. Vocês, vadias, só se importam com as aparências. Com o dinheiro. A fama. O material. — Lis dizia e enumerava com os dedos. — Deus, isso é tão superficial… — Ela bufou revirando os olhos com puro tédio. — Mas eu decidi que a partir de hoje todos verão um lado mais… Profundo seu. — Annelise cantarolou enfiando a mão no bolso do avental de PVC que estava usando, logo retirando de lá um pequeno frasco de vidro contendo algo parecido com um creme.
  — Annelise, o que vai fazer? — Zeno perguntou atordoado sem conseguir se mover muito.
  — Apenas olhe e aprecie. — Lis lançou um olhar perverso na direção do rapaz e então voltara a cantarolar e caminhar na direção de Kiera, que se debatia na cadeira tentando se soltar.
  De início, nada aconteceu. Annelise apenas passara o conteúdo do pote no rosto da moça amarrada, continuava a cantarolar algo baixinho, como uma criança concentrada e se divertindo com seus brinquedos e mundos de fantasia. Mas Zeno pode ver aquele olhar. As lembranças de algumas horas atrás ainda estavam um caos, mas ele tinha a vaga impressão de que havia flertado com aquela estranha… Olhos de diamante. Ele havia dito aquilo para a mulher da boate, a tal Annelise. Zeno tinha alguns vislumbres de horas antes. Como o olhar daquela mulher tinha um brilho diferente, como de alguma forma ele se sentira conectado a ela por alguns instantes…
  — Isso tá ardendo… — Kiera de repente murmurou quebrando o silêncio repentino. — O QUE VOCÊ FEZ? — Berrou na direção de Annelise.
  — Como eu disse, todos verão um lado mais profundo seu. — Lis sorriu alegre.
  Em pouco menos de um minuto Kiera começara a berrar. Sentia seu rosto em chamas. Ela lembrava de uma vez ter queimado o dedo com uma vela, mas aquela dor era cem vezes pior e mais horrível do que uma simples queimadura. Seus olhos ardiam e as lágrimas começaram a escorrer fazendo a queimação ficar ainda pior.
  — O que está fazendo? — Zeno perguntou encarando a ex-namorada com certo desespero.
  — Zeno, meu querido… — Lis aproximou-se do rapaz com um sorriso nos lábios. — Ela vai pagar por te fazer sofrer. — Concluiu dando um rápido beijo na bochecha de Strings que estava atordoado demais para reagir.
  — SOCORRO! — Kiera gritou se debatendo, tentando alcançar o rosto.
  — Meu Deus, já está acabando! — Annelise se endireitou com certa impaciência, caminhou até a mesinha de centro e pegou uma toalha felpuda de cima dela.
  Sem mais nada dizer, aproximou-se de Bettel e sem cerimônias esfregou a toalha em seu rosto.
  Kiera berrou ainda mais ao sentir a toalha um tanto áspera tocar sua pele sem cuidado algum. Ela sentia como se uma lixa estivesse arrancando cada milímetro de seu rosto, camada por camada. A dor era terrível e ela sentia que poderia desmaiar a qualquer instante.
  — Prontinho… — Annelise afastou-se com um grande sorriso nos lábios.
  Zeno conseguira ter um breve vislumbre de sua ex e o que vira o deixara sem fala, horrorizado.
  — O quê? — Kiera conseguiu perguntar num sussurrou ao ver a expressão de Zeno.
  — Dê uma boa olhada na sua nova aparência, senhorita Bettel. — Lis ergueu um pequeno espelho de mão a frente de Kiera e ela demorara certo tempo até conseguiu entender o que estava vendo.
  O rosto de Kiera estava praticamente desfigurado, a pele em carne viva em vários pontos, os lábios inchados e se misturando com o restante do rosto, pálpebras estavam mais finas que o normal e era difícil manter os olhos abertos. Também havia pus começando a se formar em algumas partes.
  — O que acha, Zeno? — Lis voltou seu olhar ao rapaz que se mantinha estático e atordoado. — Não acha que a nova aparência dela reflete muito mais o que ela realmente é? — Sorriu contemplando seu “trabalho” com certo orgulho.
  — O QUE VOCÊ FEZ COMIGO, SUA PUTA ESTÚPIDA? — Finalmente Kiera reagira, com raiva e se esforçando para se soltar.
  — Meu Deus! — Lis revirou os olhos. — Já disse o quanto sua voz é irritante?
  — VOCÊ ME PAGA, SUA VADIA! — Kiera berrava enquanto lágrimas escorriam de seus olhos por seu rosto deformado.
  Lis revirou os olhos e parou em frente à sua prisioneira, abaixando o bastante para as duas pudessem se encarar.
  — Agora, que tal pedir desculpas ao nosso querido Zeno por ser uma vadia sem coração, hum? — Murmurou abrindo um pequeno sorriso cínico que fora respondido com um cuspe da parte de Kiera.
  Annelise se endireitou e limpou o rosto com certa repugnância.
  — Tsc-tsc. — Estalou a língua em reprovação. — Vamos fazer isso do modo fácil ou do modo divertido? — A mulher murmurou passando uma das mãos por sobre o rosto de Kiera, parando em suas bochechas e as apertando com certa força, o que a fez gemer de dor.
  Annelise suspirou sacando um alicate turquesa de um dos bolsos do avental pegou uma das mãos de Bettel e aproximou o instrumento de um dos dedos.
  — O QUE VOCÊ VAI FAZER, SUA MALUCA? — A prisioneira voltara a gritar e a espernear tentando se afastar da agressora.
  Lis soltou um longo suspiro de tédio e impaciência.
  — Se não começar a se desculpar agora, eu vou ter que arrancar algumas coisas de você. — Deu de ombros deixando visível o espaço entre Kiera e Strings. Como não recebera resposta, Lis simplesmente dera de ombros e voltara a se aproximar com o alicate.
  — O QUE VAI FAZER? — Bettel berrou mais uma vez, mas Annelise não dera ouvidos, apenas começara a cantarolar.
  — Este porquinho foi ao Mercado. — Disse a mulher tocando o dedão da mão direita de Kiera com o instrumento de corte. — Este porquinho ficou em casa. — Encarou a moça que ainda tentava de alguma forma se afastar. — Este porquinho tinha um rosbife. — Tocou o dedo médio. — Este porquinho não tinha nada. — Fez uma careta teatral de tristeza enquanto tocava o mindinho. — E este porquinho… — Annelise segurou firme o dedo anelar da moça que ainda ostentava o anel de compromisso que Zeno lhe dera. — Este porquinho gritou! — Exclamou no mesmo instante em que fechava o alicate de corte sobre o dedo escolhido. E Kiera gritou.
  Annelise não conseguira se livrar daquele dedo teimoso de uma só vez, tivera de passar o alicate mais algumas vezes para terminar o serviço, mas finalmente conseguira.
  — Um bom dinheiro gasto num anel tão bonito pra uma pessoa que não merece… — Lis murmurou enquanto pegava o tal anel e o limpava com as mãos tentando se livrar dos resquícios de sangue que haviam ido parar nele.
  Caminhou em direção a Zeno e com um ligeiro sorriso abaixou-se a sua frente depositando o anel no bolso de sua calça.
  — Guarde para alguém que realmente mereça. — Ela piscou de forma marota enquanto os gritos de agonia de Kiera serviam como fundo musical.
  — Por que está fazendo isso? — Zeno murmurou, mas seu olhar passara reto por Annelise e encarava a grotesca cena de sua ex-namorada aos gritos e se esvaindo em sangue pelo corte bruto em sua mão.
  — Você é bom demais pra esse mundo. — Lis murmurou passando delicadamente os dedos na face do rapaz que se retesara ligeiramente com o toque. — Se eu pudesse realmente sentir algo, eu escolheria sentir por você. — Ela sorriu um tanto amargamente e Zeno percebera. Por um segundo a mulher a sua frente não tinha mais aquele fulgor insano em seus olhos. Havia apenas os olhos de diamante. Olhos de diamante que em qualquer outro momento poderiam tê-lo encantado. — E, além disso… — Os gritos de Kiera voltaram a ecoar na sala, o que fizera a pequena ligação entre Strings e Mills se desfazer. — Alguém precisa fazer o serviço sujo por almas puras como a sua. — Ela piscou, a insanidade voltando a seu olhar, tingindo-o em um tom vermelho visível apenas a olhos poetas como os de Zeno.
  Lis voltou lentamente de volta à Kiera que agora gemia e balbuciava alguma coisa, a expressão no rosto era de desespero e dor.
  — E então, queridinha, está pronta para pedir desculpas? — A mulher perguntou erguendo o rosto de sua convidada, que gemeu em protesto. — Vamos lá, não quer deixar as coisas mais divertidas para mim, quer? — Sacou seu estimado canivete e deslizou sua ponta afiada sobre o braço da moça, fazendo seu caminho até sua mão esquerda que estava agarrada ao braço da cadeira. — Diga! — Exclamou entredentes fincando com força o canivete sobre a mão da moça que berrou.
  — ME DESCULPAR PELO QUÊ? — Kiera finalmente gritou entre soluços de dor. — POR TER ABANDONADO MINHA VIDA PERFEITA PRA IR VIVER COM UM CARA SEM UM CENTAVO? — A moça olhava diretamente para Zeno, que a olhava de volta com certa surpresa. Havia ressentimento no olhar de Bettel. — Eu deixei a minha vida para trás para ir viver com você, Zeno. E o que você me deu em troca? Se metia no banheiro por dias para compor ou sabe-se lá o quê! — Gritou com raiva. — Se você tivesse me dado atenção, eu não teria de procurar em outro lugar!
  Zeno encarava Kiera consternado. Teria ela razão em culpá-lo por tê-lo traído? Ele havia negligenciado tanto assim as necessidades de sua namorada a ponto dela ter de ir para os braços de outro?
  — Não, não, não! — Annelise exclamou com certa fúria. — Eu disse para se desculpar. Será que até pra isso você é inútil?
  — Eu não tenho pelo que me desculp… — Kiera ia dizendo quando sentiu algo pontiagudo e afiado perfurando a pele entre suas costelas. Então o ar lhe faltou e sentiu como se estivesse se afogando.
  — Você podia ter feito as coisas de forma diferente, Bettel. Você podia ter dito a Zeno o que estava acontecendo. Ou podia simplesmente ter terminado com ele antes de começar a se jogar pro primeiro homem que aparecesse. — Annelise murmurou com certo azedume na voz. Traição era algo inaceitável para Lis. Traição em qualquer nível. — Mas é claro que não. Porque você estava muito confortável sendo Kiera Bettel, a namorada do famoso e aclamado Zeno Strings. — Lis suspirou cansada. — Como eu disse, seu tipo só se importa com dinheiro e fama.
  Annelise Mills recolheu seu canivete e deu um longo suspiro ao encarar os dois presentes na sala. Ao seu lado, Kiera tentava desesperadamente respirar com o pulmão que ainda estava inteiro. Logo mais a frente, Zeno parecia ter se enclausurado em seu próprio mundo de pensamentos. Aquilo não era bem o que Lis planejara para aquela noite, talvez eles até tivessem um final feliz depois de tudo. Mas não, Kiera havia estragado seus planos ao tentar culpar Zeno por sua traição. E agora ele estava ainda mais desolado…
  — Vamos acabar logo com isso da forma divertida. — Annelise se pronunciou finalmente. — Sinto muito por tudo isso, Strings. — Dera de ombros e se voltara novamente para Kiera. — Acho melhor darmos um jeito na sua língua. — Revirou os olhos, agarrou os cabelos da moça e os puxou para trás fazendo-a gritar de dor, então Annelise segurou a ponta da língua dela com força e sacou seu canivete de forma ágil. — Que linguinha mais venenosa… — Riu. — Não vai precisar dela. — Dera de ombros enfiando a lâmina do canivete na boca de Bettel.
  Zeno encarou a cena entorpecido. Ouvia Kiera tentando gritar num gorgolejo, mas sendo sufocada por algo. Logo viu um líquido rubro escorrer em abundância. O que diabos estava acontecendo?
  — PARE! — Ouviu-se gritando com certo desespero. A mulher que torturava Kiera, virou-se lentamente em sua direção. Zeno pode ver a cólera tingir os olhos de Annelise. Uma cólera que ninguém poderia imaginar existir numa pessoa com a aparência de Lis.
  — Está vendo, é disso que estou falando. — Annelise sorriu voltando para falar com Kiera que quase desfalecia sobre a cadeira. — Você arrancou o coração dele e depois pisoteou, mas ele ainda se importa! — Lis exclamou com certo fascínio na voz.
  — Pare com isso, Annelise. — Zeno arrumou forças para dizer. — Apenas pare.
  — Eu não posso deixar que uma pessoa como essa viva depois do que fez com uma pessoa como você, Zeno. — Lis murmurou fazendo sua melhor expressão triste. — Uma pessoa que mesmo depois de tudo que passou, ainda se importa. Uma pessoa pura. — Lis voltara sua atenção de volta a Kiera que estava atordoada demais para fazer qualquer coisa.
  — Pensei que você fosse como eu… — Zeno murmurou sentindo as forças voltarem às suas pernas. — Que estivesse ali porque deveria estar, para ajudar.
  — E eu vou te ajudar, querido. — Lis permaneceu de costas para o rapaz, brincando com o alicate de corte que voltara às suas mãos. — Vou te ajudar a ser livre.
  Zeno levantara-se com certo esforço e então, correndo, se jogou na direção de Annelise, ambos caindo no chão com certo impacto.
  — Você não pode brincar de ser Deus, Annelise! — Zeno disse com certa dificuldade.
  A mulher se debateu nos braços do rapaz e finalmente conseguira se soltar e pôr-se sentada ao seu lado.
  — Eu não brinco de ser Deus, Zeno. — Ela sorriu de lado. — Eu brinco de ser o diabo.
  E então uma dor aguda fez-se sentir enquanto o rapaz era deixado no chão onde caíra sentindo a perna arder com o corte recém-adquirido na coxa. Ele procurou atordoado pela agressora por quem por um mísero instante bêbado pensara que tivesse uma ligação, viu-a desferir um último golpe no rosto de Kiera. O rosto agora deformado da moça estava voltado em sua direção, os olhos, outrora vibrantes e cheios de vida, agora estavam opacos e encarando fixamente a ele. Você foi o culpado, eles gritavam mesmo sem vida. Gritavam em sua mente, gritavam sem parar…
  — Não, não, não… — Ele tapara os ouvidos e começara a dizer para si mesmo enquanto deixava as lágrimas escorrerem livremente. Fechou os olhos e deixou a escuridão tomá-lo.

  Zeno despertara num sobressalto, a luz radiante da manhã adentrando sua sala de estar sem ter sido convidada. O rapaz se endireitou sobre o sofá e esfregou o rosto depois de resmungar por causa de uma breve pontada na cabeça, provavelmente um dos efeitos da ressaca da noite passada. Ele ainda estava bastante confuso com o que fora real e o que fora sonho até o presente momento, mas o gosto de álcool que lhe subia pela garganta dizia que a parte da bebedeira fora real.
  Ainda tentando se acostumar com a claridade do ambiente em que estava, tateou os bolsos em busca de seu celular, encontrara-o e com certo receio ele o ligou e começara a vasculhar por ele. Havia algumas ligações perdidas de Maddox e nada mais. Decidira ligar para o amigo e verificar se fora ele quem o levara para casa. Ele tinha certeza de que havia estado naquele pub e ficara num estado lastimável de tão bêbado. Definitivamente não havia voltado sozinho para sua casa.
  Maddox afirmara que não havia ido buscá-lo em lugar algum, já que Zeno não havia respondido suas mensagens nem retornado suas ligações para dizer onde estava. Strings desligou a chamada atordoado. Se não havia sido Maddox, quem o havia levado de volta para casa?
  ”Meu nome é Annelise, a propósito.” uma voz familiar ecoou em sua mente. Não conseguia se lembrar de tudo o que havia acontecido na noite passada, mas alguns flashes vinham à tona e ele tinha a ligeira impressão de que Annelise era o nome de uma moça com quem havia conversado...
  ”Seus olhos brilham como o reflexo da lua no mar…” de súbito lembrou-se de ter dito encarando aquela que havia se aproximado com interesse. Então ele decidira ver suas gravações de voz recentes já que costumava gravar áudios para se lembrar mais tarde de possíveis ideias para futuras canções…
  ”O nome desta música será: Olhos de Diamante” o final da gravação anunciou para um certo desespero crescente em seu ser. Zeno tateou novamente os bolsos em busca de algum outro vestígio da noite passada. Achara apenas alguns canhotos e pedaços de papéis no bolso da frente de sua calça quando ouvira um leve tilintar de algo caindo no chão. Olhou ao seu redor a procura do que havia caído e um nó se formou em sua garganta ao finalmente se deparar com o anel de compromisso que havia dado a Kiera.



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