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#014 Temporada

Honest
The Neighbourhood



Pequenos Passos, Grandes Escolhas

Escrita por Nicole Manjiro | Revisada por Songfics

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  Pela janela do apartamento, pude enxergar exatamente o que acontecia dentro do carro que havia acabado de estacionar na frente da porta de entrada. Reconheci o veículo vermelho; era impossível não percebê-lo, quando ele era tão chamativo, com o modelo conversível.
  Parte de mim já esperava vê-lo ali. A outra, no entanto, lutava contra a queimação que começava no âmago e subia como a lava de um vulcão em erupção. Apertei os olhos, porque se eu já estava ali, então que encarasse a realidade. Minha mente me orientou com firmeza; “você fugiu demais”.

  FLASHBACK || 6 MESES ANTES

  Eu havia combinado de encontrar na frente de sua academia. Minha pós era logo a alguns quarteirões da academia que ele frequentava e achei legal que ele mudou o horário de sua ida somente para que sua saída coincidisse com a minha, assim podendo me levar de volta para casa.
  – Quero ter certeza que chegou bem.
  Não era comum eu ver minhas amigas reclamarem que, depois de algum tempo de namoro – na maioria, após um ano ou dois –, seus parceiros se tornassem mais relaxados e menos esforçados. Me dava orgulho saber que continua o mesmo, ainda que três anos e meio tivessem passado.
  Olhei no relógio, preocupada por estar atrasada. O professor daquela semana se empolgava demais e acabamos saindo quinze minutos após o horário certo do término. Mandei uma mensagem avisando que atrasaria. Ele disse que tudo bem, que me esperaria na academia.
  Assim que cheguei, pude vê-lo atrás da porta de vidro, já pronto para ir embora. Conversava com alguém. Uma mulher. Um mulher bastante atraente. Mandei uma mensagem avisando que estava chegando e aguardei. Não sei por que fiz aquilo. Por que menti, quando já estava ali, vendo tudo. Parte de mim queria saber o que ele fazia com aquela mulher linda. Seus cabelos sedosos e castanhos, o corpo esbelto, de quem gosta de malhar com frequência. Os lábios eram carnudos como os da Angelina Jolie.
  O vi encarar o celular distraidamente e devolvê-lo ao bolso da bermuda. Continuou conversando com a mulher por um tempo, até ela se despedir com um beijo, se visto pelos demais, até inocente. A vi sair e ir em direção a um conversível vermelho. Engoli seco. Além de linda, ainda era rica. E parecia bem independente. Poderia criar um personagem incrível com ela. Desses que trabalha e é dona da própria vida, sem depender de ninguém para mantê-la. O tipo de mulher que todas nós admiramos.
  Suspirei e caminhei em direção à porta. Era só uma colega de academia, pensei. As pessoas fazem amizade em ambientes que costumam frequentar. Eu tinha amigos que fiz na pós. Estava tudo bem.
  – Oi, amor. – ele disse assim que me viu. Me deu um beijo estalado e segurou minha mochila, que sabia estar pesada por conta do material. Sorri, por um tempo esquecendo a cena anterior.
  – Desculpe a demora, o professor se empolgou de verdade.
  – Tudo bem – ele destravou o Palio que comprou de um amigo há alguns meses. -, aproveitei para fazer alguns exercícios a mais, até que coincidiu bem nossa saída.
  Não foi apenas meu estômago que congelou. Parte de mim disse para eu não surtar. Ele não estava mentindo, claro que não. Era apenas uma omissão. Apesar de eu não ser do tipo ciumenta, que briga por conta disso, a mulher era realmente linda e poderia causar desconforto em qualquer namorada.
  – Ah... – sorri amarelo. – Que bom, então.
   não percebeu minha hesitação. Nem meu silêncio durante todo o caminho até minha casa.

  FIM DO FLASHBACK

  A partir daquele dia, então, pude perceber mudanças ocorrendo aos poucos. No início, esperava que ele viesse conversar. nunca foi de guardar as coisas para ele, porque seu modo de viver era intenso. Se algo o perturbava, então ele simplesmente o resolvia com praticidade; minhas amigas diziam que ele parecia frio demais, mas eu gostava desse estilo. Gostava de que se eu havia feito algo ou se ele havia feito algo errado, ele comentava ou se desculpava. Talvez esse fosse o segredo de nossa relação saudável. Nós lavávamos a roupa quando ela sujasse, não esperávamos a sujeira deixar uma marca permanente.
  Porém, outras mudanças foram mais perturbadoras. Se antes não ligava para a aparência, agora era puro narcisista. Começou a se importar mais com bens materiais, querendo do melhor, algo que suas condições financeiras não podiam oferecer ainda. Ele trabalhava duro em um banco, mas não em um cargo que lhe oferecesse tanto quanto imaginavam; estava se esforçando para que isso acontecesse, eu o admirava como ninguém por isso. Mas então, de repente, o vi usar relógios, sapatos e até pastas de marca, ao invés da pulseira de tecido que comprara com os amigos no último ano novo em Bertioga, do Allstar sujo e desgastado, e da mochila que eu dei quando ele entrou no banco.
  Suas idas à academia tornou-se frequente. Se antes ele ia duas vezes por semana, pulando um dia ou outro por mês, agora ia todos os dias. Todos os dias, até nos finais de semana. Mesmo depois que minha pós acabou, há dois meses, seu horário de academia permaneceu o mesmo.
  – Senti que meu corpo aceitou melhor o treino à noite, do que pela manhã. – foi sua desculpa.
  Não gostei da sensação que veio após seu comentário. Eu sabia que não era verdade. Sabia que havia algo diferente ali, e o que era.
  Ele agora estava mais musculoso. Se antes treinava porque precisava, agora parecia aproveitar melhor e se importar mais com sua aparência. É claro que gostei, achei que foi uma mudança positiva para ele, se não começasse a me irritar tanto o fato dele querer me mudar.
  – Estou falando para seu bem.
  Suspirei.
  – Tudo bem, posso ir na sua academia e assim você me ajuda?
  – Talvez seja melhor um personal fazer seu treino. – ele disse. – Tem aquela rede nacional de academia que é própria para iniciantes. E terá outras aulas além do treino comum.
  Ele não queria que eu fosse para a academia dele. Quando apareci lá um dia, ele pirou. Fui paciente e tentei entender seu lado, mas não via motivo dele não me querer lá. O local era tão apropriado como qualquer outro estabelecimento do mesmo gênero.
  A não ser que houvesse algo lá que eu não pudesse encontrar.

~*~

  Vi o casal sentado dentro do carro se inclinar em direção ao outro e se despedir com um beijo quente. Ficaram ali por um tempo, até eu vê-lo sair do assento motorista e ela do passageiro.
  Tudo ocorreu em câmera lenta. Eles trocaram de lugar e o vi acenar para ela, entrando no meu prédio. Ela entrou maravilhosamente em seu maravilhoso carro, e então partiu, o automóvel fazendo um barulho que só um carro da categoria dele faria.
  Minha mente ficou em branco por um tempo. Eu já havia associado tudo há meses. O que veio primeiro quando percebi que estava pensando, foi o porquê de eu nunca ter querido saber a verdade. Por que fui tão paciente? Por que não questionei nas diversas oportunidades que tive? Por que me deixei chegar a esse ponto de humilhação?
  Ouvi o som da chave na porta. Meu pensamento seguinte foi, “preciso dela de volta”.
  – Está silencioso. – foi a primeira coisa que ele disse quando me abraçou.
  Como se não tivesse acabado de beijar uma outra mulher.
  Como se ele não tivesse acabado de me trair.
  Como se soubesse que eu era idiota demais de constrange-lo com a verdade.
  – Você demorou. – comentei, engolindo a bile e tentando parecer calma. Eu poderia sair por cima. Era o mínimo que eu poderia fazer por mim, que já havia me colocado nessa situação humilhante.
  – Perdi a noção do tempo. Meu coach veio com um treino novo, estou todo dolorido.
  Me virei bruscamente para ele e encarei seus olhos.
  E então eu vi. Vi que ele estava se divertindo.
  Por quê?
  Por que ele simplesmente não me deixou? Eu havia deixado claro que não aceitaria traições, não havia?
  Então por que diabos eu ainda estava com ele?
  – Está com dor de cabeça de novo? – ele perguntou, segurando minha cabeça carinhosamente.
  Vi seus braços agora extremamente musculosos. Nunca odiei tanto um corpo sarado. Talvez eu odiasse para sempre esse tipo de corpo. Ou talvez eu me perdoasse por ter sido tão injusta comigo.
  ­– Eu espero, , que um dia você consiga enxergar essa situação. – me levantei, desvencilhando de suas mãos e me afastando.
  – O que você está falando?
  Respirei fundo.
  – Eu esperava que você mesmo me falasse. Eu esperei meses por sua iniciativa, porque você sempre o teve. Você sempre odiou segredos, porque dizia que eles sempre prejudicavam alguém no final.
  Vi seus olhos compreenderem e a garganta se mexer no momento em que engoliu seco.
  – Porque eu o respeitava, fui paciente. – comentei, tentando manter a passividade, mesmo sendo merecedora de todo descontrole emocional que eu pudesse ter no momento. – Eu esperava que você me respeitasse; que acabasse com isso sem eu ter que fazê-lo. Percebi que seria menos doloroso se você me deixasse ir, ou, quem sabe, se visse o que estava fazendo e me puxasse para conversar. Quando pensei nessa situação, me imaginei aceitando, porque eu o amava, e é isso o que as pessoas inicialmente fazem, não é? Elas tentam aceitar e consertar as coisas.
  “Mas eu precisava que a iniciativa fosse sua. Por isso fui paciente. Porque, na verdade, não queria ter visto nada do que vi. Não queria saber nada do que sei. Queria continuar ignorante. Só que, não sei se você percebeu, , mas você não parece estar mais preocupado comigo, porque nas últimas semanas, mal se preocupou em disfarçar.”
  Parei de falar, porque senti a lágrima escorrer sem minha permissão. E eu não queria chorar na frente dele. Não queria ser a fraca que desistiu. Queria ser a forte que escolheu a mim, ao invés dele.
  – Sei que lhe devo desculpas. – ele comentou, de repente. – Não vou mentir que me sinto repugnante por ter feito isso com você. Mas se você admira tanto minha sinceridade, então não vai gostar que eu minta dizendo que não tinha consciência do que fazia.
  Foi a minha vez de engolir seco.
  – Não estou falando para deixa-la ainda mais brava. Ou triste. Ou o que quer que esteja sentindo. Sei que não estou sendo justo. Que fui demais. Que é imperdoável. Eu só... – ele mexeu em seu cabelo. – Você significa muito para mim, .
  “Enquanto todo mundo achava que eu não valia nada, você acreditou no meu potencial e tenho grande consideração por você. É por isso que não quis terminar. Que achei que poderia... estou vendo agora quão imbecil fui.”
  Ficamos em silêncio, porque eu odiava que ele fosse tão consciente. Queria que ele me machucasse, para eu poder justificar mais tarde, que eu havia feito o certo, quando meu coração me martelasse com memórias felizes dos anos de namoro.
  – Não foi ela. – ele disse, quase em um sussurro. – Fui eu. Me aproximei por um motivo qualquer, não havia intenção de paquera-la, mas acho que lhe dei abertura e ela retribuiu. E então meu ego...
  Deixei que ele falasse. Porque, por mais que me machucasse, o estava fazendo se sentir tão idiota quanto eu. Porque sua consciência estava o crucificando e porque eu sabia que ele estava sofrendo. Sofrendo por ter feito o que havia feito, e por não ter sido justo comigo. Ele merecia isso. Poderia ser egoísmo meu. Mas eu também tinha um orgulho a proteger, um resquício dele, pelo menos.
  – O poder é algo realmente assustador. Seu pai havia me dito. – ele disse. – Ela me fez ser promovido. Iria te contar agora.
  – De outra maneira. – quis dizer, não com a verdade. Ele assentiu.
  – Vou receber um salário que nos levaria para a Disney até o final do ano. Que eu pudesse sair da casa do Henrique e ter a minha. O tanto de coisas que conseguirei fazer com esse salario... quando recebi a notícia do meu chefe, sabia que foi por causa dela, mas me senti merecedor. Eu trabalho para isso. Fui um bom funcionário para isso. Não havia sido por causa dos contatos dela.
  – Mas foi.
  Ele assentiu mais uma vez e então esfregou as mãos no rosto.
  – Não quero te perder.
  – Eu também não queria.
  – Se você me der uma—
  – Não.
  Vi suas mãos caírem e os braços pousarem ao lado do troco, um sinal de desistência.
  – Eu levei meses para aceitar a minha realidade. – disse, baixo. – Vivi mentindo para mim, colocando o peso no que eu sentia por você. Mas quanto mais fazia isso, mais estava esquecendo de mim. E vejo tanta gente, tanta propaganda, tantos exemplos na internet de mulheres superando obstáculos. E dizendo que elas estão certas, que elas fizeram a coisa certa, como se fosse fácil. Vi agora que não é. Mas enxerguei a possibilidade de me admirar. Posso ser como elas, se aprender a me amar e a me respeitar um pouco mais.
  “Veja só. Você, que me desrespeitou com a mentira durante todos esses meses, agora está me respeitando, só porque eu decidi me respeitar em primeiro lugar.”
  – Eu não vou desejar que coisas ruins aconteçam. Você merece o novo posto porque realmente foi um bom funcionário. Você merece conquistar o que quer, porque foi uma pessoa boa. Você é uma pessoa boa. Um humano com defeitos. Espero, , que você tenha aprendido a lição como eu aprendi.
  “Mas está na hora de seguirmos nossos próprios caminhos.” Disse, com toda a força que eu sentia. “Porque o caminho que eu vejo para mim... você não está nele.”
  Ele não disse nada. O ouvi fungar e limpar uma ou duas lágrimas que haviam encharcado seu rosto.
  Eu estava me sentindo invencível. O obstáculo que estava me corroendo por dentro há tempos, eu havia acabado de conseguir ultrapassá-lo, e que incrível a sensação, apesar da dor que ela causava.
  ­– Me desculpe. – ele disse. – Você não merecia.
  Era o que eu também achava. Mas assim como ele, eu não era perfeita. Eu poderia ter feito algo antes que me fez merecer isso agora. Alguém só não teve a mesma coragem que eu de me dizer.
  Mas isso não importava. O que importava era que agora que eu havia descoberto o poder que eu tinha sobre mim e minhas escolhas, eu viveria melhor.
  Com essa mudança, percebi uma ansiedade pelas próximas. A começar, talvez, pela minha profissão. Quem sabe esteja na hora de eu usar o dinheiro que era para comprar nossa casa quando casássemos e investir em algo para mim?
  – Vai doer, as próximas semanas. – eu disse, vendo-o limpar as lágrimas mais uma vez. – Ou não. – concluí. – Seja o que for, será diferente. E o diferente de agora com certeza será melhor.
  Olhei para meu reflexo na televisão e havia um sorriso ali. Um que fazia tempo eu não via.
  Será melhor, pensei. Com certeza.

FIM