Pecados Mortais - Gula

Escrito por Fe Camilo | Revisado por Natashia Kitamura

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“Gluttony is an emotional escape, a sign something is eating us”.
- Peter De Vries

  Me desculpe, Pai, eu pequei. Tia Vivian me disse que sempre que cometer um pecado devo confessar, só assim poderei ser redimida e não acabar como Tia Melissa, então essa é a minha confissão.

  Meu nome é , e eu nunca conheci meus pais. Eles morreram em um acidente quando ainda era um bebê, portanto qualquer memória que eu pudesse ter foi há muito esquecida. Fui criada por minhas tias – irmãs de minha mãe – Vivian e Melissa. Apesar de irmãs, eram o oposto uma da outra, como mel e vinagre.
  Tia Melissa era mais nova e sempre duramente criticada por tia Vivian. Elas haviam herdado a doceria de mamãe quando ela faleceu, então trabalhavam arduamente para manter o local funcionando e as vendas crescendo. No entanto, tia Melissa tinha um pequeno defeito: passava mais tempo comendo os insumos destinados à preparação dos doces do que, de fato, trabalhando. Ela tinha um hábito divertido de me ajudar a fugir do olhar escrutinador de tia Vivian para roubar guloseimas sempre que possível.
  Tia Vivian sempre foi muito séria e rígida, e fazia questão de afirmar que minha mãe gostaria que eu tivesse a melhor educação possível, portanto precisava se certificar de fazer com que eu crescesse propriamente como uma lady. Era um tanto cansativo viver sendo criticada por não atingir seus padrões de como uma garota deveria parecer, se vestir, falar e até mesmo caminhar, então eu aproveitava todas as oportunidades que tinha para seguir o exemplo de tia Melissa e ajudá-la a preparar quitutes que devorávamos alegremente.
  Eu não entendia muito bem como ambas poderiam ser tão diferentes, uma vez que foram criadas juntas pelos mesmos pais, e todos os dias imaginava como mamãe deveria ser, talvez ela fosse o equilíbrio que faltava nas irmãs. Tia Melissa sempre dizia que ela era uma pessoa doce e carinhosa, e sempre a fizera se sentir especial, enquanto tia Vivian sempre pontuava que ela era um exemplo de elegância e talento, e fora por isso que conseguira um bom marido e um negócio bem-sucedido.

  A cada dia era um desafio maior crescer naquela casa, envolta em duas formas completamente distintas de ver o mundo. Confesso que tentava ao máximo acompanhar os ensinamentos de tia Vivian que costumava ser um tanto rigorosa em seus castigos quando achava que eu estava me desvirtuando do caminho que deveria seguir, mas as escapadas em busca de pães de mel e chocolates ao leite faziam o dia valer a pena e a vida um pouco mais alegre.
  Lembro-me claramente de quando tia Melissa dizia que uma vida sem doces não vale a pena ser vivida, e que devemos aproveitar cada dia como se fosse o último, e era por isso que ela exagerava um pouco às vezes, preocupada que não teria a oportunidade de fazer o mesmo na manhã seguinte. Por vezes eu a pegava se lambuzando com um balde de mel na mão enquanto seu olhar parecia perdido em um lugar distante, e quando a questionava, ela me dizia que estava se lembrando de mamãe, e contava que ela tinha algo de muito importante para fazer antes de morrer, mas nunca teve tempo de fazê-lo. Eu não entendia muito bem o que ela queria dizer, e ela também se recusava a contar qualquer coisa mais, então apenas dava de ombros e me juntava a ela, me lambuzando no mel.
  Naquele dia comemos tanto que nem conseguimos nos levantar para caminhar até o quarto, e fomos pegos com a boca na botija pela tia Vivian na manhã seguinte. Ela discutiu com tia Melissa por horas a fio, e lhe disse tantas coisas duras que a mais nova até chorou, permanecendo em prantos pelo restante do dia. Quando a mim, fui obrigada a jejuar e ficar por vinte e quatro horas sem comer. Tia Vivian dizia que essa era a única forma de me livrar do pecado da gula, confessando à Deus pelo meu erro e deixando de comer para limpar a minha alma.
  Essa era uma punição bem constante em casa, pois todas as vezes que a tia Vivian achava que eu estava engordando um pouco, me forçava a ficar horas sem comer para que eu pudesse recuperar minha dignidade, como dizia. Eu já deveria estar acostumada, mas todas as vezes que ela me permitia comer novamente à vontade era de devorar tudo que encontrava pela frente, e sendo bem honesta isso era exatamente o que fazia sempre que possível, principalmente com a ajuda da tia Melissa.

   “Você quer ficar como a balofa da sua tia?”, gritou tia Vivian um dia quando me encontrou comendo um pote de doce de leite, e dessa vez me forçou a tomar um remédio que me fez quase vomitar as tripas para fora. Nesse mesmo dia me olhei no espelho com atenção antes de me banhar, tentando reparar se havia algo que indicava que estava próxima de me parecer com a tia Mel, mas a verdade era que meu corpo magrelo era praticamente idêntico ao de tia Vivian.
  A sensação de vomitar por horas a fio contra a minha vontade foi tão horrível que desse dia em diante decidi não comer mais nenhum doce, mesmo com a tentação constante e as tentativas da tia Mel de me fazer apreciar seus doces deliciosos. Não pude manter minha resolução por muito tempo, no entanto, portanto adotei uma estratégia diferente: esconder bombons de chocolate no estrado da cama para que pudesse comer durante a noite depois que ela fosse dormir. Aquele também era o único momento possível, pois tia Vivian havia me colocado em tudo quanto é tipo de aulas para que eu pudesse me educar propriamente como uma dama: eu tinha aulas de culinária pela manhã, aulas de francês depois do almoço e aulas de etiqueta no fim da tarde. Voltava para casa tão exausta que mal tinha energia para comer, então me restavam apenas os chocolates secretos no meio da madrugada.
  A minha rotina estava tão ocupada que sequer encontrava com tia Mel durante o dia, imagino que por uma tentativa bem-sucedida da tia Vivian de me manter longe dela e de suas ofertas. No entanto, todas as vezes que a via ao longe pelos corredores ou no balcão da confeitaria – entre uma aula e outra – ela parecia cada vez mais enorme e muito mais triste. Seus olhos ficavam distantes como se estivesse em outro momento no tempo e eu me perguntava se ela estava se recordando do segredo que compartilhara com minha mãe anos antes.

Um dia quando voltava da minha aula de etiqueta notei um barulho estranho na confeitaria, a qual já deveria estar fechada. Adentrei o local e caminhei procurando pela origem do som que parecia vir da despensa até me deparar com a cena mais horrenda que jamais poderia imaginar: tia Melissa estirada ao chão besuntada de mel com abelhas por todo seu corpo inchado e vermelho. Horrorizada com a cena me virei para procurar por ajuda quando dei de cara com a carranca de tia Vivian que logo me puxou pelas orelhas escada acima “Viu só o que acontece com garotas gulosas? É isso que acontecerá com você se continuar comendo essas porcarias que esconde na sua cama!” resmungou me forçando a tomar aquele remédio horrendo antes de me jogar dentro do meu quarto e trancar a porta, ordenando que me confessasse.

FIM



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