Our Worlds Collide
Maraíza Santos | Revisada por Angel
Capítulo 1
Eram cinco horas da manhã quando o som do saxofone de Donald Stak invadiu o meu quarto me fazendo acordar naquele dia. Estiquei a mão a fim de desligar o despertador e sentei na minha cama dando tapinhas no meu rosto tentando despertar. Rapidamente, lembrei-me da minha mãe e olho para o lado; há menos de meio metro está Letícia encolhida na cama de casal quase caindo no chão e tremendo de frio. Arrumei seu lençol até a sua cabeça e observei o quão jovem ela parecia dormindo.
Queria ser mais parecida com ela. Minha mãe tem os cabelos loiros acobreados e leves como uma pluma, ela também tem olhos azuis como águas cristalinas que a fizeram parecer tão jovem quanto eu, ainda que esteja no auge de seus 45 anos. Eu era mais parecida com meu pai; olhos e cabelos cor de madeira escura.
Sabendo que minha mãe iria acordar três horas depois, levantei me arrastando até o pequeno banheiro para tomar banho e me vestir para o trabalho. Quando senti a água quente descer pelo meu corpo suspirei feliz por finalmente ter concertado aquele chuveiro — ninguém merece acordar de madrugada e tomar banho com água fria.
Me enrolei com a toalha e fui até o quarto vestir-me. Assim que abri o guarda-roupa me deparei com as camisas sociais que Ivana havia me presenteado mês passado. Sabendo que eu já tinha usado todas nos últimos meses, escolhi uma branca com os botões azuis marinho e uma calça com a mesma cor do botões. Olhei-me para o espelho satisfeita com o que vi; quase todo o meu guarda roupa foi costurado por Ivana e são tão bem feitos que poucas pessoas conseguem perceber que as roupas não foram compradas em lojas. Sou eternamente grata por ter conhecido aquela mulher mesmo que em uma situação difícil da sua vida; quase todo mês ela me faz um traje novo alegando que preciso me vesti bem até encontrar meu destinado.
Peguei os poucos itens de maquiagem que tenho e me deixei o mais natural possível. Calcei os sapatos de salto alto pretos já com medo de me deixarem na mão porque os comprei por um preço camarada. Fui à cozinha, comi torradas com leite e em menos de meia hora desde que acordei estou pronta para o trabalho.
Cutuquei minha carteira e deixei cinco dólares em cima da mesa para que Jean compre alguma coisa para minha mãe e saiu de casa às pressas para pegar o ônibus de 5h40.
As casas da minha rua são pequenas e todos fazem parte da Ala O. Mesmo ainda o céu estando escuro as ruas estão movimentadas; acordar cedo aqui é o mais habitual do que parece. A maioria das pessoas trabalha em empregos simples como faxineiros e entregadores de jornal. O meu emprego como secretária é visto como um prêmio que poucos abaixo da ala M conseguem exercer.
Assim que cheguei ao ponto, o ônibus apareceu no final da rua. Entrei já com meu vale transporte em mãos e sentei-me já pensando no outro ônibus que preciso pegar e o metrô. Antes das sete eu tinha que chegar.
O centro da cidade onde fica o prédio em que trabalho é repleto de prédios espelhados com estruturas arquitetônicas e o edifício da Coral não era diferente. O letreiro da empresa de cadernos tinha um brilho colorido que parecia se mexer conforme você andava. Entrei no prédio, cumprimentei Mary e Dassy, as recepcionistas, “bati ponto” e tratei de ir ao sétimo andar começar meu trabalho.
Meu chefe era a pior pessoa quando se refere à designer, por isso sua esposa se encarregou de fazer seu escritório com as paredes amadeiradas. No começo, tive a sensação estranha de estar em qualquer lugar menos em um escritório, mas com o tempo me acostumei. Sentei na cadeira giratória, liguei o notebook e arrumei minha mesa. O relógio do pc marcava exatamente 7h10, então, tratei de organizar os e-mails do sr. Carter e checar os recados.
Fazia dois meses que estava trabalhando para Coral e por pouco eu perdia o emprego. O que sei de informática aprendi na escola e nem sei falar nenhuma outra língua; tudo que conhecia era de um cursinho gratuito oferecido pelo governo para jovens de baixa renda. O único motivo para está ali foi, ironicamente, um jogo de palavras-cruzadas.
Logo quando eu aprendi a ler, meu pai me dava um desses do jornal. Ele sempre me cobrava como lição de casa alegando que era pro meu próprio bem e a pediatra que íamos toda semana concordava. Nunca entendi isso direito até anos atrás quando minha mãe me confessou que tinha 75% de chance de ter Mal de Alzheimer precoce e eu, como filha dela, tinha 100% de percentual; por isso meu pai se imprensava pra pagar aquele tratamento pra reduzir em 50% minha taxa, ao invés de cuidar da minha mãe.
Quando testaram nossa rapidez mental na entrevista fui feliz em fazer aquelas palavras-cruzadas que faziam parte do meu dia-a-dia e o emprego ficou comigo! Porque, por mais que não fosse totalmente qualificada, afirmaram que eu era eficiente. Por mais que, claramente, acho que a escolha se veio mais por causa de Carol Carter que, sabe se lá o porquê, gostou de mim.
Vinte minutos depois Albert Carter, meu chefe, entrou pelo corredor. Ele era um dos diretores executivos da empresa e não tinha menos de 32 anos; mesmo assim já tinha os cabelos pretos tingidos de branco e olhos azuis cansados.
— Bom dia, . — Falou educadamente abotoando seu terno.
— Bom dia, senhor Carter. — Sorri simpaticamente.
— Meus horários? — Perguntou.
— Na pasta compartilhada, senhor. — Respondi prontamente.
— Recados?
— Nenhum, senhor. — Disse assendindo.
— Tenho uma reunião daqui a duas horas... — Disse checando o relógio.
— Uma hora. — O corrigi. Albert sorriu e balançou o dedo para mim.
— Não sei o que faria sem você, . — voltou a sua postura séria. — Se alguém ligar anote recados. Apenas passe a ligação para mim se for Carol.
Concordei com a cabeça e ele se foi pela porta um pouco atrás de mim. Assim que a porta se fechou, senti meu celular vibrar. Eu o havia ganhado dois dias depois de entrar na empresa já que sr. Carter estava eufórico por ter que ligar para minha casa e sempre quem atendia era Jean e não eu. Olhei pra os lados me certificando que ninguém estava vendo e atendi em sussurros ao ver o número de casa e, como sempre, o aviso da chamada a cobrar começou a tocar. Desliguei e com o telefone da empresa retornei a ligação me sentindo um tanto nervosa. Jean apenas ligava quando era realmente necessário.
— Oi, . — cumprimentou. — Adolf chegou aqui e está furioso com você.
Droga. Esqueci completamente do dinheiro do aluguel e a cada dia os juros aumentavam em um preço absurdo. Suspirei.
— Diga a ele para vir daqui a 15 dias. — Avisei.
— Espera, vou passar para ele. — e o telefone ficou mudo.
Bati o pé temerosa e olhei para os lados à procura de alguém para me dedurar, mas, por sorte, os corredores do andar estavam vazios.
— Ora, ora. — a voz nojenta de Adolf ecoou pelo telefone. — Parece que você está tentando me dá um calote igual ao seu pai, não é, garotinha?
Senti meu sangue ferver e respirei fundo para não perder o controle.
— Só tem três meses atrasados e vou pagar assim que poder. — Respondo firme. — Só tenha calma.
— Calma? Eu quero meu dinheiro! — Ele ralhou.
— Eu pago tudo com os juros daqui a 15 dias. Só tenha paciência. — Disse com frieza. — Agora, se me der licença, preciso trabalhar. Bom dia, Adolf.
E desliguei.
Como eu queria quebrar a cara daquele idiota! Se eu pudesse comprar aquela maldita casa tudo seria mais fácil! Assim que receber meu dinheiro vou pagar tudo antes que eu seja presa por matá-lo.
Voltei ao trabalho tentando organizar as informações que chegaram da fábrica e enviar os e-mails para os investidores. Quando eu mexia nos arquivos que a equipe de marketing havia me mandado para a pasta compartilhada do Albert, Dassy chegou saltitante na minha mesa.
Ela sempre usava roupas caras e exalava perfume importado por onde passava, era morena e muito baixinha, por isso sempre usava saltos exageradamente altos para compensar a falta de tamanho. Era sempre tinha uma energia contagiante que nunca vi em mais ninguém e facilmente ficamos amigas.
— Lyyy, nem te conto! — Ela bateu palminhas e eu revirei os olhos.
— Pode falar. — Virei-me para o notebook.
— A vaca da Celine conseguiu 12 anos. — E ela soltou uma gargalhada alta e sonora. — 12 anos pra encontrar o destinado! Sabe o que é isso? Vingança do destino!
— Você não existe, Dassy! — Falei balançando a cabeça reprovando seu comentário, mas com um sorriso cúmplice nos lábios.
Qual é? A Celine era mesmo uma vaca!
— Ai, estou quase subindo nas paredes. Faltam só 3 meses! — Ela apontou para o braço esquerdo que continha o relógio digital com o tempo anti-horário até o encontro do seu destinado.
— Se eu fosse você nem me animava muito. — Falei. — Vai que seu destinado seja um velho de 40 anos?
— Vira essa boca pra lá! As videntes nunca erram! — Ela resmungou.
Dassy era uma das fiéis aquele sistema.
Aos 21 anos todas as garotas recebiam um relógio com o tempo marcado até encontrarem seu destinado, o amor das suas vidas, enquanto os garotos, aos 20 anos. Antes disso, elas vivem livremente, se divertindo com vários garotos sabendo que seu amor é apenas passageiro. Quando esse tempo — que varia de um a vinte anos — acabava, o relógio vibra e ela olha para frente encontrando seu destinado. Era algo obrigatório, por mais que todo mundo achasse tudo muito romântico, eu ainda tinha um pé atrás com toda aquela história que estou cansada de ouvir desde criança. É bem verdade que aconteceu tudo perfeito com meus pais, mas não acho que isso aplique em todas as pessoas. Não acho que se aplique a mim. Principalmente porque já era difícil manter duas pessoas de barriga cheia em casa, imagina mais uma!
— Você é muito incrédula, . — Dassy falou com um careta. — As videntes vão acabar colocando um cara de 40 anos da Ala Z pra você.
Revirei os olhos.
— Você sabe que não pode casar com alguém que não seja seu destinado, ao menos se você quiser continuar morando nessa cidade. — Continuou seu discurso.
— Tem trabalho pra fazer não? — Fiz uma careta debochada cortando seu discurso.
— Foi bom falar com você, . A Mary avisou que depois te manda as palavras-cruzadas do jornal. — Ela deu um beijo estalado em minha bochecha e saiu do meu campo de vista.
Me acomodei na cadeira giratória pronta para voltar ao trabalho, mas Albert passou como um furacão pela minha mesa deixando uma pilha de papéis.
— Organize tudo e grampei. Tudo deve está em ordem daqui a 15 minutos e nos devidos lugar da sala de reunião. — Disse checando o relógio. — Se apresse, por favor.
— Sim, senhor. — Peguei o grampeador já pronta para começar quando o telefone começou a tocar. Estiquei minha mão e pus pendurado no meu ouvido e comecei a organizar os papéis.
— CEO, Coral. Escritório do senhor Albert Carter, bom dia. — Falei fitando meu chefe de relance que continuava ali.
— , amada! — Nas primeiras palavras deduzir ser Carol Carter a dona da voz doce — Passe para o Albert, por favor! Estou tentando falar com ele há séculos.
Albert decidiu atender sua esposa em seu escritório e eu corri para a sala de reuniões com os papéis nas mãos. Assim que cheguei à sala vazia, suspirei exausta. O dia estava apenas começando.
Assim que entrei no refeitório da empresa senti o cheiro bom de carne assada. Depois de me servir, fui direto a mesa onde Dassy estava sentada com outras garotas. A maioria delas já havia almoçado, mas por conta da reunião que se estendeu mais do que o esperado só consegui sair às duas. As meninas me conheciam e conversavam sem problema perto de mim mesmo sendo a mais nova do grupo.
Quando dei a primeira garfada e senti a carne se despedaçar em minha boca quase choro de emoção. Virei-me pra trás e encontrei a jamaicana que é responsável pela comida olhando para mim com expectativa, mandei um sinal de positivo com meu polegar e beijei as pontas dos dedos indicando o quanto eu havia gostado.
—... Logo depois nós nos acertamos. Mesmo sendo tímida, ele foi muito paciente comigo. — Comentava Mary com um sorriso besta nos lábios e as meninas acompanharam com um "ah" sonhador. Os olhos da recepcionista brilhavam só de falar de seu esposo e destinado. Ela olhou para mim e tirou os papéis de jornal recortados do bolso e me entregou.
— Não sei por que você gosta dessas coisas. — Ela comenta mexendo nos cabelos loiros.
— Amuletos da sorte. — Dou os ombros e como mais uma garfada.
— Ei, quando você vai pegar seu prazo, ? — Fran pergunta enquanto arruma os seus óculos que escorregam pelo seu nariz.
— Acredita que não lembro? Recebi a carta do governo, mas não olhei ainda por falta de tempo. — Comentei.
Era verdade. Parecia que o universo conspirava para que eu não visse a carta, sempre tinha algo de mais urgência para fazer. Como naquele momento onde matar a minha fome era muito mais urgente.
— Ouvi uma história de uma mulher que não acreditava nos prazos e quando encontrou o destinado e ele foi cumprimentá-la, ele morreu atropelado. — Falou Franz.
— Que trágico! — Dassy comentou chocada. — Se você não tomar cuidado, , sua história vai ser assim.
Um calafrio corre pela minha espinha. Só de pensar em matar alguém por causa da minha teimosia senti meu estômago revirar e comecei a comer mais rápido.
— Ninguém vai morrer por minha causa, Dassy, deixa disso. — Disfarcei.
Em dez minutos terminei minha comida e voltei a meu andar com a desculpa de que sr. Carter precisava de mim no escritório. Não era a primeira vez que alguém me contava histórias de quem não seguia sua vida com seu destinado ou de quem não acreditava nos prazos — apenas encontrei um casal que era feliz sem serem destinados um ao outro, mas era simplesmente porque antes de se casarem eram viúvos de seus destinados. Por mais que eu gostaria de insistir na minha teimosia, não queria prejudicar ninguém — não mesmo.
Abri a carta às pressas torcendo para que fosse amanhã ou daqui há uma semana. Pulei a parte democrática da carta e fui logo para o quadrado amarelo com detalhes em vermelho indicando meu horário: 15 de setembro/15:15
Merda! Era hoje!
Eu tinha cerca de menos de uma hora para chegar ao Centro de Prazos Femininos. Peguei minha bolsa e joguei tudo que era meu sem cerimônia, bati na porta de Albert sem moderação, desesperada para que ele estivesse ali; por sorte, ele atendeu logo com cara de poucos amigos.
— O que está acontecendo, ? — Indagou a me ver aflita.
— Hoje é o dia de pegar meu prazo, senhor, e acabei esquecendo! — Apontei para a carta em minhas mãos e ele arregalou os olhos.
— Ai meu Deus! — Ele exclamou. — Vá, pode ir! Não precisa voltar mais hoje. Está liberada. — Disse todo enrolado. — Boa sorte, senhorita !
Corri desesperada e por causa do meu atraso tudo parecia andar lento: o elevador demorou a subir, demorou a descer e ainda tive que pedi licença para dezenas de pessoas que se aglomeravam no salão principal da Coral. Assim que estava na rua olhei para os lados tentando projetar um atalho. O centro da cidade é enorme e se não tivesse cuidado até mesmo eu que moro aqui desde sempre posso me perder.
Meus pensamentos foram interrompidos quando duas vozes gritaram "táxi" e seguraram a porta do mesmo veículo. O casal virou-se um para o outro prestes a dizer algo para conseguir o transporte, porém o barulho dos seus braços esquerdos vibrando e caindo no chão foi ouvido. Um sorriso automático nasceu em seus lábios e o homem concedeu para que a mulher entrasse e os dois dividiram o táxi.
Aquela cena de filme me fez ficar extasiada com a ideia de me apaixonar assim tão fácil. Será que isso poderia acontecer comigo? Nunca tinha presenciado um fim de prazo antes e aquele cenário era um tanto fictício.
Apressei o passo para a direita e fui correndo em meio aos carros que não paravam de buzinar até o prédio dos prazos femininos. Foi fácil encontrá-lo já que era o único de cor vermelha no mar de prédios espelhados. Assim que subi os três primeiros degraus pisei em falso e quase caí. Trinquei os dentes e massageei meu tornozelo, entretanto, o pior aconteceu quando levantei o pé para voltar a andar; meu salto havia se quebrado.
Retirei meus sapados e joguei na lixeira mais próxima. Descalça e com nenhum pingo de paciência, entrei no prédio. Meu cabelo colava em minhas costas e testa e eu podia senti o cheiro de suor por todos os lados. Os pais que aguardavam suas filhas me olharam de lado pela minha situação precária, porém corri até o elevador para subir ao décimo segundo andar.
Quando adentrei na sala onde as garotas esperavam para serem chamadas o grande relógio digital marcava exatas três horas e dez minutos. Suspirei exausta e me afundei em um dos bancos agradecendo aos céus por alguém ter inventado o ar-condicionado. Ponderei aqueles cinco minutos que me sobravam entre normalizar minha respiração e fitar as imagens de casais apaixonados e família felizes nas paredes. Tudo me parecia um mundo irreal e impossível, todavia não consegui pensar muito e corri de ponta de pés até a aba 15 quando meu horário foi anunciado no painel.
Sentei-me na cadeira me deparando com uma placa escura e preta para proteger a identidade das videntes. Dizem que elas estão entre nós, só que não sabemos quem são elas. Ou algo assim.
— Hm... — ouvi uma risada fraca e alterada e eu tentei arrumar meus cabelos e parecer desinteressada. — Uma puritana, mas por motivos diferentes. Parece que você é uma garota muito obediente a sua mãe.
Enrijeci e um calafrio atravessou meu corpo.
Ninguém sabia disso. Como ela poderia saber? Pra todo mundo que me perguntava eu dizia que já tivera um namorado "temporário". Eu apenas continuei puritana por causa de uma promessa que fiz a minha mãe quando ela ainda conseguia lembrar meu nome. Como a vidente descobriu?
— Está na hora de virá a página de sua vida, criança. — Ela disse e eu franzi a testa sem entender. — Ou melhor, trocar de livro.
Então, ela se calou. Comecei a balançar a perna de nervosismo — não estava entendendo nada e até agora não havia ganhado meu prazo.
— Você pode... — cocei a garganta. — Dizer algo sobre o meu destinado?
Precisava saber com quem eu iria lidar e um pouco de curiosidade me corroía. Fazer uma perguntinha não tinha mal, tinha?
— Não. — Respondeu secamente. — Seu prazo é 43.800 horas. 5 anos. Pegue seu relógio.
O barulho apitou e uma gaveta apareceu com um relógio digital preto com meu prazo.
— Ah! — tentei soar animada, sem muito sucesso, e coloquei o no pulso esquerdo. — Obrigada.
Me levantei e as garotas que esperavam sua vez me olharam esperando uma reação. Apenas mexi o relógio no pulso incomodada e saí andando em direção ao elevador.
Assim que apertei o botão para o térreo constatei três coisas:
1° Sim, as videntes sabem de tudo. São os olhos que tudo ver. Tudo mesmo.
2° Eu tinha cinco anos para aproveitar minha vida até encontrar alguém que provavelmente vai colocá-la de cabeça pra baixo.
3° Assim que eu saísse do Centro de Prazos Femininos era minha OBRIGAÇÃO comprar um bom sapato.
Pensei em ir pra casa depois que comprei uma sapatilha simples para mim, mas após está devidamente calçada, decidi ficar um pouco a sós com meus pensamentos. Me sentindo um pouco egoísta, fui andando devagar até a praça mais próxima. Os casais que antes não costumava reparar andavam de mãos dadas se divertindo com a companhia um do outro. Suspirei.
Talvez aquilo pudesse se aplicar a mim. Se ele for da ala O nós poderíamos dividir as contas e talvez meu destinado tivesse uma casa própria. Mas e se ele também for provedor de sua família? E se ele tiver pessoas que dependesse cem por cento dele?
Pior seria se meu destinado fosse um vagabundo das alas inferiores e quisesse viver as minhas custas. Ou quem sabe alguém das alas maiores e fosse preconceituoso com a vida que tenho levado.
Fiquei divagando em possibilidades até o fim da tarde quando voltei para casa. Por alguns minutos esqueço sobre o prazo ou o relógio do meu pulso e apenas me concentro nas palavras-cruzadas que Mary havia me dado. Infelizmente, antes de chegar em casa eles acabam e fico sem ter o que pensar por um bom tempo quando estava no último ônibus. Logo, minha barriga ronca e eu vibro para voltar para meu lar e preparar qualquer coisa que me sacie.
A rua onde eu morava estava repleto de crianças brincando de corda, esperando cada uma pela sua vez. Vi que Jack, o menino carequinha que comandava o grupo, estava em sua vez de pular, então, corri e entrei na brincadeira sem que me chamasse. As risadas das crianças e um coro de vozes infantis gritando "" foram como uma permissão para mim e, antes que prestasse atenção, eu estava brincando de corda como uma criança novamente.
—... Senhoras e senhoras ponha mão no chão. — Quando elas cantavam uma das frases, Jack se enganchou e acabou errando.
— Errou! — Gritei e ri animada.
Eu adorava as crianças da ala O. A alegria e saúde que elas esmanjavam fazia toda aquela vida ser menos deprimente. Eram como os irmãos que nunca tive e sempre que eu podia dava uns trocados a elas.
— Tia , você pode comprar uma rifa? — Uma menininha me pediu. — É pra uma apresentação na escola.
Queria muito, muito mesmo ajudar. Aquelas carinhas de anjo derretia meu coração, porém eu estava sem nenhum centavo.
— Deixe para a próxima, está bem? — Baguncei seu cabelo.
— Você vai sábado, né , ver a gente? — Jack me perguntou assim que me viu voltar a andar em direção a minha casa.
— Não perco isso por nada! — Respondi com um sorriso.
Nossas casas são basicamente coladas e tinha uns pequenos degraus que se dividiam apenas por um muro baixo. Quando dou duas batidas na porta para avisar que cheguei, aparece na casa ao lado quase me dando um susto.
era irmão da Jean e era o que chamamos de "faz tudo". Se alguma coisa quebrasse era só pedi para que ele concertasse por um preço bom e logo estaria resolvido. Ele colocou os cabelos pretos para trás e coçou seus olhos castanhos claros iguais ao da irmã.
— Obrigada pelo chuveiro. — Agradeço já que não estava em casa quando ele havia feito o serviço. — Quanto você quer pelo trabalho?
Ele levanta a sobrancelha e sei o que vai acontecer. Eu e , desde crianças, fazíamos negociações. Ele era muito bom, mas, modéstia a parte, eu era melhor.
— Cinquenta. — Ele disse.
— Trinta e cinco. — Cruzo os braços.
— Quarenta. — Ele responde.
— Trinta e sete e não pago mais do quê isso. — Finalizo e abro a porta.
— Você ainda vai me falir, . — Ele resmungou.
Entrei em casa e fui direto para a sala. Jean está sentada ao lado da minha mãe falando baixinho e ela tem um olhar vago nos olhos. Suspirei.
— Oi Jean. Oi mãe. — Cumprimento. Jean responde com um sorriso no rosto e passa a mão em seu cabelo preto arrumando seu rabo de cavalo.
— Olha que chegou, dona Letícia, sua filha. — Disse animadamente.
Era isso que ela dizia toda vez que eu chegava em casa nos últimos quatro anos e pensar nisso fez meus olhos marejarem. Me controlei e esperei uma resposta da minha mãe.
— O-oi. — Disse com dificuldade e sorriu.
O sorriso da minha mãe é sincero e muito inocente. Porém, ela não foca muito em mim e volta o olhar para algum ponto invisível.
— Está com fome? — Perguntei jogando a bolsa em algum canto. Ela balançou a cabeça concordando.
Ajudei a se levantar segurando seu braço esquerdo e sussurrei para Jean.
— Obrigada por me ajudar. Quando eu receber lhe pago.
— Sem problemas, . — Respondeu e então fitou meu pulso com o relógio digital.
Ela agarrou meu braço livre e fez uma careta animada.
— Você já ganhou seu prazo! — Ela disse controlando o tom de voz. — Quanto tempo?
— 5 anos. — Respondi e minha mãe sentou na cadeira da mesa olhando para os lados sem saber exatamente o que fazia ali.
— Vou cozinhar pra você, ok mãe? — Falei, mas não espero a resposta.
Jean, que ainda tinha 19 anos e não tinha ganhado seu prazo, parecia extasiada com o relógio do meu pulso e ainda mais maravilhada ao ouvir minha resposta para sua pergunta.
— falta apenas 5 anos também! — Ela respondeu e seus olhos brilhavam como pedras preciosas. — Talvez ele seja seu destinado.
Meu estômago se revirou e aquilo fez meu coração palpitar como uma britadeira. ? Meu destinado? Isso era ridículo!
— Claro que não. — Respondo incerta. — A chance de ter um destinado que você conheceu antes do prazo é quase nula.
— Eu sei. — Ela suspirou. — Mas eu queria tanto que você fosse minha cunhada. Tenho medo de arranjar alguma nojentinha.
Ri com aquilo e dei tapinhas nas costas dela.
— Ele gosta de você. — Ela disse se encostando-se no balcão. — Ele ama você. E saber que seus prazos são parecidos vai fazê-lo saltitar de alegria.
Passei a mão no rosto, cansada daquela história.
Claro que eu sabia que gostava mais de mim do que o normal; ele já havia me dito isso. O grande problema é que por mais que ele fosse bonito, gentil e um pouco engraçado, eu não conseguia me ver o fazendo feliz. Ele era uma pessoa muito boa e merecia uma mulher tão boa quanto ele. Eu nunca teria tempo pra me dedicar a alguém, muito menos sabendo que, provavelmente, o amor da vida dele apareceria uma hora ou outra. era louco o bastante para ir morar nas fazendas perto das cidades por causa de um amor, mas eu não.
E depois, ele não faz o meu tipo. Não que eu tenha um tipo padronizado, mas ele... Hm... Tá ai uma coisa que não confessaria em voz alta: ele era muito musculoso. E, meu Deus, eu tinha medo de homens assim! Tenho impressão que eles podem me quebrar em pedacinhos.
— Se for pra ser, será. — Respondo quando coloco água para ferver.
Contudo, se ele for meu destinado, eu teria vantagem. Talvez até me apaixonasse por ele. Ou se não desse certo, nós decidiríamos em ficar longe um do outro, ele iria encontrar alguém legal e fugir para fora da cidade, enquanto eu receberia indenização do governo. Aquilo era um bom plano.
— Vou indo, . Até amanhã. — Jean beija minha bochecha, se despede da minha mãe e vai em direção a sua casa.
Peguei o frasco de remédio de minha mãe e suspirei ao ver que tinha apenas dois comprimidos. Cocei a têmpora já sentindo dor de cabeça e tudo o que deu errado naquele dia veio à tona. Uma tristeza invadiu meu coração e senti minhas costas ficarem mais pesadas.
Quis chorar, mas segurei as lágrimas porque mamãe me olhava e altas demonstrações de emoções poderia afetar seu humor. Todavia, meu limite foi estourado quando ela, franzindo o cenho, me perguntou curiosa.
— Quem é você?
Capítulo 2
Lorenzo Martin era um dos maiores empreendedores espanhóis que existia atualmente e fazia jus a sua fama. Quando a notícia de que ele estava interessado pelas ações da Coral estourou pelo prédio a empresa entrou em um caos generalizado. Aquela reunião era de suma importância, pois seria nela que Lorenzo decidiria se ele compraria as ações ou não. Tê-lo como um dos nossos acionistas seria a peça chave que Coral precisava para poder competir de verdade com a liderança de vendas em artigos escolares e finalmente sair da terceira posição.
Qualquer pessoa poderia sentir em um raio de 1 quilômetro a tensão que todos exalavam na reunião. A sala estava escura e fria, era apenas iluminada pelo retroprojetor demostrando a vídeo conferência que Lorenzo fazia. Albert estava uma pilha de nervos aquela semana já que ele era quem conduziria aquele encontro. O nosso tradutor oficial passou as mãos no rosto exausto depois daquelas longas três horas sem sair de lugar algum.
Eu devia ficar em pé perto da mesa prontificada à espera de algum pedido de meu chefe, entretanto, minhas pernas doíam. Assim como a maioria das outras secretárias, encostei-me à parede e tentei me concentrar no que o espanhol dizia.
Era a primeira vez nos últimos anos que eu entendia o espanhol de alguém sem precisar recorrer a um intérprete ou dicionário e estava muito orgulhosa de mim mesmo em relação a isso. Logo quando tive oportunidade, comecei a fazer um curso de espanhol pela internet. Mal tinha tempo para dormir depois daquilo, mas o resultado estava ali mostrando que valia a pena.
Mais meia hora se passou e senti como correntes puxassem minhas pernas para baixo de dor, mas ignorei assim que percebi que o que Lorenzo estava falando era a conclusão de tudo; deixei minha mente vagar em pensamentos sobre o resto da minha noite com os pés apoiados na parede no alto deixando o sangue circular normalmente, quando percebo o que realmente Martin dizia.
Ele não compraria as ações da Coral.
Meu chefe ficou mortificado com aquela notícia, mas, por ser profissional, apenas insistiu mais um pouco para que ele reconsiderasse a ideia, entretanto, Lorenzo foi impassível. Disse que a empresa não tinha o potencial especulado e que ainda era cedo para uma ‘‘parceria’’ como aquela. Depois de se despedirem e a imagem do espanhol desparecer do telão, as luzes foram acesas. Os rostos denunciavam a insatisfação, era uma mistura de cansaço e fracasso que me deu nos nervos apenas de observar.
O senhor Carter veio em minha direção e me preparei psicologicamente para aguentar o resto da tarde com seu velho mau humor, porém, me surpreendi, pois ele apenas me pediu para que repassa-se a ata da reunião que eu havia feito para os outros diretores executivos e seguiu para sua sala em silêncio.
Obedeci, mesmo sem entender muito bem, e fui até a minúscula sala da copiadora com a ata em mãos. Enquanto a impressora fazia seu trabalho, sentei em uma cadeira que havia naquele compartimento relaxando as pernas. Fechei os olhos pensando se dá uma cochilada ali seria errado.
Me assustei no momento que Mary entrou na sala como um tornado e trancou a porta rapidamente para que ninguém a visse. Ela deu um salto assustado à medida que me viu e tentou enxugar seu rosto para que eu não percebe-se que ela chorava. Seus cabelos loiros estavam bagunçados e seus olhos vermelhos a denunciavam. Embaraçada, Mary desviou o olhar para o chão antes que eu dissesse alguma coisa.
— Ele de novo, não foi? — Perguntei solidariamente.
Acontece que o casamento de Mary e Robert não estava em seus melhores momentos. Depois que ele foi demitido, e já fazia dez meses, ele tentava arrumar um novo emprego e nada.
Estabilidade não existe, disseram uma vez para mim.
Era verdade. Não era comum encontrar uma pessoa formada em engenharia sem um emprego, principalmente alguém tão jovem quanto ele. Robert tinha o ego inflamado e ser sustentado pela esposa não estava em seus planos de vida nem em um universo paralelo. As brigas só começaram quando ele resolveu descontar suas frustrações na bebida e ter começado a ameaçar se matar.
— Eu não sei o que fazer . — Ela entrou em prantos. — Tenho medo de que dessa vez ele se mate de verdade.
— Primeiro você tem que se acalmar. — Falei. — Tem algum problema ir ao apartamento só dá uma olhadinha...?
Mary balançou a cabeça concordando.
— Estamos ficando sem dinheiro, não posso sair de novo. — Ela disse colocando o cabelo por trás da orelha. — Em questão de tempo vamos acabar caindo para Ala M. Deus me livre! — e riu nervosa.
Olhei para ela com cara de poucos amigos e ela entendeu quão ofensivo aquilo soara. Era normais as pessoas subirem ou descerem de alas, eu mesma era de uma ala menor que ela, mas não significava que aquilo era o fim do mundo.
— Não, não quis ofendê-la, . — Falou rapidamente.
— Tudo bem. — Deixei aquilo passar e peguei os papéis que acabaram de serem impressos.
— O que eu faço ? — Ela perguntou segurando na minha mão livre esperançosa.
Mary era uma das mulheres mais maduras que já conheci, porém quando era algo relacionado ao seu destinado ela perdia a cabeça e parava de pensar sensatamente. Mesmo com aqueles problemas ela amava demais Robert e nunca, em hipóteses alguma, o abandonaria.
— Ligue para a mãe dele passar por lá, pra dá uma olhada, distraí-lo e afins. — Expliquei. — Depois acho que você vai ter que parar de dá qualquer dinheiro ou cartão de crédito para ele, aliás, já devia ter feito isso há muito tempo. Vai mantê-lo sóbrio por um tempo.
Ela assendia atenta.
— Dai você irá divulgar o currículo de seu marido na internet e orar para o deus dos desempregados. — Acrescentei e ela abraçou-me forte quase me quebrando ao meio.
— Ótima ideia, . Obrigada, obrigada, obrigada! — Ela disse e logo me soltou.
Murmurei um “por nada” e voltei para a minha mesa.
Senhor Carter não saiu de seu escritório o resto da tarde. O prédio ficara em um silêncio fúnebre a tal ponto que eu conseguia ouvir o barulho do trânsito em alta intensidade mesmo que estivesse no sétimo andar.
Não consegui entender exatamente o porquê de não ter Lorenzo Martin como acionista poderia ser uma perda tão grande a Coral, mas decidir ficar quieta. Quando meu horário acabou, fui até a sala de Albert perguntá-lo se gostaria que eu fizesse algo ou ficasse; ele negou com a cabeça e disse que não precisaria da minha ajuda mais naquele dia.
Saindo do prédio, pude ver Dassy entrando no carro esportivo de seu esposo fotógrafo. Foi um susto para ela ter um destinado da Ala N, mas Mark era um homem bastante talentoso no que fazia. Claro que ela não aceitaria está com alguém de uma Ala tão inferior a dela, mas aquele charme irritante dele a comprou. Questão de tempo e ele conseguiu subir duas Alas depois de “magicamente” começar a receber modelos ricas e famosas em seu estúdio fazendo seu sucesso aumentar gradualmente.
A festa de casamento deles aconteceu em um pub não muito conhecido e muitos se assustaram por verem a noiva com um vestido colorido, não o casual branco. Não me pergunte do resto — estava bêbada demais para lembrar. Só sei que foi a última vez que tomei um porre para me divertir, aquela ressaca quilométrica me fez tornar uma anti álcool de carteirinha.
Estávamos em uma sexta-feira e, para variar, eu dei umas cochiladas no ônibus. Me sentia exausta e só queria chegar em casa, receber uma massagem nos pés e dormir o final de semana todo. Infelizmente, só conseguiria realizar meu primeiro desejo.
A verdade era que eu estava ficando velha e no momento a tpm estava em seu auge — 26 anos nas costas pesava como 35. E há tempos estava começando a desejar um parceiro ou alguém para compartilhar meu dia. Antes, Jean, Ivanna e minha mãe eram minhas confidentes, porém desde que a primeira começara a faculdade de enfermagem, depois de muito esforço para conseguir a bolsa de estudos, fiquei sozinha com minha mãe que aquela altura não conseguia mais falar ou fazer qualquer coisa sem auxílio. E ainda tinha Ivanna, minha segunda mãe, que apenas a via uma vez por semana e olhe lá.
Até procuraria alguém para ser meu namorado e jogar todas as minhas frustrações nele, mas a promessa que eu havia feito a minha mãe tinha que ficar intacta.
Quando tinha completado 15 anos e a situação da minha mãe começava a preocupar, Leticia me fez sentar à sua frente e prometer duas coisas. Uma delas era que eu devia fazer faculdade em vez de trabalhar depois do ensino médio e a segunda era que deveria me guardar totalmente até encontrar meu destinado — se iria me apaixonar ou não, ela não poderia controlar, mas até conhecê-lo deveria ser assim.
Sobre a primeira promessa fiz questão de quebrar, porque, sinceramente, aquela merreca que o governo chama de ajuda de custo mal dava para pagar os remédios que minha mãe toma o mês todo, porém a segunda era mais fácil de manter. Sempre tive a curiosidade pra saber como era beijar ou transar, mas por causa da minha insegurança em saber se eu iria fazer direito ou não achei a promessa da minha mãe um pretexto pra que fugisse dessas pressões da adolescência.
E lá estava eu, uma mulher de 26 anos que nunca beijou alguém na vida. Patético.
Balancei a cabeça sem entender o porquê de ter cogitado a ideia de entrar em um relacionamento quando, claramente, eu andava sem tempo para isso.
Assim que faltava apenas uma palavra para terminar as palavras-cruzadas do dia o ônibus parou no meu ponto. Desci do veículo já olhando para os lados atentamente, pois nos últimos anos, depois das novas eleições, meu bairro passou a ser mais perigoso.
Apressei um pouco o passo para chegar logo em casa quando a voz — agora grave — de Jack me fez parar subitamente.
— Hey, , não fala mais não?
Aquele garotinho carequinha tinha completado seus 14 anos a poucos meses. Sua voz estava mudada assim como seu corpo estava reformulando e conquistando novos músculos.
Preciso urgentemente descobri o que estão colocando na água desse bairro.
Ele ainda mantinha seu corte de cabelo meio careca e estava rodeado de adolescentes de sua idade. Havia boatos pela rua de que ele tinha se envolvido com drogas, mas segundo a conversa que tive com o tal há algumas semanas, isso não passava de fofoca.
Queria muito acreditar nele, mas Jack era o tipo de garoto propenso a se envolver com isso: seu pai, um cretino, diga se de passagem, o abandonou porque estava fugindo da polícia, sua família era um pouco mais pobre do que a minha, ele vivia nas ruas e tinha uma meia irmã pequena. Ah, e seu ex padastro, por sinal, abandonou sua mãe também. Sem uma figura paterna e naquelas condições, se ele se envolvesse com o tráfico de vertigo seria ‘‘justificável” — uma pena, porque, como um dia disse a ele, Jack tinha potencial para ser um grande líder.
Sorri fracamente, constrangida por não ter falado com eles.
— Oi gente! — Cumprimentei. — Estava apressada, não os vi aí.
— Relaxa pô! — Foi a vez de Jack sorri.
Fitei a pequena fachada de casa com uma careta. A tinta de baixa qualidade estava debotando e os fungos a fizeram ficar cheia de manchas pretas. Estava um horror, precisava mudar aquilo.
Entro dentro de casa e encontro Jean segurando um livro grosso no colo enquanto fazia anotações. Ela morde a tampa da caneta e parece concentrada. Cruzo os braços e me apoio na parede a observando. Jean tinha se tornado uma mulher linda e sexy deixando qualquer uma do gênero feminino — inclusive eu — com inveja.
— Estudando para as provas? — Perguntei fazendo-a sair de seu transe e olhar para mim.
— Sim, esse semestre está uma merda. — Ela comentou frustrada tirando o livro do colo e começando a arrumar suas coisas. — Sua mãe dormiu hoje sem precisar dos remédios. Provavelmente ela vai acordar no meio da noite agitada, então, trate de dá-los, ok?
Concordei com a cabeça.
— Jean, chame seu irmão pra vir aqui, por favor. — Peço quando olho para cima e vejo que mais uma vez o teto da sala estava vazando água. — Preciso que ele me faça um orçamento.
Ela assendiu e foi em direção a sua casa.
Dei uma conferida no meu quarto para ver se minha mãe ainda dormia, tirei meus sapatos e deitei no sofá com os pés para cima. Fechei os olhos para relaxar enquanto sentia uma sensação fria e boa descendo nas minhas pernas. Programo, então, o que fazer naquela noite: Falar com , tomar banho, comer e dormir.
Ouvi três batidas conhecidas na porta e o barulho dos passos foi ouvido. Sentei-me ereta no sofá e tentei arrumar meus cabelos.
— , já cheguei. — Ele avisou e em seguida apareceu na porta da sala.
usava uma camisa preta e uma calça jeans de lavagem clara — todo sujo de tinta rosa e branco. Ele sorri para mim fazendo as pequenas rugas em seus olhos aparecerem e um brilho dourado incendiou seus olhos claros.
Engoli o seco ao senti uma sensação de desconforto me dominar. Havia tempos que a presença de deixara de ser tão indiferente para mim e eu odiava admitir isso. Seria bem mais fácil se ele fosse um pouco mais feio.
— Por quanto você faz pra pintar a frente de casa e arrumar esse teto? — Apontei para cima e ele acompanhou meu movimento.
— Você vai querer que eu traga a tinta ou..? — Ele perguntou se aproximando e sentando do meu lado.
— Vou comprar na sexta. — Respondi me afastando alguns centímetros. — E esse vazamento?
— Olha, , vou ser bem sincero... — Ele passou a mão pelos cabelos pretos. — Acho que isso só se concerta com um novo cano e vai sair caro.
Passei a mão no meu rosto já vendo os zeros à esquerda da minha conta aumentar.
— Eu faço um preço bom pra você, está bem? — Ele disse ao ver minha cara.
Murmuro um agradecimento pensando em que conta mirabolante terei que fazer para poder pagar o concerto.
— Você vai amanhã levar sua mãe pra clínica? — Puxou o assunto e eu concordei com a cabeça.
— Só de pensar no dia de amanhã fico cansada. — Comentei e ele riu.
— Eu vou pra lá amanhã também. — Ele disse casualmente. — Vem cá, você tem a noite livre amanhã?
— Não, vou ficar com minha mãe. — Respondo estranhando sua pergunta.
— Ah... Estava pensando se nós poderíamos sair... — Ele coçou a nuca e desviou o olhar para o chão. — Eu posso falar com Jean se você quiser.
Encarei-o sem entender exatamente aquilo. Mesmo que já tivesse se declarado para mim, ele nunca tentou uma aproximação de verdade como me chamar para um encontro; lembro-me de ter deixado bem claro que não sentia o mesmo.
O que o fizera, depois de anos, ter tentado apenas agora?
— , acho que já falamos sobre isso. — Disse, mas pela primeira vez não tive tanta certeza sobre minhas palavras.
disse que me amava quando eu tinha uns 20 anos e foi justamente no dia em que ele havia pegado seu prazo. Desde então nós nos afastamos e nossa amizade mudou, mas só nos últimos anos comecei a perceber que estava sentindo falta dele mais do que deveria e uma sensação estranha começou a me corroer quando as pessoas falavam seu nome.
Algo de muito errado estava acontecendo comigo.
— Me dê um bom motivo. — Peço desafiando-o.
Ele deu um sorriso esperto e seu olhar me revelou que já esperava por aquela atitude minha. Calmamente ele pegou meu pulso esquerdo onde estava meu relógio com o Prazo e o pôs paralelo ao dele. Quando me deparei com os números dos nossos relógios iguais prendi a respiração.
— Você é minha destinada. — Ele sussurrou e eu me arrepiei toda com aquela informação.
Era muito fácil esquecer que aquele objeto estava ali pronto para decidir meu futuro, aliás, Ivana me falara diversas vezes sobre como eu deveria ser legal com meu destinado e todo aquele blablabla. Agora os números tão iguais que marcava nosso prazo cruzavam também o nosso caminho.
era meu destinado.
Olhei para ele com a boca aberta sem acreditar que eu havia tido a chance de conhecer meu destinado antes do prazo e que ele sempre esteve ao meu lado. Literalmente.
— Mas... Mas... — Tentei formular uma frase coerente, mas não deu muito certo.
— Eu queria esperar até o dia para provar pra você, mas, , não consigo aguentar de ansiedade. — seus olhos brilhavam.
Meu coração batia rápido demais quando delicadamente ele acariciou meu rosto com o polegar. Seu olhar fitou meus lábios, mas ele se afastou quando alguém passou buzinando pela rua. se levantou rapidamente e eu fiz o mesmo se entender nada do que acontecia exatamente.
— Venho te buscar as sete. — Avisou sorridente e sumiu do meu campo de visão.
Não sei quanto tempo fiquei no meio da sala em pé tentando absorver aquelas informações. Subitamente o meu lado racional que havia ficado neutro durante aquela situação me lembrou que poderia ser apenas uma grande e bombástica coincidência, que talvez não fosse meu destinado. Eu não sabia muita coisa sobre o sistema, mas além de descobrir que nem todo mundo tem um fim trágico por não aceitar seu destinado, também sabia que naquela sociedade não existia coincidências em relação a prazos.
Eu tinha quase 99% de chance de ser a destinada dele.
Um barulho vindo do meu quarto me tirou de meus devaneios e eu corri para ver oque era. Minha mãe se debatia na cama com os olhos arregalados e estava ofegante. Aproximei-me e segurei seus ombros para que ela relaxasse.
— Está tudo bem, foi só um sonho ruim. — Falei calmamente e a ajudei a sentar na cama.
Retirei seus cabelos ralos da frente do rosto e coloquei atrás de sua orelha. Seus olhos verdes me miravam atentamente enquanto eu massageava seus ombros.
Minha mãe estava magra e parecia estar mais velha do que era. Tornou-se perceptível o quanto a doença a atacara — nem mesmo andar ela conseguia mais. Esperei-a parar de se agitar e lhe dei um calmante recomendado pelo médico. Sentei em seu lado para que ela deitasse em meu ombro e comecei a acariciar seus cabelos enquanto falava sobre meu dia e o quão confuso fora. Provavelmente ele não entendia, mas o tom da minha voz a fazia se concentrar em mim.
Minutos depois minha mãe dormia calmamente ao meu lado. Beijei sua testa e sussurrei “eu te amo”. Antes que eu percebesse também estava dormindo não seguindo o programa que havia feito para aquela noite.
Mas quem se importava? Era bom demais que dormir abraçada com minha mãe.
Às 10 horas da manhã a van oferecida pelo governo buzinava na frente de casa. Junto com Jorge levei minha mãe nos braços e a cadeira para conduzi-la sem problemas quando chegasse à Clínica San Tomaz.
A Clinica San Tomaz era uma das melhores e maiores instituições públicas do país em tratamento de doenças, onde atendia desde a viciados em drogas a pessoas com Mal de Alzheimer como minha mãe. Quase toda semana eles desenvolviam algum trabalho social para as crianças e adolescentes da cidade tirando muitos do bombardeio da violência que culminava em meu bairro.
Lá era um dos poucos lugares onde a Ala não importava; havia pessoas desde A a Z vivendo em uma harmonia que chegava a ser utópica. Entretanto, a verba que ia para a clínica tinha sido reduzida desde que Aitofel deixou de ser governador do nosso estado, há quase dez anos atrás. Mesmo assim, a clínica não perdeu seu prestígio. Quase toda semana alguns adolescentes se organizavam para fazer peças ou shows de uma banda de garagem para arrecadar fundos tanto para clínica quanto para movimentos sociais. Ali era um dos poucos lugares em que você se sentia igual a qualquer um como dizia a lei, todos nós estávamos unidos pelos nossos problemas.
Naquele dia eu havia acordado muito ansiosa e eufórica. Depois de muito pensar, decidir dá uma chance ao . Ele merecia uma oportunidade e, agora que era quase certo nosso destino, parecia ser o justo a se fazer.
Olhei para a janela da van e percebi que a história de destinado não era tão ruim assim — até conseguia imaginar minha vida ao lado de . Balancei a cabeça quando percebi que estava começando a ir longe demais, nem sabia se realmente daria certo! É bem verdade que quando são destinados a chance de separação é mínima, mas as dificuldades não são iguais para todo mundo.
Despertei daqueles pensamentos quando a van parou à frente da clínica e percebi que as pessoas estavam descendo. Com ajuda de Jorge coloquei minha mãe na cadeira de rodas e encarei a grande fachada branca com os letreiros azuis da clínica. Pude ver um sorriso feliz aparecer no rosto da minha mãe ao sentir o vento bater em seus cabelos tão bem penteados para trás.
Os sábados eram um dos poucos dias que eu tinha a oportunidade de ver minha mãe se divertindo. Desde que os sintomas começaram a aparecer me preocupei bastante com sua saúde emocional e sabia que deixa-la o tempo todo em casa não era o caminho que eu deveria seguir. Às vezes a Organização MedAlzheimer fazia palestras na clínica e por meio destas soube exatamente o que fazer para que a doença não acabasse de vez com a vida de mãe.
Autorizei minha entrada e empurrei a cadeira de rodas pela rampa enquanto olhava para os lados procurando o grupo em que ela normalmente ficava. De longe podia ver os grupos sentados na grama conversando, idosos andando de braços dados com suas enfermeiras e crianças reencontrando seus entes queridos. Aquela era a única parte onde não era dividida entre os casos, mas nem todas as pessoas poderiam ficar por lá já que algumas ameaçavam a boa convivência. Aproximei-me de um dos painéis com a programação para pessoas com Mal de Alzheimer e escolhi o teatro de fantoches da Sala 12 que desde sempre minha mãe adorava.
— Acho que você vai adorar a história de hoje, dona Leticia. — A voz de Ivanna chamou atenção de nós duas e viramos o rosto para vê-la.
Ivanna não tinha mais do quê 44 anos e exalava uma jovialidade que poucos tinham, entretanto, seus familiares a consideravam um fardo. Ela teve problemas na formação de seu corpo durante a gravidez de sua mãe a fazendo ter suas pernas atrofiadas. Sua família é da Ala B e ter uma herdeira de uma boutique famosa cadeirante foi assustador para todos eles, era previsível que não saberiam como lidar com essa situação. Não era surpresa que a fizessem se sentir culpada por ter nascido assim e, como consequência, ela se tornou alguém depressiva — uma ótima desculpa para seus parentes a internarem na Clínica. Felizmente ser internada foi a melhor coisa que aconteceu para com ela; mesmo que Ivanna não estivesse mais doente insistira para continuar ali e ela não teve nenhuma dificuldade para ficar.
Foi quase automático fazer amizade com aquela mulher. Ela era divertida e sabia rir de si mesma, logo, ganhei uma segunda mãe que amava costurar roupas em nível de grife para mim e a melhor conselheira de todas.
A família de Ivanna não sabia a preciosidade que estavam perdendo com medo do desconhecido. Tenho certeza que se eles não tivessem a rejeitado e a deixado tomar conta do que era para ser dele por direito, em questão de tempo a boutique faria mais sucesso e, quem sabe, eles não chegassem a ser da Ala A.
Minha mãe a respondeu com o cenho franzido não entendendo exatamente o que ela dizia. Ivanna colocou os cabelos curtos para trás da orelha e se aproximou mais com suas mãos nas rodas sem nenhuma dificuldade.
— Como você está menina ? — Perguntou a mim quando começamos a ir em direção a Sala 12.
— Muito bem e você? — Perguntei e ela concordou com a cabeça.
— Está mais radiante. Aconteceu alguma coisa nova que não estou sabendo? — Ela indagou assim que chegamos a frente da sala.
Sorri, mas demorei alguns segundos para respondê-la.
— Acho que encontrei meu destinado.
Confesso que esperava que ela comemorasse por finalmente ter parado de lutar contra meu destino. Pensei que Ivanna ia fazer milhares de perguntas sobre meu destinado e iria me parabenizar por ter sido sortuda o bastante em encontrar meu destinado antes da hora, mas, em vez disso, ela fez uma careta de desaprovação.
Arrumei um bom lugar para ver a peça e me sentei entre minha mãe e Ivanna. No momento que me sentei diminuíram a iluminação e a apresentação de bonecos teve seu início. Minha mãe agarrou meu pulso, como sempre fazia quando ficava escuro, mas permaneceu quieta observando show de cores. Mesmo não sendo recomendável uma chuva de mensagens para pessoas com Mal de Alzheimer, aquela apresentação conseguia fazer, de alguma forma mágica, que as pessoas vidrassem no que acontecia. Minha mãe era uma dessas pessoas.
— Me explica essa história de você ter encontrado seu destinado. — Ivanna sussurrou para mim.
— É o . — Respondi. — Comparamos nossos relógios, estão iguais!
— Isso me parece muito estranho. — Ela comentou ranzinza. — Cuidado, menina.
— Claro Ivanna. — Garanti e virei-me para prestar mais atenção no teatro de fantoches.
Pensei que a parti dali nossa conversa tinha acabado. Não podia estar mais que remotamente errada. A verdade é que Ivanna era uma das pessoas mais desconfiadas que eu conhecia e, geralmente, sua desconfiança fazia sentido. Aliás, fora ela que tirou da minha cabeça a maldita ideia de que as pessoas colocavam a vida de seus destinados em risco caso não acreditasse no sistema — coisa que Dassy pôs em minha mente.
Estávamos indo ao refeitório pegar um lanchinho quando ela abordou o assunto. Era perceptível que Ivanna estava querendo falar alguma coisa há muito tempo, pois que ela mantinha aquela carranca de quem comeu e não gostou.
— Vocês dois vão sair juntos? — Ela indagou subitamente.
— Hoje à noite. — Respondi tentando ao máximo não parecer nervosa.
— Você tem certeza que ele é seu destinado? — Ivanna me encarou séria.
— Tinha, até você começar a me fazer desacreditar. — Minha voz saiu baixa e constrangida.
Antes que ela replicasse um dos novos cadeirantes passou como um jato pelo corredor. Assustamo-nos e logo Ivanna constatou que era um dos garotos problema que era empurrado por outro encrenqueiro na maior velocidade pelos cantos. Eu conhecia o garoto que estava na cadeira de rodas, Josh era o nome dele; desde que ele chegara havia arrumado confusão fazendo-o ser restrito de vir para Clínica por algumas semanas meses.
— A mãe desse menino já falou pra não andar com esse Josh! — Disse Ivanna irritada. — Ela já falou pra ele parar de andar com esse aleijado!
Foi automático. Troquei um olhar de apenas alguns segundos com ela e caí na risada. Ivanna também ria logo quando percebeu exatamente o que tinha acabado de dizer.
— O sujo falando do mal lavado. — Ela murmurou ainda rindo.
Minha mãe nos olhava alheia ao que acontecia. Ao entrarmos no refeitório e encontrarmos um lugar confortável, Ivanna abriu o jogo para mim.
— Apenas tenha cuidado. — Disse solene. — Não quero que você se machuque.
Suspirei.
— Acho que já passei tempo demais com medo de me machucar, Ivanna. — Respondi.
Ela acenou concordando com o que eu disse e não voltou a tocar no assunto. Fiquei um pouco pensativa depois do que ela disse, mas, logo quando ela falou sobre um macacãozinho que fazia para mim, deixei meus pensamentos para depois.
À noite parecia que nunca chegava, mas logo quando deu as caras me vi em um dilema: não sabia o que vestir. Me maldizei por ter me dedicado a inventar encontros a vivê-los quando podia — é bem verdade que não tinha muito tempo livre durante meu ensino médio onde eu tinha um emprego na Gama Pizzarias como entregadora de pizzas.
Bons tempos, inclusive, eu adorava descobri vários atalhos pelos bairros da cidade em cima daquela Honda amarela.
Depois de dá banho em minha mãe e deixa-la assistindo TV, fui me arrumar rápido, evitando permiti-la ficar sozinha por muito tempo. Escolhi um vestido soltinho de cetim vermelho que usei na festa de fim de ano da empresa há dois anos antes, pois fazia tempo que não o usava e sapatilhas; caprichei com o que pude com os poucos itens de maquiagem que me pertencia. Eu tinha consciência que não iríamos a algum lugar refinado, porque era tão pobre quanto eu, então, tentei não ter muitas expectativas sobre o lugar onde teríamos nosso encontro.
Quando estava pronta e arrumei uma pequena bolsa com minhas coisas, sentei na ponta da cama e chamei a atenção da minha mãe. Ela abria e fechava a boca, mas não conseguia falar nada. Segurei suas mãos esqueléticas e mirei seus olhos verdes.
— Vou a um encontro agora, mãe. — Sorri pra ela. — Com o . Imagina, eu e ? Quem diria?
Ela desviou a atenção para meu vestido, esquecendo-se completamente de mim. Entrelacei nossos dedos e beijei sua mão.
— Jean vai vir pra ficar com a senhora hoje, ok? — avisei e quase automaticamente a voz da tal ecoou pela casa.
— CHEGUEI, ! — Ela gritou e apareceu na porta minutos depois toda despojada.
— falou que você pediu para eu ficar aqui com sua mãe. — Ela entrou segurando um livro de capa vermelha ao seu lado.
Concordei com a cabeça e me levantei. Suspirei nervosa e senti meu coração começar a palpitar como uma britadeira.
— Você sabe de tudo não é? Tem... — interrompeu-me.
— Vá logo, , você não pode deixar ninguém da empresa a esperando. — Apressou-me.
Olhei para ela com o cenho franzido. Que diabos ela estava falando? Abri a boca para explicar que eu estava indo a um encontro com , mas o barulho de alguém batendo na porta me interrompeu outra vez.
— Deve ser . — Disse ela. — Não voltem tarde da noite, não quero que vocês sejam assaltados no metrô.
Fui até a porta confusa com o que Jean havia dito e a abri despreocupadamente. Me segurei para não abri a boca e começar a babar em cima de . Tentei, miseravelmente, forçar minha mente a lembra a última vez que eu o vi sem está todo bagunçado ou com cara de cansado. Seus cabelos negros estavam bem penteados e ele vestia uma roupa casual — sem tinta — que dispenso detalhes. Apenas me vidrei na sua barba mal feita e o castanho claro de seus olhos esbeltos. Simplesmente me rendi aquele encanto que antes não via e me achei tola por não tê-lo avistado antes.
Meu destinado sorriu e estendeu a mão esquerda com o relógio que já estava unindo nossas vidas para que eu segura-se.
— Pronta?
Encarei-o por alguns segundos sem saber exatamente o que dizer. Eu odiava quando ficava nervosa daquele jeito, porque parecia que meu cérebro virava gelatina e não funcionava direito.
— É... Claro. — Respondi, sem muita firmeza.
Segurei sua mão e, nos pequenos segundos em que ele ficou de costas para mim, fiz uma careta desgostosa com minha falta de maturidade em relação a um simples encontro. Na minha cabeça aquilo só significava uma coisa: Essa noite seria um desastre.
Capítulo 3
avisou que achou por bem irmos andando para podermos conversar mais, já que onde nós estávamos indo era perto. Concordei com a cabeça e dei um sorriso leve para mostrar que estava tudo bem, pois eu sabia que no fundo seu carro usado tinha quebrado outra vez naquele mês.
Passamos as primeiras duas quadras em um silêncio desconfortável porque eu tentava pensar em algum assunto bom para conversarmos. Sentia uma pressão invisível em minha mente, pois sabia que já havia ido a muitos encontros — principalmente quando éramos adolescentes. Ele podia ser pobre, mas era atraente e nenhuma garota, até mesmo da Ala A, na época do Ensino Médio, rejeitaria um encontro com . Jean reclamou uma vez para mim que garotas ligavam incontáveis vezes para o telefone fixo de sua casa e que foi um alívio para ela e sua mãe quando cancelaram a conta por não poderem pagar mais.
— Você esteve na clínica hoje? — Puxou assunto e o agradeci mentalmente por isso.
— Sim, foi bastante divertido. — Comentei sentindo uma agonia por não saber onde colocar minhas mãos. Inferno. — Por que Jean estava com um papo estranho de festa na empresa? Ela te disse algo sobre isso?
Ele sorriu amarelo a minha pergunta e coçou a nuca.
— Eu menti pra ela. — Abri a boca para perguntar o motivo, mas ele continuou. — Acho que é melhor esperarmos o dia do nosso prazo chegar para dá a notícia. Quero fazer surpresa.
Olhei para ele tentando confiar naquela história de sermos destinados como antes, mas a voz de Ivanna invade minha mente em sussurros. Cuidado, menina.
Decidi ser sincera com ele e contar-lhe o que estava se passando em minha cabeça, mas o vislumbre de Jack correndo para dentro de uma casa com som alto me desconcentrou. Naquela hora da noite era normal haver festas no bairro. Não eram lugares muito seguros já que sempre a polícia era acionada e pessoas eram presas todos os finais de semana com porte de armas, drogas ou sei lá o que. Ver Jack entrando naquela casa que tremia por causa do som alto, me fez querer desistir de meu encontro e puxar aquele garoto pelas orelhas até sua casa; no entanto, a voz de subindo umas oitavas pelo barulho que faziam dissipou minha ideia.
— Estamos chegando perto. — Avisou com um sorriso.
Dei uma olhada para trás cogitando em procurar pelo Jack, mas eu estava ali para um encontro, para uma noite especial. Suspirei e sorri de volta para e voltei a acompanha-lo com a certeza que descobriria o que estava acontecendo mesmo com Jack outra hora.
Donny's era a lanchonete/restaurante mais frequentada pelas pessoas dos bairros circunvizinhos ao meu. Era um lugar muito aconchegante e tinha comidas boas que poderiam ser pagas com menos de trinta dólares — se você fosse comer cereal com passas, é claro. Tinha também um cardápio diversificado de vários países; você quer comer comida mexicana? Chinesa? Seja o que for, eles tem! Eu costumava vir aqui no começo da minha adolescência com meus colegas de escola para comer nachos, nós comprávamos fazendo uma vaquinha. Havia quase uma década desde a última vez que tinha pisado no restaurante e quando percebi que era esse o lugar onde queria me levar, não pude deixar de ficar animada.
Meu destinado abriu a porta para mim com gentileza e não pude deixar de agradecer me sentando em uma das mesas perto da janela. Meus olhos capturavam a decoração alegre do lugar enquanto sentava em minha frente na mesa conjugada.
— Gostou do lugar? — Perguntou pegando o cardápio na mesa. — Sei que não é grandioso, mas...
— Tudo bem. — Disse. — Eu gosto daqui.
— Prometo... — ele segurou minha mão e olhou em meus olhos. — No dia que o prazo chegar vamos a um lugar melhor, ok?
Eu não ligava onde estivesse, pra mim, o que importava era a companhia; mas o ver me mirando com tanta intensidade ao fazer aquela promessa de mais um encontro, meu estômago embrulhou.
— Ok. — Respondi sorrindo e sentindo o peso daquelas palavras.
Minutos depois uma garçonete se aproximou perguntando pelos nossos pedidos. falou que escolheria o que eu comesse, então pedi tacos, pois não era muito caro e poderia saciar nossa fome e, além do mais, eu adorava comida apimentada. Meu destinado não deixou de fazer uma careta quando falei, mas ele concordou e pediu refrigerante para acompanhar.
— Você não gosta de tacos? — Indaguei sentindo vontade de me bater por ter escolhido aquela colinária.
— Não gosto de comida apimentada. — Ele disse. — Mas sem problemas, como assim mesmo.
Soltei um murmúrio sentindo aquele êxtase pela conversa anterior se esvair e o nervosismo tomar conta de novo. Dei um sorriso sem graça enquanto olhava para minhas unhas sem esmalte. Numas poucas idas ao salão que eu fui li algo nas revistas que dizia que homem reparava nas unhas nos primeiros encontros.
Droga.
Mas quem liga? Esmalte vai fazer alguma diferença? Se me julgasse por causa de um esmalte ele seria um completo babaca.
Droga de revista idiota. Eu estava perdendo o foco para coisas totalmente ridículas! Arg!
— Então... — Vi tentar começar uma conversa apoiando os cotovelos na mesa. — Como vai o trabalho?
— Bem. — Balanço a cabeça assendindo sem saber como continuar a conversa. — Estamos procurando novos sócios, investidores...
— Interessante. — Disse ele sorrindo. — Você trabalha naquela empresa de cadernos, não é? Esqueci o nome...
— Coral. — Respondi. — Não só são cadernos. A gente também é especializado em qualquer material escolar.
— A gente é? — Ele ergueu a sobrancelha. — Quem ouve pensa que você é um dos donos da empresa.
— Não sou dona, mas faço parte da empresa também. — retruquei da forma mais educada possível.
— Claro, claro. — Repetiu desviando o olhar. O silêncio constrangedor quer dá as caras, então, eu pergunto.
— E o seu trabalho? Como vai?
— É difícil não faltar, né? — Ele sorriu coçando a nuca. — As pessoas costumam comprar produtos baratos e não duráveis, então, já viu!
Dei uma risadinha junto com ele e a garçonete se aproximou com nossos pedidos. A mulher esguia piscou e saiu para devorarmos a comida. Minha barriga fez um pequeno barulho e percebi que morria de fome. Olhei para com os olhos arregalados esperando que ele não tivesse ouvido, mas meu destinado estava concentrado em encarar a comida como se fosse um rato morto.
Aquilo era um desastre! Tudo por culpa minha! Escolher comida mexicana foi um erro e faria o meu encontro ser horrível. De repente, uma ideia veio em minha cabeça.
— Ei, que tal fazermos um desafio? — Perguntei pedindo aos céus que desse certo.
levantou o olhar devagar interessado. Mordi o lábio inferior percebendo que acertei na jogada — Grey amava desafios e apostas.
— Duvido conseguir comer por mais tempo que eu tacos com pimenta sem tomar nada de refrigerante. — Digo ousada.
— O que vou ganhar com isso? — Disse coçando o queixo com o dedo indicador.
— Quem disse que você vai ganhar? — Indago incrédula.
Ele se aproxima segurando o olhar perto o bastante para que eu veja as pintinhas amarelas de sua íris.
Fico um pouco zonza quando sua voz rouca sussurra para mim.
— Eu sempre ganho o que quero, .
Minha língua estava em chamas fazia exatos três minutos e eu fitava o copo com refrigerante como se minha vida dependesse disso. batia os punhos na mesa enquanto fazia caretas tentando não ceder ao desafio, mas era visível que ele não aguentaria por muito tempo.
O prêmio que propus se eu ganhasse foi toda a reforma que havia pedido um dia atrás de graça e, caso ele ganhasse, poderia cobrar o triplo do valor real do seu trabalho.
Fechei a boca mesmo que meu cérebro pedisse que eu abrisse e puxasse minha língua para fora do meu corpo e não precisasse sentir aquela sensação horrível. Contudo, eu aguentaria, porque pagar toda aquela grana estava fora de cogitação.
Semicerrei os olhos em desafio para meu destinado tentando mandar um recado ao seu cérebro para desistir e, como se seu órgão respondesse, ele esticou a mão para pegar o copo e bebeu se molhando todo de tanta sede.
— Ganhei! — Gritei e logo me estiquei para beber o refrigerante tão rápido quanto ele, porém a sensação ruim na minha boca continuava.
— Não sei por que eu tive a ideia de colocar mais pimenta do que tinha nisso. — Resmungou ao terminar de tomar a bebida.
— Eu ganhei; não se esqueça disso. — Falei com um sorriso esperto nos lábios.
revirou os olhos ranzinza e colocou mais líquido em seu copo.
— Não que você vá me fazer esquecer disso. — Ele resmungou.
Peguei a metade dos tacos que eu não havia adicionado pimenta e dei uma mordida saboreando, mesmo que o gosto forte de pimenta não tivesse saído de minha boca.
— Você tem algum plano para o futuro? — comentou balançando o copo com refrigerante lentamente. Seus olhos percorriam a mesa até os meus com sutileza e charme.
Comprimir os lábios sem saber o que dizer.
— Não muitos. — respondi cautelosa. — Queria me dedicar mais a minha mãe.
— Entendo. — Ele disse de forma compreensiva. — Já eu penso muito em tentar sair da Ala O, ultimamente. Ver minha irmã entrar na faculdade me fez ver que eu posso sair desse fim de mundo.
Eu lembrava quando Jean começou a estudar para conseguir uma bolsa para a Universidade. , assim como a mãe dela, desacreditava que alguém da nossa Ala poderia conseguir algo tão grandioso. Fui a única a apoiá-la e no momento em que o resultado saiu os vi ficar de queixo caído ao constatar que Jean havia passado em um curso superior de enfermagem. Mesmo assim, não os culpava por não ter estado ao lado de minha amiga — Jean foi corajosa o bastante para mudar aquilo que o pai deles dissera quando os abandonara.
"Vocês são um bando de perdedores e vão continuar sendo."
Paul era um homem desgostoso da vida e sempre andava parecendo um mendigo pelos cantos. Annie, mãe de e Jean, sustentava sozinha a casa enquanto seu marido e destinado ficava o dia todo jogado no sofá bebendo cerveja e reclamando. No final, quando ele deixou sua família para casar-se com viúva da Ala M, foi um alívio não tê-lo em casa. E, é claro, dona Annie não hesitou em arrancar uns bons mil dólares dele por infringir a lei como destinado e deixado sua família aos cães. , ao contrário de Jean, era muito ligado ao pai e ouvi-lo dizer aquilo quando ainda era adolescente lhe trouxe traumas horríveis e medo do desconhecido.
— Pense fora da caixa. — repeti a frase que um palestrante disse em um dos aniversários da Coral a fim de que ele absorver-se o que eu queria dizer com aquilo.
— O que disse? — Perguntou distraído.
— Nada. — Murmurei achando que se ele não havia escutado aquela frase, provavelmente não era para eu ter dito.
Era pouco mais de dez horas da noite quando e eu percebemos que o restaurante ia fechar e não poderíamos ficar mais lá conversando. Foi questão de tempo até acharmos um assunto em comum, onde os dois ficavam confortáveis em falar, e começamos a dialogar animadamente. Não deixei de ficar um pouco mal quando percebi que a noite já estava acabando e, depois de dividirmos a conta, fomos andando como duas lesmas para casa.
Meu destinado me emprestou seu casaco, pois a noite estava fria. Estávamos no outono e, na pressa de sair de casa, esqueci de trazer algum agasalho. Agarrei o braço de para que esquentá-lo, pois percebi que os pelos do seu braço estavam eriçados por causa da repentina ventania.
— Posso te fazer uma pergunta? — Pedi subitamente.
— Claro. — Respondeu.
— Quando você percebeu que eu era sua destinada? — Indaguei.
— No momento que falei com o vidente. — respondeu — Ele me disse que era alguém que me faria querer sair da minha zona de conforto e você faz com que eu sinta isso. — sorriu encantador. — O relógio só foi uma confirmação do destino.
— Não acredito muito no sistema de destinados. — Confessei. — Mas talvez dê certo para nós.
— O destino nunca erra, . — Advertiu solene. — Tenho certeza que esses relógios vão marcar nossas vidas.
Ele levantou seu punho esquerdo para que eu visse o relógio igual ao meu.
Me apeguei àquelas palavras. Nossa rua estava deserta por conta do horário quando paramos à frente de minha casa.
— Eu escolhi sair hoje com você, não foi por causa desse relógio. — Afirmei.
— Não seja teimosa. — sorriu daquele modo que fazia minhas pernas tremerem a um tempo atrás. Sorrateiramente, deu um passo em minha direção e senti as mãos suarem.
— Foi ótimo passar esse tempo com você, . — Ele fitou toda a extensão do meu rosto e parou seu olhar minha boca.
Lambi os lábios nervosa quando percebi que estava a poucos centímetros de . Meu coração começou a bater rapidamente no momento em que percebi a respiração de meu destinado perto. O instinto dizia para que eu me afastasse dele porque eu não sabia o que fazer se ele me beijasse, mas seus olhos caramelos me prenderam.
— Também foi ótimo para mim, . — respondo com um fiapo de voz.
O sorriso que meu destinado dá é preguiçoso, mas se desfaz rapidamente quando seu olhar se prende mais uma vez em meus lábios. Ao tocar meu queixo testo a textura da ponta de seus dedos calejados e sinto sua boca me beijando.
Demoro alguns milésimos para eu fechar meus olhos e entreabro um pouco meus lábios ao senti sua língua querendo explorar minha boca. me beija em um ritmo lento e delicioso — um gosto bom de refrigerante e pimenta.
Sempre fui fã de temperos picantes e depois daquilo, certeza que ia adora mais ainda.
Meu destinado passeou sua mão em minha cintura apertando-a com posse enquanto deixava o beijo mais rápido. A adrenalina que eu sentia queimava minhas veias e fazia todos os hormônios que havia guardado em uma caixinha escondida se agitassem pelo meu corpo.
Quando se afastou eu deveria está rindo com uma idiota.
Não, não. Eu estava sorrindo com uma idiota.
Ele segurou o lábio inferior com os dedos enquanto me seguia no sorriso.
— Até amanhã, . — Desejou e me deu um selinho rápido.
Acenei para ele e murmurei uma despedida dopada de um sentimento incomum, nunca por mim experimentado. Abri a porta de casa e entrei estranhando o silêncio que fazia no imóvel, mas, então, sorri ao ver Jean largada em meu sofá velho dormindo profundamente. Acordei-a e minha amiga apenas murmurou uma boa noite, juntou suas coisas desajeitada e saiu de casa ainda bêbada de sono.
Ao constatar que estava sozinha me permitir surtar. Sentei-me em cima daquele sofá desgastado com um sorriso que não cabia no rosto.
Eu fui beijada. Finalmente.
É bem verdade que se a eu de dez anos me visse agora daria um chute em meu joelho por ter destruído todas as suas esperanças de ter a adolescência e juventude badalada e divertida, cheia de aventuras e coisas para contar.
Porém toda aquela espera pareceu valer a pena, afinal, eu gostei do beijo e foi com alguém que significa algo para mim e, se o destino e eu entrarmos em acordo, ele continuará significando algo para mim.
Naquela noite demorei para dormir de tão energética que fiquei e quando finalmente o cansaço me venceu senti que meu humor no outro dia estaria positivo em escalas absurdas.
Acordar cedo no domingo sempre foi complicado para mim. Sempre traduzia esse dia como o único que eu poderia descansar de verdade e esquece todo e qualquer estresse. Entretanto, havia um bocado de dias desde que acordara de bom humor naquele dia da semana — não que eu estivesse reclamando de cuidar da minha mãe, longe disso! Mas isso encurtava as poucas horas a mais que estava a minha disposição para descansar.
Naquela manhã, porém, acordei sem que o despertador tocasse e com bom humor. Aproveitei que ainda estava bem cedo e fui à lavanderia torcendo para que a dona Leticia não acordasse e — por sorte — quando voltei para casa ela continuava em seu sono profundo.
Foi inevitável observar minha mãe enquanto ela dormia tranquilamente em cima da cama quando fui arrumar nossas roupas no guarda-roupa. Antes eu havia pensado seriamente em interna-la na Clínica, pois lá ela teria um atendimento melhor, mas eu deveria pagar por uma enfermeira e, infelizmente, o meu salário não cobria os remédios, a enfermeira e os gastos da casa. O que pagava para Jean era pouco comparado a grande ajuda que ela me dava todos os dias e eu era eternamente grata àquela garota.
Fiz um pequeno carinho nos cabelos ralos de minha mãe e me apressei para arrumar a casa e cozinhar o café da manhã. Minha mãe acordou minutos antes de ter colocado toda a comida na mesa e tratei de cuidar de sua higiene. Troquei suas fraldas e lhe dei banho tendo o maior cuidado possível e, como sempre, acabei saindo encharcada do banheiro. Depois de vesti-la e acomodá-la na cadeira de rodas, me enxuguei e troquei de roupa rapidamente para dá-lhe sua refeição. Era um alívio para mim saber que os remédio que ela tomava conseguiu retardar a doença o bastante para que ela conseguisse comer sem precisar de sonda. Entretanto, eu não sabia quanto tempo duraria até vê-la ser totalmente limitada a uma cama e apenas se alimentando por um tubo.
Sinto meu bom humor murchar um pouco quando penso nisso e tento me concentrar em sentar em frente a minha mãe na cozinha e chamar sua atenção. Leticia está com a boca entreaberta e o olhar vago correndo pelas paredes encardidas de nossa casa.
— Ei, mãe. — A chamo e devagar ela me fita. Decidi fazer um prato com papa de aveia para ela e pão molhado ao leite para que ela conseguisse mastigar sem problemas. Pego uma colher com uma quantidade significativa de papa e ponho na altura de seus olhos para que ela veja.
— Olha o aviãozinho. — Brinco mexendo a colher em meus dedos, como se minha mãe fosse uma criança.
Isso funciona, porque ela segue meus movimentos até chegarem a sua boca e dona Leticia engole. Mesmo deixando um pouco de comida sair de seus lábios, fico satisfeita. Houve épocas horríveis em que ela se recusava a comer e estava aliviada de não estar passando por isso outra vez.
Depois de dá de comer para ela, limpei a e comi um pedaço de pão para tapear minha fome, no momento, era melhor não tomar café. Liguei o pequeno rádio e o deixei bem baixinho, apenas para não ficar aquele silêncio insuportável na cozinha.
Me pus a lavar a louça acumulada e de vez em quando fitava o que minha mãe fazia. Dona Leticia às vezes ficava olhando para o rádio tentando entende-lo enquanto eu cantarolava as músicas tão bem conhecidas por mim. As lembranças da noite anterior começaram a me dominar e senti vontade de voltar no tempo só para experimentar o calor de perto de mim outra vez.
Alterno a minha manhã entre fazer algum serviço em casa e dá suporte a minha mãe. O dia passa rápido, mas consigo fazer o básico para que tudo fique limpo e preparar almoço antes de dá duas horas.
Ponho a mão na barriga ao ouvir pela enésima vez meu estômago roncar.
— Acho que comeria um boi de tanta fome. — Sorrio para minha mãe que não demostrou reação ao que eu disse.
Desfaço o sorriso aos poucos imaginando se ela riria caso entendesse o que havia dito. Minha mãe sempre ria das minhas piadas — na verdade, ela ria de qualquer coisa. Essa foi uma das características que herdei dela: o riso fácil. Em meio a tanta pobreza que sempre vivemos, eu nunca a vi triste — a não ser, claro, no dia da morte de meu pai.
Assim que coloquei a bandeja com omelete em cima da mesa, ouvi o bater da porta. Gritei que já ia e me direcionei a entrada da minha casa. Quase caí para trás quando Grey se materializou em minha frente segurando pincel e tinta em suas mãos.
Cruzei os braços e sorri me apoiando no batente da porta.
— Não sabia que trabalhava dia de domingo. — Comentei.
— Não trabalho. — Ele sorriu. — Mas sempre há uma exceção.
Mordi meu lábio inferior e dei espaço para que ele entrasse em casa. Nervosa, sem saber onde colocar minhas mãos, enfiei-as no bolso do meu short jeans.
— Você já almoçou? — Perguntei enquanto o fitava colocar os seus materiais no chão.
— Ainda não. — Respondeu e eu o convidei a se juntar conosco na mesa.
Grey deu um pequeno aceno para minha mãe e sentou-se enquanto se servia. Diversas vezes veio almoçar em casa junto com Jean ou a mãe deles, Annie, porém, daquela vez era um pouco diferente. Não vou mentir: eu queria impressioná-lo com a minha comida.
Confesso que esperei ansiosa pelo que meu destinado falaria de minha omelete com bacon e por causa disso fiquei quase trinta segundo segurando a colher à frente da boca de minha mãe em vez de fazê-la comer.
Meu destinado percebeu e riu ao me pegar no flagra o observando com expectativa. Senti minhas bochechas esquentarem e foquei em alimentar a minha mãe que salivava de fome.
— Eu gostei, . — Comentou e eu não precisava me virar para mirá-lo para saber que ele mantinha o meio sorriso. — Muito bom, como sempre.
— Obrigada. — Sussurrei colocando uma mecha do meu cabelo para trás.
Depois de me certificar que minha mãe estava satisfeita, fui encher minha barriga. Nossa conversa se resumira, então, a suas dicas em relação a cores boas para pintar a frente de casa e murmúrios que eu fazia enquanto mastigava tentando concordar com ele.
Levei a minha mãe até o quarto e, com ajuda de , a pus em cima da cama. Certifiquei-me que ela estava segura e não precisava de muita assistência minha por um momento e segui Grey até a sala, pois ele alegou que precisava dá uma olhada no teto da sala.
— Está muito ruim? — Pergunto olhando para cima.
— Acho que isso ai não é o cano, deve ser água acumulada por causa da chuva dos meses passados. — Ele segurava o queixo com a mão direita. — Vejo isso amanhã.
Dei alguns passos me aproximando dele.
— Pensei que fosse pintar em casa hoje, mas pelo que você falou parece que vai ainda ver a tinta. — Levantei as sobrancelhas.
Ele deu um passo ficando bem mais perto de mim.
— Era só uma desculpa pra vim aqui. — Ele lambeu os lábios e segurou minha cintura com o seu braço ultra-mega-musculoso. Rodeei meus braços em seu pescoço aceitando a sua aproximação. Sinto aquela sensação de frio na barriga e sorrio.
— É mesmo? — Minha resposta sai em um sussurro antes de ser capturada pelos lábios de .
Ele é enorme e me cobre tanto com seus braços como com o seu corpo brutamonte. Diferente da noite anterior, me sinto com mais liberdade ao beijá-lo e aproveito com mais destreza seus lábios nos meus.
Ele tem gosto de hortelã dessa vez e é muito mais viciante. Então, no segundo em que eu me afasto de sua boca com seus dentes agarrando meu lábio inferior, lembro da minha mãe e a promessa que havia feito a ela; lembro das palavras de Ivanna sobre ter cuidado e minha indagação sobre ser realmente meu destinado.
Me afastei do Grey lentamente já demostrando minhas intenções em conversar. Por mais que estivesse adorando aquele momento, não gostava de adiar nada. Seria direta e colocaria um ponto final naquela dúvida que pairava em minha mente.
— , precisamos conversar. — Ele olhou para mim com as sobrancelhas arqueadas, tentando entender minha atitude repentina.
— Não acha que é cedo para termos uma DR? — Brincou. Cruzei os braços e andei em direção ao sofá, sentando. — Aconteceu alguma coisa?
— Não tenho certeza se você é meu destinado.
Vi sua expressão mudar para raivosa. Ele passou a mão no cabelo e se agachou a minha frente.
— Por que está dizendo isso? , a gente dá muito certo junto! — Seus olhos amarelados me encaravam — Mal começamos e você já quer desistir?
— Não é isso. — Minha voz sai segura e tento segurar seus ombros para acalmá-lo, mas ele se levantou rápido se desviando de minhas mãos. — Olhe, só quero ter certeza que estou no caminho certo. Eu digo que não ligo para essa baboseira de destinado, mas, no final, estou presa a esse sistema. Não tenho para onde fugir.
Ele cruza os braços e bufa. Parecia um touro (sexy) raivoso e fiz uma anotação mental de, caso nossa discursão chegue a algum lugar e vamos tentar um relacionamento, ou algo do gênero, irei tentar não despertar seu lado explosivo.
A personalidade de era um campo minado e eu havia pisado no lugar errado.
— Eu só sei que eu... — ele hesitou — Eu gosto muito de você e quero conhece-la melhor. Não posso provar, além dos nossos relógios, que sou seu destinado, mas eu sei o que sinto por você, , e é real e forte.
Não sei o que dizer depois de suas palavras. Fito seus olhos e encontro sinceridade neles. sentia algo por mim e eu acreditava que era forte — caso não fosse, não teria esperado tantos anos. Esse sentimento tinha algum sentido, não é? Poderia muito bem ser o famoso destino batendo em nossa porta mais cedo.
Tentei concluir, então, os sentimentos que estavam me invadindo desde que me chamou para sair.
Grey me dava segurança e era isso que estava precisando ultimamente; estava fazendo-me feliz, mais leve em apenas alguns dias e nem sabia! Mesmo que não seja o meu destinado, quero continuar e tentar com ele; um relógio qualquer não definirá quem eu quero que compartilhe minha vida.
Me levantei e o abracei. Assustado com minha atitude, Grey demorou algumas segundos para corresponder meu carinho e apoiar seu queixo em cima de minha cabeça. Afundei meu rosto em seu peito inalando seu perfume e murmuro.
— Quero muito que você seja meu destinado. Seria mais simples.
Penso em minha mãe, que não entende nada do que digo, mas confiou em mim antes de mais nada. Eu havia quebrado duas das suas promessas e fui egoísta com ela. Sinto meu coração se amassar no peito por falhar com dona Leticia. Mesmo mudando de opinião o tempo todo em relação ao sistema, torço para que sejamos destinados, pois todo mundo ganha com isso.
Sei que se isso não acontecer vamos sofrer um preconceito terrível e enfrentar momentos inoportunos com o nossos destinados — negar o sistema era mais fácil quando você é rico, ninguém tem coragem de enfrentar você — mas estava disposta a correr o risco.
— Vou lutar por você, . — Ele acariciou meus cabelos.
Então, percebo meu estômago cheio de borboletas e um sorriso se forma em meus lábios. Tivemos apenas um encontro e já estávamos daquele jeito! Como podia? Logo me lembro da montanha russa que minha barriga ficava ao ouvir seu nome e a falta tão demasiada que sentia dele, então, tudo faz sentido.
Meu coração afirma: você já estava apaixonada por .
Mas, claro, nunca admitiria aquilo em voz alta.
Capítulo 4
Eu estava atrasada pela terceira vez durante as duas últimas semanas.
O salto alto já gasto ameaçava quebrar, mas eu não podia desacelerar o passo; apenas me restava torcer pra que ele durasse. Nas outras vezes em que cheguei tarde foram dez minutos de diferença em relação a meu horário habitual, porém dessa vez quase não consegui acordar e estava meia hora atrasada.
Eu sabia exatamente de quem era culpa, contudo saber não despertava a fúria esperada e sim vontade de dá risinhos envergonhados.
Aconteceria uma hora ou outra que passar a noite entre conversas, beijos e amassos com resultasse a perca de algumas horas de sono e, claro, meu corpo insistia em querer as repor de qualquer jeito.
Merda. Pensei ao pisar em falso e quase torci o tornozelo.
Faltavam apenas duas quadras para chegar a sede da Coral, entretanto ainda tinha impressão de estar longe. Definitivamente eu deveria começar a expulsar Grey mais cedo de minha casa.
O negócio é que aquilo de manter nosso relacionamento escondido limitava nossas idas a lugares simples como o Deloy, o parque mais perto da Ala O. Às vezes, chegava tarde do serviço e extremamente cansado passando para me dá um "oi" apenas; ainda tinha a questão que eu nunca deixaria minha mãe sozinha mesmo que ela esteja adormecida pelos remédios para sair à noite. De jeito nenhum.
Menti para Jean de novo estava fora de cogitação para mim, já que a mesma estava no penúltimo ano da faculdade e não a prejudicaria por causa de um luxo meu.
Pensando na faculdade de minha amiga percebi que não havia ninguém no mundo que estava mais medrosa do que eu em relação a isso. Jean deveria está fazendo estágio há muito tempo, mas estava adiando por não querer deixar-nos na mão. Era questão de tempo e eu teria que internar dona Leticia na clínica com sabe Deus lá que dinheiro.
disse para mim que tentaria arrumar alguma pessoa de confiança para cuidar da minha mãe, mas nós dois sabíamos que isso era impossível. Ninguém iria cuidar de uma pessoa com um estágio de doença tão avançado.
— Você está atrasada. — Dassy falou com os olhos cerrados a me ver ofegante em sua frente.
— Diga uma coisa que eu não sei. — Falei ao colocar meu dedão para a biometria.
— O senhor Carter chegou faz cinco minutos. — ela deu sorrisinho esperto.
Tenho certeza que o choque de meu rosto era horrível, pois fez a morena em minha frente desfazer o sorriso.
Nunca nesses longos cinco anos em que eu trabalhava para Coral cheguei depois de meu chefe.
Corri para o elevador tão rápido que acabei esbarrando em algum dos engomados do recinto e apertei no botão sete tentando manter a calma.
Passei a mão no rosto e nos cabelos mortificada.
Eu estava lascada. Tudo. Culpa. Minha.
Passei o tempo todo agindo como uma babaca apaixonada que deixei meu relacionamento com atrapalhar meu trabalho.
Quando o elevador se abriu e comecei andar depressa para minha mesa, agradecendo mentalmente pelo andar não ter quase ninguém trabalhando. Estanquei no meio do caminho quando vi Albert Carter batendo o pé no chão e checando as horas. Andei de mansinho pensando que se caso não fizesse barulho ele não perceberia minha presença, mas antes de chegar no meu lugarzinho ele levantou o olhar severo para mim.
Abri a boca para pedi desculpas, entretanto meu chefe foi mais rápido.
— Não quero desculpas. — sua voz de trovão soou no comado quase vazio — Dessa vez passa, . — ele abriu a porta de seu escritório e eu quase pude ver fumaça saindo de suas orelhas - Quero minha agenda e meus emails organizados em cinco minutos.
Eu precisava ser rápida, muito rápida!
— Vamos logo com isso, ! — bradou senhor Carter fechando a porta com mais força que o habitual.
Sentei-me na cadeira me controlando para não tentar relaxar pela corrida até o prédio antes de fazer qualquer coisa, pois o tempo era escasso.
Senhor Carter odiava atrasos e eu sabia disso — foi o motivo das duas últimas secretárias serem demitidas, por esse motivo sempre cheguei antes do que ele na empresa. Me achei sortuda por ser alvo apenas de uma pequena "Tempestade Carter" e não ia abusar de minha sorte hoje.
Antes que eu pudesse rever todas as informações que coletei, o telefone tocou com um barulho exclusivo que soava apenas quando Sr. Carter ligava.
Suspirei e atendi com a voz amena.
— Sim, senhor Carter.
— Solicite uma reunião com Garry Fordnelly essa manhã e leve as fichas enviadas por ele na terça para o departamento de finanças. — e desligou sem mais delongas.
Tive vontade de grunhir em frustração só de pensar em ter que falar com Celine West, a famosa vaca, para realizar o pedido de meu chefe.
Eu não era uma girl hater e nunca perderia meu precioso tempo odiando alguém por nada, mas havia um motivo para Celine ser considerada uma vaca pelo prédio inteiro. Aquela garota não fazia absolutamente nada de produtivo, passava horas pintando as unhas e fazia uma barreira cheia de empecilhos para que as pessoas conseguissem uma simples conversa com seu chefe — dificultando não só a comunicação na empresa como o trabalho de todo mundo pelo fato de Garry era um dos principais líderes do RH da Coral. Eu sabia, porém, que seu chefe amava isso Garry era outro preguiçoso de merda.
Diziam as más línguas que ela apenas continuava na empresa por ser a amante jovem de Garry, mas não me ateio a isso, pois não diz respeito a mim.
Organizei a agenda de Albert e joguei tudo na pasta compartilhada. Me levantei disposta a ir falar com Celine pessoalmente, porque sabia que seu telefone ficava mudo quase o dia todo. Mas, antes, eu precisava tomar um copo com água. Gelada, de preferência.
Celine era baixinha, tinha os cabelos tingidos de loiro e olhos azuis. Ela estava debruçada em sua mesa olhando para os esmaltes azul turquesa em uma das mãos e vermelho escarlate na outra quando cheguei a seu andar. Seu rosto estava concentrado como se jogasse uma partida de xadrez tentando decidir o que queria. Fitei seu telefone fixo fora do gancho e suspirei ao constatar que fiz uma boa escolha vindo aqui. Cocei a garganta chamando sua atenção.
Ela levantou seus olhos azuis e revirou-os ao perceber quem era.
— O que você quer? — falou ríspida.
— Senhor Carter solicita uma reunião particular com Garry Fordnelly. — eu disse me surpreendendo com o tom formal que saíra da minha boca.
— Infelizmente...
— Senhor Carter solicita uma reunião particular com Garry Fordnelly. — a interrompi repetindo minha frase.
Ela me olhou com repreensão, mas continuei com o olhar firme, não desviando.
— Às onze horas ele deve está no escritório de senhor Albert Carter ainda hoje. — Expliquei sabendo que o nome do meu chefe seria levado em conta. Quem seria louco o bastante em negar um pedido de um dos maiores chefes da Coral?
— Vou deixar recado. — Ela murmurou voltando a olhar para seus esmaltes.
Virei-me sem me despedi agradecendo aos céus por ter sido mais fácil do que imaginei.
Eram onze e quinze e nada de Garry Fordnelly aparecer.
Foi muito idiota da minha parte pensar que seria fácil.
O barulho característico do telefone começou a tocar e eu respirei fundo tentando tirar a ideia de fingir que não o escutava da cabeça.
— Sim, senhor. — Falei mordendo o lábio inferior.
— Onde está Garry? — Sua voz denunciava a impaciência. — Consiga o número do celular dele, o particular.
Abri a pasta de contatos de todos da empresa e saí pesquisando. De alguma forma não havia muitas informações necessárias de se contatar com Fordnelly nos diversos arquivos, só restou um número de celular antigo.
— Estou esperando. — Resmungou senhor Carter.
Bem, vai ter que servir.
Ditei o número duas vezes antes de meu chefe desligar.
Precisei ficar cinco minutos batendo pé ansiosa para Garry aparecer na porta do escritório com uma lerdeza de dá agonia. Antes de autorizar sua entrada, senhor Carter abriu a porta como se pressentisse a sua chegada.
— Está atrasado. — Foi o que disse em primeira instância.
— Desculpe, não recebi o recado. — Justificou Garry.
— Tenho certeza que sua secretária deve ter se esquecido de avisar, estive com Celine o tempo todo e não deixaram nenhum recado.
Olhei para ele mortificada, sem saber exatamente o que fazer diante daquela mentira tão descarada, mas, antes de dizer alguma coisa, senti todos os meus músculos endurecerem como pedra ao sentir o olhar mortal de Sr. Carter.
— O que você diz sobre isso, ? — a voz do meu chefe soou como um trovão me fazendo engoli o seco.
Tinha uma desculpa na ponta da língua, afinal, eu estava com a razão, mas minha garganta fechou e só consegui balbuciar.
— Esqueça. — Garry disse mexendo a mão em desdém. — Já perdemos muito tempo.
Albert concordou, sem antes, claro, me lançar um olhar Assusta Criancinhas Inocentes e os dois entraram no escritório me deixando sozinha em silêncio.
Afundei-me na cadeira sentindo minha cabeça latejar de estresse.
Que dia ótimo, já pode acabar.
A mesa do refeitório fez-se um curto período de silêncio depois que contei sobre o que tinha acontecido de manhã e começamos a desatar uma onda de xingamentos para Garry e Celine. Passei meus olhos pela mesa fitando cada uma das minhas amigas e senti falta da Franz e seus óculos desproporcionais ao seu rosto. Abri a boca para perguntar por ela quando a mesma sentou com tudo na cadeira ao meu lado me dando um susto.
— Minha vida está acabada! — Ela choramingou.
Sua roupa estava mais desarrumada do que o normal e os olhos inchados. Franz, que sempre foi desleixada com sua beleza, estava um trapo.
— O que aconteceu? — Mary perguntou, alarmada.
Então, nossos olhos pararam no seu pulso esquerdo apenas com a marca de que nos últimos nove anos havia um relógio lá.
— Você conheceu seu destinado?
— Como ele é?
— Ele é bonito?
— Ele é rico?
As perguntas foram gritadas com uma animação animalesca, mas continuei quieta. Ao contrário das meninas, eu havia juntado um mais um e deduzido que o motivo da histeria de Franz era por culpa de seu destinado.
Demorou alguns segundos e uma careta de alguém que começaria a chorar para que todo mundo ficassem quietos.
— Ele é... — Ela soluçava. — Casado e só tem 25 anos! E ele... Quando o relógio vibrou... Ele estava com a mulher dele...
Franz colocou as mãos no rosto, desamparada.
— E ela é linda e rica. — Ela apontou para si mesmo. — Olhem para mim! Sou desengonçada, sou...
— Não faça isso consigo mesmo, Franz! — a censurei. — Se ele está casado, tudo bem, oras! Procure alguém que a ame e...
— Você perdeu o juízo, ? — Mary ralhou — É isso que você diz para sua amiga?
As garotas me olhavam com descrença enquanto Franz soluçava alto e era acalentada pelo abraço de Dassy.
— Mas... — tentei me defender.
— Ele não podia fazer esse mal pra você, Franz! — Mary me ignorou, solicita. — Pois você vai sair comigo no final de semana e vai encontrar esse seu destinado metido a besta! O babaca vai ficar tão apaixonado que não conseguirá passar o resto da semana sem ter assinado o maldito divórcio.
Arregalei os olhos ouvindo os murmúrios de aprovação.
— Mas, Mary, você não pode... — falei nervosa.
— Sim. — Franz passou a mão pelo rosto enxugando as lágrimas bruscamente. — Eu vou fazer isso.
— Essa é a minha garota! — Dassy comemorou dando uma chacoalhada nos ombros da mulher.
Busquei algum tipo de socorro entre as meninas, mas todas pareciam apoiar aquela ideia ridícula.
Se jogar em cima de um homem casado apenas por causa daquele relógio estúpido? E se o destinado dela não fosse um bom companheiro? E se ele fosse mais feliz com sua atual esposa do que com Franz?
Apertei meus lábios sabendo que perguntar não me traria respostas e protestar muito menos. Todo mundo me ignoraria ou me atacaria como se eu estivesse dizendo calunias sobre sua crença.
Às vezes, minhas amigas soavam como fanáticas religiosas em relação aquele sistema e eu não podia odiá-lo mais por ser daquele jeito.
Me limitei a mexer na pouca comida que sobrou de meu prato, fingir não escutar aqueles comentários maldosos em relação a esposa do destinado de Franz e logo arrumei uma desculpa para voltar a minha mesa e passar o resto do horário de almoço xingando a sociedade que eu sou obrigada a fazer parte.
Enquanto me apoiava em um daqueles ferros do trem para manter o equilíbrio, me permiti fechar os olhos e soltar um suspiro exausto. Ainda estávamos na quarta-feira e eu teria que engoli muito sapo até aquela semana acabar, entretanto, na segunda tudo viria como um furacão para cima de mim de novo.
A vontade de desisti me atingiu com força e pude avaliar minhas opções: poderia me demitir e procurar algo mais perto. Foram anos trabalhando na empresa, me possibilitando alguns meses de seguro desemprego, tempo suficiente para achar um emprego de garçonete ou camareira. Sorrio pensando em, talvez, não precisar me submeter a difamações na empresa, ter que atravessar a cidade para trabalhar, ou, melhor, não sofrer preconceito algum por ser de uma ala inferior.
Mesmo a maioria das pessoas terem se acostumado com minha presença pelo prédio, ainda podia senti aluns olhares de esguelha e caretas desconfortáveis quando apareço.
Quase quando uma mulher idosa tentou sair de seu banco e passou por mim como rapidez segurando várias sacolas.
— Desculpe. — Peço, mesmo sabendo que eu estava certa.
A mulher não responde e eu me seguro para não gritar “Mal educada!” quando a vejo ir em direção à porta.
Então, tento chutar a ideia de sair da Coral de minha cabeça.
Nunca encontraria um emprego que pagasse 20% a mais do que um salário mínimo para alguém que só fez ensino médio e ainda oferecesse o plano de saúde para mim e minha mãe.
Olho para o céu pedindo forças para continuar. Rapidamente a imagem de meu pai aparece em minha cabeça; tento impedi-la de vir, mas é quase impossível. Antes que possa fazer algo em relação a isso, consigo ver Steve de joelhos para ficar na pequena de apenas 7 anos.
Ele tinha cabelos lisos e castanhos, como o meu, que sempre insistiam em cair em seu olho, porque ele demorava muito para cortá-lo — e minha mãe o dizia que o deixava mais jovem. Steve era um faz tudo, como , mas não era exageradamente forte; tinha uma sabedoria de quem já viu muita coisa durante sua vida. Ah, e tinha uma barba que quase nunca ele fazia e arranhava meu rosto toda vez que ele beijava minha bochecha ou minha testa.
Eu estava com os olhos vermelhos, pois passei um bom tempo chorando frustrada por não ter conseguido achar a palavra ascensão do caça-palavras de dois dólares que ele sempre me trazia.
— Desisto, papai, eu não quero! — gritei e recebi um olhar repreendedor que me fez encolher.
— Não desista tão fácil, meu amor. — Ele disse segurando o caça-palavras amassado em sua mão. — Dê o seu melhor.
E entregou o papel para mim; demorou apenas cinco minutos para que eu achasse aquela palavra e ele sorriu com orgulho. Lembro-me de seus olhos escuros tão brilhantes ao me dizer no jantar que o único sentimento que eu precisava para continuar viva era perseverança.
Ele deveria está aqui, cuidando de mim. Deveria...
Balanço a cabeça tentando afastar meus pensamentos do papai. Passei a maior parte do tempo me fazendo esquecer-se dele que às vezes esqueço-me do quanto ele influenciou e influencia em minha vida.
Assim que pus meus dois pés no segundo degrau de casa a lembrança da data de hoje me atingi em cheio e tenho vontade de bater minha cabeça na parede.
Já tinha duas contas atrasadas da conta de luz por causa do dinheiro que tinha gasto com a manutenção da geladeira. Hoje a terceira vencia e eu nem mesmo lembrei de passar no banco.
Parabéns, , você terá que pagar mais juros do que precisava.
Estou muito orgulhosa por você.
Seguro a maçaneta com a melhor cara de quem queria estar morta e aparece saindo da sua casa com uma animação estranha.
— Oi, . — Dou um sorriso automático apenas por vê-lo ali, mas contido; nem mesmo sua presença conseguiria mudar meu humor hoje.
— Oi, . — Respondeu sorrindo. Ele apoiou-se na porta observando meu rosto. — Como foi seu dia?
Horrível, penso dizer, preferiria ter ficado o dia todo na cama.
— Espera, antes preciso te contar uma coisa. — Disse e eu apurei os ouvidos. — Eu arrumei um emprego como jardineiro em uma daquelas casas da Ala C! Isso não é ótimo?
Sorrio feliz por ter conseguido um emprego melhor do que ele tem no momento. Se não estivéssemos no meio da rua eu o abraçaria e encheria o de beijos.
— Você não sabe o quanto é bom pensar que não preciso sair por ai procurando algum serviço. — Comentou radiante.
— Parabéns, . — Digo segurando o impulso de abraçá-lo.
— Ah, o que você dizia mesmo? Sobre seu trabalho? — Ele indaga, lembrando vagamente de sua pergunta anterior.
Ele estava tão feliz que não iria aborrecê-lo com meus problemas, então, falo com meu melhor sorriso.
— Foi normal — e dei os ombros.
Meu destinado se aproximou sorrateiro até o pequeno muro que nos separava e fiz o mesmo, entendendo o que ele queria fazer. Ele abriu os braços e nos enlaçamos em um abraço bom e reconfortante.
— Obrigado por me apoiar, . — Sussurrou em meu ouvido causando arrepios.
— Disponha. — Respondi com um sorriso querendo que aquele muro estúpido que nos separava desintegrasse para que eu pudesse me afundar em seus braços fortes e o cheiro da colônia de sua mãe tão conhecida por mim. Contive o sorriso, pois sabia que seu perfume tinha acabado e ele estava usando o da mãe até que conseguisse mais dinheiro.
Nosso abraço foi rápido e logo me vi entrando em casa com um pouco mais de animação. Me deparei com Jean lendo e minha mãe com o rosto cansado dos remédios que estavam começando a fazer efeito na sala.
Beijo sua testa da dona Leticia e me disperso de Jean com um aceno antes de me deitar no sofá soltando suspiros de cansaço.
Ah, pai, penso, perseverar é tão difícil.
Continuar batalhando nas seguintes semanas foi uma das coisas mais complicadas que tive que fazer. Meu chefe continuava de mau humor, contudo, graças aos céus, não era por minha causa. Em outubro haveria a festa de comemoração de 11 anos da empresa e ele estava responsável em organizá-lo.
A Coral é uma empresa composta por cinco sócios que eram melhores amigos desde a faculdade. Todos eles mantinham uma harmonia invejável, sempre pensando um nos outros e tendo os mesmos objetivos — eu conseguia ver aquilo nas reuniões. Me parecia algo muito irreal um lugar onde saí muito dinheiro não ter ninguém puxando o tapete do outro.
Ao menos não os do topo.
Talvez seja por causa disso que eles tenham chegado tão cedo no TOP 3 maiores empresas que produzem materiais escolares.
Todos os anos um deles ficava responsável pela organização da festa de comemoração da empresa e estávamos na vez do senhor Carter e, logo, isso sobrava para mim também.
Entretanto, eu não reclamo de ter ficado com um monte de coisa para resolver durante o dia, pois era uma desculpa perfeita para ficar longe de Mary, Dassy, Diana e mais um monte de mulheres que estavam tentando mudar a personalidade de Franz apenas para que ela conseguisse conquistar seu destinado — que descobri ser chamado de Scott — um homem comprometido.
O cara simplesmente estava de saco cheio de Franz que, inteligente como era, conseguiu hackear seus perfis nas redes sociais e perseguia ele e sua mulher como um stalker.
Era questão de tempo e ele iria a denunciar para a polícia, mas, como a lei geralmente favorece as mulheres em questão de destinados, não sei se Scott se sairia bem dessa.
Para completar, na última sexta-feira minha mãe havia ido ao médico, acompanhada por Jean, e ele passou um exame que o plano de saúde não cobria, me deixando sem nem um tostão.
Ainda tinha Jack que sumira do bairro e do meu campo de vista, mas sua irmãzinha estava começando a me visitar mais vezes — geralmente para comer já que sua mãe estava começando a trabalhar quase o dia todo — Ela me assegurava de que ele estava vivo e aparecia em casa de vez em quando.
No momento em que eu o reencontrasse iria puxá-lo pela orelha por me deixar tão preocupada.
A única coisa boa nisso tudo era poder passar as maior parte das noites nos braços de .
Havia algo acontecendo entre nós que era inevitável, mesmo assim me assustava. Nossos beijos estavam ficando cada vez mais intensos e quentes despertando desejos primitivos em mim. Sabia que estava perto de chegar nos afins e eu queria, mas não sabia se eu deveria fazer, principalmente porque eu já havia ouvido diversas histórias sobre como vários garotos transavam com as meninas e depois a deixava de lado no ensino médio; aliás, nem sabia como fazer direito e tinha certeza que meu destinado era experiente.
Por mais que eu confiasse em , o medo estava ali impregnado em mim.
Assim que desci no ônibus no dia primeiro de setembro, senti meu celular vibrar. Olhei para o visor estranhando o número desconhecido e atendi relutante.
— Alô?
— ! — Ouvi a voz de Jack, surpresa — Você precisa me ajudar!
— O que aconteceu? — Pergunto começando a ficar nervosa.
— Bonnie está sangrando muito. — Ele estava soluçando. — Eu não sei o que fazer!
— Ai meu Deus! — Exclamei desesperada imaginando aquele corpo pequeno da irmã de Jack em seus braços coberta de sangue. — Onde é o machucado? Como aconteceu isso? Onde você está?
— Em sua casa. — Respondeu uma das minhas perguntas. — Ela se machucou na rua.
— Ligue para ambulância! — Gritei correndo para casa — Chego ai em um minuto.
Senti meus pés reclamarem pela corrida naqueles saltos altos, porém continuei correndo sentindo o coração pulsar mais rápido do quê o normal.
Bonnie não. Bonnie não.
Ela não podia morrer; ela só tem sete anos, uma vida pela frente! Aquilo era tão injusto, tão cruel.
Uma criança. Uma simples criança inocente que apenas precisava de segurança, amor e carinho. Ao abri a porta de casa lágrimas escorriam pela minha face de desespero quando diversas vozes gritaram me fazendo dá um salto para trás de susto.
— Surpresa!
Eu odeio Jack Woodreck.
Capítulo 5
Um sorriso congelado pairava em meus lábios enquanto todos os convidados cantavam parabéns. Tenho certeza que eles imaginavam que as lágrimas que saiam de meus olhos eram de alegria. Olhei para Jean segurando um bolo cheio de chantili com os dizeres "Parabéns, !" e a raiva que eu sentia abaixou um pouco.
— ! ! ! — Eles gritavam batendo palmas.
— Faça um pedido! — A voz de me tirou do transe em que me encontrava.
Fitei as quatro velinhas coloridas e fechei os olhos.
Desejo que Jack tenha uma morte lenta e dolorosa.
E assopro as apagando.
Dedico, então, meu primeiro pedaço de bolo para minha mãe que estava sentada sonolenta perto da pequena janela (que, aliás, não servia para nada e dava de cara para a parede da casa de meu vizinho), contudo ela não comeria, pois poderia lhe fazer mal e o guardo para eu mesma comer mais tarde.
Os minutos seguintes foram confusos; sorrisos, congratulações e alguns pacotes de presentes. Recebo o abraço caloroso do Japa, um velho conhecido meu, quando avisto Jack sentado no meu sofá e Bonnie em seu colo brincando com uma bexiga vermelha nas mãos.
Em um momento estou cumprimentando meus convidados e outro estou dando socos em Jack.
Ele se defende com os braços cruzados ao redor da cabeça e estou tão raivosa que cuspo palavrões e xingamentos que nem tinha consciência que os conhecia. Jack, entretanto, parece está rindo do meu PT; então, sou puxada com força para longe dele pelas mãos de meu destinado.
Quando percebo que estou fazendo minhas bochechas ficam vermelhas de vergonha. Olho para os lados, certa de que verei todo mundo me olhando como uma louca, e me deparo com todos gargalhando da situação.
— Você mereceu, criança. — Diz Ivanna no meio da multidão.
O Woodreck aparenta está mais pálido e o cabelo vermelho começou a crescer novamente. É extremamente estranho perceber que essa é a cor real de seu cabelo quando se está acostumado com a quase calvice que ele sempre usara como penteado.
Bonnie e Jack apenas tinham os olhos parecidos, castanhos claros como duas bolas de gude. Enquanto o garoto era pálido e tinha feições gélidas, Bonnie era negra e esbanjava animação em seus traços grossos. Talvez aquela característica fosse produto de sua infância, mas algo me diz que é algo propriamente de Bombom.
— O que Jack fez, tia ? — Bonnie cruzou seus bracinhos. — Ele vai ficar de castigo!
Sorri da sua postura.
— Isso mesmo, Bombom! — Respondo a colocando em meus braços — Ele precisa ser castigado.
Ivanna saiu do meio daquele amontoado de gente gritando algo como "sai da frente, aleijada passando" e se aproximou de mim.
— Venha cá dá um abraço na sua amiga.
Baixei-me e a envolvi em seus braços.
— Esse ano vai ser repleto de surpresas, . 26 é um número especial. — Ela sussurra em meu ouvido.
A fito sem entender sua sentença, mas assinto.
Pela primeira vez percebo o tanto de gente que está em casa e começo a sentir pena de Jean que é claustrofóbica. Minha casa é pequena e tem quase 50 pessoas pelos cantos falando e rindo alto — certeza que ela não esperava tanta gente na festa. Espremida pela multidão, fui em direção a cozinha — esbarrando em cachos de bexigas vermelhas e azuis — e encontrei Annie arrumando os pratinhos e Jean quase arrancando os cabelos.
— Não tem bolo pra todo mundo. — Ela batia o pé, nervosa — O que vou fazer?
— Jack! — Grito da cozinha e o ruivo aparece com as sobrancelhas arqueadas, esperando minha ordem.
Boa atitude, porque ele me deve uma.
— Tome isso aqui. — Procurei duas notas de dez dólares do bolso — E compre um bolo de trigo da Sandra.
— Não, ! — Jean diz, aterrorizada — Eu organizei sua festa, você não pode...
Lanço meu olhar mortal para ela.
— Minha casa, minhas regras. Minha festa, minhas ordens.
1 x 0 Jean.
Jack pega o dinheiro em minhas mãos murmurando e sai para comprar o que pedi. Quando ele volta, Annie insisti que eu vá para a sala em vez de cobri o bolo de chantili e então me sento perto de minha mãe — depois de expulsar Fanny do lugar. Ela parece um pouco agitada pela quantidade de pessoas dentro de casa e o barulho das conversas paralelas no ressinto, mas o sono estava quase a vencendo.
Jack estava comendo seu pedaço de bolo quando o interceptei. Semi cerrei os olhos esperando que ele me explicasse o que tinha acontecido com ele no último mês; a mãe dele pode não se preocupar com o filho, mas eu sim.
— Olha, , foi mal. – disse ele – Era pra ser uma brincadeira boba, nada pra você querer me matar e tal.
— Tudo bem. – Respondo e cruzo os braços. — Onde você esteve esse tempo todo?
— Na casa de um tio meu, em Roshville. Ele disse que tinha um bico pra mim e eu aceitei.
— Mas, Jack, e sua escola? — Indaguei, confusa.
— Eu já repeti mesmo, não preciso mais ir. — Falou com desdém. — Só ia porque você insistiu, mas não tem nada lá que eu goste.
Solto um suspiro.
— Você que sabe.
Não adiantava insisti, pois Jack já era um rapaz e sabia o que estava fazendo. Mesmo dando conselhos atrás de conselhos, ele nunca quis me ouvir.
Terá que aprender com a vida mesmo; espero que ela lhe dê uma segunda chance mais tarde.
Quando a festa acabou e as pessoas começaram a ir embora, minha casa aparentava ter sido devastada por um furacão. Infelizmente, o pessoal da Ala O não era o melhor em organização.
Despedindo-me das últimas pessoas, notei que Jack continuava esparramado em meu sofá com Bonnie no colo, adormecida.
— Não está tarde? – indaguei casualmente — Pode ser perigoso...
— Se não quer que eu fique aqui, , é só me dizer.
Revirei os olhos.
— Você sabe que não é isso. — Expliquei — Aliás, preciso conversar com você sobre uma coisa.
— Pode ser outro dia? – Jack aprumou o corpo pequeno de sua irmã nos braços e colocou-se de pé. — Charli deve está preocupada.
Assenti e beijei-lhe a bochecha antes de ir embora enquanto eu pensava se o ouvir chamar sua mãe pelo nome era algo preocupante ou não.
Depois de dá os calmantes para minha mãe e colocá-la na cama com ajuda de , fui agradecer a Jean e a Annie por ter feito a festa. Fiz questão de enchê-las de beijos e abraços enquanto escutava o bonito discurso que a minha sogra dizia a mim.
É claro que ela não sabia que era minha sogra. Ainda.
— Você é uma filha muito dedicada a sua mãe e uma mulher forte! — Disse para mim quando me abraçou. — Merece toda festa do mundo por ter se tornando o que é hoje.
Confesso que fiquei emocionada ao ouvir aquelas palavras. Poucas vezes eu me sentia daquele jeito tão especial e parava pra ver tudo que eu tinha batalhado até o presente momento. Tudo que eu fazia e fiz era para o bem estar da minha mãe e, por mais que tenha quebrado algumas promessas que fiz a ela, havia uma que eu nunca quebraria: cuidaria dela enquanto eu estivesse viva porque a amo.
Com ajuda de Jean e arrumei o que pude da casa, mas logo eles me mandaram tomar um banho e descansar, pois, mesmo já sendo onze horas da noite, ainda era meu dia.
Só percebi que tinha demorado mais do que o normal quando entrei na sala de novo e fitei apenas sentado no sofá me esperando e tudo arrumado em seu devido lugar.
— Onde está Jean? — Perguntei olhando para os lados.
— Já foi pra casa. — Respondeu e se levantou indo em minha direção. — Quero desejar os meus parabéns do meu jeito e lhe dá o meu presente.
Quando vi seu sorriso safado, o acompanhei e deixei-o enlaçar minha cintura com seus braços. baixou um pouco a cabeça para fitar meus olhos e roçou seus lábios nos meus. Sem vontade de entrar em seu jogo, estiquei-me e o beijei de verdade. Meu destinado e namorado entendeu o recado e logo estava buscando aprofundar nosso beijo.
Quente. era extremamente quente.
Assim que nos separamos para recuperar o fôlego, ele sussurrou.
— Parabéns, meu amor.
O ouvir me tratar como meu amor era como estar nas nuvens. Eu estava vivendo o conto de fadas que nunca imaginava ser real.
— Agora vou lhe mostrar meu presente.
Grey deu um sorriso cheio de segundas intenções e ofereceu a mão para que eu pegasse. Aceitei-a com um pouco de receio e o vi me levar até meu antigo quarto.
Quando era criança, eu dormia em um quarto separado dos meus pais. É um cômodo pequeno — mal cabia uma cama e a uma cômoda — mas logo depois que a cama quebrou e Leticia precisava da minha ajuda para tomar os remédios de madrugada, decidir aposentá-lo pro tempo indeterminado.
Minha boca formava um perfeito ''o'' quando abri a porta e o vi todo arrumado e limpo.
O colchão de uma cama de casal jazia ali, coberto por um lençol vermelho com os presentes que tinha ganhado e o quarto estava impregnado com o cheiro de rosas. As pétalas vermelhas estavam jogadas por todo cômodo e havia um buquê em cima da cômoda inutilizada.
Virei-me para , esperando uma explicação.
— Acredite, foi difícil convencer a Jean e minha mãe que isso era só pra colocar os presentes aqui. — Ele deu um sorriso sem graça. — As rosas eu coloquei enquanto você tomava banho, não repara em algumas que devem ter sido dilaceradas...
— Eu amei. — Falei rodeando seu pescoço com meus braços.
— Preciso dizer-lhe uma coisa.
Seus olhos caramelos me fitavam com determinação me deixando mais ansiosa. Meu coração palpitava como uma britadeira no peito ao vê-lo daquele jeito. Ele respirou fundo.
— Eu amo você.
De repente, meus olhos embaçaram com as lágrimas e apertei meu abraço para ter uma visão melhor daquele amarelo sedutor que me fisgara há tanto tempo.
desceu sua mão carinhosamente pelas minhas costas até a cintura e eu senti um arrepio em minha espinha. Eu estava muda, sem saber o que dizer. Sentia uma felicidade mórfica e nova.
Seus olhos recaíram sobre meus lábios e o respondi com um beijo terno. Meus dedos percorreram seus cabelos negros quando senti as coisas esquentarem e seu aperto em minha cintura intensificar.
Antes que eu percebesse, estávamos deitando no colchão e ele mordia meu pescoço me fazendo arfar.
Em meio a bolha que criarmos ao nosso redor, me lembrei dos presentes ao sentir algo duro em minhas costas.
— ... — O chamo e minha voz saí ritmada — Precisamos tirar isso daqui.
Ele levanta o rosto, balança a cabeça tentando organizar os pensamentos e, com cuidado e pressa, arrasta aqueles pacotes para o chão.
Sorrio ao ver seu estado: os cabelos bagunçados, a camisa amarrotada... Minha situação também não deveria ser uma das melhores, já que os botões do meu vestido florido estão abertos e meu sutiã preto está a mostra.
Levanto e de ponta de pé vou até a porta para fechá-la e me recordo que minha mãe está na mesma casa que eu.
Minha consciência pesa ao perceber que provavelmente eu esteja a desrespeitando, mas a nuvem que paralisa todos meus pensamentos racionais aparece quando sensualmente retira os meus cabelos dos ombros e beija minha pele. O arrepio é instantâneo e logo me vejo tendo sensações que nunca pensei em experimentar.
— ... — o chamo mais uma vez no momento em que seus dedos calejados estão retirando as alças do meu vestido. — Preciso... Contar uma coisa...
— Fale. — diz ele assim que a peça cai ao chão.
Fico de frente pra ele e minhas bochechas enrubescem por estar tão exposta. Grey parece rir da minha vergonha e engulo seco.
— Eu sou virgem.
Ele acaricia meu rosto com seu polegar e finalmente mira meus olhos.
— Isso explica muita coisa. — Falou e me deu um selinho rápido. — Você confia em mim?
— Claro. — Respondo prontamente.
— Então, não fique tensa. — Disse, massageando meus ombros. — Eu amo você e não faria nada para te machucar.
Assinto e enquanto ele tira a camisa, tenho uma vasta ideia do quão forte ele é. Meus dedos percorrem seu peito e abdômen com curiosidade e percebo que ele se arrepia facilmente com aquilo. Feliz com a descoberta, desço o indicador até o fim de sua barriga sarada.
segura meu rosto com as duas mãos para que olhe diretamente para ele. Segundos depois ele me beija ferozmente e me sinto flutuar.
Estou entregue a Grey. Estou completamente entregue a meu namorado, o destinado escolhido por mim, não por um relógio estúpido.
Eu estava exausta, mas satisfeita.
Aquela noite havia sido prazerosa e, mesmo sendo incômoda e dolorosa no começo, me sentia renovada e feliz por ter vivido uma experiência tão importante em minha vida com alguém especial.
foi incrivelmente carinhoso e paciente comigo; me sentia outra pessoa.
Nós dois dividíamos um travesseiro e fechei os olhos aproveitando o cheiro de seu perfume misturado com o odor natural masculino.
— Minha mãe deve está surtando de preocupação. — Ele sussurrou enquanto me aconchegava em seu peito.
— Coitada, você não devia fazer isso com ela. – Comentei ainda de olhos fechados e sorrindo fraco.
Grey mordeu meu nariz e depois me beijou mais uma vez. Eu estava viciada em seus beijos e temo que nunca me canse deles.
— Eu realmente tenho que ir, . – Suspirou. – Daria tudo pra ficar aqui com você.
— Então fica. – Pedi, finalmente abrindo os olhos.
Um medo estranho me ocorreu em pensar que não poderia ficar. Queria acordar ao seu lado na manhã seguinte, talvez até cozinhar para ele.
— Eu não posso. – Insistiu – Amanhã eu passo por aqui e conversamos, ok?
Concordo quando percebo que seria muito egoísta da minha parte pedir pra que ele ficasse quando sua mãe deveria está chamando polícia para descobri o paradeiro do filho.
Me conforto com a ideia de que quando o prazo acabasse nos iríamos nos assumir, não importa o que aconteça e poderíamos ficar quanto tempo quiséssemos.
Depois de se levantar e vestir sua roupa, agacha-se e beija minha testa.
— Eu te amo.
— Eu também. – Murmuro sentindo o cansaço e o sono me vencer.
Havia se tornado hábito me desliga das conversas das meninas na hora do almoço desde que elas começaram a querer mudar a personalidade de Franz por causa do destinado dela e convencê-la a perseguir o coitado. Tentei diversas vezes mostrar a elas o quão insensato essas atitudes eram, mas ninguém nunca me escutava; então, simplesmente desistir e quando tocam no assunto, minha atenção é desviada para outros pontos do refeitório.
Entretanto, não havia ninguém que fosse capaz de tirar meu bom humor naquele dia. Na verdade, eu estava assim desde minha primeira noite com e só posso afirmar o que dizem: sexo realmente faz maravilhas com seu humor. Eu estava disposta a dizer meu primeiro “eu te amo” ao Grey essa noite; acho que estou pronta para contar-lhe meus sentimentos que tenho pressentimentos de que não estão totalmente claros.
Podia me lembrar de cada segundo que passamos juntos ontem à noite e esses pensamentos me fazem rir envergonhada.
— Está rindo de quê? — Dassy perguntou me cutucando.
— Eu? Nada. — Respondi — Apenas me lembrando da noite de ontem.
— Hm... – Mary deu um sorriso cheio de segundas intenções. – Parece que alguém está aproveitando o seu tempo com um namorado temporário.
Rolei os olhos, mas rir de suas palavras. Em algum momento eu havia falado sobre ter um namorado temporário, contudo, deixei de lado a teoria de ser meu destinado e que, mesmo que ele não o fosse, não estava disposta a trocá-lo por alguém que não conheço e supostamente é o amor da minha vida.
— Aliás, — Diana entrou no assunto – quando é que seu prazo acaba mesmo?
Viro meu pulso esquerdo e fito o relógio preto que diversas vezes esqueci-me da existência. No momento em que vejo os números do relógio decrescendo, sinto uma onda de dejavu de 6 anos atrás e a temperatura do recinto cai.
Puta merda, eu esqueci!
— Faltam quase quarenta e cinco minutos. – Digo mirando o relógio como se ele diminuísse a velocidade com a força do olhar.
— O quê? — As meninas gritam, chocadas de forma que assusta a servente do refeitório. Dou um sorriso amarelo para ela e sussurro um “desculpe” antes de voltar a encará-las.
Depois de me dá diversas broncas sobre levar mais a sério o sistema, ouço-as cogitar.
— Seu destinado com certeza é da Coral! — Dassy bateu palminhas.
— Será que é o Andrew Grimes do Departamento de TI? Eu vi que ele ainda tem o relógio. — Observou Franz tentando por os seus novos cachos loiros em ordem, algo que ela não conseguira desde que decidiu pintar suas madeixas.
A ideia de ter sr. Grimes como meu destinado é desagradável e faço uma careta para demostrar isso. Por mais que ele seja da Ala F, tem um bom emprego e seja razoavelmente bonito, ele era muito antipático e homem de poucas palavras – e a maioria delas são grossas. Andrew não fazia meu tipo.
— Não seja boba, Franz. – Mary balançou a mão em desdém – Se for alguém da Coral é um novo funcionário ou entrou no prédio por engano, pois tenho certeza que não o conhece.
— Verdade. — Concordou Dassy. – A chance dela o conhecer é mínima e conhece todo mundo daqui.
É um bom ponto, pois o que ela disse não é mentira. Sei quem é todo mundo daqui, mesmo que não tenha tido contato direto por pura curiosidade e excesso de simpatia que eu tinha.
Olho para a porta do refeitório e suspiro desejando que apareça a qualquer momento. Como não havia citado nada sobre hoje quando estávamos juntos, possa ser que ele tenha se esquecido também. Será que ele já estava a caminho? Será que não conseguira pegar o ônibus a tempo?
Um corpo rechonchudo tampa a minha visão e levanto a cabeça fitando Emma Felders com cara de poucos amigos.
— Senhor Carter está lhe chamando lá na recepção.
Me levanto alerta e a agradeço por ter me avisado. Digo as garotas que já volto e ando depressa à procura de meu chefe. Estávamos a quase um mês da conferência e Albert não poderia ficar mais ansioso. Aquele era o ano em que montaria seu stand e seu perfeccionismo não o deixava alheio a qualquer detalhe fazendo sua pilha de nervos querer me atingir, entretanto, eu estava em uma época muito boa da minha vida para estressar-me.
Alguém tem que ser paciente por aqui, afinal de contas.
Achei meu chefe encostado no balcão de mármore das recepcionistas com os dedos batendo freneticamente, uma de suas manias que dava sinal de vida quando estava esperando por muito tempo.
Ao me aproximar, percebi que ele estava pálido me fazendo deduzir que algo de muito errado estava acontecendo.
— Senhor? Tudo bem? – Perguntei temerosa.
— Preciso que você cancele tudo que tenho que fazer essa tarde. – Disse praticamente correndo para a saída. Dei passos longos a fim de acompanhá-lo.
— Sim, senhor, farei isso. – Respondi — Aconteceu algo grave, senhor Carter?
Arrisquei pergunta mesmo sabendo que não era da minha conta.
— Carol desmaiou e foi levada ao hospital agora mesmo. – Disse parando repentinamente e pude ver o medo em seus olhos.
— Vai dá tudo certo, senhor, talvez seja apenas um mal-estar. – Falei enquanto torcia para que o que eu dizia fosse verdade.
Albert concordou com a cabeça.
— Tire uma folga o resto da tarde depois disso. – Disse quando entrou no banco de trás de sua Mercedes e antes que eu processasse o que acontecia seu carro sumiu no mar de automóveis da avenida.
Fiz uma pequena prece em favor a Carol enquanto corria em direção ao elevador para cancelar toda a agenda de meu chefe. Tentei enviar os e-mails pelo celular, mas o wifi não cooperava de jeito nenhum.
Quando terminei todo o trabalho faltavam vinte e cinco minutos para meu prazo acabar e me vi pensando que voltar para casa poderia ser uma má opção, pois desencontraria com .
As pessoas já haviam começado a voltar ao trabalho e eu me despedi das meninas que consegui encontrar no meio do caminho, dando risadas de seus conselhos astutos para quando encontrasse meu destinado naquela tarde.
De frente para o prédio da Coral, do outro lado da rua, havia uma lanchonete requintada e cara que vendia sucos maravilhosos e decidi entrar, pedir um suco barato e ficar de vigia na mesa já que o vidro transparente me dava uma boa visão da avenida e facilmente avistaria meu namorado.
Respiro fundo quando retiro o dinheiro da minha carteira que deveria ser para o aluguel daquele mês, entretanto, era uma data especial, pois hoje eu e assumiríamos nosso namoro e finalmente iria me declarar para ele. Poderia lidar com Adolf outra hora.
Esperei pacientemente na fila para fazer meu pedido enquanto observo os bonitos painéis que decoravam o estabelecimento.
— Próximo.
Me viro ao perceber que era minha vez e peço um suco tradicional de acerola sem leite. O que eu mais gostava naquele estabelecimento era a rapidez que trazia seu pedido, porém naquele dia algo estava retardando o serviço fazendo com que uma fila enorme se aglomerasse atrás de mim. Bato o pé inquieta e estico meu pescoço para olhar a rua, pois as pessoas tampavam minha visão.
Logo quando desisto de olhar para trás meu pedido chega. Agradeço e pago segurando o copo de plástico decorado em bege e rosa claro. Os dedos da minha mão endurecem por está muito gelado e começo a andar devagar até a mesa vazia do outro lado da lanchonete, pois o líquido estava começando a transbordar.
A cena seguinte acontece rapidamente para quem estava de fora, mas, para mim, acontecera em câmera lenta.
Estou tentando equilibrar o copo de suco na minha mão esquerda e vou atrás da fila para passar para a mesa vazia que eu tinha visto. A fila está enorme e vai até a porta do estabelecimento. As pessoas estão nervosas e com pressa, resmungam e reclamam pela demora e um palavrão no meio dos murmúrios, por algum motivo desconhecido, me chama atenção e olho para o lado.
Uma vibração estranha passa pelo meu pulso como uma descarga elétrica e, no susto, por instinto, solto sem cerimônia o copo de minha mão. Dou um salto pra trás quando percebo que o líquido acertou alguém que acabara de sair da porta, mas a vibração não parece ter acabado.
Fito uma camisa social, antes branca, suja de um vermelho da acerola e um homem segurando um terno cinza em seus braços.
Ai meu Deus! Essa camisa deve custar mais do que meu salário!
Sei que estou encrencada quando deduzo que aquele homem é da Ala A pelo paletó caro e os cabelos loiros penteados para trás como um mauricinho, todo engomado. Preparo para soltar um xingamento enquanto fito a careta surpresa e meio raivosa dele, pronto para soltar um palavrão, quando nossos olhos se encontram e nós dois ficamos mudos.
Sua íris é negra, escura como a noite. Não há outra cor além do preto que contrasta com todo o resto do seu corpo; a pele dele é pálida e os cabelos dourados. Uma força invisível e magnética me prende a eles e não consigo desviar de jeito nenhum; aparentemente, o homem também passa pela mesma coisa que eu em sua cabeça.
Automaticamente sinto o peso costumeiro do relógio em meu pulso esquerdo sumir e o barulho de vidro caindo ao chão rompe aquela ligação estranha. Nossos olhos correm para o chão onde nossos relógios estão caídos, um ao lado do outro, organizados como se não tivessem caído por acaso. Provavelmente era porque eles não caíram por acaso.
Volto olhar para o homem engomado em minha frente e luto para desviar o olhar mais uma vez em direção a sua camisa.
Porra.
Eu joguei suco no meu destinado.
Capítulo 6
O silêncio que havia na lanchonete fez com que me lembrasse de que não estava em um lugar deserto e decidi dá uma olhada no que acontecia o meu redor.
Merda.
As pessoas olhavam pra mim e meu destinado com um interesse indiscreto, esperando por uma reação romântica nossa. Quando vi o porta-guardanapos em cima da mesa próxima, puxei um bocado rápido e fingi que aqueles segundos passados não ocorreram a partir da sujeira que fiz na camisa do engomadinho.
— Mil perdões, senhor, não foi minha intenção. – Supliquei tentando limpar a sujeira que eu tinha feito; sem sucesso, claramente, pois a mancha vermelha parecia não querer sair de jeito nenhum.
— Tudo bem. — Ele disse e pude jurar que estava sorrindo, mas mantive o olhar sobre meu desastre. — Sério, está tudo bem.
Disse se afastando um pouco para indicar que eu não precisaria mais esfregar sua camisa.
— Eu apenas não esperava encontrar minha destinada de um jeito tão... – hesitou – Peculiar.
Levantei o rosto para mirá-lo e senti meu estômago revira ao vê-lo sorrir tão sem graça. Como eu poderia dizê-lo que eu não acreditava naquele sistema? Como explicá-lo que eu tinha um namorado?
Cocei a garganta, incerta. Quanto mais rápido eu dissesse melhor, não é?
— Eu tenho namorado.
Primeiro sua expressão foi de surpresa e momentos depois seu sorriso ia diminuindo. Senti um pouco de culpa por fazê-lo passar por aquilo, mas não mentiria para alguém que seria meu carma pelo resto da vida.
— Preciso ir. – Digo rapidamente e abro a porta deixando-o para trás.
Só percebi que estava com o coração acelerado demais quando comecei a andar pela calçada. Eu estava agitada ao ver que as coisas estavam começando a sair do controle quando uma voz alta e barítona preenche meus ouvidos.
— Mas eu nem sei seu nome.
Viro para trás, assustada. Fito seus olhos negros e pondero em responde-lhe. Ele mantinha um sorriso discreto nos lábios e não parecia disposto a me perseguir.
— . – Respondo antes de sair correndo para cruzar a avenida.
Enquanto ando em direção ao ponto de ônibus me pergunto o que fazer agora. Todas as pessoas que rejeitaram seus destinados tiveram a péssima sorte de encontrar os mesmos nos lugares mais impertinentes do universo, então, não seria a última vez que eu viria o engomadinho.
Quando chegasse em casa, seria o primeiro saber sobre o ocorrido e nós vamos resolver esse impasse.
Será que terei que me mudar para as fazendas ao redor da cidade por causa da aquilo?
Com certeza seria melhor, principalmente para mim e minha mãe – talvez ela tivesse até uma melhora. Se esse for o meu destino com , é pra lá que eu vou!
Desviei o meu caminho para casa e vou em direção ao hospital que minha mãe tinha uma consulta naquela tarde. Enquanto caminho pelas ruas da minha cidade, me perco pensando quem era aquele homem que o destino escolheu para mim, sem a minha autorização.
Chutei uma pedrinha, frustrada. Eu pensava que estava começando a entender aquele sistema louco e que ele estava sobre meu controle, entretanto, mais uma vez estou no escuro com minha vida.
Deveria ser minhas escolhas, meus projetos, minha vida amorosa.
Qual o problema daquele relógio idiota?
Balanço a cabeça tentando esquecer meus pensamentos por um tempo ao avistar o hospital que minha mãe estava sendo atendida.
Quando chego na recepção, descubro que Dona Leticia estava passando por uns exames urgentes e eu não poderia acompanhá-la no momento.
Sinto um mal-estar horrível só de ouvir aquelas palavras e me sento esperando que Jean dê o ar de sua graça e apareça com alguma notícia.
Para variar, as horas se passaram devagar e estava tão apreensiva que não conseguia nem mesmo me distrair com os jogos que havia em meu celular.
Se eu soubesse que esse dia seria assim nem me levantava da cama.
Era quase final da tarde quando Jean apareceu no final do corredor empurrando a cadeira de rodas com minha mãe. Levantei-me no solavanco e apressei meus passos para encontrar as duas.
A cabeça da minha mãe pendia para o lado esquerdo, uma posição claramente desconfortável. Sua boca estava semiaberta e seus olhos claros, perdidos, fitavam algum ponto na parede branca do corredor.
Sinto uma dor no peito e lágrimas enchem meus olhos mais rápido do que imaginei que aconteceria, mas as seguro com força.
Passo a mão no rosto tentando me recompor e cenas do sorriso da minha mãe antes da doença invadem minha mente.
Ainda consigo vê-la na cozinha preparando nosso café. Seu sorriso caloroso dizendo ''bom dia'' para mim e meu pai. O cheiro doce de casa e a harmonia que nós três tínhamos era singular e sincero.
Eu...
— , está tudo bem? – A voz de Jean me desperta e eu pisco diversas vezes, saindo daquele mundo das lembranças.
— Sim. – Respondo dando uma tapinha em suas mãos para que eu conduza a cadeira de rodas.
Minha amiga me olha desconfiada, mas não toca no assunto.
— Como foi a consulta? Me disseram na recepção que ela estava fazendo alguns exames...
Em resposta, Jean suspirou pesado e o aperto no meu coração foi inevitável – conhecia muito bem a minha amiga e aquilo não era um bom sinal.
— Parece que sua mãe pegou uma gripe. – Respondeu assim que avistou o carro do governo que sempre levava e nos trazia ao hospital. — Você sabe quão difícil é saber como ela se sente, já que perdeu a fala, mas o médico passou alguns antibióticos e logo a senhora vai ficar boa novamente.
Sorriu tranquilizadora.
Soltei o ar que nem sabia que estava prendendo e assenti.
— Espero que sim.
Demorou apenas o tempo em que entrei na van e me sentei para que Jean me olhasse com surpresa e curiosidade. Arqueei as sobrancelhas sem entender sua expressão, até que percebi que ela não olhava em meus olhos e sim para meu pulso esquerdo apoiado no banco da frente.
Que droga.
— Como foi? – Ela perguntou — Eu não acredito que você foi encontrar seu destinado e nem me avisou! Eu podia fica com sua mãe por mais tempo, poxa! Vocês dois poderiam jantar e...
— Não quero falar sobre isso.
O sorriso de minha amiga foi diminuindo ao perceber que eu estava falando sério.
— Não acredito que seu destinado é tão ruim assim, . – Ela falou acariciando meu braço.
— Jean...
— Ok. – Ela levantou as mãos em rendição. — Não está mais aqui quem falou.
Fiquei a observando apertar os lábios, tentando não falar nada ou perguntar algo para mim. Seus olhos cor de mel brilhavam com as luzes da cidade. Havia escurecido rápido e até o bairro da Ala O o caminho era longo.
— Está bem, eu respondo uma pergunta sua. – Falei derrotada e ela bateu palminhas animadas.
— Tudo bem, tudo bem. – Coçou a garganta. — Qual o nome dele?
Fiz careta.
— Não sei.
— Que absurdo! – Ela me recriminou com o olhar. – Você diz que não gosta do seu destinado, mas nem o nome dele sabe!
— Oras, tenho nada contra ele! – Me defendi – È complicado, Jean.
Ela revirou os olhos e fez menção de dizer algo, mas a van parou bruscamente.
— Desculpe! – O motorista disse – Quase atropelei um gato.
Olhei para janela e percebi que estávamos a duas quadras de minha casa.
Salva pelo gongo!
— Sabe, não importa. – Jean balançou a mão em desdém — Você deve está apaixonada por ele e está com medo.
Ignoro o frio na barriga que tive ao ouvi-la falar aquilo sobre o engomadinho e faço minha melhor careta de confusão.
— Você está louca, minha querida.
Faltando apenas alguns metros para pararmos quando vi de costas em frente de sua casa. Mordo o meu lábio inferior nervosa.
Teríamos que resolver o que faríamos o mais rápido possível.
O nervosismo toma conta de meu ser e sinto as mãos suarem, entretanto, não tenho muito tempo para me recompor, já que Jean está me empurrando para fora da van antes que eu consiga respirar direito.
Viro-me rapidamente querendo me esconder e fito Jorge tirando a cadeira de rodas da minha mãe como se fosse a coisa mais interessante que já vi na vida e tento evitar o inevitável.
Abro a boca para dizer que eu assumo a partir daí, mas Jean logo está subindo as escadas até a minha casa com a cadeira e Jorge segura minha mãe pelos braços.
Solto o ar pela minha boca e giro meu pés em direção a casa de .
Miro os ombros fortes do meu namorado e um sorriso brota em minha face automaticamente ao lembrar de nossos encontros às escondidas.
Ele me ama. Tudo vai ficar bem; nós vamos resolver isso juntos.
Repito aquelas palavras na minha mente e assim que faço menção de continuar andando, percebo que Grey não está sozinho.
Pela segunda vez naquele dia, a temperatura do recinto cai e todo meu corpo está frio.
fica de lado e finalmente posso ver melhor a mulher que está o acompanhando. Ela é muito baixinha e magra e fica evidente o porquê de não tê-la visto antes – o corpo de Grey a esconde facilmente.
A mulher está simples e sofisticada com suas roupas. Seu cabelo preto tem mechas amarelas em um corte channel, totalmente simétrico. Entretanto, outra coisa me faz perder o chão, uma coisa muito mais importante.
A dor que sinto em meu peito me sufoca e a luta para segurar as lágrimas é maior que o usual.
Como fazia ao me ver, sorrir e seus olhos brilham como fogos de artifício em noite de 4 de Julho ao olhar sua destinada.
Ele se inclina em sua direção para beijá-la e, então, estou no meu limite.
— ? – Minha voz sai sofrida e engasgada.
Ele se afasta assustado por alguém ter estourado sua bolha e olha para mim. Sua destinada me olha curiosa, enquanto, Grey está com o cenho franzido, seus olhos cor de mel me recriminando.
Você não devia estar aqui.
Meu peito queima, meu olhos queimam, tudo queima. Me sinto rejeitada.
Aquilo não podia está acontecendo, simplesmente não.
E eu corro para casa me perguntando se aquela noite poderia piorar.
Demorou alguns minutos até que eu conseguisse parar as lágrimas e fui me despedir de Jean. Felizmente ela não pareceu perceber meu estado emocional crítico e apenas me abraçou rapidamente enquanto tagarelava. Eu não prestava muita atenção no que ela dizia, afundada na minha própria tristeza, contudo, sua última frase pareceu triturar o resto do meu coração.
— Não vejo a hora de conhecer a destinada do meu irmão.
Cerrei o punho me controlando para não chorar mais uma vez e a vejo abrir a porta.
Oh, isso está ficando cada vez pior.
está na porta com a mão levantada, pronto para bater. Jean arregala os olhos automaticamente.
— Já estou indo, mamãe. – Brinca e passa por ele, saindo do meu campo de visão.
Miro os seus olhos tentando entender o porquê de está ali, mas ele desvia antes que eu possa fazê-lo.
— Posso entrar?
Queria bater a porta na sua cara e dramatizar, mas queria respostas, ou desculpas; algo que me faça entender aquilo.
Concordo com a cabeça e cruzo os braços.
— Queria que você me explicasse o que está acontecendo.
Fico surpresa ao ouvir a firmeza da minha a voz.
— Onde está seu destinado? – Ele pergunta procurando algo em minhas costas.
— O quê? – Liberto minhas mãos e o olho raivosa. — Quero falar de nosso relacionamento!
— Tudo bem, , seja boazinha, ok? — Ela esticou as mãos como se tentasse acalmar uma fera indomável. — Eu pensei que fossemos destinados, mas não somos.
— Essa parte eu já entendi, . – Reviro os olhos.
— Então, não somos destinados. — Ele falou como se tudo estivesse resolvido. — Eu tenho Gia e você tem seu destinado.
— Gia? – Franzo o cenho.
— Minha destinada. – Vejo aquele sorrisinho sexy brotar em sua face ao falar sobre ela e sinto minha respiração pesar.
— Mas você é meu namorado. – Sussurro debilmente.
me olha com pena e segura meus braços. Quero me desvincular dele, mas uma parte estúpida da minha mente diz que talvez ele irá me abraçar, beijar minha testa e dizer que nada daquilo estava acontecendo.
— O que tivemos foi especial, , mas acabou. — Ele está amassando o cacos do meu coração sem dó — Eu vou seguir em frente com o amor da minha vida e você seguirá a sua com seu destinado.
— Mas eu escolhi você. – As lágrimas estão descendo pela minha face – Não a porcaria de um destinado que nem conheço!
— ...
— Para de me chamar pelo meu apelido como se tudo estivesse bem! – Eu grito – Você disse que me amava, mas me trocou na primeira oportunidade!
— ... – Seu olhar de pena me enoja e me sinto humilhada.
— O que é amor pra você, hã? – O empurro ficando longe de suas mãos. — Definitivamente não é isso que você está fazendo!
— Está bem. – Ele cruza os braços sem paciência. — Eu fui para aquela porcaria de bairro onde você trabalha e esperava te encontrar, mas quando encontrei Gia... Tudo pareceu certo.
O soluço que saiu da minha garganta só foi o começo. Eu sentia como se alguém tivesse me dado um chute na barriga e não conseguia respirar direito.
Fui tão idiota em achar que ele me amava de verdade.
Estúpida, estúpida e estúpida.
Quando percebo que está ameaçando me abraçar estico a mão para que ele pare.
Não preciso da pena dele.
— Saía da minha casa! – Eu peço levantando o rosto em sinal de superioridade. Posso está desesperada, mas não vou continuar o vendo fazer isso comigo.
entende o recado, murmura um "eu sinto muito" e fecha porta levando consigo o meu coração partido.
Me abraço, sentindo muito frio e sozinha. Meu choro sai estrangulado, como de alguém que não faz isso a muito tempo e apenas consigo andar com a vista embaçada até a sala. No meio do cômodo, em cima do tapete velho, desabo sem mais nenhuma força em minhas pernas.
Envolvo meu corpo pelos braços, como uma bola, sem saber o que fazer a não ser chorar. Aquilo foi algo que não esperava e perdi totalmente o sentido do que queria fazer.
Meus planos se partiram em pedaços antes mesmo de começar a existir.
Em algum momento de todo aquele choro, percebi que não estava triste apenas por ter o coração quebrado pelo , mas sim pelo dia horrível que eu tive.
Até quando eu continuaria assim? Até quando só coisas ruins aconteceriam ao meu redor?
Será que aquilo poderia piorar?
Como resposta do universo as luzes se apagaram e os gritos lá fora foram ouvidos. Corri até a porta e a tranquei, meus instintos alertando o que estava acontecendo.
Um blecaute, hein?
Vou levar isso com um sim, aquilo poderia piorar.
Eu estava meia hora adiantada naquele dia para o trabalho.
Atípico, eu sabia.
Desde o momento que eu tinha aberto os olhos, sabia que aquele dia seria difícil de enfrentar. Meu corpo estava dormente e os olhos tinham olheiras quase impossíveis de disfarçar com maquiagem.
Minha cara não deveria está a melhor, mas com certeza coincidia com meu estado de espírito miserável.
Todas as vezes que me lembrava de e de nossa conversa eu ficava entre duas alternativas: me socar por ter sido idiota ou chorar por ainda sentir aquela dor horrível em meu peito. E eu nunca tive a aportunidade de dizer-lhe que o amava...
Por um lado, me sentia aliviada de não ter o feito, pois ele não merecia meu amor, mas, por outro, me sentia quebrada por dentro, pois eu continuava o amando.
Quando pus o pé na recepção, Daisy sentava-se em sua cadeira. Suspirei derrotada quando percebi que não teria chance de fugir da inevitável conversa sobre destinados e toda aquela merda.
— Olha só quem está aqui! – Ela sorriu animada ao me aproximar do balcão. — Como foi com seu destinado?
— Oi, Daisy! — A cumprimentei ignorando sua pergunta. — Cheguei cedo hoje, não?
— Não seja chata, ! – Ela pôs as mãos na cintura. — Estou curiosa.
— Ah, minha mãe? – A ignoro mais uma vez — Está bem, sim. Obrigada por perguntar.
— Sério, ? — Ela bufou frustrada, perdendo a paciência facilmente.
Quando vi que minha digital havia sido registrada, me afastei para ir embora.
— Foi um prazer conversar com você. — Dei o meu melhor sorriso ensaiado e virei-me em direção ao elevador.
Entretanto, a minha amiga parecia disposta a me arrancar alguma coisa e correu atrás de mim. Rapidamente entrei no elevador vazio e apertei no botão para meu andar.
— Por favor! Só uma informaçãozinha de nada, por favor! — Ela gritou ao perceber que correr com salto alto pelo chão liso do salão principal não era uma boa opção.
Fiz uma careta pensativa, mas não falei nada vendo as portas metálicas se fecharem a minha frente.
Respirei aliviada, ainda tinha alguns minutos até Daisy entrar em um elevador e ir atrás de mim.
Como esperava, segundos depois de ter saído do elevador, ela apareceu pisando forte em minha direção.
— Você vai falar. Agora. – Disse autoritária.
Revirei os olhos.
— Dispensei meu destinado. Não estou interessada em um relacionamento no momento, obrigada. – A respondi e sentei em minha cadeira, começando o dia de trabalho.
— Não acredito que você fez essa besteira! — Ela exclamou, horrorizada. — Você tem que se relacionar com alguém, !
— Eu estou em um relacionamento! – Contrapus no automático.
Rapidamente, percebi a besteira que eu tinha falado e tentei corrigir.
— Ao menos, eu estava...
— Você tem que dá uma chance para o cara, coitado! – Ela me recriminou — Ele esperou um tempão para conhecer a destinada e na primeira oportunidade você o dispensa.
— Não estou com ânimo para conhecer novas pessoas, Daisy. – Digo, percebendo que aquela era a verdade da minha situação.
Tinha que curar um coração quebrado antes de qualquer coisa
— não quer conhecer gente nova? — Ela arregalou os olhos. — Você está doente, ?
— Por favor, Daisy... — Implorei.
— Tudo bem! – Estendeu as mãos ao alto em redição. — Apenas diga o nome dele e eu irei embora.
Soltei um suspiro e fiz um bico.
— Eu não sei.
Daisy deixou sua cabeça pender para o lado como um pássaro me olhando atentamente.
— Você nem sabe o nome dele e o dispensou. — Ela afirmou tentando engoli as palavras. — Louca, é isso que você é! Ele não pode ser tão ruim assim! Por acaso ele é velho ou pobre?
— Preconceituosa... – Murmurei.
— Sou mesmo! — Assumiu — Não consigo achar um motivo plausível para dispensar sua alma gêmea.
— Ele é jovem e parece ser rico. – Respondo sua pergunta enquanto ligava meu computador — Ao menos deve ser da Ala D, se for advogado.
— Louca! Você é completamente louca. — Ela balançou a cabeça em negativa — Quem sabe um dia eu a entendo.
Daisy se despediu e logo desapareceu do meu campo de visão, me deixando perdida entre suas palavras.
Talvez, só talvez, se eu estivesse solteira não dispensaria meu destinado facilmente, ao menos, tenho certeza que não fugiria daquele jeito.
Talvez eu soubesse o nome dele.
Acho que ele não tem um bom timing.
Para alguém que estava esperando moleza naquela manhã, aquele dia tinha começado horrível, mas para mim, que estava disposta a mergulhar de cabeça no trabalho e esquecer meu estado emocional, foi um alívio.
Senhor Carter chegou voando pedindo para que me organizasse para transformar o dia de trabalho + a tarde de ontem tudo naquela manhã, pois ele queria voltar para casa e dá assistência a sua esposa.
Mesmo de mau humor, não consegui controlar minha curiosidade e perguntei como a senhora Carter estava e me assustei com a resposta.
Grávida, ele disse. Pela terceira vez, ela estava grávida.
Eu não conhecia muitos casais que tinham um monte de filhos – ao menos não do mesmo relacionamento, e ao julgar que o tempo das pessoas da Ala A para dedicar-se a família era escassa, eles dificilmente tinham mais de dois filhos. Meu chefe, no entanto, parecia está animado em ser pai mais uma vez e torcia para que dessa vez fosse um menino, um herdeiro, já que tinha aquela lei (ridícula, em minha humilde opinião) que dizia que as mulheres não poderia ganhar uma herança – ao menos não toda, os pais poderiam dá um dinheiro bem limitado as suas filhas – e, se elas fossem casadas, seus destinados receberiam o dinheiro.
Absurdo!
Entretanto, se na família nasce-se um menino, todo dinheiro iria para ele e os maridos das suas irmãs ficariam sem um tostão.
Eram onze horas quando finalmente conseguir sentar na minha cadeira e comemorei quando percebi que apenas faltava alguns eventos da tarde para terminar todo nosso trabalho; contudo, minha dancinha de comemoração foi mal calculada e acabei batendo no porta-lápis/grampo/clip/qualquer coisa que coubesse ali e derrubei tudo embaixo da minha mesa.
Bufei e me agachei para pegar os objetos. Ouvir um barulho do elevador abrir e rapidamente comecei a agarra tudo aquilo que conseguia em minha mão e jogar sem jeito em minha mesa, a fim de pegar todos antes que a pessoa do elevador aproximasse.
Quando me estiquei para pegar o último clip, ouvi o barulho de alguém coçando a garganta
Estiquei o braço para cima com o indicador levantado, pedindo um minuto. Ao pegar o objeto, bati a cabeça na mesa por calcular mal minha saída.
Assim que me erguia para falar com o visitante, pus a mão no lugar onde bateu massageando. Contudo, no momento que descobri quem estava à minha frente, percebi que era melhor ter ficado escondida de baixo da mesa.
Meu carma havia começado e ele tinha exóticos olhos pretos.
Não entendi de imediato o motivo de meu coração parecer sair do peito e a rapidez que passei as mãos no cabelo para arrumados, esquecendo-me completamente da pancada que havia acabado de levar.
Meu destinado estava com a testa franzida, não entendendo o fato de eu estar ali. Ele olhou para trás tentando encontrar um sentido para aquilo, soltando um sorrisinho espertinho e balançando a cabeça em negação, descrente.
Ele usava um terno parecido com o do dia anterior e uma gravata preta. Seus cabelos engomados com gel pareciam não o obedecer naquele dia – estavam arrumados na frente, mas era possível ver que os fios de trás insistiam em voltar a ser cachos.
Abri a boca para dizer algo, mas assim que ele me fitou fiquei muda e desisti de falar.
Aquilo era estranho e estava acontecendo pela segunda vez na mesma semana.
O engomadinho tentou falar, contudo, no exato momento, senhor Carter saiu pela porta desviando nossas atenções.
— ! – Exclamou surpreso — Não acredito que você finalmente chegou aqui.
— Po-ois é, tio. — Eu o vi falar todo desconcertado, como um adolescente tímido.
Então, em uma fração de segundos o vi se transformar. ergueu as costas e pigarreou parecendo mais seguro de si.
— Pensei que fosse bom saber como meu dinheiro está sendo usado, não é? – E deu um sorrisinho para seu tio.
Eu olhava a cena sem entender exatamente o que acontecia. Então, meu destinado era sobrinho de meu chefe e eu nunca o vi? Qual a probabilidade de isso acontecer?
— Conhece a senhorita ? – Carter apresentou-me ao perceber que eu estava no cômodo. — Essa é a minha secretária .
Levantei rapidamente em prontidão.
sorriu se divertindo com a situação, ainda descrente do que estava acontecendo.
— Senhorita ? – Ele disse e apertei os dedos contra a mesa tentando me controlar para não soltar um suspiro ao ouví-lo pronunciar meu nome. — .
Odiava admitir, mas sua voz era melódica e divertida; do jeito que falava parecia testar o som do meu sobrenome ao pronunciá-lo e de alguma forma aquilo me atingia.
Mas que merda?
Apertei a sua mão e por alguns milésimos de segundo percebi está constrangido com esse cumprimento; apenas entendi o porquê quando sentir sua mão escorregadia. Devia sofrer de hiperidrose ou algo assim e sentir-se envergonhado com isso.
— Prazer em conhecê-lo, senhor . — Disse profissionalmente.
Um silêncio recaiu quando nosso olhar se encontrou mais uma vez, aquela força magnética que nos ligava. Era impossível não prestar atenção naquelas íris escuras, marcantes e raras.
— Vamos entrar? – Senhor Carter falou nos tirando da bolha que estávamos. — Venha também, , vou precisar de algumas informações.
Pisquei mais do que o necessário e peguei o notebook da empresa, seguindo logo depois as instruções do meu chefe.
— Então quer dizer que você já conheceu sua destinada? – Carter comentou para seu sobrinho e parei de andar pelo reflexo.
Antes que entrasse no escritório do sr. Carter ele me lançou um sorriso sem malícia, como se lamentasse.
— É...
— Ela é da cidade? Talvez eu a possa conhecer. – Disse meu chefe animado.
— Não quero falar sobre isso, tio, se me permite. — Respondeu deconfortável.
Senti um incômodo no estômago ao vê-lo usar aquela frase conhecida.
— Ela o dispensou, rapaz? – Carter parecia surpreso e virou-se ainda na entrada de seu escritório. — Vai desistir tão fácil?
— Eu não desisti, tio. – Ele sorriu e a sinceridade das palavras deixaram minhas entranhas congeladas.
Por favor, destino, não.
— Sangue dos , hein? Não se esqueça. – Ele deu tapinhas em seu ombro.
Olhei para porta e soltei um suspiro.
Bem-vinda a maldição do Destinado, . – sussurrei para mim mesma.
Eu tinha consciência de que não estava tão perto assim; se ele quisesse tocar em meu braço precisava se esticar um pouco. Entretanto, sua presença deixava meu corpo formigando e e me sentia incapaz de olhar para qualquer lugar que não fosse o notebook.
Percebi naquela pequena reunião que meu destinado não estava totalmente entusiasmado com a conversa e não conhecia alguns termos que geralmente usamos nesse ramo. Carter, entretanto, era paciente e sempre explicava o que seu sobrinho não entendia como se esperasse aquela atitude o tempo todo.
Entao, ele não era daquele ramo? Com que ele trabalhava?
— Tio, por favor, não aguento mais ver números. — Ele suplicou de forma divertida fazendo Carter rir.
— Tudo bem. – Ele concordou se levantando. — Queria muito passar mais tempo com você, mas preciso fazer algumas coisas antes de voltar para casa. Você conhece sua tia, agora que está grávida de novo vai querer atenção todo tempo.
Meu chefe falou e não consegui impedir o sorriso do meu rosto ao ver pela sua expressão que ele não estava reclamando de sua esposa – ele a amava e gostava daquela característica de Carol.
se levantou também, o acompanhando, e fui logo atrás como um fantasma na conversa. Estava começando a repirar aliviada pelo fim daquele encontro com meu novo carma quando sr. Carter fez questão de que eu tirasse algumas cópias das finanças do último mês para , que havia descoberto ser um dos acionistas fantasmas da empresa.
Havia pelo menos três acionistas na Coral, entretanto, eles pareciam mais ''ajudadores de custo'' já que os fundadores da empresa eram os que mais ganhavam e trabahavam para manter tudo funcionando bem. Dois dos acionistas nunca apareciam enquanto o outro, sr. Thurman, era frequente em algumas reuniões.
Decidi imprimir aquelas cópias na impressora pequena que ficava na mesa, visando adiar o trabalho o mais rápido possível e torcendo para que ela funcionasse.
— ...esse será o último filho de vocês? – perguntou no momento que eu fitava a impressora começar a trabalhar.
— Quem sabe, ? – Respondeu meu chefe. — Carol quer ter uma casa cheia de crianças, então...
Eles ficaram em silêncio mirando-me grapear as folhas na ordem certa. Arrumei-as em linha e entreguei-as ao meu destinado. Ele agradeceu e logo estava se despendindo de Carter, me fazendo sentir-se mais aliviada.
Focei meus olhos na tela do notebook tentando esquecer aquele encontro e todos os sentimentos sinistros que me passava. Era muita inocência minha acreditar que nunca iria vê-lo de novo, mas gostava de me iludir por algumas horas – ou dias, se eu tivesse sorte.
— Posso conversar com você?
Dei um pequeno salto assustada quando escutei a voz de . Olhei ao redor à procura de Carter, contudo apenas nós dois estávamos ali.
— Desculpe. – Vi seu rosto ficar vermelho de vergonha, mas ele parecia controlar o máximo para não demostrar.
— Tudo bem. – Respondi mais para mim do que para ele e me acomodei na cadeira de novo.
— ''Tudo bem, eu posso falar com você'' ou ''Tudo bem" por ter te assustado'? – Soltei uma risadinha ao ouvir aquela pergunta.
— Para os dois, senhor .
Ele fez uma careta.
— Não me chame assim, , por favor. – Pediu e eu assenti.
A voz de era estranhamente morna; ele mantinha uma tranquilade quase palpeavel em suas palavras, mesmo se estivesse dizendo coisas horríveis. Era um poder invejável já que você acabaria fazendo alguma coisa que não queria simplesmente pelo seu tom de voz.
Péssima característica para um destinado que você quer se livrar.
— O que deseja, ? – perguntei mais interssada do que gostaria.
Ele inclinou um pouco a cabeça para o lado me analisando.
— Como você está?
Demorei para processar o que ele havia perguntado e quase cair na gargalhada ao entender suas palavras.
— Bem? – Minha resposta soou meio rude e obvia.
Entretanto, continuou me olhando sem mudar de expressão.
— Você não parece bem.
Um arrepio atravessou meu braço e decidir ficar calada com aquela afirmativa.
Não uma pergunta ou uma negativa.
Ele afirmou algo que eu já sabia, mas nenhuma das pessoas ao meu redor costumavam descobrir. Um estranho, alguém que não me conhecia, me leu tão bem que comecei a desconfiar que meus amigos eram egoístas e não prestavam atenção em mim.
Meu destinado pôs a mão no bolso esquerdo em uma expressão relaxada.
— Sei que não estava esperando por um destinado e entendo isso. – Ele explicou – Não quero forçá-la a nada, mas gostaria muito de ter sua amizade. Poderiamos almoçar juntos daqui a pouco, se você quiser.
Franzi o cenho confusa. Mas e aquele papo de que não iria desistir..?
— Tem certeza? – Arqueei a sobrancelha.
riu jogando a cabeça para trás, entendendo minha pergunta.
Ele deu alguns passos até a mesa e inclinou-se em minha direção.
— Cada coisa ao seu tempo, . – Piscou galanteador — Não, eu não vou desistir.
Me contive para não fechar os olhos e inalar aquele perfume maravilhoso. As suas palavras me fizeram cerra o punho em nervosismo.
não se afastou logo depois, como imaginava. Ele continuava ali perto demais com os olhos perdidos em alguma parte de meu rosto. Começando a me sentir desconfortável, cocei a garganta.
Ele voltou a sua posição inicial com um pigarro, seu rosto ficando vermelho mais uma vez. Iria fazer um comentário engraçadinho sobre isso quando ele me interrompeu.
— Irá almoçar comigo?
Aquilo era uma péssima ideia e tinha consciência disso. Eu estava na fossa e não era uma boa compania naquele dia; meu destinado, para completar, deixou bem claro que não desistiria de tentar um relacionamento comigo, a última coisa que eu gostaria de escutar no momento.
Porém, havia aquela curiosidade que pertencia ao meu instinto que insistia em querer descobrir quem era meu destinado; uma vozinha muito educada que dizia que o acordo era bom para os dois lados e que, talvez, eu me esqueceria da decepção que havia passado na última noite ou, pasme, me divertisse.
Então, fiz a minha primeira burrice pós-coração quebrado.
— Sim. – Disse e um sorriso inesperado se formou em minha face.
Capítulo 7
"Eu quero ler você como um livro; me deixe dá uma olhada dentro de sua cabeça, porque você não precisa ser reescrito." - Rewritten by Teske.
Só Deus sabia o quão desconfortável me sentia naquele silêncio enquanto segui a uns três passos de . Contudo, meu destinado parecia mais do que satisfeito; o sorriso no rosto não queria sair de sua face nem tão cedo. Ele não conseguia conter sua animação e eu continuava a desviar o olhar ainda ponderando se aquela foi uma boa ideia. Ainda no elevador pude vislumbrar uma animação quase infantil do me fazendo sorrir de forma involuntária.
A maioria das pessoas da Ala A recebiam seus destinados cedo, então, somando pela jovialidade que meu destinado exalava, concluir que ele deveria ter menos de 24 anos. Em seus traços ainda carregava um jeito de inocência em relação a vida e me peguei pensando qual era o objetivo do destino em fazer com que um garoto fosse o "amor da minha vida".
Ver? Não faz sentido acreditar naqueles relógios.
Ao sair do elevador tomei um susto ao fitar minhas amigas em um momento de fofoca no balcão da recepção. Mesmo estando longe, imaginei que elas colocaram minha vida amorosa em pauta depois das informações que, com certeza, Daisy já havia espalhado.
Bufei e abri a boca pra soltar um resmungo quando as vi se endireitarem rapidamente ao fitar andando pelo salão principal. Franzi o cenho confusa assim que ele acenou para elas com um sorriso e as meninas se derreteram quase deixando a baba cair.
olhou para trás e esperou um pouco para que eu o acompanhasse. Ainda antes de passar pelas portas de vidro pude mirar o olhar acusador de Daisy.
— Então, aonde estamos indo? — Perguntei ao perceber que não havia carro algum nos esperando à frente da empresa.
— O restaurante é perto daqui, apenas duas quadras. Talvez seja uma boa ideia irmos andando até lá. — Respondeu dando os ombros.
Assenti e pus as mãos no bolso da calça escura que Ivanna fizera sob medida para mim. Por algum motivo desconhecido a facilidade de manter uma conversa que eu sempre tivera evaporara e não sabia como começar qualquer assunto.
— Há quanto tempo trabalha para o Carter? — Estranhei ao perceber a falta do ''tio'' na frase.
— Cinco anos. — Disse, ainda sem olhar para ele. — Acho que sou um recorde.
— Concordo. — Soltou uma risadinha — Tia Carol sempre reclamava das secretárias dele, mas nos últimos anos eram só elogios para você. — Virei-me para olhá-lo nos olhos com uma sensação boa de dever cumprido. — Deveria ter vindo antes conhecer a exceção; não me arrependeria, presumo.
Senti uma vergonha ao perceber seu flerte tão direto e tinha certeza que meu rosto estava corado.
Cocei a garganta tentando quebrar aquele clima.
— Senhor Carter é irmão de seus pais? — Perguntei interessada.
— Na verdade, não. — Falou ainda com os olhos nos meus. — A esposa dele é minha tia, mas somos uma grande família e costumamos integrar a todos.
Balancei a cabeça concordando.
Assim que virei o rosto para o outro lado, vi um casal sair de mãos dadas de um dos prédios espelhados em direção a um táxi. Meu coração pareceu diminuir e uma dor incômoda atingiu meu peito. Passei a mão no rosto tentando ser o mais casual possível, mesmo que as lágrimas tenham começado a fazer os meus olhos arderem.
Queria tanto que nada daquilo tivesse acontecido e que agora eu estivesse com . Meu coração estava partido ao meio e parecia que ia demorar para começar a sarar. Eu tinha consciência de que não fazia muito tempo desde que havia terminado meu relacionamento, entretanto, eu tinha muita vontade que esse sentimento passasse o mais rápido possível.
— Chegamos! — Parei subitamente de andar ao perceber que deixara para trás, quase passando direto do restaurante.
Ele abriu a porta com um sorriso e pela primeira vez prestei atenção nas covinhas discretas que apareciam em seu rosto. Aquela característica o deixava mais radiante, me fazendo sorrir também. Entramos em um restaurante simples; a decoração era diversos quadros e fotos de vários lugares do mundo. Sentamos em uma mesa onde um mapa do que parecia a África estava colado na parede.
— Espero que goste do restaurante. — comentou — Gosto de vir aqui quando quero ficar sozinho e ficar divagando. Eles tem certos problemas com a demora do atendimento, por isso geralmente não tem muita gente por aqui.
Olho para os lados e percebo que mesmo sendo o horário de almoço o lugar parecia vazio.
— Mas a demora vale a pena? — Perguntei assim que recebemos o cardápio de uma menina bastante nova; arrisco que ela tenha apenas dezoito anos.
— Com certeza! — Ele balançou a cabeça reafirmando o que dizia.
Percebi, então, que seus cabelos não estavam mais arrumados como antes, lhe dando uma aparência mais jovial do que imaginava. Ele parecia um formando de uma universidade, o que me fez questionar de novo sua idade. Não aparentava que tinha usado gel naquele dia deixando seu cabelo cheio de cachos. Assim que escolhi o que queria, apoiei meus cotovelos na mesa e segurei meu rosto com uma das mãos, enquanto minha mente fazia questão de guardar cada detalhe do seu rosto sem minha autorização; os lábios rosados, o contorno da sua pele alva e os olhos escuros como a noite. Apenas percebi o campo perigoso em que estava quando soltei um suspiro involuntário quando ele sorriu para a nossa atendente ao dizer seu pedido.
— O que vai querer, ?
Demorei cinco segundos para voltar em órbita e dizer o que queria. pareceu perceber meu embaraço e ficou com um risinho esperto no rosto.
Revirei os olhos.
— Então, — pigarreei — você parece ser bem jovem...
— Só pareço mesmo. — Respondeu — Estou mais perto dos trinta do que longe.
— Oh, — aperto os lábios um contra o outro, pensando em qual idade arriscar — Vinte e sete?
— Vinte e oito. — Respondeu — E você?
— Vinte e seis.
Cruzei as pernas e observei o mapa na parede tentando pensar em outra pergunta para fazer-lhe.
— Em que você trabalha?
me olhou confuso.
— Você não sabe?
Então, foi minha vez de olha-lo confusa.
— Não..?
Ele riu passando a mão nos cabelos.
— Interessante.
Fiquei esperando que ele continuasse e me desse a resposta que nunca veio.
— Então..? — incentivei.
— Acho melhor você descobrir por si mesma.
Meu amor, quem é você na fila do pão? , pensei em respondê-lo, mas ele era tecnicamente meu chefe e isso poderia ser levado como um insulto.
Poxa, senhor Destino, minha "alma gêmea" é um babaca arrogante!
— Tudo bem. — falei deixando meu mal humor me invadir de novo.
— Você mora nessa cidade há quanto tempo? — perguntou ele.
Dei um sorriso maligno.
— Acho melhor você descobri por si mesmo.
Ele deu uma risada, entendendo o recado. Meu objetivo era continuar com minha cara de paisagem, mas logo me vi contagiada e rindo como se fossemos velhos amigos.
— Desculpe, eu não queria parecer prepotente. — falou logo depois — Apenas não posso perder a oportunidade de conhecer alguém que não faz ideia de quem eu sou. Você se importa se eu não dizer o que faço?
Dei os ombros, entendendo sua situação. Contudo, quando voltasse para empresa, sua identidade seria a primeira coisa que pesquisaria.
— Eu nasci nessa cidade. — respondi sua pergunta anterior — As únicas vezes que sair daqui foi em viagens que senhor Carter precisou de mim.
— Hm... — batucou os dedos na mesa — Você mora com sua família?
— Somos apenas eu e minha mãe. — falei. — E você?
— Moro sozinho. — disse — O que é complicado para manter tudo organizado, tenho que contratar pessoas para fazer tudo.
— Você cozinha?
— Eu sou um desastre na cozinha. — ele riu daquele jeito contagiante, me fazendo rir junto.
— Geralmente é Jean quem faz a comida em casa, então...
— Ela é sua empregada? — ele perguntou.
— Não, ela é minha melhor amiga. — expliquei — Jean cuida da minha mãe.
— Oh, e... — a nossa garçonete se aproximou com nossos pedidos o interrompendo.
Ficamos em silêncio enquanto saboreamos nosso sanduíche. Naquele espaço de tempo eu tentava não olhar para -- sem sucesso, claro. Era um ciclo vicioso: eu o olhava, ele ameaçava um sorriso mostrando suas covinhas e eu desviava o olhar como de quem não quer nada.
— Esse sanduíche foi feito por deuses. — elogiei ao terminá-lo. Mesmo antes estando sem muita fome eu sentia que poderia comer mais cinco daquele de tão bom.
Com um sorriso satisfeito chamou nossa atendente.
— Quero mais dois desses!
Arregalei os olhos; ele ler mentes?
— E batata frita também, por favor. — Adicionou com a feição satisfeita.
— Você me perguntou se eu queria? — Levantei as sobrancelhas.
— É impossível comer apenas um, , mas se você não quiser, tudo bem. — ele deu os ombros. — Sobra mais pra mim.
— Por que você não pediu antes, então? — franzi o cenho — Se sabia que ia pedir mais e que o atendimento aqui é demorado...
Me interrompi ao entender o que tramava; queria que a gente enrolasse mais no restaurante.
Espertinho.
— Então, — pigarreou — o que você gosta de fazer nos finais de semana?
Apertei meus lábios em uma linha fina pensando no que responder. Eu era uma vergonha para as mulheres da minha idade, até aquelas que eram casadas não se limitavam em apenas viver dentro de casa.
— Gosto de assistir algumas peças de teatros ou shows de artistas amadores.
Eu não havia mentido, obviamente. Quase toda semana eu fazia isso, o único detalhe que não havia compartilhado era que esses eram eventos que a clínica oferecia.
— Você não costuma ir à festas? — perguntou interessado.
— Não, não tenho tempo pra isso. — respondi com os cotovelos apoiados na mesa. — E você? É festeiro?
Sim ou claro? — completei em minha mente.
— As festas que eu vou são formais demais para serem chamadas de festa. — Disse desviando os olhos negros para o copo de refrigerante vazio. — A resposta é não.
— Ah, não brinca. — falei, não acreditando nem um pouco — Você tem cara de quem adora sair com os amigos no sábado à noite e ficar bêbado!
Ele fez uma careta como se eu tivesse dito um absurdo.
— Não, eu não tenho.
— Tem sim. — reafirmei.
— Ah, se for assim você tem cara de quem faz o mesmo.
Olhei-o ofendida.
— Não, eu não tenho. — repeti sua frase inconscientemente.
— Tem sim. — sorriu vitorioso.
E, então, desatamos em rir como se fossemos amigos antigos relembrando um momento engraçado de nossas vidas.
Cerrei os olhos quando o sol da tarde quase me cegou. Ainda mantinha o sorriso no rosto por causa da piada que havia soltado após trocarmos os números de nossos telefones. Meu destinado, ao contrário do que eu pensava, não era a um mimado metido a besta; ele era divertido e carismático e me fizera esquecer por alguns minutos meu mal humor. Felizmente ele havia desistido de lançar seus flertes e me deixando mais à vontade. Em resumo, aquele começo de amizade parecia ter tido um bom resultado.
— Que horas são? — perguntei ao chegarmos em frente ao prédio da Coral.
— Uma hora e vinte minutos. — respondeu depois de fitar o relógio por alguns segundos.
Senti um frio na espinha ao constatar que eu estava atrasada e, uau, havíamos passado quase duas horas conversando.
— Preciso ir. — falei olhando para trás me sentindo nervosa.
— Hm, o quê? — Falou confuso.
— Eu preciso ir. — repeti devagar para que ele entendesse melhor.
— Oh, ok. — balançou a cabeça concordando — Adorei conversar com você. Espero ter mais chances de nos encontrarmos.
— Eu também. — respondi honestamente.
passou a mão em seu cabelo e olhou para trás quando um silêncio constrangedor nos atingiu. Eu sabia que deveria correr para o prédio da Coral, mas a ideia de me afastar de alguém que tinha me feito esquecer por algumas horas meu mau humor e o quanto eu estava na fossa fez meu corpo estacionar em sua frente.
— Então... Até mais. — Acenou desajeitadamente e tirou o celular do bolso digitando alguma coisa.
Murmurei uma despedida e subir as escadas rapidamente já pensando no que diria para senhor Carter se ele descobrisse que eu havia me atrasado. Na aquela altura ele já devia estar com Carol, mas não subestimo o poder da fofoca que os funcionários tinham.
— Parada aí, mocinha. — o tom de voz de Mary me fez obedecê-la como um instinto de sobrevivência.
Com os olhos arregalados, me virei devagar com medo do que ela faria comigo. Encontrei-a atrás do seu balcão com os braços cruzados e uma Dassy com um olhar que se dá a uma criança que fez algo de muito errado.
— Se aproxime, . — Mary falou com uma calma assustadora.
Engoli o seco e andei para a frente com cuidado.
— Oi, garotas.
Mary bateu as palmas das mãos no balcão de mármore com força e em resposta dei um pequeno salto.
— Como você tem coragem saí sem dizer nada pra gente como foi com seu destinado? — abri a boca para me defender, mas ela levantou o dedo, mostrando que não tinha acabado. — E depois de descobri que você chutou seu destinado, você saí com ?
— Foi... hm... uma reunião de negócios? — Dou um sorriso amarelo já sabendo que a mentira não colaria.
— Eu sei que foi, mas mesmo assim! — Comentou Dassy — É .
Encostei-me do balcão tentando ser bastante discreta com minhas próximas ações.
— Então... — pigarreei — Vocês conhecem ... Senhor , de onde?
— Quem não conhece o "Pequeno ", não é, ? — Mary respondeu-me com um rolar de olhos. — Ele é simplesmente o homem que todas as mulheres pediram pra ter como destinado!
Eu não, há!, quis responder, contudo, continuei-me calada.
— O homem além de ser uma perdição, é o desembargador mais jovem do país. — Dassy adicionou — Provavelmente vai ser o nosso próximo governador. Todo mundo espera que ele se candidate na próxima eleição.
— Ele já tem meu voto! — Mary falou com uma animação estranha para alguém muito bem-casada, obrigada.
Apertei os lábios um contra o outro e franzi o cenho tentando achar uma resposta plausível para esconder onde trabalhava; oras, do jeito que ele tinha falado parecia que ele fazia uma coisa impressionante ou era um ator famoso que quer mais privacidade. Se ele iria se candidatar, porque ele não aproveitou a oportunidade para conquistar uma eleitora? Por que ele não fez questão de mostrar que era..?
Rapidamente meu cérebro se iluminou e eu entendi qual era o objetivo de ao fazer aquilo: ele queria que o conhecesse de verdade, não como um político qualquer.
— Além disso, é muito normal ele querer continuar o trabalho do pai. — Daisy falou com uma cara pensativa.
— O quê? — Fiz minha melhor careta confusa, não entendendo nada do que elas estavam tentando dizer.
— Ele é filho do ex-governador Aitofel , né? Dã! — Ela deu um socinho em minha cabeça — Em que mundo você vive, hein ?
Em um mundo em que viver minha vida é mais importante do quê ficar lendo revistas durante o trabalho, pensei em replicar, mas não deixaria meu mau humor atingir ninguém que estivesse me ajudando a decifrar .
— A destinada dele vai ser tão sortuda! — Falou Mary de forma amarga — Ele é muito jovem, mas nunca saiu notícias dele em festas ou bêbado. Acho que ele vai ser um ótimo pai.
Eu e Daisy ficamos olhando Mary com a melhor cara repreendedora ao ouvi-la falar daquele jeito, demostrando quão insatisfeita estava com seu casamento.
— Que foi? — ela cruzou os braços.
— Nada. — falamos em uníssono.
Me despedi das garotas rapidamente, aproveitando seus êxtases em relação a conversa sobre o Pequeno – ri ao pensar nesse apelido. Era bem ridículo chamar um homem formado de Pequeno. Soltei uma gargalhada alta dentro do elevador ao maliciar a palavra – sorte que estava vazio e eu poderia passar vergonha sozinha.
Ao chegar na minha mesa, me deparei com uma lista de convidados para a conferencia para serem categorizados em uma planilha e decidi que antes de pesquisar qualquer coisa sobre iria terminar meu trabalho.
Isso funcionou apenas por cinco minutos.
Me sentir meio idiota de não ter percebido seu sobrenome familiar antes; meu destinado era o filho do ex-governador que havia feito a vida das pessoas da Ala L para baixo melhores. Ele havia feito o projeto da Clínica que ajuda a minha mãe, poxa!
Assim que seu nome carregou no navegador levei uma surra de imagens e notícias sobre casos de escândalo gigantescos julgados por e a especulação de sua possível candidatura gerava diversos debates nas redes sociais – algumas pessoas achavam uma ótima ideia, outros, nem tanto.
Só por curiosidade pesquisei algumas coisas pelo site de fofocas, mas pouca coisa estava publicada. Havia, porém, um rumor de cinco anos atrás sobre uma garota que ele namorava desde o Ensino Médio e muitos questionavam o porquê dele manter uma namorada temporária e sentir meu estômago revirar, enojada comigo mesma, assim que pensei na possibilidade dele ter terminado com um relacionamento de longa data apenas para esperar pela destinada.
Balancei a cabeça assumindo que aquilo era apenas um rumor e cliquei em um vídeo antigo em que ele dava uma rápida entrevista enquanto andava em direção a um carro repleto de repórteres. tinha o cabelo quase totalmente cortado, o que lhe deixava com as orelhas um pouco maiores. Mesmo continuando sendo um homem abençoado pela deusa grega da beleza, ele ficava hilário daquele jeito. Observei que naquela gravação não se mostrava relaxado e sorridente como o conheci naquela tarde. era imponente e conseguia demonstrar poder apenas com olhar – entretanto, não se mostrava metido. Ele exalava aquele tipo de controle que fazia você querer está do seu lado, no lado vencedor.
Fechei as abas do notebook quando percebi que estava vendo vídeo de pessoas debatendo a situação política do meu estado e decidir focar no trabalho enquanto tentava não pensar que o Senhor Destino me deu uma pessoa famosa e importante como destinado.
Enquanto voltava para casa tentei pensar no que aconteceria se descobrissem que eu era destinada de ; será que ia querer me entrevistar ou alguma coisa parecida? Balancei a cabeça assim que percebi uma asneira daquela – claro que não! Ou será que sim? Sabia que devia passar mais tempo assistindo TV pra saber como o mundo funciona!
O negócio é que seria muito complicado continuar vivendo na Ala O se eu aparecesse na TV, as pessoas iam começar achar que eu era rica e só Deus sabe quantos ladrões têm nesse bairro.
Sinto meu celular vibrar dentro da bolsa assim que desço do ônibus. Olhando para os lados desconfiada, dei uma olhada rápida ao meu redor. Com o objetivo de ler rápido e não ser assaltada, abri parcialmente a bolsa para desbloqueá-lo e levantei as sobrancelhas ao ver que a mensagem vinha do celular de .
"Adorei almoçar com você hoje! Quer marcar algo para esse final de semana?
p.s.: não é um encontro!!"
Sorri com sua mensagem e guardei o aparelho. Enquanto pensava em como elogiar, agradecer e negar seu pedido sem parecer grossa, andei em direção para casa. E peguei querendo sair qualquer dia desses com ele, já que havia me divertido. não era mais meu carma e sua amizade seria muito bem vinda; eu só teria problemas para tirar aquela história de "não desistir de mim".
Olho para os lados ao atravessar a rua, mas paro assim que vejo de longe de costas concertando o seu carro. De repente, toda aquela curiosidade de conhecer meu destinado e saber o que ele escondia sumiu; até mesmo a leveza que senti por toda a tarde desapareceu como fumaça.
Em um momento impulsivo e estranho, apressei o passo em direção a um beco sem saída. Andei metade do corredor escuro desviando do lixo jogado no chão e logo percebi quão tola foi o que fizera. O que eu estava fazendo? Fugindo? Ele que deveria fugir de mim!
Paro quando rapidamente reconheço o cabelo ruivo de Jack e o vejo entregar uma quantia gorda de dinheiro para um rapaz alto e de pele amarela. Sentindo meu coração saltitar, murmuro seu nome.
— Jack? — repito com a voz mais alta e dou um passo.
O garoto vira o rosto assustado e arregala os olhos, balançando a cabeça para o lado freneticamente. O cara que ele conversa percebe o que está acontecendo levanta a camisa mostrando uma arma agarrada em sua cintura.
Capítulo 8
“Não quero ver outra geração desistir. Prefiro ser uma vírgula do que um ponto final.” Every Teardrop Is a Waterfall by Coldplay.
A força que eu fazia para manter minha boca fechada e chorar pelo alívio que sentia era tão grande que meu maxilar já começava a doer. Eu era protagonista de uma cena peculiar: uma mulher adulta com os olhos direcionados ao chão sendo conduzida por um menino de 14 anos como se ele fosse meu guarda-costas pessoal. Estava tão concentrada no meu objetivo de chegar em casa o mais rápido possível, que nem reparei que deixei sem resposta quando o mesmo me cumprimentou acanhado.
Ao fechar a porta de casa, conferi se os ferrolhos estavam bem trancados com os dedos tremendo. Pela cara que Jean fez ao me ver entrar na sala eu mostrava está tão aterrorizada quando me sentia.
Meu corpo todo tremia e eu tentava me abraçar sentada no meu sofá. Consigo ouvir as vozes de Jean e Jack ao longe, mas me concentro em manter o copo com água que minha amiga me deu parado enquanto os três segundos em que aquele homem apontava a arma para mim ainda dominava meus pensamentos.
— Ei, ei pô. — Jack dissera, empurrando discretamente a arma para o chão. — Eu conheço ela. Você anda muito na defensiva, Cabeça!
Ele olhou para mim por um momento e virou para o garoto.
— Confirme que ela não dirá nada. — sua voz era grave e arranhada, fazendo meu corpo de arrepiar de medo.
Ouvi Cabeça sussurrar batendo no meu ombro de propósito e me fazendo perder o equilibrio.
— Se liga, vadia.
Foi daí que o corpo começara a tremer como reação automática do que passamos. Havia pessoa que presenciaram momentos muito mais perigosos, entretanto, aquela foi a primeira vez que eu cheguei tão perto da violência que assolava a Ala O. Não fora um familiar ou amigo que estava a mercê de um criminoso — fora eu. E a ideia de que Jack estava envolvido com aquele mundo embrulhava meu estômago.
— De onde vinha aquele dinheiro? — sussurrei para Jack quando percebi a conversa deles havia acabado.
— Entreguei algumas encomendas para ele. — respondeu depois de um tempo em silêncio.
Apertei os lábios ao entender que encomenda Jack falava.
— Você mentiu para mim. — afirmei — Por quê?
Jack engoliu o seco.
— Não posso responder isso. — sua voz vacilou. — Desculpe, . Se você não confiar mais em mim, tudo bem. Apenas não se afaste de Bonnie, ela precisa de você mais do que eu.
Fiquei calada, sem saber o que dizer diante aquelas frases.
— Apenas... Tome cuidado. — murmurei — Não pude impedir você entrar nisso nem tenho como tirá-lo da confusão que você se meteu.
— Não se preocupe. — disse sem conseguir olhar para meu olhos de tão tamanha a culpa.
— Eles não irão atingir ninguém.
Além de você mesmo, pensei, certa que não desistiria dele tão fácil.
Jean ficou calada, sendo uma mera expectadora da cena até que Jack sumisse de meu campo de vista, antes murmurando uma despedida seca e eu ouvi o barulho da porta sendo fechada. Não precisava conhecê-lo muito para saber que não o veria muito cedo e esse pensamento doía meu peito. Ele era como um irmão menor para mim e eu me preocupava, ainda mais agora que sei as coisas que Jack anda fazendo.
— OK, vou ficar com você essa noite.
Balancei a cabeça negando.
— Você tem aula, não pode perder.
Ela deu uma risada.
— Já tô com DP nas matérias de hoje mesmo, não importa se eu estou lá ou não. — deu os ombros e me abraçou. — Vamos fazer festa do pijama!
Sorri amarelo e murmurei um agradecimento, pois sabia o que minha amiga estava fazendo.
Depois de tomar banho e esperei Jean voltar enquanto fitava minha mãe ainda acordada. Segurei sua mão pensando no quanto sua fragilidade me doía e nada poderia fazer para que a doença parasse de retirar vida de Dona Letícia cada vez mais. Com cuidado troquei sua fralda e apertei os lábios percebendo que ela não poderia continuar daquele jeito; necessitava urgentemente transformar o quarto em algo parecido com um hospital para ela se sentir mais confortável.
Quando Jean volta começo a fazer perguntas sobre a saúde de mãe e como eu faria para melhorar seu bem estar, entretanto, Grey tem planos diferentes para nós duas.
— Vamos falar de outra coisa. — ela disse mexendo em minhas panelas — Chegou a encontrar seu destinado hoje?
Cruzei os braços e fiz uma carranca.
— Por que eu o encontraria?
— Não se faça de cínica.
Deixei meus ombros caírem. E percebi que não tinham uma força se quer para esconder qualquer coisa de Jean naquela noite.
— Ele até que é legal.
Minha amiga deu um gritinho e eu rolei os olhos.
— Qual o nome dele? — fiquei calada e ela estendeu a colher em minha direção — Vai me dizer que você não perguntou o nome dele de novo?
— , o nome dele é . — ela levantou a sobrancelha — E é só o que você vai me arrancar.
— Nem o sobrenome, ?
Ela fez bico como uma criança e eu ri.
— Prefiro manter isso em segredo.
Eu preferia assim por enquanto. mostrou querer sigilo, algo que eu também concordava.
— Ok. Ele é engraçado? Bonito? Moreno?
— Ele é divertido. — dei os ombros fazendo pouco caso disso, mas no fundo estava aliviada em falar do .
Ele, por incrível que pareça, era a única coisa nova que aconteceu na minha semana que não me dava aflição só de pensar.
— Aff, cadê a mulher que é um livro aberto que conheci? — disse desligando o fogão — Fiz canja, tudo bem?
Assenti sentindo minha barriga reclamar.
— Você é tão mais fechada quanto a isso, não parou de falar de Gia nos últimos dias. — Jean revirou os olhos e eu senti meu estômago embrulhar.
— E é? — consigo responder com um gosto amargo em minha boca.
— E ela nem é essas coisas, sabe? — continuar falando enquanto eu coloco os pratos na mesa — Quer dizer, ela até que é bonita, boazuda e tals, mas é muito fechada. Deve ser porque é toda rica e não é acostumada a animação da Ala O. Ela é uma psicóloga da Ala J que se formou faz pouco tempo.
Resmunguei uma afirmação torcendo amargamente que a destinada de fosse uma megera só para que ele sentisse o que é ter o coração quebrado.
— Você acredita que ela tava com ciúmes porque ele veio aqui ontem? — ela riu como se aquilo fosse um absurdo. — Sei que você é linda, , e concordo plenamente com isso, mas não acho que...
Se alguma vez eu me gabei de saber como esconder meus sentimentos quero pedir desculpas pela mentira descarada. Quando Jean olhou para meu rosto aflito ao ouvi-la fazendo seu monólogo não demorou dois segundos para ela perceber quão abalada eu fiquei com as suas palavras.
— Desembucha. — ela mexeu as mãos nervosamente.
Envergonhada por não ter falado nada sobre isso antes para alguém que chamo de melhor amiga, acabo falando mais do que esperava e chorando no ombro de Grey. A verdade é que eu estava tão sobrecarregada com as reviravoltas que minha vida tinha dado naquela semana que precisava externar isso o mais rápido possível.
— Ele não tinha o direito de ter te iludido desse jeito, ! — ela exclama durante meu discurso.
— Olhe, eu não sou nenhuma santa nessa história. — falo assoando o nariz com um pedaço de papel higiênico — Eu estive com ele porque eu quis. não me forçou a nada.
— O negócio, , é que não se brinca com os sentimentos das pessoas desse jeito. — Ela segurou minhas mãos, jogando o “lenço” fora — No mínimo ele não devia ter dito que era seu destinado.
Cerro os olhos para Jean.
— Você, como qualquer outra pessoa, sabe que não ligo se é o meu destinado ou não. Eu só queria... Eu só queria... Que ele me amasse de verdade. Que ele quisesse lutar, não por mim, mas comigo.
Ela fica em silêncio enquanto encosto minha cabeça em seu ombro. Era uma cena que daria uma bela foto: eu e Jean sentadas no sofá com os olhos em algum ponto invisível apenas divagando.
— Preferia que você fosse a destinada do meu irmão, não a Gia. — murmurou — Adoraria ter você como minha irmã.
Com um sorriso melancólico respondo para ela.
— Você já é a minha irmã, pirralha.
Quando acordei de manhã nem levantei um dedo para esconder as olheiras infelizes que apareceram em meu rosto. Enquanto colocava minha mãe na vã, observei a cidade passando com o sentimento que seria a última vez que faria isso.
Diante de tantos problemas que me aconteceram naquela semana, me esqueci que hoje teria uma consulta grátis que um psicoterapeuta fazia a cada mês na clínica — e eu já tinha ideia do que ele iria falar.
Eu percebi que nos últimos meses a invalidez de mãe se agravara e que até mesmo levá-la para clínica usando a cadeira de rodas tinha começado a se mostrar algo perigoso. Além do mais, para Jean cuidar dela estava cada vez mais complicado. Sei que o trabalho intensivo que ela tem com minha mãe tem atrapalhado seus estudos, e eu simplesmente estou cansada de abusar de sua gentileza.
Balancei a cabeça tentando evitar o inevitável. Até escutar da boca do médico o que eu teria que fazer os meus problemas iam ser adiados.
Empurrando a cadeira de rodas fui em direção à sessão de sempre, como eu fazia todo sábado, e cumprimentei as pessoas que conhecia no meio do caminho. Localizei Ivanna rapidamente e tive quase certeza que ela cairia se não tomasse cuidado ao colocar tanta força nas rodas da cadeira, mas, felizmente, ela conseguiu chegar a nós sem nenhum arranhão.
— Pra quê essa afobação toda, hein? — Perguntei ao parar de andar.
— Como foi com o seu destinado?
Olhei para ela sentindo um incômodo gigante com sua pergunta.
— Oi, , tudo bem? Obrigada por ter se preocupado com minha segurança. — Imitei sua voz e voltei a andar.
— Hey, não me deixa falando sozinha. — reclamou tentando me acompanhar — Só tô curiosa, poxa! Tive certeza que você tinha se esquecido e queria muito ter visto a cena de você conhecendo o amor da sua vida no susto.
— Acho que você ama minhas desgraças. — resmungo.
— Aí, desculpa, mal humorada! — ralhou e segurou meu braço para que parasse.
Virei meu rosto para explicar que a história era muito longa para ser contada agora, entretanto, fui interrompida.
— ?
Imagina a minha surpresa ao ver meu destinado de terno preto alinhado com a sobrancelha erguida bem atrás de mim.
Cerrei os olhos começando a me sentir alerta e com medo. Desde o dia que o conheci o encontrei de alguma maneira durante a rotina que tenho há mais de dez anos e a única resposta que eu tinha para isso é que ele era um stalker, psicopata e maluco. Bem, não tinha cara de alguém desequilibrado, mas é normal que eles não o tenham, não é?
— Você anda me seguindo, ? — Pergunto tentando intimidá-lo, porém ele dá uma gargalhada.
— Sei que é difícil de acreditar, mas nenhum dos nossos encontros foram premeditados. Juro! — disse de forma relaxada — Pensei que você soubesse que isso poderia acontecer, entretanto. Não conhece como funciona o destino?
— Não acredito que existe esse negócio de destino, não desse jeito. — dei os ombros — Tipo, os destinados podem se apaixonar e tudo mais, porém isso não significa que são almas gêmeas. O problema é que as pessoas estão tão certas que destinados nasceram para viver juntos que dificilmente percebem que relógios não podem decidir seu futuro, e que não foram feitos um para o outro mesmo quando claramente não são compatíveis.
Vejo um brilho prateado cruzar sua íris preta e sinto meu ego ampliar quando vi que o deixara sem resposta.
Entretanto, comemorei cedo demais.
— O destino não funciona como algo que controla tudo na vida das pessoas. — explicou — Ele dita quem será o amor de sua vida, mas não diz se essa pessoa fará escolhas boas ou não será contaminada pela maldade natural do ser humano, muito menos se ela vem cheio de defeitos. O destino existe, mas ele não arranca todo o livre arbítrio.
Fiquei ali encarando-o tentando entender aonde ele queria chegar com aquele papo de destino. Quer dizer, não duvidava que era uma das suas tentativas de me conquistar — como o mesmo deixou claro um dia antes — contudo, não faria sentido dizer que os destinados podiam chegar em nossas vidas defeituosos.
Espera aí, ele acha que eu sou a defeituosa nessa história?
Ouvi um pigarro, estourando a bolha em que eu e nos encontrávamos e por puro reflexo viramos para onde ouvimos o barulho.
Ivanna nos olhava com interesse, os olhos de cigana, que sempre pareciam saber mais do que qualquer pessoa, alternava a atenção entre mim e meu destinado.
— É um prazer vê-lo novamente, senhor . — Disse sorrindo cheio de interesse — Vejo que já conhece minha amiga, . Desculpe-me
— , me chame de . — ele disse com um sorriso simpático que espalhava para todos os seu futuros eleitores — Conheço a pouco tempo, então, não conhecia suas crenças sobre o destino.
— Sério? — ela disse arregalando os olhos — Mas você se parecem tão íntimos.
Tenho vontade de bater minha cabeça na parede ao entender o que ela insinuava. Se eu não tivesse dado um debate sobre aquele tópico em específico, Ivanna ainda estaria alheia a quem era o meu destinado. Deus me ajude com as perguntas que ela me fará mais tarde.
— Impressão sua, Ivanna. — ele disse com desdém. — e eu estamos nos conhecendo ainda.
Que droga, ! Você só tá piorando as coisas!
— Ah, que cabeça a minha! — falo rapidamente, cortando a fala de minha amiga — Esqueci de apresentar minha mãe.
Percebo que é uma péssima ideia quando o vejo direcionar os olhos curiosos para ela. Leticia está com a cabeça pendendo para um lado; os olhos desfocados e a boca meio aberta. Me encho de mortificação quando entendo o que estou fazendo expondo minha mãe daquele jeito. não precisava saber dela agora. Não que eu sentisse vergonha de minha mãe, não mesmo! O problema é que eu odiava o olhar cheio de pena que davam para ela e para mim dizendo “coitada da menina, ela tem que cuidar de uma mãe inválida” e eu simplesmente odeio isso.
— Olá. — ele diz simplesmente como se estivesse cumprimentando um conhecido na rua.
O silêncio constrangedor me fez remexer desconfortavelmente e a verdade estapeava-me.
— Bem… — ele olhou para trás em direção a um homem alto de terno preto — Ah, qual o nome dela?
— Leticia . — Respondi e pus as mãos nos ombros da minha mãe, como se a confortava, entretanto, eu era que precisava de consolo.
Sorri para ele tentando mostrar para ele que estava tudo bem, mas todos pareciam saber ler-me muito bem e não engolir meus falsos sorrisos.
Seu rosto modificou-se para um semblante preocupado e deu um passo em minha direção.
— Você está…
Se interrompeu ao ver meu olhar assustado para a sua mão que quase alcançava meu rosto.
Com a fase vermelha de vergonha, se afastou de mim parecendo um menino que acabara de ser pego fazendo alguma besteira.
— Bem, tenho que ir. — ele disse — Vejo você por aí, . — acenou com a mão — Até mais, Ivanna!
Murmurei uma despedida e fitei ele caminhar em direção aos seus seguranças que apareceram no meio das colunas. Franzo o cenho tentando pensar se eu os tinha visto durante a conversa com ou se nossos encontros serão sempre repletos de despedidas estranhas, ou até mesmo se o destino iria fazer com que nos encontrássemos todos os dias até que eu endoidasse e o matasse.
Não que isso vá acontecer, é claro.
Ao menos eu espero.
— Pretendia me falar que o é seu destinado? — Ivanna perguntou com as sobrancelhas erguidas.
Nego com a cabeça e sigo empurrando a cadeira de minha mãe o mais rápido possível para o grande banner onde algumas enfermeiras estão atendendo pessoas e orientando.
— Me diga, então, o motivo de você não está jogada com os braços ao redor dele agora mesmo. — Disse ela ao me alcançar.
— Ora, Ivanna, você estava na conversa que tivemos agora pouco. — respondi — Nós pensamos diferente.
— Aha! Aí que você se engana.
Parei me na pequena fila que já se formava e fiz uma careta confusa.
— Hein?
— Como lidou com a destinada dele? — perguntou, desviando o assunto — Sabe, deve ter sido complicado para a senhorita perceber que eu estava certa em pedir pra terem cuidado?
— Eu te odeio por esfregar na minha cara esse fato. — resmungo ranzinza. — Me escute na próxima vez, então.
Tentei resumir rapidamente os eventos que aconteceram naquela semana conturbada pelo tempo em que esperamos para entrar no consultório. Felizmente aquele dia era bastante fresco e não estava calor demais ou frio demais — um dia raro de outono.
Por algum motivo contei-os tão insensivelmente que me auto surpreendi. Nem mesmo quando falei que apontaram uma arma para minha face fiquei afetada. Não que está na mira de alguém que podia facilmente acabar com minha vida fosse uma experiência fácil de digerir, entretanto, tinha prometido a mim mesma que encararia aquilo normalmente. Pela a sobrevivência de Jack, eu iria ignorar aquilo.
Com sabedoria ocultei nomes e certos momentos, contudo, minha amiga estava mais focada em criticar pela forma tão maldosa que terminou nosso relacionamento e me encher de motivos pela qual eu deveria dá uma chance ao engomadinho.
Fui chamada para entrar no consultório antes que ela dissesse o motivo seis para sair com — papo que eu ignorava totalmente — e empurrei a cadeira antes que ela dissesse qualquer coisa.
O olhar que o Doutor Bardon me deu fez com que minhas entranhas congelassem. Costumava pensar que ele era lindo de morrer por causa da sua beleza clássica, entretanto, com o passar do tempo, o aborrecimento que recebia por ser o mensageiro de más notícias o fez deixar de ser atraente.
— Como vai, ? — ele perguntou cordialmente.
— Bem, doutor. — digo me sentando.
— Que bom. — Murmurou se levantando para andar em direção a cadeira de rodas de minha mãe.
Parou no meio do caminho e estalou a língua.
— OK, , é o suficiente. — ele virou-se para mim — De jeito nenhum você poderia está levando sua mãe pra cima de pra baixo nessas condições.
Baixo a cabeça sentindo um aperto no peito e o sentimento de desapontamento me atinge. Eu estava decepcionada comigo mesma por ter deixado aquilo ir tão longe.
— Eu sei que é difícil aceitar e que o dinheiro é escasso, mas sua mãe… — hesitou.
— Você nem examinou ela. — resmungo.
— E precisa? — ele disse com um ar cansado. — Sei que sua amiga, que não é uma profissional, faz um bom trabalho…
Reviro os olhos emburrada, mesmo sabendo que ele estava certo.
— Oras, sua mãe conseguiu conviver com a doença por mais tempo que qualquer outro paciente com a situação igual a de vocês e isso é admirável! — ele se direciona a mim, ajoelhando-se em minha frente como se eu fosse uma pequena criança — No entanto seria insistir na negligência continuar assim. Não faço a mínima ideia de como vocês conseguem alimentá-la e trocar as suas fraldas!
Quando ele segura minha mão querendo me dá apoio para a decisão que eu deveria tomar, a eu adolescente solta gritinhos internos, porém a eu adulta sente o peso do mundo em meus ombros.
— Ainda tenho aquele catálogo de clínicas, se você quiser — balanço a cabeça, negando — Tudo bem, eu conheço algumas enfermeiras boas e baratas para lhe indicar, mas os aparelhos…
— Não posso pagar os dois. — digo com um olhar aflito.
— Se você não quer pagar a clínica, esse é o único caminho. — Ele diz — Eu a considero muito, mas não vou mentir pra você: se sua mãe conseguir passar esse ano será uma benção.
Engulo o choro e assento quando percebo que ele está repetindo a mesma frase que me disse desde janeiro.
— Apenas faça com que a sua morte seja calma e confortável. Entendo que interná-la seria quase como mandá-la para a forca se for aqui no San Tomaz e em outros lugares seria caro, pois os aparelhos são cobertos pelo hospital, mas as enfermeiras são o triplo disso. Meu conselho é…
Escuto seu conselho calada em obediência tentando me lembrar quando tudo tinha saído do meu controle. Quando ele termina seu monólogo, olho para minha mãe e a dor do meu coração se intensifica ao ver que aquela mulher linda que um dia fora Letícia estava com a pele enrugada, magra demais, os olhos desfocados e a baba descendo em seu rosto. Enxugo com um lenço limpo e me despeço com um abraço estranho do Bardon que se tornara mais afável e quase um amigo nos últimos anos. Segurando as guias dos exames que ele passara, fiz minha melhor cara de indiferença para encontrar Ivanna que nos esperava pacientemente.
— Raymond demorou hoje, hein? — comentou — Como ele tava?
Levantei as sobrancelhas e dei um sorriso cheio de segundas intenções.
— Por que você não pergunta para ele?
— Eu mesmo não! — respondeu rápido.
— Vocês iam fazer um casal muito bonitinho. — digo levando a minha mãe até o bebedouro.
— Não acho. — ela fala levantar o queixo, altiva. — Aquele imbecil me encheu de remédios no primeiro ano que estive aqui!
Fico quieta sabendo que é questão de tempo para ela confessar que tem uma paixão nem tão secreta pelo médico. O fato dele ser divorciado de — adivinha quem! — sua destinada o fazia ser um perfeito partido. Era uma pena que no mínimo vinte anos me impedem de parecer nada além de uma pirralha ou eu tentaria algo com ele.
— Bem, se o otário do seu destinado não soube perceber a mulher maravilhosa que tinha em sua frente, tenho certeza que Bardon saberia valorizá-la.
Ela me dá um sorriso melancólico lembrando do encontro desagradável que teve com o “amor de sua vida” que simplesmente a rejeitou só por ser deficiente física. Um nojo de pessoa, aquele lá.
— Obrigada, minha linda. — fala com um sorriso cheio de significado.
Apenas tenho minutos para pensar no que fazer dali em diante quando deito-me no sofá de casa com meu lençol e travesseiro — me recuso a dormir no colchão do meu quarto e lembrar de coisas que quero esquecer. A conversa que eu tivera com Jean assim que cheguei na clínica ainda estava crua em minha mente quando ela falou que o caso da DP era sério e que, infelizmente, aquela era a última semana que ela me ajudaria com minha mãe.
Com os olhos fechados, deixo as lágrimas de desespero rolarem, me perguntando porque tanta merda acontece comigo de uma vez só. Decido, então, seguir o conselho do Doutor Bardon:
Amanhã eu vou ao banco pedir um empréstimo gordo que provavelmente nunca conseguirei quitar a dívida antes do sessenta durante meu horário de almoço; no final do dia, contudo, pedirei para fazer home officer por um tempo até que chegue a hora de pedir demissão.
Capítulo 9
“Deus sabe o que está se escondendo naqueles olhos fracos e fundos. (...) Pessoas ajudam pessoas. Nada vai colocar você para baixo.” - People help the people, by Birdy.
Há dias em que tudo que você quer é ficar deitada esperando que a morte venha e resolva todas os seus problemas, entretanto, temos consciência que os problemas só aumentariam se a vida acabasse.
Se eu morresse naquele momento, por exemplo, minha mãe ficaria sem ter quem cuidar dela. Talvez Jean se disponibilizar-se para fazê-lo, mas para isso iria ter que desistir da faculdade; justamente a última coisa que eu desejaria.
Se algo acontecesse comigo não sei o que seria de Bonnie ou de Jack. Odeio pensar que a mãe deles não dá o suporte e apoio suficiente, simplesmente por achar que a culpa são deles de não conseguir segurar um casamento. Como Ivanna agiria ao saber que não tinha mais os nossos encontros nos sábados? Ou como as meninas da Coral seguiriam em frente sem que eu faça meus discursos “anti destino”?
Penso em e estremeço com a ideia dele sofrendo pela minha morte. Por mais que nosso final tenha sido trágico e cheio de mágoas, nos conhecermos desde sempre. Como seria saber que você nunca teve a oportunidade de pedir perdão para alguém que antes fazia parte da sua vida?
Balanço a cabeça, cética. É de se admirar que eu ainda acredite que Grey me considera.
E enfim penso em . Será que ele se sentiria aliviado por não ter mais uma destinada e poder escolher com quem ficar? Ele, de alguma forma, sentiria minha falta?
Foi com esses pensamentos que me levantei de manhã na segunda-feira.
Como todos os dias, cumprimentei as meninas com um sorriso e desejei bom dia as pessoas que estavam no elevador quando subi para meu andar. Sentia-me diferente, ansiosa e com medo do que me aconteceria.
A manhã passou devagar e tudo que eu queria era bolar um plano que fizesse sentido. Pelas contas que fiz eu precisaria de muito dinheiro emprestado e para convencer o banco que era um bom investimento seria complicado — e ainda tinha o fato de que eu teria que pedir demissão e isso prejudicaria diretamente no negócio. Se eu estivesse com o objetivo abrir uma empresa, facilitaria tudo, contudo, emprestar dinheiro a uma futura desempregada da Ala O é pedi para jogar dinheiro no lixo.
E com isso minha paz de espírito caí em 20%.
Tento pensar nos números e organizo algumas coisas para o stand da Coral. A próxima conferência estava perto e certos detalhes para festa da empresa, que aconteceria a um mês, deveriam ser organizados. Um pouco antes do horário de Carter sair para almoçar, bato em sua porta. Me sinto mais nervosa do que gostaria e meu olhar tenta captar tudo que pude como se fosse a última vez que eu pisaria naquele cômodo.
Albert tem aquela cara de cansado de sempre, mas ele se esforça para sorrir para mim e me sinto mal por deixá-lo na mão.
— Senhor Carter, precisamos conversar.
Ele soltou uma risadinha.
— Do jeito que fala parece que vamos terminar um relacionamento, .
Fico vermelha ao perceber que ele está certo.
— Bem... — coço a garganta — É quase isso. — solto um suspiro — Estou pedindo demissão.
Ele arregala os olhos e aproxima a cadeira na mesa.
— Como?
— Vou passar a cuidar da minha mãe em tempo integral e não vou poder trabalhar mais. Pensei em fazer home office, mas não acredito que isso vá muito longe. — explico com o coração na mão. — Queria muito poder continuar a fazer parte da empresa, mas as coisas estão cada vez piores para minha mãe…
— , você tem certeza que não há outra alternativa?
Balanço a cabeça com os ombros para baixo. Minha esperança estava miúda demais para ter outro debate mental sobre isso.
— Gostaria que sim, senhor, mas a menina que cuida da minha mãe não pode continuar a trabalhar e o estado vegetativo dela…
Engulo o seco, aquela verdade que eu não aceitava fazendo os olhos encherem de água. Carter ficou em silêncio olhando para algum ponto atrás da minha cadeira.
— Essa será minha última semana aqui e farei de tudo para deixar o máximo adiantado para o senhor. Sempre foi um bom chefe, e eu desejo todo sucesso para a Coral.
Ele continuou quieto e me remexi desconfortável na cadeira.
— Tem certeza que não há outra saída? — sorri de sua insistência — Olhe, , não me leve a mal, mas preciso ser sincero com você. A questão é que você é uma das melhores empregadas que essa empresa já teve. Mesmo sem a faculdade ou experiência você aprendeu muito rápido e entende de gestão mais do que muitos que conheci. O que me leva ao meu arrependimento de não ter investido nisso por medo de sua falta de formação.
Fico calada me perguntando o porquê dele ter trazido isso à tona logo no momento em que decidir sair da Coral. Todavia, era bem verdade que eu nunca tenha pensado de forma séria em crescer na empresa, então atribuo a culpa para mim também que negligenciei qualquer chance de melhorar minha qualidade de vida e me tirar da Ala O. Por outro lado, foi bom não ter acontecido: seria mil vezes mais difícil se desprender da empresa.
— Mesmo contratando uma nova enfermeira não posso pagá-la. As coisas estão bastante complicadas…
— E se eu lhe der-se um aumento? — sugeriu esperançoso.
— Não seria o suficiente para pagar os equipamentos da minha mãe e uma enfermeira. — lambo os lábios. — Não é colocando barreiras para continuar a trabalhar aqui. Eu realmente queria não ter que fazer isso.
Albert deixou os ombros vacilarem e eu entendi que ele havia desistido.
— Gostaria de ser mais insistente, entretanto, não vejo muita alternativa para você. — murmurou derrotado — Olhe, irei demiti-la sem justa causa para que seja mais fácil para você conseguir algo com o seguro desemprego, mas ainda estou preocupado. Como você e sua mãe irão sobreviver sem ninguém trabalhando na casa?
— Eu não sei. — admiti e respiro fundo antes de pedir um concelho para meu futuro ex chefe. — Quero tentar um empréstimo no banco, mas sei que a chance é mínima, já que perderei o emprego e sou da Ala O. Provavelmente eu vou ter…
O olhar de piedade que Carter me deu pareceu acabar de vez com o orgulho que eu tinha.
Engoli o seco.
— Se envolver com agiotas é muito arriscado, . — disse quase em tom de desespero — A última coisa que eu quero vê-la sofrendo por não poder pagar as dívidas.
Baixo a cabeça e olho para meus dedos como se eles fossem imensamente interessantes. Não consigo pensar quando eu comecei a criar aquele vínculo com Albert, mas me sinto acalentada pelas suas palavras. A última pessoa que eu imaginaria estava mostrando preocupação com o que eu iria fazer da minha vida.
— Sugiro que consiga dinheiro com alguém que não vá lhe explorar, por mais que eu ache difícil achar um agiota honesto. — comenta ranzinza — Posso lhe dá algum dinheiro se quiser…
— Não! — digo com horror — O senhor já me ajudou muito até aqui, não posso abusar de sua boa vontade. Nem sei quando poderia pagar!
Ele tenta mais uma vez, entretanto, me recuso a aceitar seu dinheiro.
1° Eu não estava desesperada a esse nível e 2° não queria pedir mais alguma coisa para Albert. Não aguentava mais receber caridade.
Depois da minha conversa e um abraço extremamente desconfortável, volto para minha mesa me sentindo sem saída.
Não conto as meninas que pedi demissão da Coral. Nunca fui muito boa em despedidas e quero evitar drama desnecessário. Meu silêncio durante o almoço me denuncia, contudo. As perguntas vêm e eu me limito em dizer que não estou em meus melhores dias e logo a conversa se monopoliza em odiar gratuitamente o destinado de Franz, que lhe enviara uma ordem de restrição de 500 metros de distância dele e de sua mulher.
— Acho que isso foi longe demais.
Quando comento as meninas se calam e viram o seu rosto diretamente para mim.
— Você não pode exigir que alguém a ame, Franz, nem mesmo o seu destinado. — falo mirando em seus olhos — Se ele a quisesse por perto ele não contrataria a polícia.
Segurei sua mão apoiada em cima mesa e apertei, o silêncio dominando o grupo.
— Minha querida, você é linda. Não é necessário mudar e perseguir um homem para ele gostar de você, muito menos um homem comprometido. — explico sem cerimônia. — Você gostaria que alguém quisesse coagir o seu amado simplesmente porque um mísero relógio disse que foram feitos um para outro?
Mordo a língua sentindo meu coração afundar no peito ao vê-la tão frágil e triste naquele momento. Respiro fundo sabendo que irei fazer algo bastante irresponsável para ela se sentir melhor.
— Quem sabe que vocês não fiquem juntos apenas no final da sua vida? Vi isso em uma série uma vez…
Ela sorriu com tristeza.
— Você está certa, . Vou ao banheiro, com licença.
Todos os olhares do refeitório observavam o corpo miúdo de Franz sumir na porta do banheiro feminino. Posteriormente, o olhar se recaiu a mim, desconfiados e até acusatórios.
— Antes que falem qualquer coisa, eu entendo a insistência de querer que um casal de destinados darem certos. Geralmente eles dão! — explico as encarando. — Mas sei que vocês odiaram que alguém fizesse sua vida um inferno simplesmente por ter decidido que seu marido deveria amar outra pessoa.
Mary abriu a boca para falar algo, mas eu a interrompi.
— Gente, vocês tentaram mudá-la apenas para que fosse “apresentável” para um homem que nem interessado na Franz estava! Isso não se faz!
— Mas a gente fez com a melhor das intenções, ! — contrapôs Daisy.
— Eu sei que sim. — falo tentando explicar meu ponto — Fico feliz em saber que em um momento como esse ela tem amigas para apoiá-la, mas não desse jeito!
Ela apertou os lábios, frustrada.
— está certa, pessoal. — disse Mary — Acho que devemos um pedido de desculpas a nossa Franz.
O instinto de líder que Mary tinha sempre me fizera admirá-la e naquela vez não foi diferente. Ainda com alguns protestos de Lauren e Daisy, vi a convencê-las com punho de ferro e até mesmo as teimosas aceitou se levantar e ir ao banheiro acalentar uma mulher chorosa que nossa amiga com certeza era no momento.
Avisei que iria para o banco e não iria acompanhá-las. Sentia-me um pouco mal, todavia, pois demorei demais para falar o que pensava para Franz e poderia muito bem ter evitado terem levado essa história tão longe. Meu consolo era que, para todos os defeitos, as meninas eram as melhores amigas do mundo, daquelas que não lhe deixaria em um momento delicado como esse.
Consciente do que estaria deixado para trás, o aperto no peito foi inevitável.
Faltando apenas algumas dezenas de minutos para meu horário de almoço acabar quando fui ao banco com as esperanças minúsculas.
Como previsto, eu deveria esperar alguma resposta por duas semanas, mais ou menos, mas, infelizmente, a chance disso funcionar era pequena; tudo por causa da minha renda anual que não era suficiente para garantir que o pagamento saísse em dia.
Imagina o que eles pensarão ao descobrir que daqui para que eu tenha essa resposta estarei desempregada?
No futuro, se eu quisesse abrir uma empresa não era má ideia; há uma campanha ferrenha do governo para o empreendedorismo que conheço desde que era uma criança e os bancos ajudavam até demais aos microempresários.
Quando estou correndo pelo salão principal lanço um olhar travesso e mal calculado para minhas amigas recepcionistas e segundos depois esbarro em alguém.
— Calma aí, mocinha. — Ouça uma voz jovial de um homem e eu coro violentamente ao pedir desculpas. Levanto o rosto para cima, já que ele era altíssimo.
— Não foi nada. — diz balançando a mão em sinal de desdém — Aliás, você poderia me dá uma informação? Estou procurando um parente meu. O nome dele é Garry Fordnelly.
Me seguro para não fazer uma careta e me ofereço para ajudá-lo. Enquanto entravamos no elevador e eu o explicava como achar o setor onde Garry atuava, me peguei observando os olhos azuis como cristais e a cabeleira loira e acobreada. Ele tinha o rosto bem desenhado e um sorriso fácil.
— Bem, aqui é minha parada. — digo por fim quando as portas do elevador se abrem.
— Obrigado pela informação. — Ele agradeceu — Sou Phillip De Lucca.
— E eu sou . — sorri para ele antes de seguir meu caminho.
Fiquei curiosa em saber mais daquele homem, porém o esqueço assim que me empenho a terminar a maior parte de meu trabalho.
...
— , vai demorar para sair?
Coço os olhos exausta e solto um sorriso cansado para Mary.
— Vou sair em dez minutos. — respondo terminando o e-mail que enviava à gráfica que eu contatara para fazer os banners.
— Bem… Quero agradecer o que você fez para Franz. Estava exatamente pensando naquilo, que tínhamos incentivado uma obsessão, não um amor verdadeiro. — ela sorriu esperançosa — Espero que um dia eles fiquem juntos e tenha um casamento feliz.
Balanço a cabeça assentindo mesmo que não concorde veementemente com sua afirmação. Eu tinha um sentimento triste em relação aos primeiros casamentos que não davam certos, provavelmente eu era uma romântica incurável lá no fundo e odiasse pensar que as pessoas desfaziam-se com facilidade seus casamentos, sem lutar nenhum segundo pelo cônjuge e pelo quê criaram juntos.
Era triste para mim pensar que a felicidade da minha amiga, talvez, apenas talvez, pode resultar a tristeza de outra pessoa.
— Estamos pensando em fazer o Happy Hour na One essa sexta, quer vir conosco? — perguntou Mary quando ela ia em direção ao seu carro.
— Quem sabe? — dou a resposta evasiva com um sorriso, mesmo sabendo que no fundo eu negava.
Não queria ser a chata do grupo o tempo todo.
Tentei fazer alguns caça palavras perdidos de minha bolsa quando estava voltando para casa, mas a viagem estava propícia à pensar na vida.
Eu teria que conversar com a mãe de Jean sobre o agiota que ela pegará dinheiro emprestado há um tempo atrás. Não foi o melhor negócio que fizera e ainda devia alguns pares de dólares, porém ao menos ele era conhecido.
Dinheiro não traz felicidade, mas traz conforto e às vezes pode significar a mesma coisa.
Se ao menos eu tivesse aceitado o empréstimo de Carter… Mas me conhecia o bastante para saber que meu orgulho não me permitia dormir com tal feito.
Anoitecia quando cheguei na rua de casa. De longe pude ver Bonnie correndo com suas amigas e sorri com aquela cena tão simples. Era bem verdade que ver crianças brincando na rua não é tão costumeiro quando antigamente, entretanto, não deixava de acontecer nas Alas mais baixas, pois muitas (para não dizer todas) não podiam comprar os brinquedos eletrônicos famosos hoje em dia.
Quando me aproximei da agitação, a menina me reconheceu e com um grito apressou-se em minha direção. Ela tinha perdido o dente da frente deixando uma janelinha fofa em seu sorriso e eu a tirei do chão para os meus braços.
— Como você está pesada, meu amor! — lhe digo beijando sua face. — Hm, e está precisando de um banho também.
— Aff, Tia , eu não quero.
Respondeu emburrada e eu soltei uma risada sentindo meu corpo mais leve com a presença de Bonnie.
— Já conversamos sobre isso, Senhorita Bombom.
Lhe lanço uma carranca falsa e ela desce batendo os pés.
— Mas tomar banho é muito ruim!
— Ruim é ficar fedendo. — retruquei. — Depois a gente conversa sobre isso, tenho que ir pra casa. Você vai comer lá?
Ela balançou a cabeça concordando.
— Avisou a sua mãe onde estaria?
Ela escolheu os ombros.
— Ela sabe que eu estou com a senhora.
Apertei os lábios sem dizer nada. Charli parecia saber sobre a constante ida de seus filhos em minha casa, contudo, não agia como tivesse controle dos seus filhos — ou até mesmo se importasse onde eles estivessem, mas bem no fundo eu sabia que ela o fazia. Quando Bonnie passou a ser frequente em minha casa, lembro de ter uma conversa estranha com ela: Charli dedicara-se a saber qual era meu objetivo dando comida de graça pra a filha dela.
Dou lhe um tchauzinho e vou direto para casa. Jean e minha mãe estão no quarto; mesmo com a delicadeza natural e talvez um pouco técnica de minha amiga, Letícia não parece conseguir segurar muito bem a comida em sua boca. Meu coração se aperta quando sua mão ossuda segura com dificuldade a de Grey para que ela parasse.
— Eu assumo por aqui. — aviso a Jean — Obrigada.
Meio perdida pelo repentina chegada, Jean se despede e deixa a pequena tigela com diversos cereais integrais que comprei visando melhorar a alimentação de mamãe.
Custou caro, porém, para ela o melhor nunca será negado.
Limpo seu rosto sendo assistida pelos seus olhos azuis sem foco. Um tipo de felicidade nostálgica me atingi quando ela toca com seus dedos frios minha pele; penso nas vezes em que ela cuidava de mim e me dizia que era seu maior tesouro.
— Eu te amo, mamãe. — sussurro emocionada — E vou sempre cuidar de você. Até o fim.
A decepção me toma quando lembro que ela não me entende e que provavelmente não sabe quem eu sou ou quem era ela. Tudo muda, todavia, quando vejo de seu olho direito descer uma solitária lágrima.
…
A semana passara mais rápido do que esperava e antes que eu pudesse gravar cada canto daquela empresa em minha memória, a sexta-feira chega.
Mesmo sabendo que eu não poderia segurar aquilo por mais tempo, fico calada e não cito sobre minha saída da Coral para as meninas. Sei que não estou pronta e que provavelmente nunca estarei, mas continuo empurrando aquilo com a barriga.
Passo a tarde enfiada na sala da copiadora que por algum milagre está vazia. Tenho plena consciência que se alguém entrar me verá naquele estado de inércia, uma careta de quem já perdeu a guerra.
Giro na cadeira com o queixo apoiado na mão pensando nos momentos bons que tive nos últimos cinco anos. Lembro de ver as meninas alegres dançando juntas na festa de fim de ano, quando eu me dei uma folga para beber duas ou três taças de champanhe, e já sinto falta dessas memórias.
Exatamente quando a copiadora para de fazer barulho, a porta se abre e última pessoa que imaginaria me fazer companhia aparece.
Sinto-me nervosa com a presença de ali.
Seu terno sobe medida é azul marinho e a gravata vermelha se destaca na camisa social preta e instantaneamente comparo com a calça preta que eu usava e uma blusa cinza de flanela.
Ele entra devagar como se estudasse em se aproximar ou não.
— Oi. — diz ele colocando a mão no bolso — Posso conversar com você?
— Claro. — respondo desanimada de forma que aparenta dizer o contrário.
— Soube que está saindo da empresa. — comenta.
— Senhor Carter é um fofoqueiro. — estalo a língua quando percebo não ter filtrado minhas palavras.
ri.
— Não deveria falar assim de seu chefe. — responde com um ar divertido. — Ademais, também o acho um fofoqueiro. Quer dizer, ele só é fácil de se arrancar informações.
Dou os ombros sentindo um sorriso zombeteiro se formar em meu rosto.
— No final da tarde ele não será mais meu chefe.
pega uma cadeira que estava no canto da sala e se senta confortavelmente.
— Quer conversar sobre isso?
— Isso o quê?
Sei do que ele está falando, mas prefiro fingir-me de sonsa.
— Sobre sua saída. Sobre o porquê de você sair do emprego que parece lhe fazer bem.
— Como você vai saber se eu gosto ou não do emprego se a gente não se conhece? — digo acidamente.
— Do jeito que você falou sobre ele naquele almoço foi mais do que necessário para me convencer. — ele responde à altura, frio como gelo.
Foi como uma tapa e eu encolho os ombros ao ver que eu merecia por ter sido grosseira.
— Desculpe. — sussurro.
— Tudo bem. — responde depois de um tempo.
Só então percebo que ele carrega na mão uma caneta que não para de girar entre seus dedos, como um tique nervoso.
Ele estava nervoso. Por quê?
— Não tem problema sair do fórum assim no meio da tarde? — pergunto mais curiosa do que irritada — Você não é autônomo e trabalha para o governo.
Ele sorri para mim e me perco naqueles olhos escuros com um brilho de divertimento.
— Até os desembargadores têm seus momentos de folga.
Sorrio e volto para as cópias largadas na mesa e o grampeador esquecido por mim. Meu último trabalho para Coral era repleto de papéis cheio de estatística que quando enviadas por e-mail costumavam ser ignoradas pela grande maioria dos coordenadores das equipes da empresa em geral.
— Por que não me diz o motivo de sair da Coral? — indaga mais uma vez — Desabafar pode ajudar.
— Não resolverá meus problemas. — resmungo, porque no fundo eu gostaria que tudo fosse drama da minha parte e que não estivesse perto de vender minha alma para um demônio da ala E cheio de usura.
— Mas pode fazer você se sentir melhor. — Ele diz e a preocupação sincera de seus olhos me desarma.
— Desculpe. De novo. Você só está tentando ajudar — repito passando a mão no rosto — Estou em um humor cão hoje.
— Percebo.
Ficamos em silêncio e eu coloco a copiadora para trabalhar um pouco mais.
Começo a prestar atenção naquela cena: o clima ameno, a fraca luz da sala, a distância entre nós — tanto fisicamente quanto emocionalmente. Nós nos assemelhávamos a um filme indie antigo, daqueles de baixo orçamento que eu costumava assistir nas tardes de domingo nos poucos canais de TV aberta que ainda existiam.
Olho para ; seus olhos fitando algum ponto além da janela, o mexer nervoso de suas mãos, a elegância em que ele estava sentado… Será que ele já passara por problemas como eu ou sempre foi o mimado em sua vida?
Eu acreditava piamente que ninguém tinha uma vida perfeita. Mesmo com dinheiro, as pessoas tinham dificuldades e barreiras que poderiam ser nada para mim, mas para eles eram grandes como gigantes.
Pensando nisso decido confiar em . O que eu perderia se ele soubesse?
Não queria adicionar na bagunça da minha vida, mas ele estava tão dedicado a querer me ajudar que uma hora eu teria que ceder — e eu estava farta de lutar.
— Preciso cuidar da minha mãe e não tenho um centavo para isso. — falo, enfim — Jean, a garota que cuidava dela, não pode continuar se dedicando a mamãe. Estou de mãos atadas. — minha garganta embola e me sinto traída pelo meu corpo não obedecer meus comandos para evitar a histeria. Recuso-me a chorar diante do meu destinado. — Vou ter que pegar dinheiro emprestado de um agiota e não suporto a ideia de viver atolada em dívidas.
escuta calado e sinto seu olhar em mim mesmo que eu não esteja necessariamente mirando-o.
Seu silêncio me acalma por um motivo desconhecido. Minhas costas estão mais leves, mas a preocupação parece maior que antes.
O que eu ia fazer da minha vida?
— Você provavelmente já sabia da história, não é?
Pergunto consciente de que não preciso de uma resposta para saber que é verdade.
— Como soube? — ele sorri sagaz e eu o acompanho sabendo que a conversa é tensa demais para esse tipo de expressão.
— Desconfio de qualquer advogado. — dou os ombros — Ou pessoas que foi um em algum dia de suas vidas, no caso. Dizem as más línguas que eles são a pior raça da Terra.
— As más línguas estão corretíssimas.
Rimos juntos e faço uma nota de agradecê-lo por fazer-me mudar de humor tão rápido.
— Quero ajudar você. — fala ele sério. — Sei que nunca aceitaria uma doação, então, eu posso emprestar o dinheiro necessário para contratar uma enfermeira e os equipamentos que precisa ou mandar sua mãe para uma clínica. Você só começará a pagar quando puder, obviamente, com a condição que continue na empresa.
Arregalo os olhos, atenta. A proposta era muito tentadora, mas engoli o orgulho não seria fácil. Eu o conhecia em menos de um mês e ele estava oferecendo parte de seu precioso dinheiro, pelo amor de Deus! Aquilo me fez pensar em seus reais motivos: era bondoso ou via segundas intenções naquele ato?
— Por que quer me ajudar?
Ele consegue perceber o peso da pergunta tanto quanto eu. Dependia do que responderia para que eu dissesse que aceitaria ou não a proposta.
Esperei que ele dissesse que eu era sua responsabilidade por ser sua destinada, que eu era preciosa demais para Carter para perder me espaço na empresa ou simplesmente porque aquele dinheiro não iria fazer falta em sua fortuna.
Eu possuía uma resposta para todas essas façanhas.
Entretanto, ao ser mirada pelas pérolas negras determinadas que pareciam corroer minha alma e ouvir a tão esperada resposta, vi que tudo que eu acreditava sobre era uma grande mentira.
— Por que quer me ajudar? — repito.
— Porque é isso que as pessoas fazem quando alguém precisa de ajuda. — respondeu ele, firme como uma rocha — Elas ajudam, não interessa como.
Capítulo 10
“Não, eu não preciso chamá-la de "querida" e eu não preciso chamá-la de "minha" .Eu não tenho de tomar o seu coração, eu só quero tomar o seu tempo.” Take your time, Sam Hunt.
O primeiro ônibus que eu costumava pegar para voltar para casa estava cheio naquela sexta-feira. Acabei por ficar em pé, pois cedi meu lugar para uma senhora grávida, entretanto, não reclamei em nenhum momento ou lamentei por não ter um carro e viver tão longe do centro. Sorri para um desconhecido que sentou perto de mim no metrô e cumprimentei o motorista do último transporte público que peguei. Mesmo quando cheguei em minha rua e a chuva de outono caía, não me importei com o molhar das roupas que vestia.
A esperança era uma felicidade insegura e cheia de expectativas que me dominava como nunca antes. Um sentimento novo e tão brando que chegava a me fazer temer suas consequências. Apenas percebi que estava rindo sozinha quando, ao chegar em casa, Jean me lançou um olhar avaliativo.
— O que diabos aconteceu com você? Parece que viu um passarinho verde.
— Acho que vi um sim, minha amiga.
Respondi me sentando deliberadamente no sofá e abrindo minha bolsa.
— Explica isso direito. — exigiu a menina.
Segurei o extrato que tirei no banco, um pouco antes de voltar para casa, com um número com mais zeros do que eu poderia ganhar em três anos trabalhando na Coral.
— Mamãe vai ter um quarto novo.
Grey pega o papel de minha mão sem delicadeza e arregala os olhos quando ver o que nele está escrito.
— De onde você tirou esse dinheiro todo?
— Bondade ainda existe, amiga. — soltei um suspiro — E meu destinado tem de sobra.
O rosto de Jean se iluminou como uma árvore de natal, mas ela suavizou rapidamente e cerrou os olhos cética.
— Não acredito que você, a pessoa mais orgulhosa que conheço, esteja aceitando dinheiro de alguém que nem gostava. — ela pôs as mãos na cintura — Até onde eu sei, né?
— Ele me convenceu. — balanço a mão em desdém — Coisa de advogado.
Minha amiga se aproximou como um gato.
— Ah, então ele é advogado, hm?
Sorri misteriosa.
— E isso é tudo que você vai arrancar de mim.
Mesmo sabendo que não havia motivo para não contar a Jean, adorava apenas dá informações evasivas que a deixavam mais curiosa.
Me julguem.
— Vou precisar sair amanhã de manhã cedo para resolver o que posso para reformar o cômodo. — olhei com ela com a melhor face de piedade — Pode quebrar esse galho pra mim?
Ela deu os ombros e assentiu.
— Não é melhor levá-la para alguma clínica? Você visita ela nos finais de semana e não precisa mais se preocupar com isso.
Sei que Jean fala aquilo querendo me ajudar, mas não consigo não me sentir ofendida com suas palavras, como se eu estivesse doida para livrar-me da mamãe e seguir com a minha vida. Não sei como há filhos ingratos que fazem isso sem arrependimentos e conseguem dormir à noite, conscientes que sua progenitora está esperando a morte sozinha.
Nego seu conselho e faço as perguntas corriqueiras sobre como foi seu dia com minha mãe. Ela fala que teve muito mais dificuldade para dar comida a mamãe assim como dá banho. Falou que ela estava acordada e que acabara de trocar suas fraldas.
Me disperso de Jean e entro no quarto sentindo uma leveza indescritível ao ver que, por hora, nossos problemas serão resolvidos.
Na cama de casal, o corpo pequeno de Letícia está miúdo e coberto por lençóis limpos como todos dias. O quarto é bem ventilado e o cheiro bom de limpeza me envolve. Aquele cômodo era um total contraste com as paredes mofadas da sala e a bagunça da cozinha que divide a lavanderia.
— Conseguimos, mãe. — falo para ela emocionada, feliz como nunca antes, pois verdadeiramente algo na minha vida tinha dado certo no final.
(...)
Antes de dormir, decidi dá uma olhada no contrato que fizera comigo. Como um homem da lei, a transação do dinheiro deveria ser totalmente regulado e legal, por isso, sentamos junto com Carter e a advogada da empresa, chamada por meu chefe, e fizemos um acordo às pressas. Por ser sua área, parecia quase majestoso organizando a papelada. Ele fizera um rascunho do tratado — que foi praticamente inalterado — e entendi que foi falar comigo certo que eu não negaria sua ajuda.
Me senti estranha no meio daquelas pessoas discutindo sobre o negócio. Meu conhecimento jurídico era extremamente reduzido e comecei a agradecer por não ter seguido aquela área.
Só aquela conversa me deixava exausta, entretanto, o sentimento de esperança que me despertava era doce e convidativo.
Lembro de sorrir para ao apertar sua mão e senhor Carter brincou:
— Do jeito que você se preocupa com , estou começando a achar que quer roubar minha secretária. — e ele riu com gosto. — Se ele aparecer com qualquer proposta boa me diga; com certeza eu dobrarei.
Ri junto com Albert e dei uma espiada em . Ele me olhava de lado como de quem escondia um segredo que só ele sabia.
Antes de ir embora para casa, falou sobre algumas enfermeiras de confiança que conhecia e que poderiam fazer um preço bom para mim. Marcamos para nos encontrarmos no sábado em uma cafeteria no centro da cidade para que ele me passasse as informações que conseguiu.
No fundo não precisávamos nos encontrar, pois ele podia enviar tudo para meu celular, porém eu tinha o objetivo de me desculpar com e definir de vez o que diabos está se passando entre nós. Desde o começo eu o pré julgara mal e em nenhum momento ele fora desrespeitoso comigo e respeitou minha situação amorosa.
Seria aquela uma boa oportunidade de confessar que eu estava solteira outra vez?
Por um lado a ideia era cheia de boas intenções, mas não sei como ele entenderia esse comentário. Logo após dá uma quantia gorda de dinheiro para , ela chega solteira?, pensaria. Deixaria para outro dia, portanto. Nem sei como ele vai aceitar meu pedido de perdão!
Começo a me sentir aborrecida em ter aceitado aquele dinheiro. Será que ele vai desconfiar da honestidade de minhas atitudes a partir de agora?
Meu coração se acelera quando um barulho ensurdecedor atravessa pela sala. Com a mão no peito, cambaleio até a porta onde alguém bate e grita meu nome. Estava tão imersa em meus pensamentos que não percebi que me chamavam. Ainda agitada pelo susto, franzo a testa tentando adivinhar porque alguém viria em casa a essa hora.
Quando abro a porta e me deparo com sinto que vou enfartar a qualquer momento. Percebo que o que eu sentia por ele não era tão passageiro quando me pego reparando em seus lábios macios e os olhos…
Tem que ser muito otária mesmo! O cara quebrou seu coração sem dó e você ainda anda de quatro para ele?, escuto a consciência gritar comigo.
— Desculpe te incomodar tão tarde. — ele disse parecendo ressentido — Não posso passar mais uma noite sem falar com você. Posso entrar?
De primeiro sinto uma vontade imensa de fechar a porta em sua cara. Seria uma vingança maravilhosa, mas, primeiro: eu não sou criança e isso seria extremamente imaturo — tenho 26 anos na cara, pelo amor de Deus! E segundo: não ia conseguir dormir sem saber o que ele queria conversar comigo.
Por essas e outras, deixei-o entrar em casa.
Cruzo os braços e continuo no corredor, não o chamando para a sala. Ele demora alguns segundos para olhar diretamente em meus olhos e solta a respiração que Grey segurava antes de falar.
— Estou nervoso. — ele pôe as mãos no bolso da calça surrada de tinta — Quero pedir desculpas pela forma em que tratei no outro dia. O que a gente teve foi maravilhoso, , foram meses especiais demais para mim. Eu fui um filho da puta em não ter reconhecido isso.
Fico calada tentando processar o que estava dizendo. Aquilo era exatamente o que eu desejava que ele fizesse, porém por que sinto que essas palavras são tão… vazias?
— Não quero perder sua amizade. Me perdoa, por favor. — explica ele.
Então, entendo o motivo de não estar nas nuvens com suas palavras.
Eu desejava que ele dissesse que me amava. Que ele se arrependera de tudo o que fez e que queria voltar. Que ele não sentia nada pea Gia.
Ao constatar isso percebo que mereço o prêmio de otária do ano.
— Tudo bem. — murmuro e ensaio meu olhar de desprezo — Era só isso?
— Era. — ele responde envergonhado — Então, estamos bem?
Concordo com a cabeça mesmo não tendo certeza disso.
— Se você precisar de qualquer ajuda, é só me pedir. — pisca e sorri pra mim.
Assim que fecho a porta e fico sozinha no corredor começo a bater a cabeça contra a parede.
Burra. Burra. Burra. Mil vezes burra.
Dei meu coração para um idiota e não faço ideia de como resgatá-lo de volta.
Voltei ao sofá e balancei a cabeça para me concentrar nas coisas que eu faria no sábado. Em pedaço de papel, escrevo o nome dos aparelhos que teria que comprar e seus respectivos fabricantes. Mandei uma mensagem para o médico da minha mãe apenas para conferi, e listei alguns remédios que estavam acabando.
Massageei meu pescoço e bocejei de sono. Peguei meu celular para checar o email e vi que havia me mandado um sms.
“Confirmado para amanhã? 11h00 está bom para você? - ”
Sorri ao conferi a hora e balancei a cabeça ao pensar que ninguém dormia cedo nesta cidade.
“Com certeza :) - ”
(...)
A bem iluminada cafeteria estava quase vazia naquele final de manhã. Quando dou uma olhada rápida e vejo que não chegou ainda, corro em direção ao banheiro. Tento me convencer que estou checando minha maquiagem e que o desodorante não passou da validade por puro capricho e não porque eu quero está apresentável para .
E, é claro, falho miseravelmente.
A verdade é que quando eu acordei cedo naquele dia, procurei vestir a roupa mais nova que Ivanna fez para mim: uma saia azul de bolinha e cintura alta e uma camisa branca social.
Sinto minha barriga gelada desde que saí de casa e mesmo andando para cima e para baixo para resolver as coisas para mamãe, não consigo parar de imaginar como encararei .
Só Deus sabe o porquê do meu nervosismo, porque eu não faço a mínima ideia.
Eram 11h05 quando pedi meu café e sentei em uma mesa perto da janela.
Cinco minutos depois vejo acompanhado por uma mulher na casa dos 40 e um homem alto e de traços latinos bem atrás deles.
Meu destinado veste uma camisa social azul claro e uma calça jeans escura. Seus cabelos parecem úmidos e o cheiro forte de colônia masculina sugere que saira apressado de casa.
— Desculpe o atraso. — diz quando eu me levantei para cumprimentá-los — , essa é a mulher que eu lhe falei.
Ela estendeu a mão com um grande sorriso exibindo o aparelho rosa que ela usava.
— É um prazer conhecê-la. Sou Hope Steel. — se apresentou.
teve um ataque de tosse que podia ser deduzido como uma tentativa de esconder sua risada.
— O prazer é todo meu. — respondi sem entender a graça.
— Ah, e esse é meu segurança e motorista, Carlos. — apresentou o homem. — Você provavelmente o viu, mas não percebeu a sua presença. Ele tem essa habilidade de ficar invisível.
Estiquei um pouco o pescoço para olhar para seu rosto e duvidei muito que alguém poderia não notá-lo.
Sentamos na mesa e, sem enrolação, Hope começou a explicar seu “currículo”. Ela trabalhou por sete anos com um idoso que tinha Mal de Alzheimer e três anos com uma senhora que já estava em fase terminal da doença. Ela explicou que nos últimos anos trabalhara com crianças com câncer, mas sentia falta de trabalhar em casa familiar e etc. Assim como eu, assentia calado, apenas escutando Steel falar. Minhas perguntas se variavam entre sua experiência e se ela entendia as condições de minha mãe.
— Você sabe que eu moro na Ala O e não tenho certeza se haverá espaço para que você more lá. — explico a situação — Há algum problema se você tiver que pegar ônibus?
— Ah, não, não tem problema. Eu vou com a minha moto. — ela disse e eu arqueei a sobrancelha instintivamente tentando imaginá-la em cima de uma moto.
— Posso pagar parte da gasolina se preferi. — ofereço olhando para meus dedos e falhando miseravelmente em conter o sorriso no meu rosto com a imagem dela dirigindo.
A conversa passou mais rápido do que esperava e logo eu tinha marcado para dá uma resposta no final da tarde de domingo. Hope saiu antes de pedi seu café, pois teria que almoçar com seus filhos. Achei sua saída bastante conveniente para a conversa que eu gostaria de ter com .
— Está quase na hora do almoço. — comentou ele.
— Verdade.
Ele hesitou.
— Quer ir em outro lugar para almoçar? — disse inseguro — Tem um restaurante muito bom pelas redondezas…
— Não precisa! Marquei de comer em casa hoje.
Uma desculpa descabida, eu sei, mas não queria abusar da sua generosidade.
— Tudo bem. — ele deu os ombros, apesar de parecer desapontado.
— Então… Essa enfermeira é confiável? — pergunto casualmente bebericando o café intocado e frio na mesa.
E com muita força tentando não fazer careta.
— Não se preocupe, ela está limpa. — ele respondeu em prontidão. — Não há casos de maus tratos à envolvendo e quem me indicou garantiu que Hope é boa no que faz. — sorriu para algum ponto invisível atrás da minha cabeça — Ela é meio doidinha, mas acredito que não tem nada para tratar, psicologicamente falando.
— Por que você estava rindo dela quando Hope se apresentou? — Perguntei, não segurando minha curiosidade.
Ele voltou seu olhar para mim, demorando um pouco para entender, mas logo estalou a língua e riu.
— Hope está no meio de uma crise de meia idade, então, ela faz coisas que supostamente avós não fazem. É engraçado vê-la dirigindo uma Honda rosa.
Quase engasguei com a imagem que veio em minha cabeça e a gargalhada que saiu da garganta foi simplesmente hilária.
Com certeza eu iria direto para o inferno por caçoar de alguém desse jeito.
E não ia sozinha, já que parecia se divertir com isso também.
— A gente rir, mas é fofo ver as fotos dela com a netinha mais nova. Chamam ela de vovó estilosa, mas Hope odeia esse apelido.
— Certeza que vou me divertir muito com ela! — digo sincera. — Muito obrigada. Por tudo. Você não precisava fazer isso é mesmo assim foi bastante generoso comigo. Eu não fui a pessoa mais simpática do universo com você. Se pudéssemos voltar no tempo...
— Podemos começar de novo se quiser. — ele sugeriu com um sorriso de lado, me fazendo ficar assustada com sua ideia.
estendeu a mão em minha direção com um sorriso contagiante.
— Oi, sou , desembargador e filantropo nas horas vagas.
Ri e apertei a sua mão.
— Olá, sou , filha dedicada integralmente e secretária de um dos CEO da Coral, quando tenho tempo. É um prazer conhecê-lo.
Algo fez o ar pesar e o mundo parou ao nosso redor. Entrei em uma sensação de dejavu do dia que conheci . Seu toque em minha mão era convidativo, macio e quente. Ser mirada por seus faróis negros me fazia entrar em uma bolha imaginária; era como ser avaliada de fora para dentro, como se ele pudesse ver o mais fundo da alma.
E eu sabia que ele via o melhor de mim naquele momento.
— O prazer é todo meu, .
Sua voz soa mais rouca que o normal, vibrando cada canto do meu corpo. O charme que o envolvia me deixou extasiada.
— Aqui está a conta, senhor.
Quando o atendente nos interrompeu, pareceu fazer-nos voltar a realidade.
Cocei a garganta tentando disfarçar o silêncio que se seguiu.
— Você tem um irmão mais velho, não é?
levanta o olhar para cima, pensando na resposta.
— É tipo isso. — ele suspirou — Mas não tenho muito contato com ele. Passei boa parte da infância morando com minha avó, na Alemanha.
— Ah, seus pais são separados? Por isso teve que morar com a avó?
— Não, eles estão juntos ainda. — respondeu simplesmente — E você? Tem irmãos?
Balanço a cabeça em negação.
— Por mais que fosse o desejo de meu pai, ele esperava que a gente melhorasse financeiramente para ter um novo bebê. — sorri nostálgica. — Eles me deram uma vida confortável, sabe? Mesmo morando na Ala O.
Ele assentia, prestando atenção em cada detalhe, e me senti animada para continuar a falar.
— Sus pais eram destinados um do outro? — indagou interessado.
— Sim! A história deles é bonita, mas um pouco triste também.
— Como é?
Sua vontade de conhecer parte da história dos meus pais me fez voltar a época de quando eu era mais nova e minha mãe começara a esquecer das coisas. Foi na primeira vez que ela não me reconheceu e contou para mim o que eu não sabia sobre os .
— Parece novela mexicana, para ser sincera. — adverti antes de começar a narrar. — Minha mãe me contou que ela era da Ala G e foi criada para ser a esposa perfeita. Ela era bonita desde criança, então, meus avós tinham certeza que ela se casaria com alguém muito rico ou influente. De preferência os dois.
levantou a sobrancelha, cético.
— Eu sei! Louco não? Mas eles eram advogados que não conseguiram entrar em ascensão, o que me leva a crer que talvez quisessem ganhar algo em cima dela.
“Imagina só a reação deles ao descobrir que o destinado dela era um “faz tudo” da Ala O? Foi um choque. Como eles eram advogados, não era difícil para que minha mãe pudesse permanecer na cidade. Entretanto, ninguém imaginava que Letícia ia se apaixonar por ele; o que resultou muitas brigas entre a família. Enfim, minha avó ameaçou deserdá-la. Apesar de amar minha mãe, o destinado dela não tinha certeza se trazê-la para uma Ala tão inferior era bom para ela. Bem, minha mãe não se importou com nenhum daqueles problemas e fugiu com meu pai para casar com ele.”
— Foi desse amor que nasceu euzinha. — conclui de forma infantil, evitando contar a parte triste da história, e gargalhou da minha besteira.
— É uma bonita história. — comentou com um sorriso — Você deve ter vivido em um lar muito amoroso.
Balanço a cabeça, afirmando, sentindo que nossa conversa acabava ali. Fiquei pensando naquela facilidade estranha que tive para contar algo do meu passado que influenciava diretamente no que eu vivia agora. aparentava ser bastante confiável, contudo.
Quando vejo que a hora passou voando e minha barriga reclamava, comentei.
— É melhor eu ir andando…
— Quer uma carona? — perguntou quase automaticamente.
— Não quero incomodar...
— Não será nenhum incômodo. Mesmo!
Aceitei a carona parte por educação e parte por ainda queria continuar a conversar com .
— Então, tudo bem. — ele se levantou esfregando as mãos — Só vou ao banheiro rapidinho.
Assenti em concordância vendo-o se afastar, ficando feliz por poder ter tempo para colocar minha cabeça em ordem.
Observo a movimentação da rua e os carros passando deliberadamente pela avenida. Reparo o relógio dos pulsos das pessoas e a aliança dourada daqueles que não o tem.
Fico melancólica de repente e penso de como seria se eu tivesse me apaixonado por e ele por mim. O que teria acontecido se eu não estivesse namorando na época em que nos conhecemos? Quem sabe o destino realmente estivesse ali colidindo os nossos mundos mesmo se os relógios não existissem?
Serei para sempre grata a ele pelo que fez por mim e pela minha mãe e com certeza darei a amizade e lealdade que merece. Mas aquele negócio de destinados nunca iria funcionar.
Quem sabe em outro universo, em outro planeta, ou talvez em outra vida.
— Você sempre quis trabalhar nessa área? — perguntei quando estávamos já na calçada em direção ao seu carro.
— Não, claro que não. — respondeu como se eu fosse louca — Se na minha adolescência alguém dissesse que eu iria estudar direito, provavelmente eu riria dele como se fosse a piada mais engraçada do mundo.
Franzi o cenho.
— Então, como você chegou aqui?
Ele sorriu olhando para o horizonte com um sorriso nostálgico.
— Por ser da Ala A desde criança, não tinha muita pressão em cima de mim para escolher minha profissão. Meu pai queria que eu seguisse o rumo dos negócios que nem ele. — revirou os olhos de tédio — Mas como somos ricos e temos uma família cheia de gente com o sobrenome , não é um problema ter alguma empresa caindo nas mãos dos meus primos, logo, ninguém cobrou mais do que o necessário de mim: uma faculdade. Quando saí do exército…
Arregalei os olhos, assustada.
— Você participou do exército?
Ele coçou a nuca, constrangido. A sua face começou a ficar vermelha e eu o vi se transformar um menino de tão fofo que ele ficara.
— É… por seis meses só. — desconversou — Enfim, pedi pra saí antes mesmo de começar. Sempre tive vontade de mudar o mundo e no início achei que estudar direito era uma forma de fazê-lo. — ele deu os ombros — Quis usar minha sede de justiça para algo bom.
— Espera aí. — parei em frente ao seu carro fitando Carlos entrar no banco motorista — Você disse “no início”?
— Caraca, você não deixa passar nenhum detalhe! — disse em tom de admiração.
Me senti constrangida, mas nada disse, esperando que ele continuasse.
— A verdade… — ele chamou-me com a mão para o lado do carro e abriu a porta para mim — ...é que ser advogado e ser justo não é constantemente… Como eu posso dizer? — coçou o queixo, pensando — Não andam constantemente junto se você quer ganhar dinheiro.
Agradeci a sua gentileza ao abrir a porta do carro e me acomodei no banco de trás de seu carro de luxo, logo depois de falar o meu endereço ao Carlos.
— E ser desembargador? É a mesma coisa?
— Não. — respondeu, colocando o cinto — Mas é bem mais difícil não deixar o poder subir a sua cabeça.
Olhei para ele tentando decifrá-lo. Eu desejava conhecê-lo muito mais do que eu admitiria.
Você me intriga.
— Senhor, irei fechar a janela. Acredito que vocês dois precisam de privacidade. — falou Carlos em espanhol, totalmente alheio ao meu conhecimento sobre a língua.
Meu destinado ficou vermelho com insinuação do motorista enquanto eu fingia olhar alguma coisa pela janela e focava em não ruborizar.
— Sheisse, que constrangedor, Carlos! Não tenho mais 16 anos, por favor. — respondeu em espanhol e, rindo, o latino fechou a janela da parede que separava os bancos de trás com os da frente.
Franzi o cenho tentando entender o que significava “chaissa” e me acomodei no carro antes de partir.
— E agora? Como vai ser sua situação na Coral? — perguntou segundos depois.
Sorri entusiasmada.
— Não faço a mínima ideia.
Aquela cena foi particularmente engraçada para , pois ele gargalhou me contagiando.
— Albert falou que na segunda ele começaria a me treinar. Só Deus sabe para que, mas estou animada com a possibilidade. — expliquei.
— Eu ofereceria minha ajuda, mas provavelmente lhe atrapalharia. — ele comentou — Se for algo em relação a novos investimentos, me avise. Estou precisando de uma segunda opinião, além do meu contador.
— Sim, senhor. — brinquei.
O silêncio confortável se instalou no recinto e me vi tentada a perguntar sobre o que acontecia entre nós. Um péssimo timing, eu sei, mas a curiosidade quase me consumia.
Aperto os lábios tentando pensar em uma boa abordagem. Em outra situação, eu simplesmente deduziria que éramos amigos, mas havia um elementar que não poderia ser de esquecida: era meu destinado. De acordo com os videntes, erámos a alma gêmea um do outro. Portanto, não queria passar a impressão errada a ele, nem desejava que tivesse falsas esperanças.
Por algum motivo, não suportava a ideia de machucá-lo desse jeito.
— , eu sei que você já me falou que quer ser meu amigo e acredito em você. — cruzo minhas mãos no colo nervosamente quando tenho sua total atenção. — Mas ao mesmo tempo você disse que não desistiria de mim. Quero entender de vez o que está acontecendo entre a gente. — é difícil mirá-lo nos olhos, mas eu o faço mesmo assim. — O que você espera de mim?
fica em silêncio, mas eu quase posso ouvir as engrenagens de seu cérebro maquinando uma resposta. Depois de um tempo ele me responde.
— Eu não quero roubar seu coração. Não quero mudar sua vida ou o que você pensa em relação ao destino. — ele sorriu tranquilo — Eu só quero estar com você.
Suas palavras me envolvem quase magicamente. Sinto as entrando nos meus poros e fazer com que cada célula de meu corpo relaxasse em sua presença. Meu corpo se arrepia. Como ele sabe exatamente o que me dizer desse jeito?
— Por que você é assim? — sussurro tão baixo que duvidei que ele tenha escutado, entretanto, pelo peso de seu olhar, sei que ele me ouvira bem.
Estamos perto de entrarmos de novo naquela bolha quando paramos de repente e percebo que estamos em frente da minha casa. Definitivamente esta foi a viagem mais rápida do centro para meu bairro que tive.
— Muito obrigada pela carona. — agradeço quando, com o sotaque carregado, Carlos avisa que chegamos.
— Por nada. — sorriu enquanto eu abria a porta.
Antes de me despedir de vez e fechar o automóvel, por puro impulso, digo a ele:
— Também gosto de estar com você. Adoro sua companhia.
ri divertido e estende minha bolsa que fora totalmente esquecida por mim.
— Que bom, pois achei que estava louca para sair por não gostar da companhia e por isso esqueceu suas coisas.
Por mais que aquilo pudesse ser algo um tanto ofensivo, parece lidar muito bem com meu esquecimento, então, sorri amarelo para ele.
A verdade é que eu estava feliz de está do lado de fora, principalmente porque agora eu conseguia respirar.
Por que eu não respirava direito antes? Não sei.
— Obrigada, de novo.
Ele balançou a mão em desdém como se ele costumasse ajudar jovens solteira indefesas toda sexta-feira com doações extravagantes.
— Me mantenha informado de qualquer problema. Estou aqui para ajudar.
— Qualquer um? — levantei as sobrancelhas — Não sei se vai conseguir aguentar…
— Não me subestime, . — ele piscou — Até mais.
— Até, .
Quando o carro dobra uma das esquinas, olho para frente de casa e vejo com um olhar de poucos amigos para mim. Grey balança a cabeça ultrajado e eu franzo o cenho sem entender. Antes que eu pergunte algo, ele entra em seu lar e fecha a porta com um pouco mais de força do que o necessário.
Que diabos..?
Capítulo 10 (Parte II)
“Então se segure em mim firme. Segure-se, juro que tudo ficará bem, porque somos você e eu juntos.” Hold On, Michael Bublé.
— ...ele sempre teve fama de chefe mão de ferro. — comentou com cinismo — Me recuso a acreditar que durou quase seis anos para você perceber isso.
— Em minha defesa, ele nunca me forçou descer ao térreo por mais de 3 vezes em um dia. — resmunguei fingindo-me carrancuda.
Empurrei a porta com o ombro logo que abri o cadeado novo que havia comprado. Suspirei cansada, mas feliz por ter conseguido chegar em casa. A sensação de trabalho bem feito no final de uma sexta-feira é maravilhosa.
— E Hope? Está se dando bem com ela? — perguntou interessado.
— Sim. — afirmei — Obrigada por indicá-la. Ela é uma fofa e muito eficiente.
— Bom... — murmurou — Muito bom.
— Acabei de chegar em casa e tenho algumas coisas para resolver. — expliquei — Te mando mensagem mais tarde, ok?
— Tudo bem. — respondeu — Até mais!
— Tchauzinho.
Joguei minha bolsa e o celular no sofá e devagar fui até o quarto de mãe. Pude escutar um cantarolar baixo e sorri ao ver Hope checando a sonda que permitia que minha mãe não tivesse problemas para fazer xixi.
Não foi difícil perceber as mudanças que Hope trouxe para o bem estar da minha mãe. Veja bem: sou grata por ter tido a ajuda de Jean, mas a verdade é que ela não era uma profissional formada. Hope tinha mais facilidade e sempre sabia o que fazer para melhorar seu conforto, mostrando que tinha experiência no que fazia.
Letícia estava sonolenta quando entrei no quarto. Os olhos azuis estavam cinzentos e me fitaram com o costumeiro desconhecimento.
— Boa noite, ! Como foi no trabalho? — perguntou Hope ao me ver.
— Cansativo. — respondi com um sorriso ladino.
Aquela semana tinha sido marcada por diversas mudanças, principalmente no meu trabalho. Quando cheguei na segunda-feira, Carter me chamou para sua sala e mandou que fossem checados os contratos dos funcionários que trabalhavam há mais de cinco anos na empresa.
Nos outros dias me pediu para que fosse até a área de marketing para pegar as estatísticas e opiniões dos nossos clientes. No começo me perguntei o porquê de não mandar apenas um email pedindo eles, mas ao chegar no andar prescrito, entendi o que ele queria que eu fizesse.
Em resumo, a área de marketing da Coral era burocrática. Descobri com Nathan Dowain que durante a criação da empresa foram vazados alguns comentários maldosos sobre os produtos que vieram a ser frases publicitárias das concorrentes. Tal situação despertou uma fúria descomunal em Shawn McCall, um dos donos da empresa, e fez com que pouquíssimos tivessem acesso àquelas informações.
Demorei quase o dia todo para conseguir uma autorização; eu precisava da assinatura de Albert para liberar minha passagem, entretanto, ele estava em uma das fábricas junto com Hunter Perry para vistoria mensal.
Em compensação, me vi conversando com muito mais gente que o normal. Os funcionários da área de marketing eram extremamente simpáticos e comunicativos. Algo me dizia que tinha a ver com o que eles trabalhavam, mas nada que eu possa afirmar com certeza.
Naquela sexta-feira, ao ver que eu já tinha feito tudo que me foi ordenado, senhor Carter me fez escolher entre os contratos que estavam perto do fim dos funcionários de marketing e escolher qual deles estariam no olho da rua no final daquele mês.
Foi a pior coisa que tive que fazer durante meus cinco anos na empresa. Se eu não tivesse conhecimento de quem era cada um deles e suas famílias, talvez eu teria maior capacidade de vê-los apenas como números de produção e gastos, todavia, não era bem assim.
Saber que eu estava encarregada de más notícias a pais de família me doía o coração. Se fosse o Garry Fordnelly com certeza não sentiria isso, mas...
Em contrapartida, havia Hope e sua dedicação a minha mãe. Ela comentou sobre o quão estranho era o bairro de noite, por isso pediu para que seu filho mais velho a pegasse todos os dias em seu carro. Confesso que fiquei desapontada em não ter a oportunidade de vê-la em sua moto, mas a sua segurança era muito mais importante do que uma cena incógnita e divertida para mim.
Decidi que iria comprar uma beliche para meu quarto e assim Hope podia dormir em casa se fosse muito tarde e perigoso para ela voltar. Descobri em nossas conversas que ela era viúva fazia pouco tempo e ainda sentia a morte do marido. Os dois tiveram cinco filhos e a maioria estava casado, entretanto, sempre de olho na sua mãe. De um jeito nada sutil ela perguntou se eu era solteira e, quando afirmei, ela começou a fazer propaganda de seu filho mais velho que ainda esperava sua destinada.
Ele recebeu quinze anos e de primeira não consegui evitar sentir inveja dele, mas logo depois percebi o quão idiota estava sendo. Se eu tivesse que esperar mais tempo para me livrar do relógio, não quero nem imaginar o que seria de mim e da minha mãe agora.
Hope Steel era uma mãe bastante devota aos filhos. Só do jeito que falava deles e dos netos mostrava o tanto que os amava e queria o melhor para eles. Apesar de se vestir como uma adolescente e sendo bem mais velha do que isso, Hope era bonita e tinha uma alma jovem. Era divertido conversar e sanar sua curiosidade que não parecia intrometimento e sim puro interesse pelo conforto da pessoa.
— Acho que seria bom fazer alguns exames com sua mãe, . — Comentou assim que saímos do quarto. — Ela teve febre mais de uma vez essa semana e isso é preocupante.
Franzi o cenho.
— Às vezes ela tem febre, mas o médico disse que era normal. — Respondi preocupada — Aliás, faz tempo desde a última vez que Jean comentou sobre isso comigo.
— Conversei com ela, inclusive. — ela falou — Veio aqui ver como as coisas estavam, ela é muito fofa. Jean falou que havia uns exames que ainda não chegaram e queria pedir pra que você os trouxesse.
Assenti.
— Eu vou pedir para o doutor Brandon aparecer por aqui para dá uma olhada na mamãe e nos exames. — Completei.
— Você ainda vai precisar de mim hoje? — perguntou ela — Queria sair mais cedo para encontrar minha filha mais nova.
Sorri para ela.
— Não tem problema, pode ir.
Escutei alguém bater na porta assim que Hope foi arrumar suas coisas e tirou o jaleco que usava. Quando abri a porta, fui abraçada por uma Bonnie suada e rindo.
— Tia! — ela gritou agitada. — Tô morrendo de fome.
Entretanto, atrás dela estava Jack com uma carranca nada amigável. Seu maxilar estava trincado e algo me dizia que estava prestes a explodir. A sobrancelha estava levemente arranhada e com um curativo um pouco acima.
— Você pode ficar com Bonnie por um tempo? — Seu pedido soou como uma ordem para mim.
— Claro. — respondi cautelosa. — Mas por quê?
Aquilo pareceu ser suficiente para que ele entrasse em passos pesados e fechasse a porta com força.
— A filha da puta da Charli deixou a Bonnie sozinha nos últimos dois dias. — ele ralhou socando a parede.
Dei um salto para trás assustada com sua atitude agressiva. Sussurrei para Bonnie me esperar na sala enquanto eu conversava com seu irmão. Assim que ela saiu obedientemente, cruzei os braços na defensiva.
— Aqui é casa de família, mocinho. Vá lavar essa boca.
— Meu ovo esquerdo que vou lavar a porra da boca, . — Ele gritou com a face vermelha. — Ela simplesmente passou dos limites! Como aquela vagabunda se acha no direito de sumir e deixar a filha de SETE ANOS sozinha e sem comida?
— Jack, abaixe o tom de voz e se acalme. — Respondi impassível. — Também acho muita falta de irresponsável dela, mas preciso de você com a sanidade intacta para manter uma conversa coerente. Se não educar sua fala, serei obrigada a mandá-lo embora até esfriar a cabeça.
Ele coçou as têmporas e respirou fundo. O ar saiu pesado e vi que Jack estava acabado e distante, como se não dormisse a dias. O menino de 14 anos aparentava ser cinco anos mais velho e isso me doía. Desde quando se tornou normal não ter infância e adolescência na Ala O?
Jack Woodreck encostou a testa na parede e relaxou os ombros antes de falar:
— Bonnie disse que ela deixou o almoço e avisou que voltaria em cinco minutos. — explicou — Ela não voltou depois que ela saiu para brincar e, por estar com medo, Bombom tentou vir aqui, mas ela disse que você não estava em casa. Ela passou os últimos dias trancada dentro de casa chorando e pedindo que Charli voltasse, mas aquela vadia nem deu as caras. Me diz, , como eu vou tentar ter ao menos respeito por essa mulher quando ela abandona uma criança assim? Se eu tivesse demorado o que ia acontecer com Bonnie? Já não basta o desgraçado do pai dela ter o abandonado, Bonnie tem que ficar sem a mãe também?
Afaguei seus ombros e com a expressão mais amigável que eu possuía e pisquei para ele.
— Pode deixá-la comigo o tempo que precisar. Você pode ficar aqui por um tempo também. Sei que precisa…
Ele balançou a cabeça negando.
— Não quero trazer problemas.
— Não há problema em ficar aqui em casa. A não ser que você se importe em dormir no colchão no chão. — falei em tom de brincadeira.
— Estão atrás de mim, . Não quero colocar a sua segurança e a de Bonnie no lixo.
Meu coração diminuiu ao menos duas oitavas no peito. Senti uma sensação ruim subir pela garganta. Não conseguia aceitar de jeito nenhum que Jack estava se envolvendo no crime quando eu estava disposta a dá o suporte que ele precisava para se dar bem na vida honestamente. Queria gritar para que ele me escutasse e dizer que ainda dava tempo de fugir daquele mundo, mas fico quieta. Pela intensidade do olhar que recebo, sei que Jack me entende.
— Por favor, tome cuidado. — murmuro.
Não consigo vê-lo como alguém mais velho agora. Vejo-o como o adolescente que era e aquela percepção me faz querer abrir o berreiro.
— Ei, , tem uma menininha na sala dizendo que… — Hope apareceu um pouco alheia a minha conversa. — Ah, olá. — diz para Jack simpática.
— Oi.
Steel me olha esperando alguma resposta, sua curiosidade culminando mais uma vez. Daquela vez, entretanto, não estou com nenhuma vontade de dizer qualquer coisa.
— Bonnie vai passar um tempo comigo, Hope. — Resumi e, perceptiva como era, a enfermeira compreendeu que não iria saber de mais nada.
— Bem, até amanhã, então. — ela beijou minha bochecha — Boa noite, florzinha. Danny já chegou.
Sorri com o pouco de forças que me restava tentando não ser antipática com ela, afinal, Hope não tinha culpa do que estava acontecendo.
— Boa noite, senhora Steel.
Ela me olhou feio por chamá-la de senhora e deu uma tapinha sem força no meu braço.
Quando Steel saiu do meu campo de visão, Jack me olhava com as sobrancelhas arqueadas.
— Nova enfermeira da minha mãe. — Respondi sua pergunta implícita.
— E ela aceitou trabalhar nesse fim de mundo? Que corajosa. — Murmurou ele, abismado.
— Hope é uma mulher bastante determinada e comprometida com o que faz. Não acho que localização pode afetar nada no trabalho dela.
Mas no fundo eu estava pensando nisso também durante a semana. Mesmo não sendo o lugar mais adequado para se trabalhar e tendo o currículo de Steel, me surpreendi por não vê-la lançar nenhuma olhadela atravessada ou reclamar — mesmo sendo apenas sua primeira semana. Não podia mentir sobre minha conclusão: havia escolhido muito bem. Ela era boa no que fazia e não me julgava.
Eu era tão grata a ele que às vezes tinha vontade de abraçá-lo e enchê-lo de beijos. Nunca tinha experimentado a sensação de focar no trabalho sem me preocupar com as contas ou se Jean precisava de ajuda. Era como se um peso enorme saísse das minhas costas.
Até mesmo alguns problemas que eu poderia ter para explicar sobre o dinheiro que me colocava na Ala L automaticamente e o porquê de não ter procurado uma nova moradia já haviam sido esclarecidos pelo — ou os advogados dele, não tenho certeza.
— Quando você volta? — Indaguei a Jack quando o vi se virar em direção a porta.
— Em breve. — Ele respondeu sem olhar nos meus olhos.
O abracei ignorando o cheiro de maconha que suas roupas carregavam. Um cheiro que, infelizmente, eu já estava acostumada naquela rua.
— Tome cuidado. Até logo. — Sussurrei como se estivesse mandando-o para uma guerra.
O que não passava da verdade, afinal.
Depois de dá um tchau seco para mim e Bonnie, o adolescente saiu deixando para trás o baque surdo da porta.
Foi fácil distrair Bonnie com meu celular (da empresa, devo acrescentar) enquanto cozinhava algo rápido para nós duas. Quando coloquei no prato senti meu coração doer no peito ao vê-la atacar a comida como se ela fosse escapar de suas mãos.
Era uma cena triste.
Por ser pequena e ter uma visão minimalista do mundo, Bonnie estava animada com a ideia de passar um tempo comigo. Quando perguntei se ela sentia falta da mãe a menina disse que sim, mas logo ela aparecia como antes. Me dói pensar que durante os poucos anos de vida dela o abandono era algo natural.
Deixei-a dormir no colchão que eu coloquei na sala e fui dá uma olhada em minha mãe. Depois de me certificar que tudo estava bem, anotei os trabalhos que adiei para fazer em casa naquele dia. Deitei-me no sofá duro, que tinha passado a ser minha cama nos últimos dias, e me enrolei com uma manta. Estávamos no outono e eu só conseguia sentir a mudança do tempo agora.
Antes de pregar os olhos fui checar meu celular, algo que estava se tornando habitual. Sempre havia alguma mensagem de ou eu enviava algo perguntando como ele estava.
“, aconteceu algo não muito bom.”
Franzi o cenho ao ver que me mandara aquela mensagem há dez minutos atrás.
“O que foi que aconteceu?”
Quando vi que estava demorando demais para escrever comecei a ficar nervosa. Não poderia me dá ao menos umas férias dos problemas? A vida adulta é uma droga.
Após tanto escrever, meu destinado desistiu que digitar e finalmente me ligou. Pela tensão da sua voz quando eu perguntei se estava tudo bem, percebi logo que estava uma pilha de nervos.
— Saíram em uma revista algumas fotos nossas juntos. — Ele deu um suspiro cansado — A sorte é que Hope também apareceu, mas as matérias não deixaram de ser tendenciosas. Já falei com meu assessor para dar um jeito nisso, mas quero que você fique atenta. Talvez vão tentar entrar em contato contigo e tirar algumas fotos, na melhor das hipóteses.
— Tá bom. — respondi porque não sabia exatamente o que dizer sobre isso.
— Não queria te expôr, , e me desculpe por isso. Fui muito descuidado.
Sua voz era tão sofrida e culpada que não evitei abrir o sorriso com a ideia de alguém tão preocupado com meu bem estar.
— Eu não me importo com isso, . Sério, pode ficar tranquilo. — o acalmei.
— Tem certeza? — Perguntou com insegurança.
— Tenho. — Assenti com a cabeça mesmo sabendo que ele não me via.
Quase pude visualizá-lo relaxando os ombros e se arrumando em uma grande cadeira de couro em seu escritório.
OK, talvez eu tenha viajado na maionese agora.
— Então, seria pedir demais se você não falasse nada sobre nosso acordo? — Ele falou com o costumo tom despreocupado — Não quero ter que dá explicações a mídia sobre o que faço com meu dinheiro. Eles já se intrometem demais para o meu gosto.
— É claro que não vou dizer! Me surpreende você pensar que eu seria tão…?
— Ei, ei, calma. — ele me interrompeu — Sei que você é confiável. O negócio é que a gente nunca conversou sobre isso realmente. — ele coçou a garganta.
— Não tem nada nas entrelinhas do contrato sob sigilo? — alfinetei.
— Se tivesse você é esperta demais para algo assim, provavelmente teria lido. — resmungou — Caso eu quisesse que assinasse algo sem saber, eu teria escrito em alemão.
Ri, sentindo minhas bochechas corarem com o elogio.
— Você está me subestimando.
— Você está se subestimando.
O silêncio se prolongou mais do que devia. Talvez ele estivesse certo, porém eu não gostava da atual pressão que Carter e me davam; por acaso sou tão excepcional no que faço assim?
— Tenho que ir agora. Ainda há trabalho para ser feito. — disse ele me lembrando de que o celular ainda estava ligado.
— Tudo bem. — Murmurei — Boa noite, .
— Boa noite, .
…
O céu estava nublado naquele sábado, apesar da moça do tempo dizer que o dia não seria propenso a chover. Bonnie brincava no parquinho da Clínica com outras crianças e de longe eu a vigiava. Saímos logo depois que Hope chegou para fazer seu trabalho. Aproveitei para visitar Ivanna e nós duas estávamos observando a movimentação do local.
— Está pensativa hoje. — Comentou Ivanna.
Dei os ombros.
— Conversou com essa semana? — Perguntou tentando ser casual.
E falhando miseravelmente, diga-se de passagem.
— Sim. A gente tem conversado.
Não ia confessa que essas conversas se tornaram rotineiras. Não mesmo.
— Ele não está te seguindo ou algo parecido, não é?
— Claro que não. — lhe mandei uma olhada como se tivesse dito algo absurdo — Geralmente sou eu quem liga para ele, na verdade.
— Pensei que você não quisesse se aproximar do seu destinado. — Ivanna levantou as sobrancelhas com aquele ar astuto de sempre.
— Além dele ter sido bastante generoso comigo, ele é uma boa companhia. Não vou deixar de ter uma amizade agradável por causa de um relógio. — repliquei.
— Dou dois meses para vocês aparecerem aqui com o convite de casamento para mim.
Gargalhei achando aquela ideia absurda.
— Du-vi-do.
— Ah, criança, esses olhos já viram muita coisa. — ela disse com um toque de sabedoria raro vindo de Ivanna.
— Com certeza, coroa. — brinquei.
— Isso, zombe dos meus conselhos. Depois estarei muito feliz em dizer “eu avisei”. — resmungou.
Rindo, a abracei ignorando seu mau humor.
— Então, vamos falar de coisa boa: fiz um vestido lindo florido para você essa semana. Vai ser um pipoco na moda verão!
Franzi o cenho.
— Ivanna, a gente tá no outono. Por que diabos você fez algo para o verão? — Indaguei.
— Porque o tecido é muito mais barato nessa época, bobinha. — ela justificou como se eu fosse um Alien que não entendia nada de moda.
O que provavelmente era verdade.
— Chame a menininha e vamos lá no meu quarto. Quero ver como vai ficar!
Mais tarde, quando eu tentava pensar em como um vestido florido se tornou quase uma coleção verão feita por Ivanna e Jean invejava uma saia nova, recebi mensagem de Daisy me convidando para almoçar no shopping junto com o marido dela.
Pensei em recusar, mas Grey, curiosa como era, leu a mensagem e me lançou um olhar animado.
— Você vai para o Safira? Sempre fui louca para ir lá! Tem como trazer alguma coisinha pra mim? Pode ser um chaveiro já que até pra respirar deve ser pago. — Tagarelou ela.
— Não tem ninguém para ficar com Bonnie e não vou dá trabalho a mais para Hope. — Respondi e comecei a digitar uma desculpa.
— Eu fico com ela! — Falou ela — , você precisa sair de casa para se divertir. Que é que tem um almoço inofensivo com um casal de amigos?
— Pensei que você tinha que estudar, bonitinha. — Cerrei os olhos para ela.
— Oras, eu preciso de umas horinhas de distração também e adoro a Bonnie. Me parece a oportunidade perfeita.
Deixei os ombros caírem e quis chorar de felicidade. Eu não merecia Jean e duvidava que algum dia poderia merecer.
— Acho que você também deveria sair um pouquinho mais. Ir a festas de faculdade e tals. Coisa de jovens que estão tão perto dos 30 como eu.
Ela fez uma careta desgostosa.
— , eu tenho 23 anos nas costas. As festas nessa época são cheias de calouros que acham que já estão passados. — Justificou.
— Não tem nenhum namoradinho, nem namoradinha? — Levantei a sobrancelha sugestiva.
Ela cruzou os braços.
— Estou esperando meu destinado. — Falou com a costumeira carranca que fazia quando eu citava sua vida amorosa.
— Que, por sinal, não faço a mínima ideia quando vai chegar. — Repliquei — Quando você vai me deixar ver esse relógio?
Ela escondeu o pulso no reflexo.
— Você não viu ainda porque não quis. — Ela respondeu na defensiva.
— E é? — Levantei a sobrancelha esquerda — Pensei que estava respeitando a privacidade da minha amiga.
— Desde quando você é toda cheia de argumentos, hein? Seu destinado/advogado tá afetando sua personalidade.
Olhei para ela como se de repente tivesse aparecido um chifre bem no meio de sua testa.
— Idiota.
E joguei uma das minhas saias em seu rosto. Jean se pôs a rir enquanto eu fingia que nunca tinha visto seu prazo e que não sabia que um tempo tão longo lhe entristecia.
Apesar de não gostar daquele sistema, ele afetava todo mundo, inclusive a mim. Por mais que eu acredite na bondade de , sei que a chance de ter sido ajudada por ele se eu não fosse sua destinada é mínima.
No final, ter um destinado não era tão ruim. O melhor é que não sabia que a sua ajuda era muito maior do que financeira. Se ele não tivesse criado aquele acordo em cima da hora, eu tinha dado um jeito. Eu sempre dou um jeito, todavia a sua amizade significava muito mais para mim. Quando conversarmos, mesmo sobre problemas, não parece que as coisas são tão ruins. Parece que para tudo há uma solução e que apenas ficarmos observando tudo irá se arrumar como em mágica.
Fico pensando nisso enquanto pego o quarto ônibus para chegar ao Safira Shopping Center. O lugar era bastante visitado por pessoas da Ala J para cima e por ser do outro lado da cidade, pouquíssimas pessoas mais pobres andavam aquele caminho todo para chegar lá.
Sem contar que tudo no Safira era caro e só de pensar nisso meu bolso chora. O design do estabelecimento é bonito e me perco em seus detalhes enquanto passeio.
Encontro Mark e Daisy à frente de uma enorme loja de chapéus. Arrumo meu melhor casaco já sentindo o aquecedor do shopping deixando mais confortável com o clima frio lá fora. Vejo Mark segurando uma bolsa bastante chique em seus braços fortes e ele mantém a pose durona típica enquanto Daisy não para de falar.
— ...e eu preciso desse chapéu! — Falou com os olhos brilhando de satisfação.
— Ah, precisa não. — Disse Mark a segurando sua cintura — Por quinhentos reais eu compro cinco câmeras profissionais e um filme 3 em 1 em um bazar e ainda ganho troco.
— Você esqueceu de adicionar que elas serão velhas, cheias de defeito e farão você reclamar o mês inteiro no meu ouvido! — Resmungou Daisy.
Sua expressão se iluminou em reconhecimento quando me viu de longe. De forma totalmente não discreta, minha mulher veio correndo e me abraçou fortemente.
— Que bom que você pode vir! — Ela deu pulinhos de animação fazendo seus cachos via babyliss balançarem sem parar.
Não estava preparada por seu caloroso cumprimento e quando me virei para falar com Mark estava meio tonta.
— Olá, moça. — Disse ele me abraçando de lado — Como vai a funcionária exemplo da Coral?
— Não melhor do que a Kerem Bursin antes dos tratamentos de crescimento. — Sorri quando o vi revirar os olhos com o ar divertido.
Conheci Mark Bardot dois meses antes de casar com Daisy e, ao descobrir sua personalidade, percebi que não havia pessoa melhor para ser companheiro de minha amiga. Sua estatura era bem mais baixa que a minha, mas Mark mantém seu corpo saudável e musculoso. Ele tinha a mesma dosagem de sinceridade que sua destinada, entretanto, sua honestidade pendia mais para o deboche. Ele tira sarro de mim até hoje por ter desistido do Happy Hour por causa do trabalho.
— , me dê sua opinião: Esse chapéu não é a melhor coisa que você viu hoje? — Perguntou Daisy apontado por um dos acessórios mais “dinheiro jogado fora” que tinha avistado naquele dia.
— Não gostei muito não, Daisy.
Mark levantou as mãos ao céu agradecendo.
— Uma amiga sensata! Obrigada, Deus.
— Mary é muito sensata também, Mark. Não seja injusto. — Replicou Daisy com os braços cruzados.
— Tenho que concordar. — Balancei a cabeça em afirmação.
Ele cerrou os olhos para mim.
— Fala isso porque não se ofereceu para pagar o jantar dela. Não engorda de ruim, aquela desgraçada.
— Mark! — Repreendeu Daisy, começando uma “discussão” sobre falar palavras ofensivas sobre suas amigas.
Ri da dinâmica daquele casal. Com certeza eles eram os únicos que eu segurava vela com o maior prazer.
— Vamos comer logo ou não? — Perguntou ele em meio a um dos argumentos de sua esposa.
— Antes preciso passar na Lower e ver as novas coleções. — Comentou ela puxando o braço de seu marido.
— Por que eu casei com você mesmo? — Indagou Bardot enquanto era arrastado pelos corredores do shopping.
— Porque você me ama e não vive sem mim. — Cantarolou Daisy.
Bardot revirou os olhos, mas deu uma risadinha misteriosa.
— Já conheceu teu destinado? — Questionou Mark assim que acompanhei seus passos.
— Sim — retruquei evasiva.
Ele ficou olhando para mim esperando que eu falasse mais alguma coisa, porém continuei calada. Quando percebeu que tudo que eu fazia era lhe olhar com cara de paisagem fez uma careta confusa.
— Então, é isso? Nada de surtos, de declarações de amor à primeira vista e tudo mais?
Balancei a cabeça em resposta.
— Quer dizer que temos chance de esbarrar no seu destinado e rolar aquele clima tenso?
Ri e negueicom a cabeça.
— Somos amigos.
— Sério? — Daisy arregalou os olhos e entrou na conversa — Ele quer ser seu amigo?
— Não teve nenhum drama tipo “blá blá blá você pertence a mim”? — Perguntou Mark com as sobrancelhas erguidas.
Balancei a cabeça mais uma vez negando.
— Caraca, se você não quer casar com seu destinado, eu quero. — Disse Mark.
Daisy virou-se para ele rindo.
— Se casamento poligâmico for aprovado eu quero também. — Completou ela — Nunca pensei que homens rejeitados pudessem ser tão legais.
— Ele não demonstrou nenhuma segunda intenção? — Indagou Bardot.
— Na verdade, sim. — Respondi um pouco hesitante — Mas não é algo que me preocupo. Está tudo sob controle.
Eles dois se olharam automaticamente sorrindo de um jeito cúmplice que eu não gostava nem um pouco.
— Se você está dizendo… — Disse Mark tentando fingir que não pensava diferente.
— Eu só acho que não se deixa um potencial de marido rico assim tão fácil. — Comentou Daisy dando os ombros.
— Com certeza! Porque ter um marido rico é muito importante, Daisy. — Falou Mark claramente incomodado — Aliás, mostre a sua amiga como se casou com um fotógrafo que mal conseguia pagar as contas de luz, conte…
Ela rolou os olhos.
— Não vamos ter essa conversa de novo. A Lower me espera. — Encerrou o começo de uma discussão o puxando para dentro da loja de joias.
Sorri, mas não os acompanhei. Não gostava de ir a lugares como esse no shopping, pois eu sempre voltava triste por não ter nenhuma chance de comprar algo assim para mim — principalmente algo como a Lower que era uma marca voltada exclusivamente a elite.
Ou qualquer pessoa que vendesse seus órgãos vitais por coisas luxuosas.
Me direcionei até um banco parecido com os de praças para esperá-los, mas estanquei no lugar quando vi algo que definitivamente não queria ver.
Aquela sensação de ser atingida balde de água fria me dominou quando e Gia saíram juntos de uma loja qualquer de chocolate, os sorrisos apaixonados que quase me fez vomitar. Estava tão embasbacada com o que acontecia que não percebi que encarava-os sem escrúpulos ou discrição. Algumas pessoas que passavam me olhara estranho por estar parada no meio do caminho, mas a maioria ignorava com um dar de ombros.
Vi meu ex-namorado segurar com mais força a mão de sua destinada e levantar o queixo com altivez. Gia o olhou com o cenho franzido, sem entender sua repentina atitude e parecia tão confusa como eu, mas quando viu para onde ele mirava demonstrou entender.
Soltou a mão de Grey e levantou as mão como se rendesse.
— Não tenho um pingo de paciência para isso, . Chega. — Falou parecendo esgotada e deu as costas.
Ao contrário do que eu esperava que acontecesse, meu ex não a seguiu. Ele continuou me fuzilando com o olhar.
Não fazendo a mínima ideia do que acontecia, andei devagar em sua direção. Desconcertada, aproximei-me dele.
— Oi, .
Ele me olhou com desprezo fazendo meu estômago revirar.
— Oi. — Cruzou os braços — Está aqui com seu novo namorado rico?
Olhei para ele como se um besouro estivesse bem em seu nariz.
— Não faço ideia do que você está falando?
— Vai se fazer de idiota agora?
Dei um passo atrás quando o vi subir um tom de sua voz.
— , estamos em público. — Murmurei — E eu não tenho nenhum namorado e, mesmo se eu tivesse, você não tem nada a ver com isso.
Ao contrário da estabilidade da minha voz e a minha face da calmaria, meu coração parecia querer sair do lugar. Estava nervosa e cada vez mais sentia que faria as partes que sofri tanto para construir do meu peito se tornar pó novamente.
— Sério, ? Eu vi você saindo do carro dele! Eu não me importo se você está namorando ou não, mas se vender como uma prostituta? — Abri a boca para responder, mas ele continuou ignorando-me — Imagina minha cara ao lembrar que Jean falou que seu destinado está pagando as coisas da tua mãe? Cara, eu nunca esperei isso de você, . Se vender por trocados?
— Você não sabe o que está dizendo, . Procure saber o que está acontecendo antes de…
— No final todo mundo tem um preço, né? Até você. Sua mãe ficaria muito decepcionada se visse o que você se tornou.
Meu sangue ferveu e eu cerrei o punho já tremendo de nervoso. A respiração saia de forma dificultosa e grande era o esforço para não perder o controle. Quem ele achava que era para dizer aquelas coisas para mim?
— Não ouse falar como se conhecesse minha mãe! — Murmurei entre dentes apontando o dedo para ele — Um dia desses veio me pedi perdão e agora vem do nada fazer uma cena na frente de todo mundo? Qual é o seu problema, garoto? Ficou maluco? Vá atrás da sua destinada que você ganha mais!
— O meu problema é que você não devia está dando a bunda para um elitista qualquer em troca de mixarias que ele rouba do trabalho do povo! — ele gritou — Não quero minha ex sendo putinha de um corrupto qualquer!
Não sei exatamente o que foi a gota d’água: se foi seus xingamentos direcionados a mim, a teoria de que eu virara um tipo de prostituta de elite ou as menções injustas que ele fez sobre , alguém que me ajudou quando mais precisei enquanto ele se divertia com a destinadazinha dele. E ainda tinha a pachorra de agir que estava falando isso pelo meu bem?
— Estou com nojo de você. Nojo! — Ralhou ele.
Eu ainda apertava os lábios tentando manter a boca fechada, mas não consegui mais. As pessoas que passavam nos olhava tentando entender o porquê da gritaria, entretanto não me permitia se sentir intimidada quanto a isso. Odiava falar palavrão; achava bastante desagradável na maior parte das vezes, mas eu era da Ala O, afinal. Nós sabíamos deixar até um jogador de boxe ou juiz de futebol realmente ofendido.
— Escuta aqui, seu filho da puta. — apontei meu dedo para seu peito — Nunca mais fale comigo assim, seu donzelo do caralho. Você não sabe metade da história e não tem o direito de dizer qualquer porra que está acontecendo comigo e com minha mãe. Vá se fuder! — Gritei a última frase com ênfase e pude perceber que cuspi saiu para todos os lados, mas continuei a falar — Pega esse teu nojo, enfia no cu e desce rasgando, arrombado!
Grey me arregalou os olhos e parecia ter ficado duas vezes mais branco do que já era. Era óbvio que, assim como eu, não esperava que eu rebateria de forma tão grosseira na frente de tanta gente. Eu ainda tentava estabilizar minha respiração e não avançar as mãos no pescoço dele quando senti alguém me puxar para trás.
— Acho que o show foi bastante emocionante por hoje, não acha? — Ouvi a voz de Mark e percebi que era ele que me segurava.
Apenas vi que estava prestes a fazer ao observá-lo segurar meus pulsos e me afastar cada vez mais para trás enquanto me debatia em seus braços pedindo para que me soltasse.
— É melhor a gente ir por ali. — Disse Daisy nervosa, aparecendo bem na minha frente. — Acho que despitamos o segurança.
Antes que eu percebesse estávamos nós três no banheiro feminino enquanto Daisy parecia estar prestes a ter um infarto. Todas as mulheres que estavam perambulando pelo sanitário virou o rosto para Mark com susto e indignação. A grande maioria, porém, estava em choque ao constatar que ele era um homem.
— Que foi? Uma trans não pode entrar aqui também? — Ele disse sério e de forma convincente.
Abri um pequeno sorriso achando a cena muito engraçada, mas antes da risada sair senti meus olhos encherem de lágrimas e, em vez de sorrir, como era meu objetivo, me vi chorando e tremendo nos braços dos Bardot.
A raiva estava começando a passar e logo sentir a verdadeira consequência daquela discussão totalmente sem sentido. havia me machucado outra vez após ter pedido desculpa. Não sei se a enorme decepção se vinha ao fato dele ter sido meu primeiro amor ou porque Grey era amigo de longa data, mas doía demais. Ardia como jogar sal em cima de uma ferida que tinha começado a cicatrizar.
— OK, não estou gostando de ver todos esses olhos vidrados em nós. — Comentou Daisy fazendo uma careta para uma mulher inconveniente que nos olhava sem escrúpulos.
Vendo que o banheiro para deficientes físicos estava vazio, Mark teve a brilhante ideia de entrarmos para conversar.
— Não. De jeito nenhum, Mark! — Sussurrou minha amiga — Isso não é hora para suas maluquices! Nem era pra você tá aqui para início de conversa.
Entretanto, demorou apenas dois minutos para estarmos todos os três naquele cubículo. Sentei-me na bacia tampada enquanto tentava me acalmar. Graças a Deus era mais espaçoso do que eu pensava e podia respirar livremente.
— Primeiro de tudo: quem era o babaca? — Perguntou Daisy com os braços cruzados.
— Meu ex. — Murmurei com a voz embargada.
— Por que a briga começou? Só peguei a parte do final. — indagou Mark preocupado.
— Honestamente, não sei. — Respondi — Mas tenho uma hipótese: ele me viu com meu destinado e deve tá com ciúmes.
Comecei a chorar mais uma vez me sentindo miserável. Odiava fazer eles me virem assim, mas não podia me controlar. Quem era aquele homem e o que fez com meu primeiro amor? O que aconteceu com ? Por que eu não sabia que ele poderia se tornar tão babaca?
— , ele não tem nenhum direito de te tratar assim, muito menos na frente de todo mundo! — Exclamou Daisy indignada — Só não dei um soco naquele filho da puta porque o segurança percebeu a agitação.
— Eu não dei um soco porque ele dá dois de mim. — Comentou o marido dela fazendo referência a sua baixa estatura.
— Eu só… — Suspirei me recompondo. — Quero ir pra casa. Perdi a fome.
Os Bardot se entreolharam em uma conversa muda e assentiram de repente.
— Damos uma passada em um fast-food para você não voltar pra o lugar esquecido por Deus de barriga vazia. — Sugeriu Daisy e quase abracei ela grata pelo que estava fazendo.
Daisy odiava fast-food com todas as forças, mas ela me levaria até lá para que me sentisse só.
Mark também percebera isso e vi como seus olhos brilharam em direção à sua esposa alheia a demonstração de afeto repentina.
— Podemos esperar um pouco, não quero sair daqui tão desequilibrada. — Peço.
— Claro. — Responde Daisy afagando meu ombro — Se quiser conversar…
Assenti calada e fechei os olhos tentando esvaziar a minha mente e agradeci a Deus por não ter nenhum cheiro esquisito naquele banheiro.
— Já que estamos todos aqui, um menáge seria interessante, hein? — Sugeriu Mark como de quem não quer nada e recebeu um chute na canela de sua esposa.
Bardot caiu de joelhos no chão e soltou um palavrão de dor.
— Estava com vontade de fazer isso desde que entramos nesse banheiro. — Resmungou Daisy e arrumou os cachos que saíram do lugar, mostrando orgulho do que fez.
Eu soltei uma gargalhada entendendo o porquê de apesar de não compartilha das mesmas opiniões dela, ainda a adorava — e eu amava o Mark ainda mais por despertar o melhor lado dela.
…
Foi vendo os carros passarem pela janela que percebi que voltar para casa naquele momento era um erro. Ainda precisava de um tempo para colocar minha cabeça no lugar e lidar com Bonnie, Hope, Jean ou até mesmo com minha mãe não me ajudaria em nada; principalmente das três primeiras que irão me encher de perguntas por causa dos meus olhos inchados.
Depois de perguntar trocentas vezes se eu estava bem, Mark e Daisy se viram sem motivos para não me deixarem sozinha em um dos parques pouco movimentados da cidade. Eu sabia que pela localização havia praticamente nenhuma pessoa da minha Ala naquela redondeza, mas insisti em ficar por lá. Ao menos a chance de encontrar um conhecido era muito mais difícil.
Me arrependia de ter escolhido alguém tão mesquinho como namorado há três meses atrás. Se eu soubesse que quebraria meu coração tantas vezes nunca tinha dado espaço para que ele entrasse na minha vida, bagunçou tudo e ainda se visse como proprietário da mesma. Um dia eu o perdoaria — claro, não era de guardar mágoas por anos, mas não queria mais ser sua amiga ou ter qualquer tipo de ligação com ele.
Nunca mais.
Cruzei os braços quando entrei em uma trilha em que um par de mulheres sairam em caminhada e uma ventania me atingiu. Me senti feliz por elas não prestarem muita atenção em mim e me fez acreditar que se fazer de invisível naquele momento era um sucesso.
Franzi o cenho ao ver que trilha ficava cada vez mais vazia e a possibilidade de ser perigoso me atingiu. Comecei a ficar curiosa quando uma dupla de seguranças de terno preto estavam na entrada para uma lagoa. De longe, perto da água, havia um homem loiro vestido calça moletom e camisa térmica para malhar. Quando ele virou de perfil para beber água de sua garrafa, balanço a cabeça cética. Como esse tipo de coisa acontecia?
O que fazia ali?
Embora os olhares dos seguranças queimasse minhas costas, andei em direção ao meu destinado que observava a lagoa pacientemente. Em uma das suas mãos havia algumas pedras que ele jogava em direção a água.
— Atrapalho? — Falei tirando-o de sua bolha.
deu um pulo de susto e colocou a mão no peito quando me viu.
— Quase me matou de susto, ! — Ele disse deixando um sorriso desenhar-se em seus lábios — Anda me seguindo?
— Juro que não! — Estendi minhas mãos para o alto como se rendesse e me esforçei para lhe dá um bom sorriso.
Demorou dois segundos para ele escanear meu rosto com as íris negras e perceber que algo estava errado.
— Você parece abatida.
— E estou.
Deixei meus ombros caírem, pois não sentia nenhuma vontade de parecer forte ou esconder aquilo de alguém que eu confiava.
— Posso perguntar o que aconteceu ou é cedo demais para isso? — Indagou ele.
— Acho melhor nós sentarmos. — Respondi sentando na grama e abraçando minhas pernas mirando a água.
A lagoa continha alguns patos que nadavam livremente. A grama estava fria em minhas mãos, uma sensação confortadora. sentou do meu lado descansando os braços em cima dos joelhos.
O silêncio que nos preenche parecia necessário, então, não adiantei a conversa. Posso ouvir o barulho da árvores balançando, das patas dos patos batendo na água e alguns passarinhos cantarolando. Consigo escutar o pequeno som da respiração do meu destinado que estava tão distante quanto eu.
— Meu namorado terminou comigo vai fazer um mês, eu acho. — Comecei depois de um tempo. — Ele me trocou pela destinada dele. O grande problema é que ele continua indo e voltando.
Dei uma risada sem humor. Olhei para esperando vê-lo feliz com aquela revelação — afinal, o caminho estava livre para ele — mas seu rosto ainda estava neutro e longe, porém, por algum motivo, o sentia muito mais perto de mim do que antes.
— Eu entendo.
— Ele me humilhou na frente de todo mundo. — Desabafei — Me sinto um lixo.
— OK, agora não estou entendendo. — Falou alarmado —O que ele fez?
Suspirei e narrei a discussão com o máximo de cuidado para não chorar. Contei tudo: os xingamentos, as teorias que ele dissera, a atitude de possessão dele. me escutou sem me interromper e fiquei grata por isso. Eu só precisava colocar tudo para fora.
— , — Ele disse meu nome e pude sentir conforto por meio disso — você não é nada do que ele disse. Você é uma das mulheres mais fortes que conheço, que mais se dedica a sua mãe e nunca faria algo tão desesperador como isso. E mesmo se fizesse não é da conta dele! Não há nada de errado com você.
Assenti, embora não acreditava cem por cento naquilo no momento. Uma hora ia sarar, mas a ferida era muito recente para ser curada tão rápido. O que me aliviava era que me sentia mais leve. Poderia muito bem deitar na grama e tirar um cochilo para que minha mente parasse de pensar tanto.
— Eu sei mais ou menos como você sente.
Minha mente acendeu em alerta ao ouvir suas palavras. Era como se fosse a primeira vez que escutava o tenor de sua voz na minha vida. A ideia que ele tenha passado a mesma coisa que eu naquele ponto não tinha lógica para mim.
Ou talvez não acreditasse que fosse ao menos possível.
— Também fui trocado por um destinado.
Fiquei o observando esperando que desmentisse e fizesse uma piadinha, entretanto, segundos passaram e tudo que ficou entre nós foi o barulho das árvores. não olhava em meus olhos; ele via algo muito além da lagoa. Provavelmente, ele via lembranças antes esquecidas.
— Ela era a minha esposa.
Arregalo os olhos ao saber que já fora casado. Ele era jovem demais para ser casado! Contudo, a grande verdade é que as Alas mais acima recebiam seus prazos mais cedo no geral, consequentemente casavam na mesma proporção. Não era regra, entretanto.
Então, percebo que não conheço quase nada sobre o suposto amor da minha vida.
Vejo passar as mãos no rosto e me compadeço com sua dor. Ele deveria amá-la muito e automaticamente não gosto dela por quebrar seu coração. Quero abraçá-lo, mas ao mesmo tempo não tenho coragem. Meu peito dói com a ideia de ter um divórcio que não era de seu desejo e me compadeço por seus sentimentos. Como ele conseguiu passar por isso?
— Ela nem me deu chance de tentar, sabe? Apenas chegou de uma viagem de “trabalho” com o seu destinado.
Hesitantemente seguro seu braço e o afago dando meu apoio. vira-se para me olhar e o vejo quase dez anos mais velho do que ele é. Aparenta ser mais experiente, casado, porém sábio. O cabelo balançando ao vento e alguns pêlos no rosto evidenciando que não tinha se barbeado ajudavam àquela perspectiva.
— Só percebi que tinha a perdido de vez no dia do seu casamento, quando eu vi isso com meus próprios olhos. Sabe o que aprendi naquela época, ?
Balanço a cabeça em negação, pois não consigo fazer mais nada além de escutar.
— Que não devemos esperar das pessoas mais do que ela tem para nos oferecer, nem pôr todas nossas fichas nelas. Nunca se esqueça disso. — não me toca, mas o carinho que seu olhar me trás é quase como uma carícia. — Decepções existem, obviamente isso acontece com todo mundo, mas isso pode ser superado. Sendo de amigos ou ex namorados babacas, ou até de gente que admiramos no ramo profissional. Carter falou que você tem muito potencial e acredito nele. Não deixe isso tirar o seu foco em algo que precisa de sua atenção. Foda-se seu ex namorado.
— Foda se meu ex namorado. — Repeti sua afirmação, mas o palavrão saiu tão estranho de minha garganta quanto a dele.
Era estranho ver alguém tão formal como falando palavras de baixo calão e acabamos rindo daquilo. Percebi que fiz uma ligação muito mais sólida com . Ele não era apenas mais alguém bondoso que ajudou a mim e minha mãe; conseguia vê-lo mais humano.
E eu queria muito conhecer cada vez mais a sua história.
— Obrigada por me escutar e… Por tudo. Você tem sido um anjo para mim. Não sei — Agradeci pela milésima vez a ele.
— Se precisar, estou aqui. — Ele deu um daqueles sorrisos de derreter corações — Agora pare de agradecer por fazer mais do que minha obrigação como seu amigo.
— Sim, Vossa Excelência. — Respondi e meu peito encheu com um calor bom ao ouvir sua risada.
Voltamos nossos olhos para lagoa e eu tentei esvaziar minha mente mais uma vez, todavia, lembrei-me de algo que não podia esperar para ser esclarecido.
— Você não ficou chateado porque eu falei do nosso acordo com Jean, não foi?
Ele negou com a cabeça e sorriu.
— Vamos esquecer esse assunto. Sei que não fez por mal. — Encerrou o assunto. — Quer caminhar um pouco, der Liebling?
se levantou e esticou a mão para mim.
— Sim, der alguma coisa. — Respondi e segurei sua mão enquanto ele ria.
— Vou começar a ensinar-lhe alemão.
— Ah. — Falei sem animação — Mal posso esperar!
Rimos juntos e voltamos a falar de frivolidades como costumava ser nossas conversas. Foi bom estar ali com e pela primeira vez simplesmente adorei por ter “esbarrado” com ele.
É, destino, parece que vou ter que tirar o chapéu para você dessa vez.
…
Voltar para casa se tornou muito mais fácil. Mesmo ainda me sentindo um pouco mal, havia me distraído o suficiente enquanto tentava me explicar algumas palavras em alemão.
Não que eu sinta vontade de aprender a língua, mas é interessante vê-lo tentando me ensinar.
Perto do jantar, no momento em que Bonnie contava como fora seu dia com Jean, recebi um email do meu chefe.
“, preciso que organize para que mais duas pessoas acompanhe para a conferência no final de semana. Você e outro funcionário estão cotados. Amanhã falo mais sobre isso.” - A. Carter.
Fiquei surpresa com a mensagem — nunca em minha vida tinha sido convocada para uma viagem a trabalho como essa e lá estava uma ótima oportunidade para crescer profissionalmente.
Rapidamente lembrei das palavras de e decidi que ele estava certo. Nunca desisti durante os últimos dez anos e não seria um macho com orgulho ferido que me venceria.
Capítulo 11
“Se você vai me decepcionar, me decepcione com cuidado. Não finja que você não me quer. Nosso amor não são águas passadas.” - Water Under the Bridge, Adele.
Estava fazendo um copo de leite na cozinha quando o barulho da porta atiçou minha curiosidade. Eram quase cinco horas da manhã quando encarei Jack, com duas mochilas cheias, sentado nos degraus da minha casa.
— Errou de casa? — Perguntei a ele chamando sua atenção.
Jack coçou os olhos e bocejou.
— Bonnie, tá acordada?
Balancei a cabeça negando.
— Provavelmente somos os únicos seres humanos acordados a essa hora na cidade.
Olhei no final da rua e pude ver o carro do mais velho dos Steel’s dobrando a esquina pontualmente.
— E, claro, a Hope também está acordada. Quer entrar? — Acrescentei.
Ele se levantou e limpou a poeira das calças jeans. Olhei para cima, admirada com sua altura. Eu não era baixinha — tinha meus bons um metro e setenta, entretanto ainda sentia a famigerada impressão que vivia em uma terra de gigantes.
— Menino, quando foi que você cresceu tanto, hein?
Ele riu e entrou limpando o sapato no tapete escrito “welcome” na porta. Assim que Hope chegou na frente de casa e nos cumprimentou, Jack explicou sua visita: ele estava levando sua irmã para ficar com um tio em outra cidade. Não pude deixar de ficar triste com a notícia, mas eu sabia que não tinha condições de cuidar de uma criança que necessita da minha atenção cem por cento, apesar de me prontificar para ajudar Jack.
Fomos juntos ao ponto de ônibus e tentei não pensar que estava atrasada. Abracei-os e me segurei para não chorar. Odeio despedidas.
— A gente vai se ver logo, . Não se preocupe. — Garantiu Jack com um ar risonho.
— É, tia , a gente vai se ver logo. — Repetiu Bonnie enquanto eu beijava sua testa.
— Cuidado, mocinha. Obedeça seu tio e qualquer coisa deixei meu número anotado dentro da sua bolsa. Você sabe o que fazer.
Bonnie assentiu. A menina parecia animada com a perspectiva de encontrar o tio e eu não pude deixar de sofrer por antecipação quando entrei no primeiro ônibus e acenei para eles. Na primeira metade do caminho eu estava pensando em como os dois iam se virar e como Charli iria reagir ao ter ao chegar e ter sua casa vazia — se ela voltasse. Ainda não entendia como seu senso de responsabilidade não foi suficiente para fazê-la ficar ou simplesmente não deixar sua filha de sete anos sozinha.
Na outra metade do caminho, entretanto, me vi preocupada com o horário que chegaria na empresa. Por algum milagre celestial cheguei a tempo. Olhei a fachada colorida da Coral torcendo pra que Carter não tivesse tido um surto e acordado cedo naquela segunda-feira. Ao me aproximar da recepção, a primeira coisa que Daisy perguntou foi como eu estava.
— Estou bem sim. — Respondi com um sorriso fraco — Obrigada por perguntar.
— O que aconteceu? — Indagou Mary alheia a nossa conversa.
— Depois te conto. — disse Daisy piscando o olho. — Tenha um bom dia, flor.
Dez minutos após da minha chegada, o meu chefe apareceu com seu terno sob medida e com a cara de quem tinha sido arrancado da cama à força. Albert pediu — na verdade ordenou — que eu enviasse sua agenda o mais rápido possível e as informações para a viagem programada para o próximo fim de semana.
A manhã foi cheia, embora não fiz nada de diferente do que faço nos últimos cinco anos. Liguei para o hotel e confirmei o voo para ter certeza que tudo estava certo, mandei e enviei emails programados para o dia. Ainda esperava as informações que meu chefe prometera, mas eu sabia que ficar em seu caminho em seus dias de mau humor era suicídio.
— Bom dia, Tia Blackwell. Vim ver o papai.
Levantei o olhar do computador e sorri ao ver a pequena Layla de dez anos junto com sua babá, a qual sempre me perguntei o porquê de sua extrema magreza e o fato de ser muito introspectiva. Layla era a cara da Carol Carter: loira, olhos claros e nariz arrebitado, porém as semelhanças paravam por aí. A menina desde bebê era bastante quieta, tinha uma forma calculista de olhar para os lugares e sempre teve os cabelos bagunçados. Coisa de Albert, com certeza.
— Sim, meu amor. — Sorri para ela — Vou chamá-lo rapidinho.
Liguei para meu chefe e prendi o olhar no relógio digital do computador; era hora do almoço e a agenda de Carter dizia que ele buscaria sua primogênita na escola e a levaria para almoçar.
E ele, estranhamente, estava atrasado.
— Lhe falei para me esperar na escola, Layla. — Foi a primeira coisa que ele disse ao vê-la — Eu já estava saindo…
— A menina insistiu, me de-esculpe, senhor. — adiantou-se a babá nervosa.
Carter balançou a mão em desdém.
— A gente esperou por meia hora, papai. Tenha piedade. — Argumentou a menina emburrada e pude ver uma pequena adulta nela.
— Vai andando na frente, vai. — Mandou a empurrando delicadamente para a porta e virou-se para mim — Entre em contato com Andrew Grimmes e esteja junto com ele às 14 na sala de Daniel. Não se atrase de jeito nenhum.
— Sim, senhor. — Repliquei sem conseguir conter a animação.
Andrew se aproximou de mim durante o almoço quando estava escutando atentamente as meninas comentarem uma cena de The Young and the Restless, a novela que elas costumavam acompanhar. Eu também queria assistir, mas por causa da distância de casa ao trabalho nunca consegui pegar mais do que dez minutos no final do capítulo. Embora preferisse assistir seriados antigos — aqueles que acompanhavam risadas e reações do público — eu gostava daquele tipo de drama.
— E aí, ?
Apesar de provavelmente ter ensaiado uma entrada relaxada e natural, aquela frase soou estranho demais para alguém antipático como Grimmes. Seu quase dois metros de altura e jeito desengonçado era chamativo o bastante para interromper a conversa que tínhamos e todas as meninas se viraram para ele sincronizadamente.
Aterrorizante até pra mim, devo dizer.
— Olá. — Respondi com um sorriso.
Andrew pôs a mão no bolso enquanto fitava seu sapato social como se fosse a coisa mais interessante do universo.
— Posso conversar com você? Sozinhos, de preferência.
Assenti com a cabeça e pedi licença as garotas alheias ao que acontecia. Saímos do refeitório e fomos direto à sua sala.
— Hm, o que você quer falar comigo? — Indaguei curiosa assim que entrei no elevador.
Grimmes suspirou e voltou a descer o olhar irritantemente aos pés enormes que ele tinha.
— Daniel quer que eu apresente a coleção de mochilas com a nova tecnologia que minha equipe criou, mas odeio falar em público. — ele voltou a pôr as duas mãos nos bolsos — Queria que você me ajudasse, já que vai estar lá e você fala com todo mundo…
— Primeira coisa: olhe nos olhos da pessoa quando conversar com alguém. — Adverti — Além de ser irritante pode fazer com que o público tenha má interpretações sobre o que você acha sobre eles.
Ele arrumou a coluna rapidamente e direcionou o olhar para mim. Ri, pois ele aparentava ser um animal encurralado. Afaguei seu ombro ao vê-lo tenso e ele soltou um suspiro quando o elevador abriu as portas.
— Você vai sair-se bem, senhor Grimmes. — Falei empurrando-o para fazê-lo andar.
Havia alguns grupos isolados de pessoas conversando no andar 5 que nos miravam interessados em saber o porquê da secretária de um dos chefões da empresa estava conversando com alguém importante do departamento de TI durante o horário do almoço. Eu já havia sido alvo de fofoca na Coral, mas nada que não consiga ignorar. Infelizmente esse hábito era antigo e dificílimo de ser extinto em qualquer lugar, portanto me incomodava um pouco.
— Vou precisar da ajuda da sua assistente também. — Acrescentei ao entrarmos em sua sala — Sheila vai demorar para chegar? Aliás, como está o bebê dela? Faz tempo que…
— Não tenho paciência para procrastinação, Blackwell. — Replicou mal humorado sentando-se na sua cadeira.
— Pois vai precisar que ter se quiser minha ajuda. — Cruzei os braços — Outra coisa que você deve ter em mente é que as perguntas do público costumam vir cheios de enrolação. Se você for impaciente e respondê-los com ignorância, Daniel irá comer seu fígado no jantar.
Todos os nossos diretores executivos eram conhecidos por duas coisas: eram unidos e passivos-agressivos. Daniel Jones não era diferente disso. Muita gente ainda se perguntava se ter cinco pessoas dividindo o maior cargo de uma empresa era uma boa ideia, principalmente sendo elas cães de caça.
Bem, estava funcionando a quase quinze anos e Coral tinha entrado na lista das maiores multinacionais nesse percurso.
— Como é que você sabe tanta coisa sobre isso sendo uma simples secretária? — Indagou Grimmes com a sobrancelha arqueada.
— Não precisa ser um gênio para saber que deve se olhar nos olhos para as pessoas levarem a sério o que você fala. — Dei os ombros — Além do mais nunca tive problemas em falar em público e sou observadora.
— Verdade. Você acaba aprendendo mais do que muito estudante de faculdade porque você vive isso todos os dias. — Comentou afirmando com a cabeça.
Depois de uma longa conversa em que eu puxava constantemente a orelha de Andrew e ele reclamava das “frescuras que o público quer” — palavras dele — voltei para meu trabalho em facilitar a vida do senhor Carter.
Faltando dez minutos para duas horas da tarde, estava eu do lado de fora do escritório Daniel Jones. Não demorou muito para que Faye, a secretária dele, liberar nossa entrada e não me sinto nem um pouco surpresa quando vejo Albert sentado relaxadamente conversando com senhor Jones.
— Boa tarde. — Os cumprimento e cutuco Andrew para que ele faça o mesmo.
Depois de uma conversa de enrolação típica perguntando de como nós estávamos, senhor Jones explicou que iríamos viajar para o México na sexta de tarde e que o evento seria no sábado o dia todo. Logo, Daniel voltou-se para Andrew e dissertou o que queria dele: convença velhos investidores e conquiste novos. A Coral tinha perdido um investidor muito valioso e não podia repetir esse erro.
Acredito que isso não ajudou muito no nervosismo de Grimmes.
E foi aí que eu entrei: Daniel disse que Albert me indicou para o cargo de prepará-lo para falar em público, mas me tranquilizou dizendo que tudo o que Andrew ia precisar fazer era responder perguntas, pois ele apresentaria o produto.
Carter acrescentou que queria que eu comparasse a mercadoria da concorrência com a nossa e que preparasse um relatório com semelhanças e ideias para inovação.
— Seu trabalho essa semana é estudar cada produto da Coral para poder fazer isso. — Concluiu ele me entregando uma pasta grossa.
Percebi os pares de olhos se direcionarem a mim esperando uma reação negativa. Os papéis eram pesados e de acordo com minhas contas havia mais do que trezentos modelos de produto no meu colo.
Sorri para ele.
— Considere feito.
Albert olhou para seu amigo com um ar de altivez enquanto Daniel apenas levantou as sobrancelhas impressionado.
Só quando conferi calmamente o número de mercadoria catalogada que percebi que eu estava ferrada.
Trezentos e quarenta e cinco mais cinquenta produtos que saíram de linha ou chegaram nas lojas danificados.
Alguém, por favor, me mata.
Comecei organizando-os por preço e número de vendas. Coloquei vários post-its e os recataloguei do meu jeito, fazendo com que eu desse mais atenção aos mais importantes.
Estava tão imersa no trabalho que apenas percebi que estava tarde quando Carter saiu da porta.
— Não fique até tarde trabalhando. — Advertiu ele com um sorriso raro em seu rosto.
E foi assim que quase perdi o ônibus para voltar para casa.
…
Quando escureceu e Hope já tinha ido embora, estive a face de uma mulher normal que leva pela primeira vez trabalho para fazer em casa.
Vestida com uma blusa folgada, leggings e meias supostamente novas, sentei no meio da pequena sala. Os papéis da pasta ficavam no meio enquanto o pc com os produtos disponíveis online estavam abertos pela internet móvel — graças a Deus a empresa disponibilizava, a web oferecida pelo governo parecia que era discada de tão ruim!
E, claro, meu telefone estava no viva-voz com Thomas do outro lado da linha.
— Seu tio é um monstro. — Reclamei.
Thomas riu como ele fazia sempre que tocávamos no assunto trabalho.
— Oras, não seja bunda mole. Eu faria isso em dois tempos.
Olhei para o aparelho indignada.
— Venha fazer pra mim então, Vossa Excelência.
— Eu sou pago para ser justo com as pessoas e fazer um trabalho que não é meu dever e não receber por isso me parece algo desonesto. — Replicou ele.
— Odeio quando você advoga pra cima de mim. — murmurei. — Principalmente quando está certo.
Ele riu mais uma vez.
— Se Carter lhe deu esse trabalho é porque acha que você é competente. — Argumentou ele — Aliás, eu tenho uma ideia fabulosa para você usar.
— Sou toda ouvidos.
— Que tal uma caneta que brilha no escuro?
Gargalhei alto como se tivesse ouvido a melhor piada do ano.
— O que tem de tão engraçado nisso? — Perguntou confuso.
— Além de ser um produto inútil, a Coral já faz uma dessas. — Respondi pegando a folha em que as informações da caneta brilhosa existia.
— Bem, está aí o motivo de eu ser o cara que dá o dinheiro e não as ideias. — Replicou Thomas e quase pude ver suas bochechas corando.
Sinto uma tristeza momentânea quando desejei estar perto para vê-lo envergonhado.
Queria que você estivesse aqui, pensei em dizer.
Entretanto fico calada, pois sei que poderia soar mais do que verdadeiramente era.
Ficamos em silêncio e procuro um assunto alheio para fazer com que ele não desligasse e eu pudesse ouvi-lo um pouco mais.
— Deveríamos sair esse final de semana. — Ele sugeriu.
Abri a boca pronta para aceitar, mas rapidamente me lembro da viagem programada.
— Não vai dar, tenho uma viagem a trabalho. — Respondi — Esqueci totalmente de dizer que vamos ao México.
— Ah, então deixa pra outro dia. — Ele soa bastante decepcionado e coça a garganta para mudar de assunto — Já conheceu o México antes?
— Não, e também não acho que terei tempo para aproveitar nada, nem conhecer lugares. — Comentei e soltei um suspiro. — Vai ser legal, apesar de tudo. Acredito que Andrew vai gostar também.
— Andrew? Quem é Andrew?
— O funcionário da empresa que vai conosco. Por quê?
— Nada, só fiquei curioso. — Disse simplesmente.
Franzi o cenho quando lembrei de uma pergunta que rodeava minha cabeça nos últimos dias.
— Você disse que foi criado com a avó na Alemanha, certo?
— Sim. — Ele afirmou.
— Então por que você não tem sotaque?
Thomas faz uma pausa.
— Você é a primeira pessoa que me pergunta isso, sabia? Já fui sendo fluente na nossa língua, então, alemão é a minha segunda. — Explicou ele.
— Ah, entendi. Mas qual das duas você prefere?
— Como tive mais contato com o alemão, é mais fácil pra mim. — Eu concluiu.
— Hm… Thomas?
— Sim?
— Está livre no próximo final semana?
— Sim, , sim.
Meu estômago embrulhou com o tenor forte e manso vindo de Hoyer. E foram suas palavras que rodeavam minha cabeça antes que eu caísse no sono naquela noite.
…
Os dias que se seguiram passaram rápido. Minha vida caiu em uma rotina tranquila em que tudo que eu fazia era trabalhar e bater um papo com minhas amigas, quando eu me dava um intervalo para relaxar. Apesar de ter encontrado Jean diversas vezes naquela semana, não esbarrei em Caio, graças a Deus. Minha amiga deu a entender que ele e a destinada estavam brigados, mas eu não poderia ligar menos. Depois da cena de domingo que Grey havia feito, não queria vê-lo ou mesmo saber de sua vida. Embora aquilo tenha acontecido, decidi não contar nada para Jean. Isso podia facilmente abalar a nossa amizade e a relação que tem com o irmão e eu não queria lidar com isso. Não naquele momento.
Na quinta-feira a tarde, quando faltava menos de trinta por cento da pasta para ser analisada, eu tive uma ideia. Já havia visto um padrão: os produtos que mais vendiam eram os que despertavam o consumismo das crianças. Veja bem: elas não queriam um lápis leve e sim um que tenha a imagem da Elsa de Frozen.
Quando a estratégia de venda me veio a cabeça, comecei a escrever como louca. Meu papel de rascunhos estavam todos rabiscados e cheio de notas falando sobre contratos, apoios passados e acordos antigos da empresa. Havia bastantes parcerias para edições limitadas que poderiam se tornar em algo mais sólido. Lembrei vagamente de alguns comentários que li na semana passada no marketing e sabia que estava indo no caminho certo.
A melhor coisa, contudo, era a sensação de gostar de fazer aquilo.
— Atrapalho?
Levanto a cabeça do meu celular rapidamente no susto. Encontro Thomas com seu nariz arrebitado já conhecido por mim e o terno azul marinho sob medida. Seu cabelo parecia um pouco maior, mas estava bem contido pelo gel com seu penteado usual.
— Não, não. — Digo rapidamente e escondendo meu celular da sua vista.
Só eu mesma para trabalhar assiduamente o dia todo e nos únicos minutos em que dou uma pausa para entrar no site de perguntas, ele aparece!
Hoyer levanta a sobrancelha para mim.
— O que está escondendo?
— Nada. — Falo empurrando o aparelho para perto da pasta aberta fingindo não dar importância. — Coisa do trabalho.
— Posso ver?
Olho para ele com uma careta.
— Você não é meu chefe.
Ele sorri devagar de um jeito que parecia saber de todas as coisas.
— Na verdade eu sou sim. — Replicou, mas quando abriu a boca para defender seu ponto, eu o interrompi.
— Acredito que não irá o interessar. — Falei e abri o navegador do meu pc, fingindo fazer algo importante. — Tem alguma reunião marcada com senhor Carter?
— Sim, com ele, Shawn, Hunter, Daniel e Cassandra e os outros acionistas. — Afirmou — Aliás, eu acabei de tê-la e já estou de saída, mas pensei em dar um oi.
Aquilo me desarmou e eu deixei meu ombros caírem.
— Isso é muito gentil da sua…
E nessa fração de segundo Thomas esticou o braço e pegou meu celular. Rapidamente estiquei-me para tomá-lo de sua mão, mas não fui rápida o bastante.
— Hm, qual será a senha? — Ele se perguntou se divertindo às minhas custas. Desesperada alonguei-me para alcançá-lo — Opa! Parece que alguém não tem senha.
Por que eu tinha que ser aquele tipo raro de pessoa que não tem senha no celular? Por quê?
— Me devolve! Isso é invasão de privacidade, sabia? — Reclamei quase pulando em cima de suas costas, mas minha mesa atrapalhava.
— Não sabia que você gostava de coisas de adolescentes, , mas devo confessar que já entrei em um desses. — Ele comentou rindo.
Hoyer esticou o braço para cima para que eu não o alcança-se e mexia rapidamente os dedos lendo as perguntas que apareciam.
— Qual desses gatos você casaria? — Leu ele e soltou uma gargalhada — Esses meninos não devem ter mais que dezoito anos, pelo amor de Deus!
Com o rosto vermelho de vergonha, usei minha cabeça para me vingar. Quando Thomas deu as costas para mim vidrado na tentativa de escapar da minhas mãos, vi seu celular quase cair do bolso traseiro e sem dificuldades me estico sobre a mesa e agarro seu iPhone despretensiosamente.
— Hm, qual será a senha? — Repito sua frase maliciosamente — Alemanha?
Thomas virou-se em minha direção alarmado. Quando comecei a digitar o nome, o vi estica-se para pegar seu aparelho, mas eu empurrei a cadeira de rodinhas contra a parede e a mesa o impediu de se alongar mais.
— Você é tão previsível. — Comentei assim que desbloqueei a tela ao colocar “Berlim”.
— Ok, , eu devolvo seu celular. — Ele disse sério estendendo meu aparelho para que eu o pegasse.
Sorri travessa.
— Agora que euzinha estava me divertindo? — Falei deslizando o dedo pela tela. Soltei uma gargalhada e dei uns pulinhos aos ver que ele também tinha o mesmo aplicativo de perguntas que eu. — Veja só quem é o hipócrita. Como seria o seu primeiro encontro perfeito? — Li a frase com um sentimento de triunfo.
— Me dá isso aqui. — Ele disse com uma carranca contornando a mesa, mas eu corri cobrindo o celular com as duas mãos e escondendo debaixo de minha blusa estampada.
— Tenho direito a retaliação. — Reclamei quando Hoyer me alcançou.
Como o meu andar não era tão grande e sim bastante lento, não demorou para que Thomas me alcançasse. Fiquei de costas para ele protegendo o iPhone como se fosse uma bola de futebol americano.
— Nunca mais brinco com você. — Resmungou Thomas rindo — Parecemos duas crianças.
E eu continuaria rindo com ele se seus dedos tateando meus braços em busca do aparelho não fossem tão calorosos e me deixassem arrepiada. De repente o ar mudou e a aproximação do corpo de Hoyer atrás de mim ficou clara. Não relutei quando ele segurou minhas mãos para agarrar o aparelho e pude sentir seus dedos tremendo ao tocar minha pele.
Um pigarro nos fez sair daquela bolha e ao ver Carter com a maior cara de “Preciso de uma explicação ou vou ter um infarto” senti todo sangue subir para meu rosto.
E, para piorar, Thomas não estava nem um pouco diferente.
Entretanto, ao contrário de mim, meu destinado se saiu muito melhor em arrumar uma desculpa e se recompôs rápido.
Ele se virou para mim com os dois celulares na mão.
— Não tem condições de você continuar com esse celular, senhorita Blackwell. — Falou balançando-o em sua mão esquerda — Sei que gosta muito dele, mas o TI pode lhe dar um bem melhor.
— Mas eu gosto desse e ainda vou viajar a trabalho esse final de semana, preciso dele. — Entrei em sua encenação.
— Então espere mais um tempo com ele, porém troque assim que puder. Uma hora isso vai acabar lhe prejudicando. — Ele advertiu e eu balancei a cabeça veemente concordando.
Nunca tinha passado tanta vergonha em toda a minha vida.
Segundos depois meu destinado se despede de seu tio, ainda muito desconfiado, e me dá um até logo formal demais para quem costuma passar as noites conversando sobre nada e tudo ao mesmo tempo.
Enquanto o vejo entrar no elevador fico matutando em como seria nossa relação fora e dentro do trabalho. Apesar de tudo, eu não respondia a Thomas e devia ser profissional durante meu expediente, mas não poderíamos agir como amigos que éramos? Carter ficaria ofendido?
Nossa, imagina só se ele soubesse que somos destinados! Com esses pensamentos, voltei para minha mesa como se nada tivesse acontecido.
— Precisa de alguma coisa, senhor? — Perguntei me esforçando para parecer o mais inocente possível.
— O que está acontecendo com vocês dois? — Indagou ele.
Merda.
— Nada.
Não que eu estivesse mentindo, mas também não estava dizendo toda a verdade.
Albert passou a mão no rosto, os olhos azuis cansados.
— Bem, vou ser bem claro: se tiver algo acontecendo peço que você seja cuidadosa, . — Aconselhou — Além de não querer ver uma cena desagradável da minha secretária, Thomas ainda não se acertou com a destinada. Receio que se ela se sentir enciumada com você e fazer a cabeça do menino para tirá-la ficarei de mãos atadas. Ele é muito importante para empresa, principalmente agora que está começando a participar ativamente.
Carter pôs a mão no meu ombro e eu apertei meus lábios para não rir. Embora fosse raro uma demonstração de preocupação do meu chefe, aquela possibilidade apresentada por ele não aconteceria. Albert esqueceu de algo muito mais importante: eu era a destinada em questão. Não fazia sentido querer prejudicar a mim mesma.
Ele demorou um pouco com os olhos fitando a marca branca que evidenciava que meu relógio já havia sido descartado.
— Não ponha tudo que conquistou a perder. — Disse antes de voltar para dentro de seu escritório.
…
Naquele dia aceitei o convite das meninas para curtir o happy hour com elas no barzinho ali perto. Ela soltaram gritos animados chamando atenção dos funcionários que estavam saindo e eu ri daquilo. Àquela altura já tinha conversado com Hope e ela disse que não tinha problemas em ficar mais um pouco com minha mãe. Apesar de saber que viajaria no outro dia e deveria estar descansada, senti falta de estar com as meninas e beber alguma coisa.
O bar era bastante sofisticado e estava cheio. Havia trabalhadores de todas as firmas e empresas do bairro, mas todos tinham o mesmo sentimento de cansaço e relaxamento de terminar o expediente. Sentei-me perto de Daisy, Mary e Stella, uma das funcionárias do RH, enquanto procurava alguma bebida forte que não custasse muito caro no menu. Aqueles preços eram salgados demais pro meu gosto!
— Você acredita que a velha ainda teve coragem de falar que não era a mulher certa para ele? — Stella disse prendendo as mechas coloridas em um coque — Meu amor, eu esperei oito anos por aquele paspalho e ela me vem dizer que não o mereço?
— Graças a Deus nunca tive problemas com minha sogra. — Comentou Mary bebericando seu Martini. — Inclusive ela conseguiu um emprego agora para meu marido e deu um sermão nele. Tá todo mansinho desde sábado.
Daisy ri.
— Nada como a progenitora para colocar um homem nos trilhos. — Falou ela assim que pedi uma cerveja para o bartender. — E seu destinado, ? Deu algum sinal de vida?
— Ele me pareceu bem na última vez que o vi. — Respondi dando os ombros fingindo fazer pouco caso.
— Vocês já se esbarraram muito desde o dia do prazo? — Questionou Mary.
— Mais do que eu esperava. — Murmurei — Eu gosto dele, apesar de não achar que vá rolar nada.
— Não tem nem uma química entre vocês? Nenhuma faísca? Nada? — Perguntou Stella desconfiada.
Lembro das vezes que tive sensação de estar em uma bolha quando estou perto de Thomas e a extrema sensação de calor que sentia ao me aproximar dele.
— Talvez… — Dei os ombros.
As meninas se olharam cheias de segundas intenções e me preparei para replicar qualquer uma das suas insinuações, no entanto, elas mudaram de assunto.
…
Na sexta-feira eu estava menos animada do que esperava. Minha pequena mala estava devidamente arrumada e Jean não parava de me encher de preocupação com o voo. Seu medo de avião estava quase se materializando quando a pedi pra me ajudar a fazer a mala.
— Por favor, preste bem atenção no que a aeromoça dizer e...
Fechei os olhos e contei até cinco.
— Se você falar mais alguma coisa sobre esse vôo vou bater em sua cara, Grey. — Ameacei e ela me abraçou forte.
— Traz alguma lembrancinha para mim, hein? Não esquece. — Ela disse me esmagando com seus braços.
— Sim, senhora. — Respondi rindo — Você pode ajudar Hope enquanto eu estiver fora? Ela vai dormir aqui, mas pode precisar…
— Com certeza!
Minha conversa com Hope, entretanto, foi um pouco mais profissional. Repeti o horário de todos os remédios e pude ver quão impaciente ela estava comigo tentando ensiná-la a fazer seu trabalho.
— Eu entendi isso na quinta vez que você me disse, ! — Reclamou Steel — Não precisa ficar tão nervosa.
Deixei meus ombros caírem.
— É a primeira vez que fico tão longe dela. — Murmuro.
— Oh, meu amor… — Ela afagou meu ombro — Amanhã o doutor vem pra cá examinar sua mãe, não é? Ela nunca estive tão bem cuidada. Não se preocupe.
Assenti tentando enfiar aquelas palavras dentro da minha cabeça.
— Além do mais você tem que crescer profissionalmente! — Acrescentou — Tenho certeza que sua mãe ficaria orgulhosa se a visse agora.
Meus olhos encheram de lágrimas e eu a abracei.
— Obrigada, Hope. De verdade.
A parte mais complicada foi falar com minha mãe. Seu cabelo acobreado já havia se tornado um mar branco em algumas mechas e os olhos azuis estavam cada vez mais cinzas. Segurei sua mão ossuda e ela deixou seu olhar cair para meus dedos quando sentei na beirada da cama. Havia um monte de fios e aparelhos que faziam seu corpo funcionar bem e meu coração diminuiu no peito em pensar na mulher vigorosa que era antes.
— Estou indo para o México a trabalho, mãe. — Comecei — Vou passar apenas esse final de semana e isso pode ser um marco para o começo de uma carreira promissora. Sei que quebrei as promessas que um dia fiz para senhora. Pareceu certo quando eu o fiz. — Suspiro triste — Mas eu vou reparar meus erros. Quando voltar procurarei algum curso profissionalizante e terminarei o curso de espanhol, tudo por você. Eu prometo. Te amo, mãe.
Beijei sua testa.
— Até logo. — Me despedi com um sorriso.
No aeroporto me encontrei com meus chefes e Andrew. Como era esperado, eu e Grimmes ficamos nos assentos comerciais enquanto Jones e Carter sentaram no seu lugar confortável da primeira classe. Ainda me perguntava o porquê deles não estarem usando o jatinho particular da empresa, mas preferi ficar na minha.
Antes de pôr meu celular no modo avião, recebi uma mensagem de Thomas desejando uma boa viagem que me arrancou um sorriso escancarado.
Eram apenas algumas horas de viagem e decidi usá-los para reler as anotações que fiz sobre as mercadorias da Coral.
Sentei-me ao lado direito de uma velhinha e Andrew que entrou mudo e provavelmente sairia calado do avião. Ele lia e relia o texto que preparara no tablet e batia o pé impacientemente no chão — e não consegui evitar de lembrar de Hoyer que sempre parecia fazer isso. Depois de decolarmos e a sensação de ser arrancada da Terra passou, aquele barulho passou a me irritar mais que o usual.
— Acalme-se, Grimmes. — Resmunguei — Vai abrir um buraco no chão do avião se continuar assim.
— Não estou com humor para papo, Blackwell.
Levantei as mãos como se me rendesse.
— Grosso.
A velhinha do meu lado nos olhou curiosa.
— São namorados? — Perguntou puxando assunto.
Ai, credo.
— Não, somos só colegas de trabalho. — Respondi tentando não transparecer o desgosto de ser confundida com a namorada do Andrew. Ew. — Primeira vez que vai ao México?
Ela negou com a cabeça.
— Estou indo visitar meu segundo neto. — Respondeu animada — Deixa eu lhe mostrar as fotos…
A partir daí minha pasta foi ignorada assim como a TV que havia nos assentos. Descobri que o nome da velhinha era Eunice e tinha dois filhos. Um deles estava a uns bancos atrás e era “filho da sua velhice”, como disse ela, por isso ainda era um adolescente. O pai dos meninos morreu fazia já alguns anos, mas ela ainda assim parecia bastante abalada com isso. Eles se amavam muito pelo jeito.
— E vocês eram destinados?
Ela concordou com a cabeça.
— Mas não pense que isso significava que sempre dávamos bem não. Ele era um homem muito esquentado, o Fábio. — ela suspirou recordando — Demorou um tempo até que eu aprendesse driblar sua personalidade e ele de ser menos rude. Com Fábio aprendi que não devemos casar por amor e sim para amar, pois com isso a gente aprende como entender as diferenças do outro.
Balanço a cabeça enquanto tentava memorizar aquelas palavras. Eu adorava conversar com pessoas da terceira idade, porque eles destilavam uma sabedoria que eu gostaria de ter qualquer dia desses.
Quando chegamos às nove horas na Cidade do México, me senti nervosa para passar na alfândega. Quando era pequena, minha mãe fez questão de tirar todos os documentos necessários e eu sempre lembrei em deixá-los em dia. Por causa do bloco econômico que compartilhávamos, não era necessário visto para entrar no país.
Depois de entrar com meu espanhol arranhado e receber elogios de Albert que não sabia dessa minha habilidade, passei a viagem de carro até o hotel admirando a cidade. Era uma pena que eu não teria chance de conhecer os pontos turísticos.
Ao chegar no hotel recebemos a programação para conferência e Albert pediu que estivéssemos na recepção às sete da matina, enquanto Daniel apenas resmungava que odiava aviões.
Com um pouco de dificuldade na língua fiz o check-in sem ajuda, me despedi e fui direto para meu quarto. Não tinha prestado atenção no luxo que eu estava até entrar no cômodo que dava duas da minha casa.
Explorei cada canto e gaveta do quarto com uma animação quase infantil. Liguei a TV digital e deixei em um canal que passava clipes de música pop mexicana enquanto me jogava em uma cama de casal mais confortável que já tinha me deitado. Fiquei meio ressentida por está em um bom quarto de hotel no momento em que minha mãe sofria em uma cama dura, mas logo esqueci disso ao ver a banheira enorme.
Eu nunca tinha tomado banho de banheira e logo preparei-me para me deliciar com todo aquele luxo. Qual é? Eram apenas dois dias com um conforto que nunca esperei ter na vida!
Depois de baixar os ânimos e finalmente ser vencida pelo cansaço, mandei uma mensagem a Hope para que ela avisar-se que eu havia chegado em paz para Jean; agradeci o sms de Hoyer e disse que já estava na Cidade do México. Após pedi comida no quarto e me alimentar, capotei na cama como se não tivesse dormido nos últimos sete dias.
…
Eu vestia um vestido mais leve que costumava usar no outono, mas continuava sendo bastante profissional e quente. Ele era vinho e justo, porém que descia até abaixo do joelho, sem nenhum decote, e um blazer preto básico; também havia os saltos que peguei emprestado de Jean. Era bom ter como fada madrinha uma estilista talentosa como Ivanna.
Passei um bom tempo esperando até que Andrew apareceu segurando um copo de café e parecendo que não dormiu nada.
— Noite difícil? — Perguntei.
— Não dormi nada e você?
Sorri.
— Dormi como um bebê.
Não que eu não estivesse nervosa, mas nunca tive problemas para conseguir aquela proeza. Sendo uma pessoa adulta que cultiva apenas cinco a sete horas de sono, não ia perder a chance de dormir a noite inteira quando ela apareceu.
Nossos chefes se apresentaram logo depois e nos cumprimentaram com um “bom dia” formal. Depois de tomar café, ao entrar no carro, eles desataram em falar sobre o que deveríamos fazer. Andrew parece que vai ter um colapso e Daniel tenta acalmá-lo.
— Sabe o que fazer, não é? — Indagou senhor Carter para mim quando me viu lendo a programação em minhas mãos.
— Fazer amizades e prestar atenção na concorrência.
Ele balançou a cabeça afirmando.
— Seu trabalho hoje não é ser minha secretária e sim representante da empresa. Vou lhe dar uma semana para vir com uma proposta de mercadoria. — Ele deu um sorriso contido — Estou apostando todas as minhas fichas em você.
Em vez de me deixar lisonjeada, sua frase me deixa mais nervosa. Soltei o ar que segurava com força e dei um sorriso sem graça.
A conferência aconteceu em um auditório enorme que continha diversos stands. Havia muita gente bem vestida e nunca vi tanto ricos internacionais por metro quadrado. Intimidada pelos olhares e roupas luxuosas, andei devagar até a entrada.
— Apareça no palco daqui a três horas para dar apoio a Calças Molhadas ali. — Falou ele apontando discretamente para Andrew — Misture-se e seja você. — Disse Albert — Você conquistou Carol Carter, então, isso aqui é mamão com açúcar.
Sorri para ele por ser um mentor atencioso, mesmo achando que a simpatia de Carol por mim não fizesse sentido.
Com um crachá indicando meu nome e empresa, andei daquela forma confiante que aprendi nos últimos anos lidando com pessoas ricas e soberbas. Vi meus chefes e Andrew andarem pela multidão e tentei não ficar desorientada com o barulho de diversas línguas no local. Pude identificar o inglês e espanhol como principais e procurei os lugares em que elas eram mais evidentes.
Não demorou muito para que eu me familiarizar-se com o espaço. Conversei sobre um robô que “tomaria o lugar dos professores” com uma mulher elegante e discutimos se aquilo era evidência de que a tecnologia poderia ir longe demais. Encontrei três ou duas pessoas que perguntaram de que empresa eu era, mesmo carregando o símbolo da Coral no meu peito, os respondi prontamente. Foi divertido conversar sobre alianças de outras empresas como uma verdadeira erudita — será que se aqueles homens britânicos soubessem que tudo que eu sabia era observando e não estudando em glamourosas empresas, eles me dariam crédito?
Por algum motivo desconhecido, pensar nisso me dava vontade de rir.
Não vou dizer que sempre me dei bem nessas conversas. Havia momentos em que eu não fazia ideia do que eles falavam, mas consegui mudar de assunto ou apelar para o sotaque carregado de alguns deles. Observei os produtos daqueles que seriam nossa concorrência, fiz anotações no meu celular e tirei algumas fotos de forma mais discreta que pude.
As três horas passaram-se voando e quase me esqueço de procurar o resto da “equipe”. Quando os procurei segurava pelo menos cinco cartões de visita de empresários sendo alguns por puro flerte e outros porque se interessou em conhecer mais sobre a Coral. Claro que eu passaria o pente fino entre eles antes de entregar a senhor Carter.
— Acho que vou vomitar. — Disse Andrew assim que me aproximei.
Impaciente, segurei seus ombros e o chacoalhei.
— Se recomponha, homem! Você já falou sobre esse produto há duas semanas atrás na frente da empresa quase toda.
— Mas não tinha nem cinquenta pessoas, aqui tem quase dois mil! — Rebateu e eu ignorei o fato de ter menos do que isso no auditório.
— Olhe pra mim durante o discurso. — Falei apontando para meu rosto — Esqueça tudo ao redor e apenas explique o produto para mim.
— E como isso vai me ajudar? — Ele levantou a sobrancelha.
— Confia em mim. — Eu disse voltando a olhar para a programação amassada em minha mão e como resposta Grimmes bufou.
Quando Daniel entrou representando a Coral não precisei de muito tempo para entender porque geralmente era ele que presenciava esse tipo de evento. Jones era simpático e fazia você ficar levemente impressionado com suas ideias. Isso era seu forte.
Eu não conseguia imaginar Carter fazendo algo assim.
A mochila em questão era voltada a crianças de 7 a 10 anos; continha um formato diferente, inovador e um estofado que trazia mais conforto para elas. Durante esse tempo apenas fitei Andrew ao seu lado com as costas tensas e o olhar voltado ao Daniel. Grimmes relaxou um pouco, tão encantado com o discurso de Daniel como o resto, porém voltou a ficar apreensivo quando seu nome foi citado pelo mesmo.
Andrew me mirou com desespero e levantei o queixo em arrogância. Sem entender minha atitude, o homem franziu o cenho e pareceu voltar ao mau humor habitual.
— E o estofado não deixa a o material mais pesado? — Um sul coreano perguntou-lhe.
Todos os olhares se voltaram para Grimmes que ainda me fitava.
— Claro que não, se o fizesse não havia porque ser considerado mais confortável. — Respondeu ele — Na verdade...
Sorri vitoriosa quando o vi virar-se para quem fez a pergunta com naturalidade.
Andrew não funcionava com palavras fofas de conforto. Ele gostava de ser desafiado, só assim as coisas funcionavam.
— Você parece feliz.
Notei-me o tom familiar da voz e admirei surpresa o homem de olhos azuis que havia conhecido semanas atrás.
— Philip De Luca? — Apertei sua mão — Não imaginava encontrá-lo aqui.
— Nem eu, Blackwell, mas vender e comprar empresas sempre foi meu hobby predileto. — Ele disse passando a mão entre os cabelos cor de cobre. — Conhece aquele ali?
Apontou discretamente para Andrew que mexia de forma exagerada as duas mãos.
— Colega de trabalho. Então, você está a procura de algo para investi? — Perguntei interessada.
— Não exatamente, estou apenas dando uma olhada. — Replicou — Meu chefe não gostaria de saber das minhas olhadas, contudo.
— Seria muito intrometimento perguntar quem é seu chefe?
Ele riu charmoso.
— É um espanhol, talvez você conheça. Lorenzo Martin, o nome.
— Oh. — Respondi assim que lembrei que Lorenzo foi o quase acionista da Coral que fizera nos perder tempo no começo do semestre.
— É, eu sei. Grande homem, não é? — Comentou ele pomposo — Bem, estou de saída. Espero encontrá-la de novo, . Sinto que minha destinada iria adorar conhecê-la.
Dei um sorriso que considerei gentil assim que vi a aliança em sua mão esquerda.
— São recém casados?
— Estamos juntos há três anos e meio, mas a conheci fazem quatro anos. — Ele respondeu com os olhos brilhando.
— Bem, eu vou adorar conhecê-la. — Eu disse achando aquele começo de amizade muito proveitosa.
À tarde depois do almoço foi marcada por conversas entre possíveis sócios que Carter estava de olho. Muito elogiaram Andrew pela performance que de forma muito humilde respondia que era exagero deles. Durante tais encontros passei a maior parte do tempo dando informações bestas que Albert sabia, mas precisava de alguém para confirmar e dar crédito ao seu discurso. Jones apenas sentava e acenava, já que aquela área não era sua praia.
Ao entrar no meu quarto à noite eu estava exausta e tomei um banho demorado, algo que eu não tinha me dado luxo há muito tempo. Depois de vestir meu pijama surrado e coronha, deitei-me na cama como se estivesse no céu. A TV estava ligada em um canal de novela, e como uma grande fã desse tipo de programa, pus-me a assistir.
Estava começando a cochilar quando ouvir o barulho de alguém bater em minha porta. Meio desorientada por ter levantado rápido demais, abri a porta sem checar quem era.
Andrew andava para os lados como uma barata tonta. Ou um louva-deus, se você pensar em suas pernas igualmente longas. Enfim.
Cruzei os braços tentando esconder o fato que eu estava sem sutiã e com cabelo de quem havia acabado de acordar.
— Quem morreu? — Resmunguei.
— Não sei, mas se você não me ajudar, será eu. — Disse desesperado.
Sem perca de tempo, meu colega de trabalho puxou a manga esquerda do seu casaco e mostrou o relógio do prazo marcando apenas quinze minutos.
Eita merda.
— E você só viu isso agora? — Falei com um olhar repreendedor, embora sabendo que fiz a mesma coisa no dia do meu prazo: eu simplesmente esqueci.
— Eu nem sei para onde ir, o que devo fazer, ou eu…
— Quieto! — Aumentei o tom de voz. — Deixa eu te dar uma olhada…
E era pior do que eu pensava: Andrew usava um casaco listrado dentro da calça jeans, óculos de leitura e tênis All Star. Seu cabelo dividido ao meio gritava NERD em um raio de quinze metros.
— É o que tem para hoje. — Murmurei — Bagunça esse cabelo e vamos descer para a sala de jogos. Só deixa eu parecer apresentável.
Vesti um moletom vermelho e dobrei a minha calça até o joelho para disfarçar que era um número menor do que eu usava — eu o possuía desde minha adolescência. Com Andrew quase tendo um derrame do meu lado, pois faltavam apenas sete minutos, acabei saindo correndo atrás dele ainda de meias que, graças a Deus, não estavam rasgadas.
Escorreguei um par de vezes e caí uma tentando acompanhar Grimmes. Entramos no elevador ofegantes e não deixei de rir com a cara dos hóspedes olhando para meu estado. No cubículo tocava uma música good vibe do Coldplay e achei bastante propício para o momento.
Quando chegamos no andar do salão de jogos, Andrew saiu atropelando todo mundo para chegar até lá. Pedi desculpas por ele no caminho e recebi muitos olhares de lado por isso.
— Falta quanto tempo? — Perguntei ao chegar do seu lado na porta do salão ainda tentando normalizar a respiração.
Olhando o relógio como sua vida dependesse disso Grimmes começou a contar.
— ...Cinco, quatro, três, dois, um.
Não aconteceu nada nos próximos segundos e eu senti meu coração apertar no peito. Eu havia aprendido ainda criança que a consequência de atraso para pegar seu prazo poderia afetar com o encontro do seu destinado e senti pena dele automaticamente.
— Andrew, eu sinto tanto.
Entretanto ele não me ouvia. Seu olhar estava vidrado em alguém que estava mais adentro. A visão que tive foi de um homem moreno de camisa branca segurando um taco de sinuca paralisado. Os dois pareciam hipnotizados por algo invisível e me senti desconfortável por estar atrapalhando esse momento. O barulho dos relógios caindo ao chão despertou a consciência deles e a sensação de dejavú me engoliu tão forte que tive a impressão de ver Thomas no aglomerado de pessoas admiradas com o fim de um prazo que tinha acabado de acontecer.
— Acho que essa é minha deixa. — Dei dois tapinhas no ombro de Grimmes, mas ele nem lembrava da minha existência.
Enquanto voltava para meu quarto, não parei de pensar em Thomas e no dia em que nos conhecemos. Parecia que tinha passado anos desde aquele dia. Quantas coisas aconteceram! Apenas paro de pensar nisso quando cheguei no corredor do meu quarto que estava vazio.
Escorreguei pelo chão do hotel como se fosse uma criança e começo a rir com minha besteira.
Lembrando que eu tinha vinte e seis anos.
Penso em ligar para Hoyer e contar sobre o desespero de Andrew e como me diverti sozinha com minhas meias em um hotel que custava mais que minha própria vida, mas não consigo achar meu celular e estou cansada demais para uma conversa.
Em meia hora estou babando no travesseiro.
…
Acordei no domingo com batidas violentas na porta. Iria soltar um palavrão por me acordar assim, mas a voz de Carter me fez gelar até os ossos.
— Se você não descer em dez minutos será uma mulher morta!
Sei que ele estava blefando, mas me visto tão rápido que tenho certeza que quebrei algum recorde naqueles minutos. Me xingo assim que percebo o motivo do alarme não ter soado: meu celular estava descarregado dentro da bolsa de roupas sujas. Como ele chegou lá? Não faço ideia.
Deixei-o carregando e desci com meu notebook. Carter esperava na recepção de pernas cruzadas em uma poltrona olhando para o relógio.
— Faça isso outra vez e a coloco pra trabalhar com os estagiários. — Ameaçou ele.
Daniel, que estava ao seu lado, revirou os olhos.
— Lopez vai chegar aqui em meia hora, Carter, relaxa. — Ele passou a mão no rosto e bocejou — Por que estamos aqui tão cedo? Fico imaginando se você fosse britânico. Ia ser o inferno trabalhar para você. — resmungou — Blackwell, se for demitida pode me mandar um currículo. Carter sempre fica com as secretárias mais competentes, é incrível.
Albert balançou a cabeça ignorando seu amigo e me deu um cartão de crédito.
— Imprima os arquivos que enviei para a pasta compartilhada. A secreta. — Ele ordenou e apontou para Andrew — Grimmes vai ajudá-la.
Andrew andou até mim sem reclamar e me senti um tanto culpada por não ter percebido-o, todavia ele não estava com a habitual carranca.
— Buenos días, chica.
Levantei a sobrancelha achando sua atitude muito estranha.
— Tudo bem com você? — Perguntei com cuidado e ele assentiu. — Tá de bom humor hoje…
— Impressão sua. — Disse sorrindo.
Alerta, Terra. Iremos dá de cara com uma chuva de meteoro. Não era possível que Andrew Grimmes estivesse sorrindo de verdade. E era um sorriso bonito, cheio de dentes brancos e brilhantes.
— Uau. — Falei, mas fui fazer meu trabalho antes que meu chefe fosse cortar uma tira de couro das minhas costas.
Quando eu soube que a reunião com Lopez, um dos fornecedores de papel para Coral, seria no restaurante do hotel, suspirei de alívio, pois não tinha comido nada. A comida mexicana era muito melhor feita no país de origem do que nos restaurantes de esquina que tínhamos na Ala O, embora fosse a maior fã das comidas do meu bairro.
O restaurante era enorme e continha uma decoração característica do país. Havia mariachis cantando em um pequeno palco, mas nada que impedisse uma boa conversa. Nós estávamos separados por uma grande janela de vidro da área da piscina e podíamos ver de crianças a adultos brincando na água. Eu constantemente olhava os invejando por aproveitarem um dia raro de sol no outono.
Agi como backup durante toda a reunião e não entendi o porquê de está ali. Talvez Carter queria me ensinar algo que ainda não tinha aprendido, porém não fazia ideia do que era.
Foi em um desses momentos entediantes em que Carter e Lopez se levantaram para ir ao self-service que o vi na piscina. Franzi o cenho e olhei para os lados tentando situar-me e ter certeza que estava na Cidade do México. Thomas parecia outra pessoa sem toda aquela pompa que ele usa; seu cabelo está modestamente seco e cacheado. Seu corpo é musculoso e me assusto ao ver tatuagens no seu tórax que são facilmente escondidas pelo terno que ele usa no dia a dia.
Como mesmo no domingo em que encontrei-o no parque o vi vestido de moletom, nunca tinha tido oportunidade de ver que seu corpo era todo marcado e me indaguei se juristas podiam ter tatoos. Pensei até que tinha o confundido, mas quando Thomas olhou para mim através do vidro sei que é ele: o maxilar, o nariz e os olhos escuros são inconfundíveis.
Ele franzi o cenho do mesmo jeito que eu e me olha como se não me reconhece-se. Embora sei que ainda estou em um ambiente de trabalho, levanto a mão discretamente e dou um tchauzinho.
Ainda estou extremamente confusa por saber que ele estava aqui. Se vinha para o México, por que não me disse quando citei a viagem? Não que ele me deve-se alguma explicação, mas…
Thomas olha para trás parecendo meio perdido, mas sorri para mim de uma forma maliciosa. Sinto um arrepio na espinha e minhas mãos suam, entretanto não de um jeito bom. Remexo na minha cadeira desconfortável.
Segundos depois entendo o motivo dele não espalhar sua estadia na terra latina.
Uma mulher loira saiu da piscina jogando suas madeixas para os lados, como se estivesse em um filme. Seu corpo era tão perfeito que chegava a ser artificial e passei a cogitar que ela comia ervilhas de café, almoço e jantar para conseguir uma cintura tão fina. Foi em direção ao meu destinado como uma felina e ao ver que ele me encarava, a mulher desconhecida piscou para mim e o beijou.
Algo dentro de mim se quebrou quando vi que Hoyer olhava para mim enquanto basicamente desentupia a boca da mulher, como em desafio. Um sentimento de decepção, nojo e principalmente de repulsa me atingiu. E no momento que o vi descer suas mãos pelas costas dela quase grito para que ele parassem de sem vergonhice na frente de todo mundo — havia crianças lá, pelo amor de Deus.
Virei o rosto e tentei apagar a imagem nojenta que tinha presenciado e ignorar um sentimento de grande decepção. A sensação amarga de traição me doía mais do que deveria; uma sensação que eu não tinha nenhum direito de sentir.
— Senhor Jones, acho que a comida mexicana não me fez muito bem. — Menti — Tudo bem se eu subir um pouco? Tenho que falar com Carter…
Ele balançou a mão em desdém.
— Também não me dei muito bem com a comida na primeira vez que estive aqui. Eu falo com Carter, não se preocupe. — Tranquilizou-me simpático — Só não vai atrasar para pegar o voo, tudo bem? Daí eu não posso te ajudar.
Sorri amarelo e me despedi deles rapidamente.
Corri para meu quarto assim que lágrimas brotaram em meus olhos e não pude acreditar em quão burra eu estava sendo. Por causas dos recentes acontecimentos eu havia posto Thomas no pedestal e isso não era certo. Lá estava eu de novo colocando minhas expectativas em alguém que não merecia.
Fechei a porta do quarto e encostei a cabeça na parede. O choro veio sem mais delongas e eu não podia acreditar nisso. Não aguentava mais chorar, não aguentava mais ter que passar por situações desnecessárias.
Eu era uma mulher, não uma menina, pelo amor de Deus! Thomas não me devia nenhuma satisfação, nem eu a ele, então por que senti como se alguém me esfaqueasse pelas costas?
— Eu não devia está chorando, inferno! — Gritei e assim escutei o barulho do meu celular vibrando.
Cambaleando e com a vista embaçada, procurei o aparelho que carregava e o chequei. Meu coração foi a mil quando vi trinta e duas ligações de Hope, mas ao abrir a tela uma mensagem de Thomas perguntando se eu estava online brilhou na tela. Por pura birra e infantilidade bloquei seu número e liguei rapidamente para Hope.
Ela atendeu no segundo toque.
— Oi, Hope, aconteceu alguma coisa?
Minha voz saiu calma, apesar de sentir que iria explodir na montanha russa de sentimentos que vivia.
— Oi, . Por que você não atendeu o celular ontem de tardezinha?
Sua voz é delicada e sento na cama bagunçada para me recompor.
— Estava sem bateria e me esqueci de carregar. — fungo e enchugo as lágrimas das minhas bochechas — Está tudo bem? Doutor Brandon foi aí?
— É disso que eu queria falar, . — Respondeu — Atrapalho? Podemos conversar outra hora se…
— Não, não. Pode falar. — Afirmo me sentindo relaxada com seu tom de voz.
— Ele viu os exames e ficou muito preocupado. Sua mãe estava com uma infecção grave e foi necessário interná-la imediatamente. Você sabe que não dá pra saber essas coisas quando a pessoa não pode falar, não é? Por isso lhe liguei ontem: Para avisar. — Explicou.
— Ah, em que hospital a internaram?
— Santa Mônica. — Falou cuidadosa. — Hoje de manhã ela passou mal, e…— Hesitou — Ela não resistiu, meu amor. Sua mãe faleceu. Sinto muito, meu anjo.
E meu mundo ruiu de vez.
Capítulo 12
"Você não precisa ser tão corajosa essa noite." - Brave, The Shires.
Eu ganhei a primeira bicicleta um mês depois do meu aniversário de sete anos. Ela era rosa, cheia de figurinhas e tinha uma buzina branca um tanto dura para se apertar por ser nova. Steve , meu pai, me ensinou a andar sem rodinhas, embora sempre estivesse cansado do trabalho quando chegava em casa. Minha mãe costumava nos acompanhar nas tardes em que íamos ao parque, porém ela nunca interveio no nosso momento pai e filha - ela apenas nos olhava com um sorriso pequeno e doce que poucos da Ala O conseguiam esbanjar. Mesmo depois de não precisar da guarida de meu pai o tempo todo, eles ficavam de longe mantendo o olho em mim. Os dois.Meus pais estavam lá toda vez que eu virava para observá-los. Eu nunca estive sozinha.
Mesmo quando meu pai morreu de forma tão cruel, eu nunca estive sozinha.
Mas as coisas na vida são incertas, não é? Depois de dois anos descobrir que os constantes esquecimentos da minha maior defensora não eram normais. Eu tinha quinze anos na época. Assistir à Letícia morrer aos poucos era uma das dores mais insuportáveis que já tive. Ver uma mulher forte, que abriu mão de seu conforto para viver uma história de amor, se debilitar aos poucos me fez passar muitas noites chorando durante a adolescência, entretanto não demorou muito para eu perceber que navegar em lágrimas não me daria as soluções que precisava. Como a aflição era rotineira, ela se tornou suportável. Não que eu não tivesse crises, mas já não era mais uma novidade. Quando a situação é irreversível, você acostuma. Não era como se eu tivesse outra opção.
Eu entrei na Coral pela minha mãe e por causa disso não pude estar ao lado dela no seu último dia de vida. Tentei afastar aquele pensamento de mim e repetir que não era culpa de ninguém, porém era quase impossível. Durante o voo de volta para casa segurei as lágrimas. Chorar na frente de estranhos não me agradava, assim como o rosto cheio de compaixão de Andrew passou a me incomodar. Acho que não tinha digerido a notícia direito, pois quando encontrei Jean esperando-me com o carro de e abracei-a, comecei a soluçar.
Algo tinha sido arrancado de dentro de mim; a realidade me atingiu ao ter que organizar um enterro. Lembranças da minha infância e adolescência pareciam estar em todos os lugares que eu andava na Ala O. A sensação de uma guerra perdida massacrava meu corpo e tudo que eu queria era me afundar na tristeza, mas negava fazê-lo antes de dá um funeral digno a minha mãe.
O silêncio raro e as carinhas tristes das crianças do meu bairro ao pedir que mandassem recado para seus pais sobre a morte da minha mãe dilacerou o coração.
A pior parte, entretanto, foi o enterro. A pior segunda-feira de todas.
Me preparei apenas para escutar as frases confortantes que, no fim, não mudaria nada e o olhar de pena que sempre evitei receber desde pequena, mas não para o resto.
Encontrei algumas amigas da minha mãe que se mudaram para longe ou estavam preocupadas demais com suas vidas para visitá-la com frequência. Uma delas se chamava Sarah e tocou em meu rosto do jeitinho que ela fazia quando eu era criança.
- Ela está em um lugar melhor agora.
Aquilo transpassou o peito e lhe dividiu em dois. Por que aqui, do meu lado, não pode ser o lugar dela? Eu não era suficiente? Eu não podia cuidar dela? Por quê?
Qualquer coisa que segurou minha sanidade evaporou quando a vi deitada no caixão. Eu tinha evitado pensar em seu corpo frio dentro daquele ataúde. Letícia estava com um vestido rosa - sua cor favorita e parecia muito como ela era antes da doença. Minha mãe podia muito bem estar dormindo.
Tampei a boca com a mão querendo soltar um grito de desespero. Ela não podia ir embora. Ela não podia me deixar ali sozinha.
- Mamãe, por favor, acorda! Não me deixe, por favor. - implorei - Fique, mamãe. Eu preciso da senhora.
Em algum segundo depois de dizer essas palavras, senti dois pares de braços me segurar para não cair e me sentaram em uma cadeira dentro da capela do cemitério. Uma enxaqueca me atingiu como se alguém estivesse espremendo minha cabeça. Cobri o rosto com as duas mãos enquanto soluçava. Estava tão abalada que mesmo quando um abraço que antes era aconchegante para mim e cheirava a uma colônia que eu podia muito bem odiar no momento, não me afastei. Não neguei abraço de ninguém, apesar de nenhum deles me preencher.
E pela primeira vez na vida eu estava sozinha.
.
A primeira noite foi a mais difícil.
Voltar para casa vazia e entrar na cozinha fez meu estômago revirar enjoado. Recebi muitos pratos de comida dos que vieram ao funeral e eles ofereceram como uma forma de dizer "eu sinto muito"; com ajuda de Jean e Hope guardei parte da comida na geladeira e dividi para as duas levarem para casa. Eu definitivamente não estava com fome e mesmo se estivesse era muito provável que a comida se estragasse.
Já não fingia estar controlando a situação; tomei um banho demorado em uma sensação de torpor que fiquei desde que saí do cemitério. Vesti um longo casaco e uma calça moletom e deitei-me na cama esperando Jean aparecer para dormir comigo naquela noite.
Uma dor espalhou-se pelo peito quando sentir o cheiro da minha mãe pelos lençóis. Enxuguei algumas lágrimas que caíram no meu choro baixo e abri o armário. Devagar toquei em suas roupas e sem pressa comecei a observar os aparelhos que a mantiveram viva nas últimas semanas.
O pessoal do hospital me falou sobre a infecção pulmonar que levara minha mãe a óbito. Aquilo era normal, eles disseram, pessoas com Alzheimer geralmente morrem disso. Os exames que infelizmente atrasaram poderiam ter adiado a situação, disse Brandon. No final, nenhuma daquelas informações me confortou igual a de Hope: "ela não sofreu muito, . Ela foi em paz.".
Peguei um lençol com um cheiro forte de naftalina que quase nunca usávamos e troquei a fronha do travesseiro. Me arrastando pela casa, fui até a sala e deitei no sofá voltando ao estado vegetativo que estava antes. A Grey chegou minutos depois e perguntou se eu estava bem e se queria mesmo dormir em cima de algo tão desconfortável.
Neguei com a cabeça a primeira pergunta e dei os ombros para a indagação seguinte. Estranhando meu silêncio e me entendendo melhor que muita gente, Jean murmurou.
- Vai ficar tudo bem, amiga. Você vai ver.
Mas eu duvidava muito que ela estivesse certa, mesmo quando Jean deitou no colchão no meio da sala, perto de mim, e começou a falar bobagens sobre seu curso. Era algo chato, tedioso, porém distraía mais do que o silêncio ensurdecedor que eu pretendia passar o resto do dia.
Jean roncava durante o sono. Não era como se eu nunca tivesse dormido com ela, mas sempre que estivermos fazendo festas de pijama eu era a primeira a capotar na cama. Vagamente lembrei de ouvi-la dizer que tinha carne crescida no nariz e por isso tinha dificuldade de respirar às vezes. Era possível que essa era a razão de está com a boca aberta no meio do breu da minha sala enquanto fazia um barulho de ronco.
Dormi no máximo duas horas naquela noite. Cochilei por alguns momentos, mas ao relembrar que o remédio para minha insônia estava a sete palmos abaixo da terra, eu voltava a chorar.
Quando eu não conseguia dormir sempre recorri ao quarto dos meus pais. Recordo muito bem de me enfiar em meio aos lençóis a noite e ser abraçada por eles. Os s protegem uns aos outros de todo e qualquer mal, até mesmo os que viviam debaixo da cama, brincava meu pai.
Durante a madrugada pude ouvir os sons que costumava ignorar na minha noite de sono. Ouvi algumas garrafas de vidro sendo quebradas e de longe uma briga aos gritos entre um casal. Retratos de um bairro que cada dia ficava decadente. Não entendo ainda como éramos considerados Ala O quando já havíamos baixado o nível há décadas.
Eu não tive muito o tempo que queria para aproveitar meus pais, principalmente meu progenitor. Nem me dei trabalho para chorar sua morte também, pois alguém teria que ser forte pela minha mãe.
Antes mesmo de descobrir o avanço da doença, eu ouvia minha mãe chorar pelo seu destinado todas as noites. Lembro de escutar clandestinamente Sarah aconselhar a ela ser forte, pois eu ia precisar dela. Acabou que o contrário aconteceu.
Todavia, não tinha mais motivo ou qualquer coisa que me impedia de sofrer pela morte dele. Eu não precisava ser forte e finalmente tentei digerir o dia em que minha vida começou a desmoronar.
Só consegui dormir de verdade às oito horas da manhã naquela terça-feira. Tentei não pensar que ganhara duas semanas de folga do trabalho porque Carter esperava me ver renovada e pronta para recomeçar.
Mal ele sabia que eu só voltaria para Coral se estivesse em mãos minha carta de demissão.
- , você precisa se alimentar. - Insistia Jean quando me levantei ao meio dia.
Balancei a cabeça concordando embora não sentia muita fome. Abri a geladeira e peguei um pedaço de torta salgada para descongelar. Belisquei a comida mais do que pretendi e fiquei olhando para o nada por um bom tempo.
Jean parecia relutante em deixar-me só em casa, mas assegurei que não me suicidaria enquanto ela estivesse fora. Mama Grey iria aparecer mais tarde, avisou minha amiga com um sorriso.
Graças a Deus a Annie era mais maleável. Insistiu para que eu fosse comer, mas não me fez perguntas estúpidas como "você está bem?". Com a televisão ligada em um canal que só passava filmes e seriados antigos, alguns até mesmo em preto e branco, passei o dia tentando me distrair e encher minha cabeça de besteiras.
Jean dormiu em casa na terça-feira também, mas passou a maior parte da madrugada na cozinha fazendo um trabalho que valia 25% da sua nota. Para variar, apenas cochilei algumas horas e acordei cedo. O cansaço estava começando a acumular e me deixar quase inválida em cima do sofá - só saia para usar o banheiro e tomar uma ducha.
Na quarta-feira recebi a visita de Jack. Foi bom para mim ter notícias de Bonnie e percebi que ainda não tinha morrido de vez por dentro; ouvir o adolescente falando que mandou dinheiro para sua irmã e ter consciência que não era de algo honesto também me deu aquela sensação de nervoso.
No dia seguinte alguém bateu na porta, mas eu fiquei enrolada no lençol no sofá. Chovia e mentalizei para que qualquer que fosse a pessoa ela desistisse de falar comigo.
Não aconteceu, é claro.
Quando tive a impressão que iriam quebrar minha porta, resolvi abri. Abri a boca surpresa quando vi um homem de aparente trinta anos, com pinta de taxista, moreno, baixinho e barrigudo segurando uma Ivanna mal humorada e protegida por um grande guarda-chuva que a mesma segurava.
- Você por acaso é surda?
A forma como ela me tratou conseguiu arrancar um sorrisinho da minha cara que não acontecia desde domingo. Após lhe oferecer uma toalha e ela despachar o taxista, Ivanna me olhou feio.
- Por sua culpa perdi o funeral. Só fiquei sabendo da morte de Letícia ontem. - Ela cruzou os braços - Essa é a consideração que você tem por mim?
Olhei para ela envergonhada.
- Eu me esqueci. Desculpa.
Ela soltou um suspiro triste.
- Sinto muito pela sua perda, meu amor. Sei que deve está passando por um momento difícil e eu estarei aqui para o que você precisar, viu? - Ela disse segurando as minhas mãos frias.
- Obrigada. - Respondi no automático e troquei de assunto para não começar a romper em lágrimas - Como vai a clínica?
- Não mudou muita coisa desde a sua última visita. - Disse parecendo entender minha vontade de mudar de assunto - Agora estamos com peças semanais que falam sobre inclusão social, mas me barraram porque eu falei que a vaca da figurinista era mais inútil que minhas duas pernas e elas se ofenderam. Vê que coisa sem sentido! Eu sou a aleijada, eu que deveria me sentir ofendida!
Dei uma risada, apesar de achar errado rir daquilo.
- Por que você xingou ela? A figurinista fez algo errado?
- Ela queria me fazer vestir roupa de fada. Fada, ! Eu tenho quase quarenta anos, pelo amor de Deus! Eu sei o meu lugar. - Reclamou altiva.
Continuei a rir com a sua tolice.
- Que besteira. - Comentei - Eu mesma me vestiria de fada e ainda soltaria glitter para a plateia.
- Quero ver se você vai pensar assim quando chegar na minha idade. - Resmungou.
A conversa acabou sendo a melhor coisa que tinha acontecido na semana. Comemos o bolo de chocolate quase intocado na mesa e conversamos sobre tudo e nada ao mesmo tempo. Ouvi várias histórias sobre as pessoas da Clínica San Tomaz e tive impressão que conhecia todas elas depois de três horas de segredos não tão secretos sendo revelados por Ivanna.
Sim, nós estávamos falando da vida dos outros e isso me fazia uma completa hipócrita, mas no momento realmente não importava. Se me divertir daquele jeito era a única forma que tinha encontrado de sair do meu estado de calamidade, era isso que eu iria fazer.
Me senti bastante triste quando ela avisou que teria que ir e o taxista gordinho apareceu na frente de casa. Assim que o silêncio voltou a dominar o recinto, desisti de tentar fazer qualquer coisa e voltei a dormir.
Eu acordei perto das sete da manhã com um barulho atípico na minha cozinha. Levantei-me devagar e prendi meu cabelo que havia se soltado durante a noite.
- Você não sabe cozinhar porque não quer aprender. Nem venha com desculpinhas para cima de mim. - Jean resmungou de longe.
A gargalhada que a respondeu congelou meu ossos por um segundo. Cerrei o punho assim que a raiva começou a transformar cada camada do meu corpo em fonte de fúria.
Como ele ousava entrar na minha casa?
Andei em passos pesados até a cozinha e ao entrar, um silêncio tenso se instalou no ambiente. Jean, alheia a nossa intriga, sorriu para mim animada do fogão.
- Bom dia, acordou cedo hoje!
- Bom dia. - Falei friamente e me virei para . - Saia da minha casa.
Minha amiga arregalou os olhos com aquele comportamento anormal meu. Eu olhava para meu ex namorado com um desprezo e nojo que nunca pensei sentir por alguém algum dia.
- Por quê? - Ele perguntou.
Revirei os olhos impaciente.
- Insinuar na frente de um monte de pessoas desconhecidas que eu sou uma prostituta é o suficiente para você? Deixa eu desenhar: saia da minha casa e da minha vida. - Cruzei os braços - E de preferência do bairro também.
- Ah, , foi só uma briguinha boba. - Ele balançou a mão em desdém - E você me xingou também.
- Se você não sair da minha casa agora vou dar o murro que você ia ganhar naquele domingo. - Ameacei dando um passo para frente.
- , vai. - Ordenou Jean - Não quero confusão.
Dando os ombros em uma cara cínica, observei Grey sair da cozinha e logo ouvi o barulho da porta se fechando. Emburrada, fui até a pia pegar um copo de água.
- Não precisava ser tão grossa com ele, . - Repreendeu Jean.
- Experimenta ser tratada como lixo na frente de todo mundo e talvez você mude de opinião. - Repliquei com mau humor.
- Nossa, não precisa ser tão idiota comigo. deve ter feito...
- Vê só, moça. - Virei-me para ela - Quando eu fui ao Safira, seu irmão fez questão de gritar para todo mundo que estava com algum ricaço pra pagar o tratamento da minha mãe. Bem capaz de até ter alguma coisa na internet pra todo mundo ver. Se ele ao menos tivesse um pouco de respeito por mim, não me humilharia daquele jeito.
Jean ficou calada por alguns segundos e desligou o fogo da comida. Devagar ela enxugou as mãos. Seu silêncio me fez me sentir mais nervosa.
- Por que você não me disse antes? - Indagou ela magoada - Por que você nunca me conta as coisas quando eu confio cem por cento em você, ? Nem o nome do seu destinado você quer me falar quando você sabe que... Esquece.
Fiquei calada sem saber o que dizer. Ela estava certa, afinal.
- Olha, Jean, não é que eu não confie em você. - Justifiquei - Meu destinado pediu que não contasse a ninguém sobre nós e eu...
- Ah, e o que aconteceu no Safira? - Ela cruzou os braços - Seu destinado pediu sigilo também?
- Não, eu só...
- Esqueça. - Me interrompeu e começou a andar em direção à porta da cozinha - Depois a gente conversa.
Quis falar qualquer coisa que a fizesse parar, mas eu sentia que tinha engolido uma bola de pelos. Jean saiu de casa e no automático quis pedi conselho a minha mãe, como sempre fazia no começo da adolescência. Mesmo quando estava esquecendo das coisas, mamãe nunca me desamparou. Não que eu tivesse vários problemas, mas ela era a quem eu recorria.
Eu devia fazer qualquer coisa para reverter o estado de inércia que começava a se tornar a minha vida. Deitei-me no sofá mais uma vez e desejei não ter acordado. Rapidamente, algo que eu tinha esquecido sobre meu final de semana veio à cabeça: a cena grotesca de com aquela mulher na Cidade do México. Abafei o travesseiro em minha cara e soltei um grito de frustração. Por que tudo começou a desmoronar em minha vida? Por que eu não podia voltar a minha pacata rotina?
No sábado recebi Daisy, Mary e Franz que souberam da notícia na sexta-feira. Lembro-me muito bem de ter me remexido desconfortável no sofá quando eu as vi olhar para minha sala extremamente modesta com um ar avaliativo demais, porém foi bom tê-las perto de mim.
Só depois de uma semana desde o velório eu tive coragem de entrar no quarto da minha mãe novamente. Como estava sozinha, me dei o direito de chorar enquanto me agarrava em seus suéteres antigos e os organizava em uma caixa. Troquei os lençóis da cama e finalmente deitei para dormir. Jean continuou checar se eu estava bem, mas era fácil perceber que algo tinha mudado.
Eu não fazia ideia de como resolver aquilo.
Tomei coragem para abrir uma caixa repleta de fotos antigas. Muitas delas estavam mofadas e as fotografias já perdiam a tinta. Um aperto forte se apoderou no peito quando achei uma foto do meu primeiro ano.
Meu pai usava barba e se assemelhava com um lenhador. Os olhos e o cabelo eram marrons, donos de um ar de mistério. Ele não sorria, mas tinha uma expressão relaxada que só podia ser vista quando estava perto de sua família. Já Letícia, minha mãe, tinha um sorriso que não cabia em seu rosto. A minha personalidade comunicativa tinha vindo dela, com toda certeza. Seus olhos claros ficaram vermelhos por causa do flash e eu abraçava seu pescoço com uma feição tão radiante como ela.
Cada foto que eu achava me dava uma pressão diferente no peito. Queria tanto ter aproveitado o tempo que tive com eles. Por que eu só tive tão pouco tempo com eles? Por que meu pai não teve a oportunidade de me ver virar uma mulher? Por que minha mãe esqueceu tudo que a fez ser quem era?
Eu não dormir naquela segunda. Com a internet desligada, fiz minha carta de demissão. Talvez estivesse errado, mas eu não podia continuar na empresa. Eu não precisava mais da Coral.
Foi no começo da noite daquele dia que Jean chegou com as novidades: ela havia conseguido seu estágio.
- Hope me indicou e já vou começar a trabalhar na quinta! - Disse animada - Vai ser apenas de manhã em uma clínica particular da Ala G, mas vai ser muito bom. Não vejo a hora!
Abracei-a compartilhando da sua felicidade e sendo levada junto quando ela começou a pular de entusiasmo. Mordi o lábio inferior tentando segurar minha língua e não dizer que eu tinha falando com Steel sobre ela.
Afundei em seus braços finos e enterrei meu rosto em seus cabelos.
- Parabéns, amiga. Eu acredito muito em você.
Ela olhou para mim emocionada e disse que iria jantar comigo - embora ela devesse ir pegar o ônibus para chegar cedo na faculdade. A convenci a não ficar para não prejudicá-la e um sorriso feliz ficou grudado em minha face.
Algo estava dando certo, afinal.
Aos poucos comecei a voltar a rotina. Na quarta limpei em boa parte da casa, no dia seguinte a esse joguei as comidas que se estragaram e fiz uma limpa na cozinha. Meu armário estava vazio, então, fiz uma lista de algumas coisas que eu precisava comprar. Tentei não pensar que o dinheiro que estava em minha conta, em sua maioria, não pertencia a mim, mas foi quase impossível. Entretanto, preferi empurrar aquila preocupação com a barriga por um tempo.
Na sexta-feira tudo que fiz foi escutar uma rádio que tocava apenas jazz na cozinha. Eu não tinha ânimo para nada e não tinha vontade de olhar para futuro. Por muito tempo o presente foi a única coisa necessária em minha vida e até mesmo ele estava escapando por entre meus dedos.
Com as mãos no rosto verbalizei o que pensava.
- O que eu vou fazer?
Sonhei com meus pais na noite de sexta. Eles dois estavam sentados no sofá, abraçados e sussurravam um para o outro. Parecia muito com a imagem que eu costumava ver todas as noites antes de dormir. Sempre quis entender aquela intimidade que os dois tinham - talvez não tinha sido tão mágico como minha cabeça infantil idealizara, mas houve alguma coisa.
Eu os chamava, mas ninguém me respondia. Uma força estranha me puxava para cada vez mais longe e eu gritava "Mamãe! Papai!", porém eles estavam tão mergulhados em sua bolha que não podiam me escutar. Tudo ficou escuro de repente e, então, eu acordei.
Só voltei a dormir quando já estava claro. Annie me acordou daquele jeito todo calculista e resmungou que me chamava fazia dez minutos.
- Pensei que tinha morrido. - Ela disse.
- Quem dera. Quem dera! - Respondi, mas a mãe dos Greys me ignorou explicitamente.
- Você não quer chamar Jean para morar logo com você? Ela vive mais aqui do que em casa. - Falou desgostosa.
- Longe de mim roubar sua filha, dona Annie. - Respondi, mesmo achando aquela uma ótima ideia.
Ficar sozinha por muito tempo me aterrorizava.
O almoço se resumiu em Jean falando sobre seus primeiros dias de trabalho, sua mãe fazendo comentários sarcásticos e eu assentindo enquanto mastigava. Apesar de ter um momento bastante agradável com as duas, minha nova natureza reclusa me pediu para deitar e ficar pensando no maldito sonho que tive.
Com o cabelo úmido, calças leggings e um casaco preto fiquei encarando o teto por um bom tempo. Lembrei, então, que minha mãe comentara que tocava jazz na rádio para que eu dormisse e por causa disso eu me amarrava em um som de saxofone. Fechei os olhos tentando capturar a imagem de Letícia mais jovem e antes da doença. Mesmo quando começou a esquecer, ela continuava sendo minha rainha e a mulher mais linda que eu havia visto.
- ?
A forma como meu corpo respondeu a sua voz foi ridícula; um tremor transpassou minha espinha e pude sentir um calor bom e tranquilizador dominar meu corpo. Enxuguei as lágrimas e rapidamente me sentei.
Faziam exatamente duas semanas desde que o vira e ao observá-lo deslocado por está na porta do quarto fez meu coração se acelerar. Aos meus olhos era quase um deus da beleza, mas, como uma observadora experiente, poderia dizer que ele não estava passando pelos melhores dias: seus olhos estavam cheios de olheiras e seu cabelo sempre arrumado parecia ter sido atacado por um bando de passarinhos - ainda continuava usando um daqueles ternos que deveriam custar meu rim, contudo. O observando por aqueles longos segundos nunca tive uma vontade tão absurda de abraçar alguém.
E eu iria - com certeza iria, se não me lembrasse de seu olhar prepotente em minha direção na Cidade do México ao beijar uma loira desconhecida.
- Como você entrou aqui?
pareceu surpreso com minha atitude rude, mas se recompôs rapidamente.
- Uma mulher lá da sala disse que eu poderia entrar; que você estava aqui e que não tinha problema. - Justificou. - Eu sinto muito pela sua mãe. Estou tentando falar com você há dias.
Cruzei os braços me mantendo firme para não ceder no seu falar manso.
- Deveria ter falado comigo quando estávamos no México. - Alfinetei - Ia pegar a notícia quentinha.
Ele franziu o cenho como se eu tivesse falando uma língua diferente da sua.
- Do que você está falando? Pensei que estava ocupada trabalhando. Não queria te distrair com minhas ligações. - Respondeu entrando no quarto.
- Eu vi você no México com uma "amiga". - Repliquei - Não precisa mentir, de verdade.
- OK. - Ele falou devagar - Eu não estava no México. Pra ser sincero não piso naquele país faz dois anos.
O miro com os olhos cerrados, não entendendo o porquê da mentira. Isso me decepciona mais ainda e fico me perguntando se ele teria mais a esconder. Agora sabia exatamente o que Jean devia sentir quando eu ficava dando informações evasivas para ela.
- Olha, eu vou precisar de dez meses para conseguir pagar todo o dinheiro que você me emprestou. - Falei mudando de assunto - Ainda hoje vou passar mais da metade, já que não tivemos muito tempo para aproveitar...
- Não se apresse para dá o dinheiro, você sabe. - Advertiu tranquilo - Não preciso do dinheiro para ser sincero, mas aceito de volta porque sei que é muito orgulhosa.
Ele fez menção de levantar os cantos da boca, porém não pude acompanhá-lo. Fiquei de pé sentindo o estômago revirar com os pensamentos que não era tão meu amigo quanto ele queria que eu visse.
- Agora que estamos resolvidos quanto a isso. - Suspirei cautelosa - Acho que deveríamos nos afastar. Não está dando certo essa amizade se não há confiança. Por que você não confessa que estava no México? Meu Deus, eu só...
- , por tudo que é mais sagrado, - ele puxou os cabelos loiros para trás - o que diabos você está falando? Eu passei aquele final de semana jogando FIFA em casa. Na minha casa aqui, nesse país.
Bati o pé ficando nervosa.
- Eu vi você, . - Repliquei estarrecida - Você não precisa negar nada para mim! E daí se você estava acompanhado? Nós não somos nada além de amigos. Ao menos eu achava que éramos.
- Agora foi que deu! - Ele começou a bater o pé no chão - Você ver um cara loiro aleatório de terno com uma mulher e acha que sou eu.
- Escuta aqui, engomadinho: se tem uma coisa que eu tenho que é perfeito é a minha visão. - Respondi irritada. - Seja homem e confesse!
- Por acaso você está em algum estado traumático que faz as pessoas verem coisa? - Indagou ele parcialmente preocupado.
- Agora eu sou louca? Vai me dizer que não tem tatuagem também? Aliás, não sabia que juristas podiam ter tatuagens. - Minha voz subiu o tom e senti que estava a ponto de sair do meu auto-controle e entrar em uma crise histérica.
Ao contrário que eu esperava, parou por um segundo para pensar.
- Eu não tenho tatuagem nenhuma, . - Falou com a voz mansa.
- E você vai me dizer que eu...
- Me descreva exatamente o que você viu. - Pediu ele me interrompendo.
Cruzei os braços e revirei os olhos.
- Se quer saber como você é de roupa de banho, vista uma sunga e se veja no espelho, oras!
colocou a mão no rosto estressado. Ele já estava ficando vermelho de raiva.
- Você ainda vai me fazer perder a cabeça, mulher! - Reclamou - Eu posso provar que não tenho tatuagens.
Abri a boca para replicar, mas fiquei muda quando o vi começar a tirar o paletó. Comecei a gaguejar algo parecido com "o que você está fazendo?", mas antes que terminasse ele já estava tirando a gravata, irritado. quase arrebentou todos os botões de sua camisa azul clara de primeira linha e abri a boca surpresa quando ele abriu-a para que eu visse seu peito.
estava tirando a roupa no meu quarto, pessoal! What a time to be alive.
- Feliz? - Perguntou ele exasperado.
A primeira coisa que eu pensei ao ver o peito de era que ele necessita urgentemente de ir à praia. Sua pele era branca do tipo que implorava por um pouco de sol. A segunda coisa foi que o destino sabe o que faz, realmente, porque meu destinado não era musculoso como . Ele era magro, mas não do tipo esquelético e sim o ideal. Não tinha uma barriga cheia de gominhos, mas era sequinha como uma pessoa do peso normal. A única coisa que evidenciava alguma atividade física era seus ombros extremamente largos que nunca tinha prestado atenção.
Que homem!
A terceira coisa e última que prestei atenção era a mais importante obviamente; não havia nenhuma tatuagem no corpo de .
Mas que merda?
- Talvez eu esteja louca. - Afirmei em resposta.
riu e balançou a cabeça. Escondeu aquela linda visão que tive com a camisa novamente e sentou na cama como se estivesse muito cansado daquela discussão.
- Só não entendo porque eu vi alguém igualzinho a você no México. E ele olhou para mim e tinha os mesmos olhos...
se enrijeceu enquanto colocava os últimos botões da camisa. Meu destinado fechou os olhos sem acreditar.
- Você lembra qual era a tatuagem que ele tinha no peito?
Franzi o cenho tentando relembrar daquele dia, apesar de ser um borrão na minha cabeça. Tanta coisa aconteceu naquele dia.
- Acho que era uma serpente.
Minha resposta não pareceu agradar-lhe. colocou as mãos no rosto e ficou calado por um tempo. Sentei ao seu lado e pus afaguei seu ombro. Estranhamente, eu estava o confortando quando a que acabara de se tornar órfã ali não era .
- Você tinha razão.
Sorri debochada.
- Eu sempre tenho, mas o que foi exatamente que acertei dessa vez?
Ele olhou para frente e depois para os dedos da sua mão.
- Não há confiança em nós. - Ele disse - Eu não lhe contei tudo.
- Vai me dizer que você tem um irmão gêmeo do mal que estava no México? - Brinquei lembrando de ter assistido uma novela parecida com isso.
A brincadeira morreu quando olhou para mim sofrido sem dizer uma palavra.
Putzgrila.
- Você... Você... Você tem um irmão gêmeo? - Arregalei os olhos - Por que isso não tá no Wikipedia?
Ele riu triste.
- Porque para o mundo ele simplesmente... Sumiu. - Respondeu e pude ver que era um assunto delicado.
- Ele é seu irmão mais velho? O que você tinha me dito mês passado?
concordou com a cabeça.
- Nossa. - Falei me sentindo mais magoada do que deveria - No mesmo dia que você disse que queria minha amizade. Estou vendo agora no que ela é baseada. Vai me dizer que seu nome não é também?
Ele levantou-se irritado.
- OK, eu posso ter errado por ter omitido essa informação...
- Uma informação muito importante, devo dizer. - Resmunguei.
- ...Mas você também está escondendo coisas de mim.
Olhei-o ultrajada.
- Minha vida é um livro aberto. - Gritei.
- Então me diga como seu pai morreu. - bradou em resposta e estremeci com suas palavras - Me diga porque você nunca se preocupou em procurar os pais da sua mãe quando ela adoeceu!
A tensão era quase palpável e as lágrimas teimosas começaram a se acumular atrás dos olhos. Não era justo ele jogar aquilo no meu rosto, simplesmente...
- É algo muito pessoal para mim. - Sussurrei.
- Muito bem. - Vi seus olhos marejar - Minha família também é um assunto delicado para mim.
Ficamos sem fala por um bom tempo, um olhando para o outro esperando alguém ceder. Eu, entretanto, não podia jogar esse jogo por muito tempo.
- Você não sabe o quanto me doeu não ser você a me abraçar no velório. - Falei assim que comecei a chorar. - Eu senti sua falta e pensar que você tinha mentido para mim... Doeu. Muito. Sei que nós não temos nada, mas...
- Você é minha destinada, , e não há nada no mundo que possa mudar isso. - Ele me interrompeu - Eu não falei sobre meu irmão, porque é algo muito complicado para mim e espero que compreenda, assim como eu compreendo você.
Enxuguei as lágrimas que molhavam meu rosto.
- Desculpe por ter bloqueado você no celular. - Pedi - Foi infantil da minha parte.
- Desculpe por não ter contado sobre meu irmão gêmeo. - Ele disse.
Sem mais delongas joguei-me em seus braços e o apertei com força. O calor do corpo de me conforta e tirava aquele medo de não parecer forte.
Eu não precisava parecer forte.
E com esse pensamento chorei em seus braços as lágrimas que deixei de derramar no funeral da minha mãe.
...
Fazia anos desde que eu fui mimada por alguém. Mesmo com Jean me ajudando com os afazeres de casa, era mais porque ela gostava de se ocupar com coisas da casa do que com livros. Eu não entendia, realmente, mas cada um é cada um, não é? Apesar disso, nunca Jean foi uma empregada dentro de casa. No geral, eu fazia minha parte e ela apenas cozinhava.
Pareceram horas, mas no fundo sei que não foram mais do que minutos que fiquei aninhada nos braços de . Era uma sensação tão gostosa que já não queria deixá-lo tirar sua mão masculina, mas leve, de meu cabelo e afastar o calor do seu corpo contra o meu.
- Quem lhe avisou que minha mãe morreu? - Indaguei depois de um tempo com a voz fanhosa.
- Quem mais seria? - Sinto seu peito tremer quando ele riu.
- Carter é um fofoqueiro. - Afirmo.
Rimos e eu afastei minha cabeça para olhar para ele.
- Dê a ele crédito. Ele demorou cinco dias e um suborno para me dá uma resposta.
- Ah, é? E que suborno foi esse? - Perguntei curiosa.
- Logo logo você vai descobrir.
- Vou sentir falta dele e de sua chatice do dia a dia. - Comentei como de quem não quer nada.
- Te mudaram de setor e já tem um novo chefe? Que milagre você fez na conferência? - Indagou surpreso.
- Não, eu vou me demitir.
me olhou como se eu tivesse acabado de dizer que a Terra era quadrada.
- O quê? Por quê?
- Não dá, . - Falei olhando para meus pés - Eu só entrei na Coral pela minha mãe e agora que ela se foi, eu não sei.
- Então, dessa vez, faça algo por você e não deixe o emprego que você ama. - Aconselhou ele com a mão no meu ombro. - Ao menos converse com Albert antes de mais nada, está bem? Não é bom fazer escolhas assim depois de uma perda como a sua, .
Balancei a cabeça concordando meio confusa com as palavras de . Será que eu me arrependeria se saísse da Coral? Passei as mãos no meu rosto tentando acordar para realidade. Parecia que tinha desaprendido a fazer escolhas importantes.
- Vou pegar uma água na cozinha, posso? - Perguntou de repente.
- A casa é sua. - Garanti mesmo estranhando aquela pergunta - Se Jean ainda estiver aí peça para ela ajudá-lo. Ah, e pense bem em uma desculpa para essa camisa molhada. Vou pra sala daqui a pouco.
- Sim, senhora. - Respondeu com um sorriso.
Depois de lavar o rosto pós-choro, comecei a pensar no que tinha falado sobre continuar na Coral. Com certeza não teria problemas para voltar a qualquer dos meus primeiros empregos, mas as vantagens de trabalhar na Coral eram muito maiores. Eu devia fazer uma decisão e logo.
Foi por causa daqueles pensamentos e a extrema atenção que eu dava a pasta entregue por Albert a mim há algumas semanas que me impediram de ouvir a discussão de primeira. Quando consegui escutá-los, segui até a sala com passos de gato. O que diabos estava acontecendo?
Ai, meu Deus do céu. Que merda.
Foi as primeiras frases que surgiram na mente ao ver e discutindo na sala. Quis gritar para que Grey saísse de minha casa, porém nem ele nem parecia ter notado minha presença. Apesar do meu ex ser maior que meu destinado, falava com uma frieza tão calculista que quase não acreditei que era a mesma pessoa perdida que debatia comigo a uma hora atrás. Mesmo todo bagunçado, ele tinha sua pose arrogante de sempre, uma mão no bolso e a cabeça inclinada para esquerda como se falasse alienígena; por outro lado, estava Grey já vermelho de raiva pronto para uma briga.
E, sentada no sofá, Jean assistia tudo de camarote como se fosse a briga do século.
- Você não tem direito de pisar nessa casa sem a autorização da dona, não interessa quanto dinheiro você tem! - Gritou - Seu carro zero não me impressiona.
- Me admira você esperar que eu compre alguma coisa para impressioná-lo, senhor... - tocou no lábio dramaticamente - Como é mesmo seu nome?
- Escuta aqui, seu... - Replicou com os punhos cerrados.
- Sem ofensas, por favor. - Disse sem se abalar - Sem violência também, não vai gostar de ter que limpar sangue do chão.
- Quem é você para dizer alguma coisa sobre a ? - Indagou ele incrédulo - Ela vai ficar é feliz por ter tirado você da casa, seu corrupto de merda.
Vi uma veia saltar do pescoço de e ele deu um passo para frente quase esbarrando em . A raiva pairava sobre o cômodo e eu quase a sentia em meus poros.
- Você não me conhece e não vai querer conhecer meu pior lado, . - Ameaçou - Se você entrar na vida da mais uma vez para machucá-la, vou lhe massacrar tanto que você irá pedir para entrar no inferno mais cedo. Aliás, sou , o destinado da .
- Ah, com certeza você é o destinado dela. - Zombou Grey descrente - Só porque veio se aproveitar da situação frágil dela já se acha o dono quando eu cheguei primeiro.
o olhou ultrajado e abriu a boca para retrucar, porém falei primeiro.
- Uau, por essa eu não esperava.
E vi os três (incluindo Jean) olhar para mim.
Sorri para eles e me aproximei de . Segurei seu rosto em uma posição reta ainda com uma expressão amável.
- Se você se aproximar dessa casa ou mesmo olhar para ela, deixarei meu destinado fazer o que ele quiser de você. Sabe por que, ? Eu não dou a mínima. - Falei e o tapa prometido foi direto em seu rosto. - Saía! Agora!
Nunca o vi tão humilhado assim como nunca tinha sentido uma raiva tão descomunal como aquela. Se eu fosse mais um pouquinho corajosa eu lhe dava um soco, porém ainda tinha amor a minha vida - qual é? O cara dava dois de mim.
Olhei para e o vi com a boca aberta com minha atitude. Ele deve ter se sentido decepcionado em saber que sua destinada não era uma lady. Coitado.
- Onde está a água? - Perguntei quando o barulho da porta ressoou na casa.
- Não tive tempo de buscar. - Respondeu ainda embasbacado.
Direcionei-me até a cozinha como se nada tivesse acontecido, mesmo minha mão estando ardendo. Jean e me seguiram calados e nós nos sentamos ao redor da mesa quase que sincronizadamente - depois de pegar a água, é claro. Não conversamos sobre aquela discussão totalmente sem sentido para mim. Não queria saber como entrou mesmo depois de tê-lo expulso da minha casa, mas tive certeza que precisava trancar as portas com mais frequência. Já estava virando bagunça isso.
- Bem, Jean, esse é o meu destinado. - Apontei para ele - , essa é a minha melhor amiga.
Eles estenderam as mãos e apertaram diplomaticamente.
- É um prazer, . - Falou Jean - Você é o advogado, não é?
Modestamente, meu destinado respondeu que sim, mas não atuava como tal, e logo eles começaram a falar de algo que eu não prestava atenção.
O barulho de alguém batendo a porta quase me fez gritar um palavrão em voz alta, mas sua insistência me deixou preocupada. Andei rapidamente até a entrada e abri esperando uma visita qualquer para me dá os pêsames.
Qualquer sentimento de indiferença que me dominava passou ao ver Adolf quase Hitler na minha frente. Ele tinha um bigode horroroso e era alto. O magricela tinha sua própria cara de assassino e ele me dava nos nervos desde a adolescência quando ficou responsável em cobrar o aluguel das casas do meu bairro.
- Parece que ainda está de luto. - Falou ele sem cumprimentar-me - Falta quantos dias até você começar a mendigar?
- O que você quer? - Perguntei com os dentes cerrados e apertando a maçaneta em minhas mãos.
- Meu dinheiro. - Ele respondeu com o seu sorriso sem dois dentes de baixo.
- Em um sábado? - Levantei a sobrancelha sem entender.
- Operários também trabalham no sábado, caso você não saiba. - Replicou rude - E já que você subiu oficialmente duas alas, vim trazer seu novo carnê.
Segurei o carnê temerosa e arregalei os olhos quando vi que, agora que eu era da Ala M, teria que pagar mais que oitenta por cento do meu salário na Coral.
- Isso é um absurdo! Eu não vou me mudar. Vou continuar com uma casa da Ala O, por que tenho que pagar por ela como se fosse de outra Ala? - Reclamei.
- Regras são regras, minha querida. - Disse sarcasticamente.
- Que regras? - Indagou aparecendo por trás de mim. Pulei de susto quando o vi se inclinar para ver o carnê.
- Isso é o que vale na Ala O? Não me admira que as pessoas estão começando a empobrecer cada vez mais nessa cidade. - Comentou ele ao ver o valor em minhas mãos.
- É da Ala M, na verdade. - Respondeu Adolf - Aliás, quem é você?
- . - Ele disse simplesmente - E de acordo com o Artigo 12 da Lei da Casa Própria de 2020, encontrada na Lei da Divisão por Alas, isso não é legalmente aceitável a não ser que ela compre o imóvel de...
- Ora, ora. - O interrompeu Adolf - Parece que alguém arrumou um namoradinho que sabe ler. Quem sabe você não explica a ele que ninguém liga para o que a lei diz, hã? Deve ser novato, coitadinho...
Vi apertar os lábios tentando controlar o ódio e olhei compartilhando do mesmo sentimento.
- Estou sem dinheiro aqui. Irei pagar no dia que vencer, Adolf. - Avisei altiva - Tenha uma boa tarde.
E, delicadamente, fechei a porta em sua cara.
- Preciso da cópia das últimas três contas que você pagou, . - Falou enquanto me seguia até a cozinha - O mais rápido possível.
- O que aconteceu? - Perguntou Jean curiosa.
- A mãe do Adolf não o abortou quando teve chance, foi o que aconteceu. - Resmunguei rancorosa.
- Quanto você paga de aluguel todo mês, Jean? - Pesquisou meu destinado.
- Para o que você quer saber? - Indagou desconfiada.
- Apenas me diga: vocês pagam mais que vinte e cinco por cento da renda mensal no aluguel da casa? - Investigou persuasivo.
- Entre trinta a quarenta por certo. - replicou ela.
- Sabia! - Ele comemorou e eu sorri com sua animação quase infantil - Por causa do número de pessoas, não é verdade?
Ela assentiu entendendo tanto quanto eu: nada.
- , tenho que ir. - falou já em direção à porta da cozinha.
- Aonde vai com tanta pressa? - Indaguei confusa.
sorriu para mim e meu coração deu um pulo.
- Tenho um processo contra uma seguradora de imóveis para abrir. - Respondeu e sumiu logo de vista.
Jean olhou para mim e eu olhei para ela. Demos ombros juntas.
E aquele foi o dia mais estranho que já tive.
...
Olhar para a fachada da Coral depois de todo aquele tempo em casa me deu a sensação que não pisava lá a séculos. Eu havia determinado o tempo de um mês até decidir se queria ou não ficar na empresa - estava certo, precisava pensar.
Pude sentir os olhares de pena em minha direção, mas não me importei. Cumprimentei menos gente, é claro, pois minha animação estava negativa naquela segunda-feira; graças a Deus havia total de zero pessoas no meu andar além de Albert, que fora super compreensivo em me dá mais uma semana para fazer o relatório da conferência. O dia foi morno e passei a maior parte do tempo calada digitando algo no notebook.
Tentar voltar a rotina não foi fácil. Até mesmo fazer caça-palavras não me distraia e eu só desejava entrar dentro de casa, tomar banho e dormir. Eu estava oficialmente na fossa.
Enquanto chegava perto de casa, senti o celular vibrar avisando que a transferência do dinheiro que devia a foi efetuada. Faltava alguns meses para quitar toda a dívida, mas já estava em um bom começo.
Percebi que havia algo errado quando vi que a porta estava aberta. Com o coração acelerado, andei devagar pela casa escura segurando minha bolsa para usar de arma. Liguei a luz preparada para o pior e vi minha sala toda revirada e pintada de vermelho e azul. O horror cruzou meu rosto quando vi que nem mesmo o banheiro havia sido poupado, mas a maior dor foi ao entrar no quarto da minha mãe.
"Fique calada"
Estava escrito em vermelho e azul na parede e embaixo da mensagem todas as coisas da minha mãe que coloquei em uma caixa estavam banhados de azul.
Capítulo 13
"Você usa o seu coração em sua manga e eu uso o meu sangue em minha gravata. Mas é só o amor por baixo desse disfarce." - Collide, James Bay.
— Senhor Jesus Cristo!
Exclamou Annie, mãe de Jean, depois que chamei ela e sua filha para ver o que tinha acontecido.
Minha bolsa ainda estava pendurada no ombro, mas assim como o resto da minha vestimenta, estava repleta de tinta.
Ao ler a mensagem macabra para ficar quieta, ironicamente liguei para . Infelizmente não faço ideia o porquê daquele ser meu impulso, mas agora era tarde. já estava à caminho.
— Como alguém pode ser tão baixo? O que ia ganhar com isso? — Annie verbalizou as palavras que vibravam na minha cabeça.
Nem mesmo a televisão sobreviveu para contar a história — ela havia sido massacrada por um taco de beisebol e tinha vidro espalhado por toda sala.
Os pertences da minha mãe já haviam sido revirados por mim: consegui salvar apenas a foto do meu primeiro ano de vida e uma selfie guardada no drive do celular.
Apenas isso.
Comecei a tremer quando a realidade pareceu mais clara aos meus olhos.
Minha casa. Minhas memórias. Meus pertences. Tudo que um dia os s tinham construído.
Tudo se foi.
Corri os dedos pelos cabelos e os puxei. As lágrimas escorregaram pela minha bochecha e uma queimação corroeu a garganta. Devagar fui até o banheiro, agradecendo aos céus pelo fato de Jean nem Annie me ver desabando, e fechei a porta. Sentei na bacia suja de tinta e deixei toda aquela tristeza sair de mim.
Abri a boca e tentei gritar, mas o som não saía. Os soluços seguiram-se quando desisti de me recompor.
O que eu iria fazer?
— , abre a porta. Sou eu, .
A voz aveludada de meu destinado me fez abraçar-me com frio. Não queria que ele me visse assim no fundo do poço. Não estava disposta a bancar a criança chorona na frente de de novo.
O silêncio foi minha resposta para ele.
— Eu vim para ajudar, .
— Vá embora. — Falei com a voz rouca — Depois nós conversamos.
— Quero conversar com você agora. — Disse teimoso.
— Você não precisa ser meu super herói. — Repliquei olhando feio para a porta — Salve o dia de outra pessoa.
— Deixe-me ser seu coadjuvante hoje à noite. — Sussurrou.
Aquilo mexeu comigo o bastante para cair no choro mais uma vez.
— Oh, meu amor, abre a porta. — Implorou angustiado.
Estranhamente comecei a rir mostrando que já estava chegando a um estágio perigoso de insanidade.
— A porta não tá trancada. — Avisei.
Segundos depois o som da madeira sendo empurrada ecoou pelo cômodo e vi um completamente alinhado com um terno cinza escuro. Não havia nem mesmo um fio de cabelo fora do lugar, o que me fez me sentir mais miserável. Provavelmente eu estava com a maquiagem borrada e minhas roupas estavam manchadas de azul e vermelho.
agachou-se na minha frente e quase bateu a cabeça na pia. O banheiro era minúsculo e parecia menor ainda com a presença dele.
— Olhe pra mim. — Pediu carinhosamente segurando meu rosto.
Eu amava os olhos de . Eles eram escuros e pretos; um mistério profundo demais para ser descoberto com facilidade. Entretanto, ao mesmo tempo, ele passava uma confiança que poucos transmitiam. Eu confiava nele e aquilo no fundo me assustava.
— A culpa foi minha. Eu entrei com um processo contra a companhia de imóveis e seu nome foi vazado de alguma forma. — Explicou devagar — Eu vou resolver isso, está bem?
— Como você tem tanta certeza que foram eles? — Indaguei tentando digerir aquela ideia.
— Azul e vermelho é a combinação de cores do slogan. — Afirmou ele — Você não é a primeira que sofre algo do tipo, mas se depender de mim será a última. Até lá preciso que você esteja em um lugar seguro ou não conseguirei me concentrar em mais nada.
— Eu estou bem, não vê? Só foi uns objetos. O importante é ter saúde. — Caçoei deprimentemente.
— , você vai ter que vir comigo. — Explicou paciente — É só por um tempo até que as coisas acalmem e o caso vá ao tribunal.
— OK. — Respondi desconfiada — E qual é o seu plano?
Ele me olhou estranho por ter concordado tão rápido.
— Primeiro você vai morar na minha casa.
— Ah, não. A resposta é não. — Falei me levantando.
olhou para o teto com uma expressão de "dai-me paciência" e se levantou.
— Claro que não seria fácil. — Murmurou.
— Eu não vou morar com você, . — Falei decidida — Isso é ridículo! Eu posso muito em ficar na casa da Jean por um tempo!
— Ah, é? — levantou a sobrancelha — A mesma mulher que tem uma casa do tamanho da sua, que mau cabe duas pessoas e que tem um irmão, que por acaso mora lá também, e você o detesta?
— Tem as meninas do meu trabalho que com certeza me dariam abrigo. — Repliquei.
— E você prefere incomodá-las quando eu estou oferecendo minha casa por só alguns meses?
Olhei para ele com a melhor cara de tédio que eu conseguia fazer.
— Vou tentar achar alguma roupa sobrevivente e já lhe acompanho.
Infelizmente todas as roupas que não estavam na mala que levei ao México tinham sido banhadas de novas cores. Tentei, em vão, não pensar que o trabalho de anos de Ivanna tinha sido destruído em algumas horas. Me despedi de Jean e segui os passos de um silencioso. Queria saber mais do seu plano, mas resolvi ficar calada e tentar não estressá-lo.
— Tenho impressão que você é um animal enjaulado. — Comentou ele parando na frente de casa.
— Eu estou indo morar com alguém que conheci em menos de dois meses, dê-me um tempo. — Resmunguei abraçando a bolsa de plástico que continha minhas roupas.
— Já se passaram mais de dois meses. — Murmurou olhando pelos lados da rua. — Não se preocupe, não vou lhe atacar durante à noite.
Deixei os ombros caírem me sentindo culpada pelo comentário. estava apenas sendo gentil e solícito, eu não precisava ser tão idiota.
— Olha, , eu...
Não tive tempo para terminar a frase, pois ele agarrou meu braço com força e me empurrou para o carro.
— Vamos, logo! Logo! — Ele disse com os dentes trincados.
Então, percebi que o motorista havia aberto a porta do carro com a mesma afobação do meu destinado. Olhei para trás e vi três rapazes na faixa dos vinte segurando armas que tecnicamente apenas militares poderiam ter.
Antes que eu pudesse entrar em pânico, ouço gritar para que o motorista acelerasse. Os tiros foram ouvidos e alguns foram direcionados ao carro, entretanto percebi que nós não éramos seu alvo. Fiquei nervosa pensando na segurança de Annie e Jean, mas ver que o bairro estava quase todo deserto me fez torcer para que elas já soubessem do ocorrido. Iria tentar entrar em contato com elas assim que pudesse.
— Para casa, senhor? — A pergunta de Carlos me fez voltar a realidade.
— Sim, isso mesmo. — Murmurou .
Vejo-o largado no banco de trás daquele carro luxuoso e observo a cor começar a voltar de seu rosto. Seu peito descia e subia quando ele tentava acalma-se e sua testa estava molhada de suor; esqueci-me completamente que aquele tipo de cena não era comum para alguém como .
— Está tudo bem? — Indago suavemente.
Ele soltou um pouco o ar e deu uma risadinha.
— Só você pra me fazer pisar naquele vale da sombra da morte.
Soltei uma risada enquanto o via mexer no painel para fechar a janelinha que ligava ao motorista.
— Por isso eu quero agradecer. — Disse e então tive seus olhos bem atentos em minha direção.
— Fale mais.
— Eu tenho sido bem idiota com você e mesmo assim você continua ao meu lado. Não mereço tanta atenção. — Expliquei sincera — Você é simplesmente bom demais pra mim.
— É um prazer servi-la, majestade. — disse com um sorriso.
— Agora você pode me explicar o que diabos está acontecendo?
contou sobre a L&James, a construtora terceirizada pelo Estado responsável pelas Ala M abaixo. Há vinte anos, contudo, havia cerca de três empresas responsáveis pela organização dos bairros periféricos, concorrentes, davam uma assistência mais proveitosa ao moradores, agora cuidavam da Alas acima e deixaram tudo na mão da James. Eles tinham um grande histórico de falcatruas que sumiram antes mesmo de chegar ao tribunal com acordos miseráveis ou até desaparecimentos de parentes ou mesmo das vítimas.
— Meu advogado alertou sobre o que poderia acontecer e eu já estava disposto a conversar com você sobre isso, quando recebi sua ligação. — Completou — Sinto muito por não ter alertado antes.
falou que achava melhor não envolver Jean para que ela não fosse prejudicada. Já havia tirado fotos e mandado para um detetive particular, pois até mesmo a polícia estava envolvida no sistema.
— Além do mais, vamos ser sinceros e dizer que sua posição econômica influencia muito. Não poderei fazer muita coisa, também.
No dia seguinte ele me levaria para conhecer o par de advogados que antes eram seus ídolos e agora se transformaram em seus empregados.
— Eles são simpáticos, lhe garanto.
Demorou mais do que eu esperava para chegarmos nos bairros isolados da Ala A. Os portões eram de ferro e as casas tinham hectares e mais hectares de distância uma das outras. O clima desértico daquele lugar, no entanto, passava uma tranquilidade que nos bairros mais pobres não transmitiam.
Se a Ala O estivesse calada algo de ruim estava para acontecer.
Não pude de deixar de ficar surpresa com a mansão que vivia. Veja bem: jovens solteiros e milionários costumavam viver em apartamentos luxuosos, não em casas que geralmente agregavam famílias enormes. Fiquei pensando em quão solitário deveria se sentir às vezes e que ter alguém dentro de casa não fosse nenhum sacrifício para ele. Seu jardim era do tamanho da minha rua, bonito e muito bem iluminado. Vi alguns homens vestidos de terno passeando por lá e os identifiquei como seus seguranças.
Acho que durante esse tempo em que conheci esqueci-me que ele era podre de rico. Apesar de não agir como se fosse, ostentava coisas luxuosas como todo e qualquer bilionário — por que diabos o destino achou por bem que aquele homem que se limpava com notas de cem fosse o meu destinado?
— Você costuma andar só com o Carlos? — Perguntei — Não há outro segurança?
— Carlos é quem fica na minha cola a maior parte do tempo — Explicou — Os outros seguranças que costumam acompanhar minha rotina estavam com o carro na oficina e não chegaram a tempo de vir até a sua casa. — ele deu os ombros — Carlos é suficiente para mim.
Assenti admirada com sua confiança. Se eu fosse rica e tivesse seu poder político andaria desconfiada o tempo todo.
Ao entrar na sua garagem outra surpresa: a coleção de carros. Estávamos em um carro blindado com uma plaquinha indicando seu cargo público e aquilo era demais para mim. No entanto, aqueles diversos modelos de automóveis que só vemos na TV era total novidade. Quer dizer, quando nos encontrarmos para acertar o trabalho da Hope ele portava um carro diferente desse, mas não esboçava tanta riqueza.
Ignorando minha total falta de jeito diante de tanto luxo, abriu a porta do carro e pediu para que eu o acompanhasse. Parei por alguns segundos quando vi uma Dodge vermelha estacionada.
Segurei o riso quando tentei imaginar , com seu terno super refinado, em cima de uma moto.
Algo me dizia que aquilo não era a cara dele.
Entramos em um elevador e subimos para o que era o primeiro andar. Passamos por um corredor com algumas luminárias e chegamos dentro de uma cozinha que cabia uns quinze chefes. Estou falando sério.
— Vou te levar pra seu quarto. Se quiser pode escolher. — Disse ele enquanto me empurrava delicadamente pela cintura.
Subimos uma escada e desviei o olhar de cada uma das portas. Exploraria a casa mais tarde e alimentaria minha curiosidade quando estivesse sozinha.
— Direita ou esquerda? — Perguntou ele apontando para os últimos quartos do corredor.
Dei os ombros em resposta assim que consegui desviar os olhos do lustre.
— Por que você não tem um apartamento como a maioria dos solteiros da Ala A? — Indaguei sem conter a curiosidade.
— Ganhei essa casa da minha avó como presente de casamento. — Replicou ele e pude perceber seus olhos ficarem gelados.
Virei-me para cuidadosa observando o homem que compartilharia a casa comigo pela minha segurança. Ele estava sério e meticuloso; daquele jeito eu conseguia reparar algo que dificilmente era visualizado em : ele não tinha tanta cara de pivete. Tinha olheiras discretas e um maxilar quadrado bastante masculino. Seu olhar, o que eu adorava admirar, naquele momento parecia de alguém muito mais velho do que ele era.
Diabos, o que aconteceu com ? Por que ele parecia ter sido tão machucado quanto eu?
— Vocês foram casados por quanto tempo?
— Seis meses. — Ele desviou a vista para algo atrás de mim — Vó achava que eu deveria esperar mais um pouco para casar, mas eu não a escutei. Se arrependimento matasse... — Suspirou — Quer conhecer seu quarto?
Assenti e ele abriu a porta.
— Uau! — Exclamei — Isso aqui é do tamanho da minha casa.
O quarto tinha uma decoração bastante modesta e impessoal, porém não deixava de ser organizada e valer mais do que tudo que eu ganhava em um ano.
— Tem um closet ali. — Ele apontou para um canto do cômodo — E o banheiro é do outro lado. As empregadas costumam arrumar os quartos a cada dois dias. Só o meu que demora mais alguns dias por segurança. Você tem alergia a algum produto?
Neguei com a cabeça embasbacada.
— A casa costuma tá deserta de noite, os seguranças ficam do lado de fora.
— Você não acha isso um pouco demais? — Indaguei sentando hesitante em cima da cama. — Pra cuidar dessa casa parece complicado e você mora sozinho e tal...
sentou-se do meu lado e relaxou os ombros. Ao contrário de sua postura sempre impecável, ele apoiou os cotovelos na coxa deixando suas costas corcundas.
— Isso tudo foi a última coisa que minha avó me deu antes de entrar em coma induzido. — Replicou ele e pude ver seu olhar longínquo e nostálgico mais uma vez. — No começo pensei em voltar para meu antigo apartamento, mas eu gosto daqui.
Balancei a cabeça concordando.
— É um verdadeiro palácio isso aqui.
— Eu sei. — Riu constrangido — Nem mesmo a casa dos meus pais é tão requintada. Ah, você já comeu? Posso pedir alguma coisa pra gente.
— Então quer dizer que não tem uma cozinheira esperando eu dar as ordens por aqui? — Brinquei olhando para os lados — Que coisa de pobre!
Ele soltou uma risada e se levantou.
— Pizza com cogumelos?
Franzi o cenho.
— Nunca comi. É bom?
sorriu lentamente daquela forma que derretia corações e piscou.
— Tem algumas toalhas no banheiro e sabonete, caso você queira tirar essa tinta. — Apontou para as minhas mãos sujas já esquecidas por mim. — Vou ligar pra pizzaria e tomar um banho. Seja bem-vinda.
— Obrigada. — Sorri para ele.
Assim que a porta foi fechada, andei cautelosa pelo quarto. O closet tinha apenas uma calça moletom da Adidas que eu não fazia ideia de quem era duvidava muito — que coubesse em e era grande demais para uma mulher.
Quase soltei um gritinho entusiasmado quando percebi que agora eu ia poder tomar banho de banheira após um dia cansativo de trabalho. Tomei um banho de cabeça e passei um bom tempo olhando a tinta azul e vermelha se misturar e descer pelo ralo.
Como em tão poucas horas o cenário da sua vida pode mudar tão drasticamente? Ainda não entendia como eu aceitei vir pra esse lugar tão luxuoso por causa da minha segurança.
Veja bem: eu nunca fui requisitada, muito menos lembrada facilmente. Nunca precisei de proteção a mais ou até mesmo lidar com a justiça. Desde cedo você aprende que pra delegacia a gente só leva problemas se não puder resolver com um soco ou um chute no meio das pernas. Agora eu estava sob a tutela de um desembargador tendo em mãos quase nada do que era minha vida antes.
E eu me recusava chorar ao pensar nisso no momento.
Vesti o pijama que usei na noite do fim do prazo do Andrew e saí do quarto de fininho. As paredes dos corredores vazios tinham fotografias bonitas do que parecia a Nova Zelândia — aquelas paisagens que só vendo na tela de fundo do computador. Não havia nenhuma de ou da família dele.
Estranho.
Desci as escadas tentando lembrar para que lado era a cozinha — havia três saídas e uma delas era a da porta que acredito ser a principal — quando vi sair do meu lado esquerdo.
Eu havia visto sem roupas sociais apenas uma vez no parque, embora não tenha reparado muito. Agora que estava mais calma e observadora, quase achei que aquele não era meu destinado.
O cabelo dele estava molhado e cheio de cachos loiros, rebeldes sem o gel que ele usa constantemente. Ele usava um casaco moletom cinza escrito Columbia University e uma calça flanela xadrez, os pés descalços, e segurava uma caixa de papelão. havia voltado a aparentar ter vinte e dois a vinte e quatro anos muito rapidamente.
— A pizza chegou. — Avisou balançando a comida. — Me acompanhe, vamos pra sala.
O segui para a direita e entramos em mais um corredor. A sala de estar era localizada em uma das quatro portas e tinha uma televisão grande o suficiente para umas quinze pessoas assistirem sem problemas.
Sentei no sofá cinza, ainda desfamiliarizada com o local, e vi que no centro preto havia uma garrafa de guaraná e dois copos.
— Acabei esquecendo de perguntar o que você queria beber, então trouxe refrigerante, tudo bem? — Explicou ele.
Ao contrário de mim, sentou em cima do tapete felpudo marrom e ligou a TV em um canal qualquer de filmes.
— Seria pedir demais uma coisa mais... forte? — Indaguei constrangida.
Ele passou a mão na testa como se tivesse esquecido de algo.
— Nem passou pela minha cabeça! — Comentou — Infelizmente não tem nada alcoólico aqui em casa, mas posso pedir pra comprar.
Olhei pra ele como se acabasse de aparecer um chifre bem no meio da sua testa.
— Como assim não tem nada alcoólico? Você não bebe? — Perguntei assustada.
Quem nesse mundo consegue enfrentar a vida sem tomar nenhum pouquinho de álcool?
— Eu tomo remédio controlado. — Respondeu evasivo e voltou a zapear os canais.
— Mas você é tão novo pra sofrer dessas coisas!
O silêncio de sua resposta foi bastante constrangedor. Assim que falei aquilo, me arrependi. Que comentário mais desnecessário, ! O que você tem na cabeça?
— Eu comprei apenas metade com cogumelos, caso você não goste. — Disse ele abrindo a caixa e enchendo os copos — Você não liga pra comer pizza sem talheres, né?
Concordei com a cabeça.
— Acho que você é o rico mais doido que já conheci. — Comentei dando uma mordida na pizza. — Digo, tu não tem frescura. Aliás, isso aqui tá uma delícia.
— Mesmo sendo rico desde criança, minha avó nunca me criou com mimos. Só começou a fazer isso quando eu cresci e não tinha muito tempo pra visitá-la. — Respondeu aos risos. — Sinto falta dela.
— Sei como você se sente. — Falei e me sentir mais triste do que o esperado. — Sua avó é como uma mãe, não é?
— Ela era mais pai e mãe pra mim do que meus próprios pais. — Disse ele levantando um pouco a cabeça para me olhar; os pés dele balançando para os lados no chão. — Minha avó me ensinou que isso tudo: os ilustres, o ouro, os móveis caros... Não importa. Elas podem trazer felicidade, mas é momentânea demais.
Senti um calor no peito, algo parecido com orgulho. Sorri para ele e dei mais uma mordida na pizza.
— Então, você gostou mesmo? — Indagou ele.
— Amei. — Falei com a boca cheia.
Conversamos mais um pouco e me explicou algumas coisas básicas como a senha do elevador. Meu destinado também disse que eu precisaria de um segurança por um tempo até que as coisas acalmassem.
E eu, claro, não gostei daquilo.
— , não precisa. — Tentei argumentar — Eu já estou morando nessa fortaleza, não vê? A Coral é cem por cento segura. Não quero um homem correndo atrás de mim durante meu trabalho.
— Ele vai ser só um motorista, ! Nada mais do que isso. — Explicou ele — Vai levá-la pra casa e trazê-la.
— E se eu quiser ir para outro canto?
revirou os olhos e bateu o pé impaciente.
— É só dizer onde você quer ir e ele obedecerá, oras.
— , tente entender. — Me levantei rápida. — Eu não sou acostumada a ser vigiada. Tudo isso de ser perseguida pela empresa não sei das quantas é novo para mim!
— , você que tem que entender uma coisa. — se levantou também, um pouco mais desengonçado do que eu, no entanto seu rosto estava começando a ficar vermelho. — Querendo você ou não, estamos ligados. Nessa sociedade em que vivemos, mesmo se você cage e ande pra mim, todos vão achar que você é o amor da minha vida. Se alguém querer me atingir, vão correndo para descontar em você! Eu não quero que sofra por causa de mim.
— Do mesmo jeito que você entrou com um processo em meu nome? — Explodir — Que fez destruir a minha casa e todas as memórias que eu tinha?
— Ah.
Pela cara que fez, eu o atingir de verdade. Confesso que tinha falado besteira — ele estava tentando me ajudar, pelo amor de Deus.
— Desculpa, . Eu não devia...
Ele saiu andando até a porta ignorando minhas últimas palavras.
— Boa noite, . — Disse de forma fria.
Não dormir naquela noite. Aliás, fiquei na sala o resto da noite pensando em que fazer para pedir perdão a . Eu simplesmente tinha feito uma noite boa se transformar em uma tragédia. Era como se eu fosse doutora na faculdade de fazer merda.
Sentei no sofá toda desajeitada e comecei a assistir um documentário, embora minha mente estivesse longe demais. Não fazia ideia onde era o quarto de e duvidava que ele queria ver minha cara no momento.
Deixaria para amanhã e ficaria de joelhos se necessário.
E depois lhe perguntaria porque no tempo em que estávamos comendo a pizza ele deixou a comida intocada.
...
Acordei enrolada em lençóis de linho parecidas com as do hotel no México. Estava com o corpo mole de exaustão e custei muito para me levantar e procurar o celular. Quando peguei o aparelho em mãos e vi que era seis horas da manhã, eu surtei.
Só dez minutos depois quando eu escovava os dentes e tentava achar a pasta que Carter me deu, foi que eu me lembrei onde estava.
Parte de mim ficou aliviada, mas ainda não tinha certeza se estava atrasada ou não. Quanto tempo até chegar na Coral dali?
Tomei banho e vestir a única calça e blusa que eu possuía. Depois do trabalho eu teria que gastar uma grana preta para repor todo meu guarda-roupa.
Só de pensar nisso meu bolso chorava.
Andei devagar até a cozinha já repetindo as palavras de desculpas para . Me desculpa, sua destinada é uma babaca. Se você quiser vou junto com cinquenta seguranças, mas eles não podem ficar no meu caminho.
Entrei na saída da esquerda, torcendo pra que fosse a certa, mas parei rapidamente quando ouvi algumas vozes conversando.
— deve pesar uma tonelada. — Ouvi a voz de murmurar — Devo ter quebrado umas cincos costelas.
— Deixe de exagero. — Uma voz feminina respondeu — Você deve tá se sentindo fraco porque não come direito. Está perdendo peso de novo, !
Ouvi um som de bufar.
— Lá vem você de novo. — Meu destinado reclamou — Não lhe pago pra isso.
— Ah, paga sim. — Uma voz masculina com o sotaque carregado falou — Você paga Rose pra ela te alimentar.
— Vocês dois estão demitidos. — Falou ele sério, mas as risadas que acompanharam sua afirmação mostrou que ninguém levara a sério o que falava.
Nervosa, entrei na cozinha. Três pares de olhos viraram-se para mim automaticamente e senti minhas bochechas ficarem vermelhas de constrangimento. estava sentando na ilha, segurava uma caneca de café e estava devidamente arrumado para o dia de trabalho. De seu lado estava Carlos e uma mulher baixinha, um pouco mais velha do que eu, morena, que arrumava a ilha com alguns pãezinhos e frutas. Percebi que seus olhos eram muito azuis quando ela se virou para mim e sorriu.
— Bom dia, senhorita. — Me cumprimentou — Você deve ser a famosa ! É um prazer conhecê-la. Sou Rose.
continuou a saborear seu café e inclinou-se um pouco para o lado onde havia uma TV.
— Digo mesmo. — Respondi sorrindo para ela — Ainda estou meio confusa, você trabalha aqui com...?
— Ah, sou a cozinheira/governanta/quem ganha mais nessa casa. — Explicou rindo. — Já deve conhecer meu marido, o Carlos.
Minha expressão foi de puro entendimento.
— Ahh! Bem, parece que vou vê-la constantemente agora que me mudei.
Quando eu falei aquelas palavras tudo se tornou mais real. Eu tinha me mudado para a casa de ! O que é que está acontecendo, oh céus?
— Com certeza! Fiz omelete, você gosta? Depois é só me fazer uma lista de coisas que você gosta e farei seu jantar! — Desatou em falar — Não aguento mais fazer comida pra se estragar, nunca come nada. Aliás, converse com ele. Se continuar a não se alimentar direito vai cair duro no chão antes que alguém diga "meritíssimo".
— Ainda estou aqui, Rose. — Protestou mal humorado.
— Já até incentivei ele ir a um médico pra ver essa falta de apetite. — Ignorou o comentário do seu chefe — Vai que é verme?
virou-se para Carlos que, assim como eu, só ria.
— Odeio a sua mulher.
Desconfiada, fui em direção a ilha e sentei na cadeira ao lado. Meu destinado apenas seguiu-me com o olhar me fazendo tremer de ansiedade por dentro.
— Eh... ? Você está muito chateado comigo?
Sentindo o timing, escutei Rose dar uma desculpa qualquer e arrastar Carlos para fora da cozinha. Remexi-me desconfortável no assento com o sentimento de culpa me matando por dentro. Eu tinha vacilado feio demais com e a última coisa que eu queria era machucá-lo.
— Tudo bem. — Ele respondeu baixo e começou a colocar um pouco mais de açúcar no café — Eu meio que merecia aquilo. Basicamente te arrastei para um bairro que você não conhecia e esperei que aceitasse meus termos sem protestos. Não quero controlar sua vida, , longe disso! Se você quiser algum segurança tudo bem, mas se você não quiser, tudo bem também. — Suspirou — Só que a última opção vai aumentar minha enxaqueca.
Sorri desarmada. Eu era a errada da história e mesmo assim estava ele lá pedindo desculpas para mim. Segurei uma das suas mãos livres e apertei-a. Ela era quente e macia em minha palma.
— Não posso prometer que não vou falar nenhuma besteira nos próximos dias. Morar comigo pode ser um saco. — Alertei — Mas prometo me arrepender e dormir mal por causa da consciência pesada.
Ele riu e segurou minha mão firmemente.
— Você me pediu desculpas, sabia? Apesar de estar meio dormindo. — Ele disse olhando para nossas mãos tão bem entrelaçadas — Acabou capotando no sofá.
Franzi o cenho.
— Sério? Não lembro de nada disso. — Falei — O que mais eu disse pra você?
— Bem, você disse que eu era o seu príncipe encantado, que teríamos sete filhos e que meus olhos são a coisa mais linda que você viu. Não necessariamente nessa ordem. — Zombou ele.
Senti meu estômago embrulhar, como se ele tivesse dito uma verdade e jogado bem no meio da minha cara e lhe empurrei para o lado, rindo nervosa.
— Idiota. — Murmurei — Dá até vontade de desistir do segurança só para mexer com sua cabeça.
— Ah, graças a Deus você vai ficar com o segurança. — Ele relaxou os ombros — Minha úlcera agradece.
Voltei minha atenção para comida recém feita e cheirosa da minha frente. Se aquela fartura se repetia todos os dias provavelmente eu engordaria três quilos nas próximas duas semanas.
— Já tem um plano para hoje? — Indaguei enquanto me servia.
— Vou te levar a Coral, te pegar no horário de almoço para falar com os advogados e meu detetive particular vai aparecer aqui em casa às sete, mas você vai voltar com o Nelson, seu novo motorista. — Ele pensou um pouco — Talvez eu chegue tarde, então você vai ter que deixar de molho o detetive por um tempo. Peter costuma ser bem simpático, não acho que você vai ter problemas com isso.
— Quem é Peter?
— Peter Bane, o detetive. — Explicou.
— Hm. — Murmurei limpando minha boca com o guardanapo — E os advogados? Talvez eu os conheça.
— Você provavelmente conhece. Harvey Specter e Mike Ross?
Arregalei os olhos.
— Uau, estou impressionada. — Comentei — Vou até trocar de roupa, pois tenho que estar apresentável diante de Mike Ross.
me olhou com a maior cara de tédio.
— Haha, engraçado.
Levantou-se e deu o último gole em seu café.
— Vou pegar minhas coisas e já desço.
Assenti e observei-o andar calmamente para fora do meu campo de visão.
Soltei um suspiro involuntariamente tentando entender aquela sensação que sentia quando estava com o . Só sabia que eu meio que gostava um pouco demais daquele engomadinho.
Capítulo 14
“Mas qual é a sensação de fingir que eu não sou real? Quando a distância simplesmente não é ideal basta abrir os olhos um dia de cada vez e eu estarei mais próxima de estar perto de você.” - Next To You, Peacekeeper
Na primeira vez que conheci a Coral fiquei de boca aberta com a estrutura dos prédios dos bairros comerciais. Sempre imaginei que esse tipo de escritório era diretamente ligado a fábrica — um engano meu. Se não soubesse dificilmente diria que aquela estrutura pertencia a uma empresa de artigos escolares.
Eu pude ter uma sensação parecida ao conhecer o prédio de Specter+Litt. Era uma fortaleza que esbanjava poder e confiança, exatamente o que se esperava de uma advocacia.
Subi as escadas até a entrada quase tropeçando por olhar demais para cima. Pedi informação para um dos engravatados e peguei um elevador vazio. Tocava uma música de Donald Stark, então, relaxei os ombros e suspirei. No espelho do cubículo arrumei meu cabelo e desamassei a roupa com as mãos.
Assim que saí, virei para o lado e encarei a fachada luxuosa por alguns segundos. Ao voltar para o mundo real fui andando até a recepção e encontrei esperando pacientemente por mim.
— Não precisa ficar nervosa. — Advertiu com um sorriso.
— Estou tentando me convencer disso vai fazer trinta minutos. — Repliquei e ele soltou um risinho.
— E olha que nem chegou a fazer o depoimento ainda. — Comentou segurando-me pelo ombro e empurrando-me levemente para a direita — Mike e Harvey farão você se sentir mais à vontade.
Se não fosse o calor da sua mão tocando em meu ombro e a familiaridade que ele se aproximou de mim, eu teria demorado bem menos para perder todo o sangue do meu rosto.
— Depoimento? Qu-e q-ue…? — engoli o seco — Que depoimento?
Entretanto não tive o prazer de ouvir sua resposta. Rapidamente fomos interceptados por um homem gordinho, careca e de olhos castanhos claros; ele sorriu para nós e estendeu a mão para .
— Sejam bem-vindos. — Desejou ele com o olhar alternando entre eu e meu destinado.
Seus dentes lembravam um roedor e rapidamente o assemelhei a um hamster. Ele era vagamente familiar, mas não tinha ideia de onde eu havia lhe visto.
Eu o vi abrir a boca para se apresentar quando Mike Ross apareceu do nada apertando a mão de .
— Bom vê-lo, senhor . Harvey o espera em sua sala.
Ele apenas assentiu em resposta e fui surpreendida ao ser alvo dos olhos azuis do advogado voltado para mim.
— Você deve ser . — Ele estendeu sua mão em cumprimento — É um prazer finalmente conhecê-la.
Mike era um pouco mais gordinho do que me lembrava, mas continuava sendo muito bonito. Ele aparentava ser bem jovem e sua simpatia me conquistou de primeira; parecendo um pouco mais complacente que o costume, apertei sua mão.
— O prazer é todo o meu.
Alguém coçou a garganta e nós dois viramos à procura do som. O homem desconhecido, que falara conosco antes, fizera o barulho requerendo a atenção para ele.
— Caso precise da minha ajuda é só contatar minha secretária Norma. — Ele pôs a mão no ombro de — Estou à sua disposição, Pequeno .
Quase pude tatear o sentimento de desespero que cruzou os olhos de Mike quando meu destinado virou-se para o homem hamster. Ross começou a passar a mão pelo pescoço sinalizando um enforcamento.
— Qual é o seu nome mesmo? — Indagou de forma brusca.
— Louis Litt, senhor. — Respondeu prontamente.
— Então, senhor Litt, acho que não há nenhum motivo para me chamar por esse apelido quando eu já sou um homem feito. — Falou com sua frieza particular — Se possível, não me chame desse jeito.
O homem, que descobri ser Louis Litt, ficou vermelho como um pimentão e parecia congelar qualquer um que cruzasse com o seu olhar.
Nota para mim mesma: em hipótese alguma chame de Pequeno a não ser que queira irritá-lo.
Pigarreando para disfarçar uma risada, Ross nos pediu para acompanhá-lo. Meu destinado parecia um pavão de tão pomposo e não direcionou sequer olhar de desprezo para Louis Litt. Eu nunca tinha o visto agir desse jeito com ninguém a não ser e me indaguei se havia algo por trás daquele apelido que provavelmente a imprensa colocou nele.
Mike abriu a porta para que nós dois passássemos e murmurei um agradecimento. Assim que pus os pés na sala, Harvey Specter se levantou e abotoou seu terno.
— Excelência! Sempre no horário certo. — cumprimentou com um aperto de mão.
— Eu nunca chego no horário certo, Harvey, mas aceito o elogio ainda assim. — Respondeu dando um sorriso cúmplice.
A sala estava preenchida pelos dois homens com sua presença marcante. Harvey carregava uma arrogância que identifiquei em momentos antes e o seu penteado para trás era impecável. Specter não tinha a beleza padrão de Mike, mas deliberadamente ganhava no charme.
— E você deve ser quem vai nos deixar milionários. — Brincou ele ao apertar minha mão.
— Eu não prometo nada. — Falei sorrindo.
Nos acomodamos no sofá e sentei do jeito que eu apelidara carinhosamente de “secretária-de-um-diretor-executivo”, só que menos acanhada.
— Sinto muito pela sua perda, senhorita . — Disse Mike.
Agradeci baixinho tentando não pensar em quão difíceis foram as últimas semanas. Era uma benção eu estar inteira até o presente momento.
— já nos falou sobre o ocorrido de ontem. — Explicou Havey sentando em sua cadeira e entregando uma pasta de cor azul ao — Precisamos fazer um boletim de ocorrência hoje mesmo.
— Eu entreguei o caso ao Detetive Bane. — Comentou meu destinado.
Ele estava com o pé esquerdo apoiado no joelho direito, uma posição de puro relaxamento. Sua testa estava franzida enquanto lia aquelas palavras que dificilmente eu entenderia.
— Não conheço o Detetive Bane. — Falou Mike colocando a mão no bolso — É alguém novo?
balançou a cabeça.
— Ele é de Missouri e é um detetive normal, apesar de ter o incrível dom de não se corromper como a nossa polícia geral. — Explicou e levantou a cabeça em direção a Specter — Houve um tiroteio na noite passada e eles podem transformar todas essas informações em nada, Harvey.
— Traficantes não ficam preocupados em vandalizar bens de cidadãos comuns, . — Disse Specter com displicência — Eles matam quando querem que alguém fique calado e não fazem brincadeira de mau gosto típico de trotes de universidade.
— E você acha que esse argumento vai convencer o juiz que a empresa deve ser impedida imediatamente de ser contratada pelo estado?
Harvey olhou para ele com a testa franzida.
— Pensei que a ideia era conseguir um acordo.
— Desisti. — respondeu limpando a poeira inexistente da sua calça. — Quero que vá a julgamento.
Harvey e Mike trocaram um olhar temeroso e automaticamente o ar ficou pesado.
— Hã... — Falei chamando atenção para mim — Não faço ideia do que vocês estão falando.
Mike riu e explicou vagamente o que acontecia: eles estavam processando a companhia de imóveis por cobrar o preço de aluguel mais do que a lei permitia. Descobri que, pela lei que dividiu a sociedade em Alas, eu deveria pagar quase metade do que eu pagava por causa da minha renda. acrescentou que a empresa já havia sido denunciada outras sete vezes, mas todas foram ignoradas, vetadas ou negociadas por preços baixíssimos, não cobrindo o prejuízo todo.
Harvey aconselhou que fizéssemos um acordo e garantiu com ar de insolência que conseguiria o triplo do que eles deviam a mim. , no entanto, disse que eu sentiria-me mais justiçada se levassem a julgamento e colocasse na mídia sobre o caso. Mike citou que precisaria das minhas contas antigas para ter certeza do valor mínimo que deveria ser pago.
Foi então que eu percebi que o ato de pura maldade e vandalismo do dia anterior tinha uma finalidade: os documentos solicitados sumiram.
Eu não tinha certeza, é claro. Eu tinha que ir em casa para averiguar tudo; entretanto, a salvação era que todos os boletos estavam no meio do meu email com todas as informações necessárias para processá-los ainda assim.
— Amanhã faremos a gravação do depoimento junto com os advogados da empresa. — Avisou Harvey — Não há muito mistério nisso, apenas responda com respostas curtas, firmeza e confiança. Qualquer problema nós intervimos.
— Hm, está certo. — Respondi incerta. — Vocês disseram que…
Fui interrompida pelo toque padrão do celular de alguém e olhei feio para quando vi que era ele quem atendia o telefone. Seu rosto estava iluminado como fogos de Quatro de Julho ao ver o nome de quem ligava e atrapalhava meu raciocínio.
— Preciso atender a essa ligação. — Explicou .
Os advogados apenas assentiram e apertei os lábios um contra o outro nervosa ao vê-lo me deixar sozinha em um ambiente desconhecido por mim. Desde que tínhamos chegado, estava tão distante que dificilmente diria que era o mesmo homem que havia me convencido a morar na sua casa pela minha segurança.
Pigarreei assim que a porta de vidro foi fechada.
— Então… Vocês disseram que outras pessoas tiveram consequências ou algo assim. — Comentei confusa — Elas sofreram ameaças?
Mike trocou um rápido olhar com Harvey antes de falar.
— Há alguns registros de queixas, mas a maioria foi ignorada por vir de Alas menores ou outros fatores. O caso mais grave foi a de possível morte de um dos irmãos de alguém da Ala M. — Explicou ele — Foi assassinado a queima roupa, porém havia droga nos bolsos da vítima e o juiz entendeu a morte como dívida com traficantes, então, não envolveram com o processo.
— A verdade é que isso seria resolvido se eles pudessem pagar um advogado melhor. — Acrescentou Harvey e eu tive a leve impressão que com “advogado melhor” ele quis dizer “eu”.
— Não precisa ficar preocupada com isso, está tudo sob controle. — Acalmou-me — nos informou que um segurança a acompanha e isso é muito bom.
— Você está morando com ele, não é? — Perguntou Specter com a testa franzida — Suponho que não foi uma mudança difícil, você o faria uma hora ou outra.
— Mas nós não… — os olhei com uma careta confusa — OK, não é porque somos destinados que significa que estamos juntos.
Quem olhou para mim mais confuso ainda foi Mike.
— Não?
— Bem, não estamos aqui para discutir isso, certo? — Interrompeu Harvey — Gostaria de saber qual é o seu posicionamento em relação a fazer um acordo ou levar o caso a julgamento. pode ter entrado com o processo, mas ele continua com o seu nome, não é verdade?
Balancei a cabeça devagar tentando saber onde ele queria chegar com aquilo.
— Talvez você queira adicionar algumas outras pessoas injustiçadas da Ala O para o processo. — Sugeriu Mike levemente alterado pelo senso de justiça.
Seu parceiro, entretanto, o olhou como se ele tivesse dito algo estúpido.
Pensei em Jean e em tantos outros dos meus vizinhos que, como eu, foram assediados por todos aqueles anos por Adolf. Não me admirava que meu pai havia lhe dado um soco bem na fuça — infelizmente eu era pequena demais para lembrar dessa cena; desde então ele parecia pegar no meu pé um pouco mais, contudo nunca baixei a cabeça.
Ele que voltasse para o inferno em que nasceu, eu não tinha nada a ver com uma rixa antiga.
Se eu não tivesse sido informada antes sobre o que aconteceu com pessoas que os processaram antes não hesitaria em tentar juntar o número máximo de membros da Ala O, entretanto eu havia experimentado do veneno deles. Pensar que eles não estarão protegidos enquanto eu teria um segurança particular e viveria como uma princesa na Ala A, me alertava que colocá-los em risco seria uma atitude no mínimo egoísta.
Apertei os dedos contra minha palma.
— O que acha que devo fazer? — Indaguei olhando diretamente ao Harvey.
Apesar de simpatizar mais com Ross, o chefe dele me parecia bem mais sensato e racional. Talvez aquela era a fachada que ele queria me passar, mas, bem, eu iria comprá-la de qualquer maneira.
Harvey apertou os lábios ponderando um pouco sobre o assunto e deixou sua cabeça cair um pouco para esquerda. Eu lembrava de vê-lo fazer a mesma coisa em um vídeo de julgamento famoso na TV. Uma mania típica dele.
— Eu tentaria um acordo e se eles insistissem em tentar me atingir, levaria o caso até o julgamento e tiraria cada centavo deles. — Specter relaxou-se em sua cadeira. — Isso é o que eu faria.
Sorri gostando do seu plano.
Depois de ouvir algumas orientações sobre o depoimento que eu daria no dia seguinte, finalizamos aquela reunião antes que terminasse a tal ligação. Assim que saímos o vi em um canto ao longe rindo de algo que alguém falava do outro lado da linha.
Não pude evitar sentir uma queimação no peito e ficar curiosa com quem ele conversava tão animado. Todavia eu percebia a infantilidade que era sentir isso, então, transformei minha careta em um sorriso simpático para a secretária ruiva de Harvey.
— Olá, senhorita . — Falou ela formalmente — Aqui está a licença que você entregará ao seu chefe para que não haja problemas com sua saída na hora do depoimento.
Agradeci e ela sorriu para mim em resposta.
— Oi, Donna. — Cumprimentou Mike apoiando-se nas paredes de seu cubículo.
Donna, entretanto, nem direcionou o seu olhar para ele enquanto fingia digitar algo no computador.
— Não vou ajudá-lo, Mike.
Ele deixou os ombros caírem desistindo antes de tentar.
— Mas...
— Rachel é minha amiga, Mike. Eu sempre vou ficar do lado dela, você já deveria saber disso.
— Mas…
— Não.
Ele ponderou por um segundo.
— E se eu lhe oferecer dois ingressos para O Mágico de Oz na Broadway nesse final de semana? — Perguntou ele com a sobrancelha arqueada.
Donna parou de digitar de súbito e virou-se lentamente em sua direção com um sorriso esperto.
— Os primeiros bancos?
— B14 e 15, do jeito que você gosta. — Ele mostrou os ingressos tirados do bolso de seu terno.
— Agora podemos conversar.
Sentindo que talvez estava atrapalhando algo, andei devagarinho até e não percebi que Harvey me acompanhava. desligou o celular rapidamente e direcionou o olhar a Specter.
— E então? O que foi resolvido?
— Saberemos o que fazer após o depoimento de amanhã, Excelência. — Respondeu Harvey abotoando seu terno — Sua destinada está em boas mãos.
Ele olhou para mim rapidamente e depois virou-se para o advogado.
— Vai fazer isso mesmo?
Specter deixou um sorriso ladino e confiante, beirando a arrogância, disse da forma que descobri na nossa reunião ser o selo Harvey Specter de ser.
— Pode apostar que vou.
…
Se fosse um mês e meio atrás ficaria feliz se me ignorasse deliberadamente. Ele sempre me intrigou e fazia nós na minha cabeça que não me interessavam, mas àquela altura já estávamos no mesmo barco e não entendi porque ele estava tão silencioso.
Estar dentro do elevador com digitando loucamente no celular sem dirigir um olhar para mim me deu uma agonia terrível. Nem a música de Donald Stark que tocava no cubículo me acalmava.
— OK. — Falei decidida — O que diabos está acontecendo?
— Hm? — Resmungou levantando a cabeça — O que você disse?
— Você ainda está chateado comigo? Sei que eu disse besteira, mas não precisa agir como se não me conhecesse.
franziu a testa confuso.
— Ainda não entendi o que você está falando. — Ele respondeu.
Revirei os olhos impaciente.
— Deixa quieto. — Comentei e cruzei os braços emburrada.
— , pelo amor de Deus, apenas repita o que você disse. — Replicou guardando o celular no bolso.
— Você ainda está pensando no que aconteceu ontem? — Indaguei tentando conter uma pequena irritação.
— Nada, é só que… — Ele suspirou — É complicado, entende? Estou meio atolado com as coisas do trabalho e não sei se poderei dar o apoio que você precisa para esse caso.
Deixei os ombros caírem de alívio.
— Então por que não me disse? Eu só queria ter me preparado um pouco mais. Nem sei o nome da empresa que estamos processando.
Ele riu.
— Acredita que eu também não? É uma corporativa recheada de nomes que vou criar uma sigla para facilitar. — pôs a mão no bolso da calça — Quando eu atuava como advogado costumava colocar um apelido nos meus “inimigos”: Super Shock, Funk Gourmet e etc.
— Posso chamar Adolf de Hitler? — Indaguei animada — Ele já tem o primeiro nome.
soltou uma risada.
— Acho que você já pegou a alma dos apelidos: se não ofende não tem graça.
A porta do elevador abriu e relembrou que não iria estar em casa cedo e que eu teria que lidar sozinha com o detetive.
— Ele é muito mais fácil enfrentar do que Specter e Ross, acredite em mim. — Garantiu ele assim que chegamos na recepção. — Bäumler está lhe esperando lá fora?
— Se você está falando do meu segurança, é ele mesmo. Que nome difícil de pronunciar! Só podia ser alemão. — Comentei.
Com um sorrisinho contido, me olhou como se estivesse idealizando algo — quase pude escutar seu cérebro maquinando.
— O que foi? — Indaguei curiosa.
— Você ainda vai aprender a falar alemão.
Olhei pra ele como se um chifre tivesse aparecido em sua testa.
— Nem a pau.
Ele se aproximou de mim charmosamente e falou alguma coisa em germânico. Sua
voz soava mais grave e pesada, quase autoritária.
— Legal, entendi foi nada.
Mais uma vez me deu um dos seus sorrisos arrebatadores e acariciou minha bochecha como por reflexo. Aconteceu em apenas dois segundos e mesmo assim conseguia sentir seu toque desenhado em minha pele.
— Assim que você aprender alemão você entenderá. — Ele piscou e deu um passo para trás — Preciso ir, . Te vejo de noite?
— Ah.. Sim, sim, com certeza. — Respondi atordoada.
Fiquei olhando-o andar em direção a Carlos — que, para variar, tinha aparecido do nada — até que meu segurança apareceu. O homem era alto, tinha os cabelos castanhos e olhos verdes; o nariz dele era um pouco deformado e pude imaginar quantas vezes ele deve ter levado socos. Tentei manter uma conversa razoável com ele, mas suas respostas eram evasivas demais e acabei desistindo.
Faltando apenas meia hora para o fim do expediente, Carter ligou para mim em um tom irritado. No dia seguinte começaria uma seleção de estagiários e o irmão de meu chefe tecnicamente iria participar. Apesar dele ter o emprego garantido por indicação, ele não enviou nenhuma informação, nem mesmo um currículo para o RH. Meu dever era irritar Bryan Carter o bastante até que ele enviasse os documentos necessário para entrevista na manhã seguinte.
Pausa.
Com um clique minha mente lembrou-se da conversa que eu tivera no último final de semana com , dois dias atrás — exatamente quando ele falou sobre seu irmão gêmeo. Acredito que eu estava em uma situação desesperadora e queria tanto que ele estivesse dizendo a verdade que não parei para pensar que talvez aquilo fosse mentira.
Abri uma segunda aba no navegador e comecei minha pesquisa enquanto esperava Brian atender o telefone. A primeira coisa que pesquisei foi “Família ” esperando encontrar ao menos uma imagem velha em que estivesse ao lado do irmão, entretanto apenas achei algumas em que ele estava ao lado dos pais sozinho em festas claramente formais. Apesar de parecer mais novo nas fotos, seu sorriso era superficialmente iguais. Demorei um pouco analisando e procurando alguma diferença com o que eu vi mais cedo, porém não havia uma. Ao jogar na busca “Irmão de ” os resultados eram mais escassos. Tudo que o Google achava era algo sobre um caso que ele julgara ou até um julgamento de quase sete anos atrás em que saiu sua fama. Só quando investiguei pelo nome “Pequeno ” encontrei alguma coisa.
Conforme fui buscando percebi que a discrição era algo de família. Desde o começo da carreira política, Aitofel esteve poucas vezes ao lado dos parentes além de seus irmãos — que descobrir ser o número de nove — e esposa. A mulher, que eu acreditava ser mãe de , era muito bonita e extremamente simpática. Apesar de ter um corpo roliço considerado fora de moda, era mais elegante que muitas esposas de empresários por aí; a foto que me interessou era protagonizada por ela. Havia um mar de meninos e meninas loiros ao seu lado e logo entendi sendo os sobrinhos de Aitofel. Eles tinham uma aparência similar o bastante para você deduzir até que eram todos irmãos, mas dois meninos; um que agarrava seu pescoço e outro que apenas tocava seu ombro parecia com toda certeza figurinhas repetidas.
Tentei, em vão, não pensar que talvez fosse a má qualidade da foto e a ideia de que todas aquelas crianças eram idênticas.
Aquilo, no entanto, me encheu de mais perguntas do que as respondeu: por que, então, o irmão de estava desaparecido? Quer dizer: ele não estava desaparecido de verdade, não era? Por que ele vivia no anonimato? Qual era o mistério que os Hoyers escondiam?
Mesmo com a internet chula do 3G, fiquei pesquisando mais sobre enquanto voltava para casa de . Entrei na cozinha distraída em imagens de meu destinado ainda criança, com cinco ou sete anos, em salões de festa. Inclusive achei alguns vídeos em que ele falava uma coisa engraçada e fofa para os jornalistas; dai lhe apelidaram de Pequeno .
Então, como em um passe de mágica e ofuscado pelas obras do pai, parou de aparecer nos tablóides. Na época em que o seu pai se tornou governador, por exemplo, ele deveria estar mais ou menos na faculdade e não havia nenhuma informação sobre seu paradeiro ou sua posição em relação a candidatura do pai.
— Opa! Cuidado aí, moça! — Exclamou Rose quando, sem querer, esbarrei em uma cadeira que estava perto da ilha.
Com a face vermelha pedi desculpa.
— Esse pessoal jovem de hoje em dia só vive pendurado nesses smartphones. — Comentou ela enquanto desligava uma das bocas do fogão.
— Ah, mas você nem é tão velha assim. — Respondi sentando-me na ilha.
— Obrigada. — Agradeceu pomposa arrumando a touca branca na cabeça — O que via que a fez ficar tão distraída? Se é que eu posso perguntar.
— Nada muito importante. — Desconversei.
Ela deu os ombros virando as costas para mim.
— Se você diz eu acredito. — Murmurou — Estou fazendo lasanha pro policial já que você não me disse ainda o que gosta.
— Policial? — Franzi o cenho — Detetive Bane?
Ela balançou a cabeça concordando.
— Está quase pronta, na verdade. Ele sempre pede quando vem aqui, o xereta.— Falou em tom de brincadeira — É raro senhor trazer amigos, entende? Quando vem alguém da família dele. No dia a dia minha comida fica ao léu pros ratos e baratas, nem cachorros aqui tem!
— Ele não recebe visitas da família? — Perguntei interessada — Nem mesmo o irmão?
Rose franziu o cenho e pôs as mãos na cintura.
— Eu nunca vi esse irmão dele e olha que trabalho pra faz quase sete anos, . — Respondeu com veemência — Na verdade nem sei se ele tem.
Fiz minha melhor cara de confusão.
— Oras, por quê?
Ela soltou um suspiro.
— É que ele mal fala da família e eles não parecem ligar muito pra ele, não sei. Quer dizer, os primos do senhor aparecem de vez em quando e…
De repente o som da campainha preencheu todo cômodo com um estrondo. A TV que estava em um canal qualquer de culinária logo se transformou em uma imagem de um carro preto em frente à casa.
— Aqui é Detetive Peter Bane. Vim a mando de . — O barítono ressoou na televisão.
— Sim, senhor Bane. — Respondeu uma voz masculina — Seja bem-vindo.
Então demorou-se alguns segundos para que os portões se abrissem e ele passasse tranquilamente. Logo depois voltou-se para o canal anterior.
— Como funciona isso? — Indaguei curiosa.
— Quando apertam a campainha o som pode ser escutado na casa toda. Em todos os cômodos que tem televisão aparece as imagens de quem está lá fora. — Explicou e apontou para o interfone no canto da parede abaixo ao armário. — Caso você queira barrar a entrada de quem quer que seja é só falar com o segurança.
Balancei a cabeça assentindo e comecei a reparar mais uma vez na grandiosidade do cômodo que eu estava. Os eletrodomésticos eram das cores cinza e preto; por outro lado o resto da decoração da cozinha era amarelada e bem desenhada dando um ar antigo e vitoriano. Na verdade, toda a casa tinha seu ar de que fora modernizado com o tempo.
— Rose, mi preciosa. — Exclamou Peter ao entrar na cozinha.
Ele a abraçou rapidamente e beijou-lhe a face. Vermelha e sem graça, a mulher deu tapinhas no seu braço para que ele afastasse.
— Eu sou casada, detetive, tenha um pouco de respeito.
— Infelizmente não tive a sorte de ganhá-la como destinada. — Falou ele dramaticamente — Quem sabe na outra reencarnação?
Ela pigarreou e olhou para mim.
— Essa é . — Apresentou-me para ele — Esse garoto insolente é o detetive Peter Bane.
O homem sorriu para mim e pude perceber covinhas características, quando ele mexia o rosto ficavam elas mais evidentes lhe dando um ar cativante. Peter tinha uma beleza clássica vinda de olhos e cabelos castanhos escuros e o maxilar quadrado; e com toda certeza sua facilidade de sorrir para uma desconhecida me ganhou de primeira.
— Prazer em conhecê-la, senhorita — Cumprimentou-me estendendo a mão em minha direção — Sinto muito pelo que aconteceu.
Agradeci mecanicamente e ele sentou-se na ilha ao meu lado no mesmo lugar em que estava na manhã daquele dia.
— Deus, eu odeio o inverno! Você viu que tem previsão para nevar no próximo final de semana? — Comentou ele tirando o casaco de musseline — Só pra me fazer sair de casa em um dia desse.
— Não está morando em Missouri mais? — Perguntou Rose confusa.
— Estou sim, mas vim visitar um amigo. — Explicou e virou-se pra mim. — Você nasceu aqui?
— Ah, sim. Sempre morei nessa cidade maravilhosa. — Respondi com um sorriso.
— Chegou a visitar Kansas City? — Perguntou ele sem pretensão de ir direto ao assunto.
Era estranho manter uma conversa tão informal com o desconhecido depois de tanto tempo — sentia que tinha desaprendido a arte da comunicação. Ainda tinha o fato de que Peter parecia muito mais confortável naquela casa que eu. Me vi soltando risadas com o detetive e antes que eu percebesse estava falando sobre a morte da minha mãe e minha casa vandalizada. Descobri também que Bane não trabalhava exclusivamente como detetive particular e só fazia trabalhos assim para .
— Ter alguém como lhe devendo favores é uma benção. — Falou enquanto nós dois saboreávamos a lasanha de Rose.
Devo acrescentar que estava uma delícia.
Bane trouxe o laptop e fez o boletim de ocorrência pela internet. Percebi que ele era um homem muito dinâmico e que gostava de jogar conversa fora. Seus trejeitos eram repletos de charme, como um líder fácil de contatar, e fiquei me perguntando de onde tirara aquele amigo tão diferente dele.
O detetive, no entanto, tinha a mesma cautela de não falar muito sobre si como . Provavelmente foi a discrição que os fizera amigos no passado. Carlos apareceu avisando que estava a caminho com outros seguranças, pois decidira dirigir para seja lá onde foi e nos despedimos de Rose. Apesar de não ser maior fã de estar em um ambiente sozinha com um estranho, não vi nada ameaçador nele — muito pelo contrário. Confiava no detetive o bastante para fazer as perguntas que culminaram minha mente.
— Você conhece o irmão de ? — Indaguei sem nenhuma cerimônia.
— Não conheço. — Replico enquanto digitava algo no teclado — O máximo que cheguei a conhecer da família dele foi o pai na TV e a ex esposa dele.
— Como ela era? Digo, a ex-esposa.
Peter levantou uma sobrancelha.
— Não vou lhe responder isso. Nem devia ter citado ela, para começo de conversa.
— Ah, que besteira. — balancei as mãos em desdém — Eu e não temos nada.
— Mas você é a destinada dele.
OK, todo mundo sabia que éramos destinados? E aquele papo todo de manter em segredo?
— Isso não significa que estamos juntos.
— Mas vocês vão ficar juntos. — Rebateu ele solene. — Se você quiser ver alguma coisa sobre ela pesquise na internet.
— Como você pode ter certeza que ficaremos juntos?
E como se tivesse sido invocado, apareceu segurando o casaco do terno no ombro. Ele tinha uma presença tão naturalmente encantadora que me vi observando seu ar cansado. andou devagar, mexeu o relógio de seu pulso e passou os dedos entre seus cabelos; então, ele olhou para mim e sorriu. Era aquele sorrisinho de lado, despreocupado e incrivelmente charmoso.
— Oi. — murmurou.
— Olá. — respondi envolvida naquela névoa vinda do meu destinado.
— Também é ótimo revê-lo depois de dois anos, . — Falou Peter chamando atenção para ele — E você acabou de ter a prova que você queria, .
me olhou perdido.
— Seu amigo é louco. — Disse tentando em vão evitar que meu rosto ficasse vermelho pela enésima vez naquele dia.
Ele deu os ombros e deixou o terno em cima da ilha. Olhei para um relógio que dava a impressão que se mexia na parede e arregalei os olhos ao ver que eram quase nove horas.
— Já está tarde! — comentei — Você comeu alguma coisa, ? Sobrou lasanha ainda.
Ele fez uma careta para o prato.
— Estou meio enjoado, então eu passo. — Dispensou a comida sem cerimônia — Vamos até meu escritório.
Sendo Bane mais alto que , o mesmo passou o braço pelo pescoço dele em um abraço meio bruto respondendo a chamada do amigo.
— Quero saber o que diabos você fez para convencer Capitão Pollack de me deixar sair do meio do país para resolver um caso que um policial de esquina faria em meia hora. — Disse Peter em tom de brincadeira.
deu uma risada e pude o ver mais relaxado do que o habitual.
— O sobrenome abre portas, Bane. — Falou lhe empurrando para que o soltasse — Você, mais do que ninguém, já devia saber disso.
Não escutei o resto da conversa, pois estava procurando meu celular no meio de pratos, copos e terno de . O encontrei debaixo de seu casaco, mas parei subitamente quando vi um papelzinho saindo do bolso da frente. Eu não costumava ser intrometida, mas minha curiosidade falou mais alto. O papel era pequeno e era claramente uma nota fiscal e tinha sido tirada às seis da noite.
Era do estacionamento do Hospital Lenox Hill.
...
Peter não ficou muito tempo depois que chegou. Assinei algumas papeladas e conversamos mais um pouco antes dele se despedir.
— Tudo que você precisa está na pasta que eu trouxe. — Avisou Bane a meu destinado — Inclusive já tenho acesso as imagens da rua na noite do crime, mas elas estão péssimas. Preciso de mais tempo para analisá-las.
— Lhe dou todo o tempo do mundo desde que ele seja até o julgamento. — Respondeu .
— Eu ainda não decidi se vamos a julgamento. — Rebati.
se acomodou em sua poltrona aparentemente muito cara e confortável.
— Quando você conhecer os advogados da P.A.F.E.R. duvido que pense em outra coisa. — Respondeu ele com uma piscadela logo em seguida.
O detetive mexia constantemente em seu colar de cruz e alternava seu olhar entre nós dois como se fossemos algo interessantíssimo de analisar.
Voltei a ter as perguntas não saciadas gritando na minha mente; eu precisava conhecer aquele homem de verdade e não só aquilo que ele queria que eu visse. Eu precisava confiar inteiramente em se iríamos morar na mesma casa.
Nós despedimos de Peter no elevador para a garagem. Agradeci pelo seu trabalho e fiquei feliz por ter o conhecido; ele foi o mais simpático possível e me abraçou como de quem selava uma amizade.
Tenha paciência. Ele é um bom homem, Bane sussurrou.
Pensei em puxar conversa com e tentar descobrir um pouco mais sobre ele, mas o mesmo disse que precisava de um banho urgentemente. Percebi que precisava de um também e fui até meu quarto.
Era tarde quando deitei na cama e fiquei encarando o teto. Ele era bem trabalhado e luxuoso como o resto da casa. Embora sentisse o corpo relaxado, a minha mente ainda trabalhava a mil por hora. Aquele dia tinha sido pesado e só de lembrar que eu tinha um depoimento a fazer na manhã seguinte a barriga embrulhava.
Pus as mãos no rosto e fechei os olhos tentando calar meus pensamentos. Desliguei as luzes e tentei dormir, sem sucesso. Sentia minha cabeça pesada, mas liguei a televisão para assistir a reprise de The Young and The Restless. Quando o programa acabou, me vi ainda com insônia.
Algo me dizia que apesar de ter dormido facilmente no dia anterior não estava acostumada com aquela casa. O silêncio sepulcral me dava nos nervos — a rua e a mansão eram calmas demais.
Era uma da manhã quando escutei um som baixíssimo de saxofone; no começo achei que era algo da minha cabeça, porém, mesmo sendo longe, o barulhinho podia ser facilmente identificado.
Mesmo eu tendo consciência que poderia ser algo vindo da rua, desci da cama para verificar. Assim que toquei o chão a temperatura advinda da madrugada congelou meus pés. Embora usasse meias e minha cama tivesse um aquecedor estava muito frio. Quase desisto de sair perambulando pela mansão quando descobri pelo meu celular que estava fazendo dez graus celsius lá fora.
Havia apenas uma lâmpada bem fraquinha ligada no corredor. Cruzei os braços assim que minha pele sentiu a diferença do clima — o aquecedor no lado de fora dos quartos era menos forte, obviamente.
O som ficou parcialmente mais alto, entretanto não o bastante para ser considerado um ruído irritante; tinha a vaga impressão que ele vinha de cima. Com passos de gato me direcionei ao segundo andar. Assim que cheguei no corredor o som do saxofone ficou mais nítido. Não lembrava o nome, mas tinha certeza que era a mesma música que tocava no elevador da Louis+Litt. A melodia vinha do único cômodo de porta aberta e fui até lá curiosa; mas o que eu vi quase me fez soltar um grito de empolgação.
Ai meu Jesus Cristinho.
Socorro, vou gritar.
Se estivéssemos em um desenho animado uns coraçõezinhos sairiam da minha cabeça ao ver tocando saxofone de olhos fechados. Ele estava com uma das pernas apoiada no braço de uma das poltronas e com os olhos fechados. Os dedos não se enrolavam em tocar o instrumento musical dourado — era claro que ele tinha muita habilidade no que fazia.
O cômodo que estávamos tinha paredes estofadas e logo deduzi que só escutei o som do sax pois a porta estava aberta. Havia uma coleção de violões, guitarras, um aparelho de vinil e de som, teclado, pedestais para partituras e uma coleção de cds e disco de vinil.
Será que havia alguma coisa dentro daquela casa que não gritasse SOU BILIONÁRIO?
Em contrapartida não me detive na decoração da sala de música e sim no dono dela. usava meias, calça moletom e um casaco branco de malha — o cabelo bagunçado lhe deu um charme a mais.
Quando ele terminou a música abriu os olhos devagar e virou-se para mim com o descuido de quem esperava estar sozinho. Embora eu quisesse romantizar a cena, o que aconteceu de verdade foi que saltou de susto para trás e disse algo em alemão (tenho noventa e nove por cento de certeza que era um palavrão).
— Sheisse! Você quase me matou de susto! — Ele pôs a mão no peito exasperado.
— Perdão. — Falei apesar de parecer animada demais para alguém que estava se desculpando.
respirou fundo.
— Lhe acordei? Nem fazia ideia que deixei a porta aberta. Supostamente essa sala deveria ser à prova de som.
Balancei a cabeça negando.
— Eu só não conseguia dormir.
— Parece que estamos no mesmo barco.
Entrei sentando em um sofá vintage com uma colcha branca, embaixo de alguns pôsteres de bandas antigas. The Smiths e Radiohead foram as que me chamaram mais atenção.
— Não sabia que tocava sax. — Comentei tentando conter minha animação. — Eu acho lindo.
Ele levantou a sobrancelha interessado.
— Acha é?
— Toca uma pra mim? Por favor! — Implorei com a minha melhor cara pidona.
Ele riu.
— Tudo bem. Vou tocar uma chamada Found Love. É um indie que descobri ser ótimo na versão instrumental.
Enrolei-me na colcha deixada no sofá e fiquei com os olhos vidrados em . Enquanto tocava era claro que estava fora do mundo e da sua órbita natural. As notas saíam com graça e benevolência — ele fechou os olhos, mas eu fiquei atenta a todos seus movimentos. Mesmo que sempre envolvesse o saxofone a algo calmo, Found Love tinha uma melancolia que deixava você com a dorzinha no peito. Talvez eu tenha derramado uma ou duas lágrimas, entretanto se ninguém viu, não aconteceu.
— Uau. — Falei assim que terminou — Isso foi… incrível.
— Obrigado. — Respondeu ele tentando disfarçar o embaraço e as bochechas vermelhas.
— Meus pais diziam que sempre gostei de jazz desde criança. — Puxei assunto — Eles colocavam Donald Stark e eu ficava calminha…
— Espera. — Disse ele sentando-se ao meu lado — Você conhece Donald Stark?
— O saxofonista vampiro que parece que envelhece nunca? Com toda certeza! Você gosta dele?
— Ele só é o músico que deixa Kenny G chupando dedo. — Constatou ele em um puro ato de fanboy.
— Exatamente! — Respondi animada — Qual é a sua favorita do último álbum?
— All I Want in This Moment e Snow Day são as melhores.
— Jump Up é muito mais divertida — Repliquei.
— Sempre preferi as mais emocionais. — Ele deu os ombros — E tem todo o poema da música que acho excepcional.
Franzi o cenho.
— Poema? — Perguntei me enrolando na colcha esquecida. — Que poema?
me explicou que cada música composta por Stark era repleta de significados, embora fosse só um instrumental. Na versão deluxe de vinil do último volume vinha cópias de poesias que ele escrevia ao compor, mesmo suas músicas sendo apenas os arranjos. Depois ele me contou que aprendeu tocar saxofone aos dez anos e que também tocava violão e piano.
— O piano fica na sala de visitas mais de decoração. — Explicou — Venho aqui quando tenho minhas período noites de insônia.
— Você não costuma dormir bem? — Indaguei enquanto tocava com o maior cuidado do mundo a cartela de poemas do último álbum do Donald.
Ele balançou a cabeça negando e começou a procurar alguma partitura em uma de suas pastas.
A essa altura eu já estava sonolenta. Deitei no sofá e comecei a passar as páginas sem lê-las realmente.
— Eu tenho muita dificuldade de entender poesia. Acho que minha cabeça está programada a praticidade. — Comentou .
— Eu gostei dessa — falei ao encontrar a de All I Want In The Moment.
Nossas mãos dadas e entrelaçadas como qualquer alma acalantada a outra Como se estivesse se apresentando ao cais com a certeza de um amor seguro Como um muro derrubado entre nós
Anseio no agora teu corpo suado encontrando paz nos meus lábios Tua pele fazendo delibar-me com o olhar E teu toque firme e delicado que dilata meus poros
Enquanto teu cheiro irradia meus dias E tua voz sussurrada fala-me de amor
E tudo poderia ser possível se tu quiseras Tu és o tudo que eu quero no momento.”
Após recitar o poema, como se estivesse programado nosso sarau particular às duas horas da madrugada, começou a tocar a dita cuja.
Desta vez fechei os olhos com a desculpa mental que estava apenas descansando a visão e deixei-me levar pela canção. Um calor gostoso irradiava por ela quando mergulhei na música e quase pude apalpar os Dós que faziam parte da melodia. Ela era um tanto sensual, mas ao mesmo tempo nostálgica transformando-a diferente das baladas românticas do Jazz.
sendo o músico que tocava a música era um a mais para mim.
Quando All I Want In The Moment foi finalizada eu já estava a beira do sono profundo. O silêncio que se seguiu possuía uma tensão estranha, um clima que pedia para eu ou meu destinado falasse alguma coisa, mas nós preferimos ficar calados com medo de dizer alguma besteira.
Escutei o barulhinho do estofado e o calor humano que perto do meu abdômen me fez teorizar que sentara ali no tapete.
— O que seria tudo que você mais quer no momento, ?
A pergunta pareceu mais séria do que pretendia — e pela entonação da voz confirmei que ele estava sentado perto de mim. Pensei um pouco e, com o resto de forças que me sobrava antes de cair no sono, sussurrei:
— Queria que a vida me desse um tempo. É tudo que eu queria nesse momento. — murmurei — e você?
O tempo que se passou depois da pergunta me fez acreditar que talvez tenha pensado e não dito isso realmente. Não tinha força para repeti-la.
Estava exausta. Meu corpo e minha mente estavam desligando aos poucos e já estava entrando no primeiro sono.
— O que eu mais quero neste momento é te beijar. — Sussurrou quase inaudível.
Assim que ele disse, porém, eu já havia mergulhado no mundo do sonhos e não faço ideia se aquela frase era real ou não.
Capítulo 15
“Quando você está na meia luz não é você que eu vejo. (...) E você pode se livrar disso? Você pode se livrar disso por mim? Quando você está na meia luz eu não gosto da metade que vejo.” - Half Light by BANNERS.
Por causa da rotina acordei às quatro da manhã sentindo meu corpo mole de cansaço; descobri que tinha duas horas para dormir foi uma benção, porém ainda assim não estava descansada o suficiente. Evitei não pensar no que aconteceu na noite anterior, mas o fato de estar debaixo do mesmo teto de não me ajudou muito.
A razão dizia que existia aquela possibilidade de que o desejo de nunca tenha sido dito e a cena que acontecera tenha sido fruto da minha fantasiosa mente.
Não havia certeza de nada, no entanto.
O nervosismo me contornava quando saí do meu quarto arrumada para mais um dia. Eu tinha que gravar um depoimento e mesmo assim a ansiedade não vinha da expectativa de expor os abusos de Adolf, mas sim de olhar para .
Abotoando o único casaco fuleiro que possuía desci as escadas com passos lentos. Eu saberia se o que foi dito era real ou não de acordo com o comportamento de .
— Faz 14 graus lá fora com a sensação térmica de 12. Não pensei que o inverno fosse chegar tão rigoroso.
Foi o comentário de Rose naquela manhã. A mesma usava um suéter verde e sorriu me cumprimentando assim que entrei na cozinha. e mais um par de seguranças — que eu não conhecia — responderam “bom dia” em uníssono. Meu destinado apenas me deu um aceno enquanto bebericava o seu café.
— Você parece nervosa. — Comentou ele segurando seu caneco entre as duas mãos.
— E estou. — repliquei — Isso tudo de depoimento me assusta.
Mentirosa.
Quer dizer, não é como se eu desse depoimentos em que denuncio empreiteiras toda semana, mas meu nervosismo não era por causa disso.
Me dê um sinal que aquilo aconteceu mesmo, por favor.
— Ah, vai dar tudo certo. Só seja firme no que falar e escute as instruções de Harvey. — Me tranquilizou. — Diga a verdade. Toda ela.
Assenti e me sentei ao seu lado para comer o café da manhã.
— Dormiu bem? — Indaguei tentando arrancar alguma informação que me desse ideia se nossa conversa tenha existido ou não.
— Não tanto quanto gostaria, mas você parece que sim. — Respondeu ele com um sorriso. — Antes de terminar de tocar a música já estava babando no sofá.
O mirei indignada.
— Calúnia!
— Foi sim! Na metade do refrão de All I Want In This Moment você já dormia.
— Espera, a gente não conversou depois da música?
Ele olhou para mim com o cenho franzido e negou com a cabeça.
Aquela frase que me perturbava era um sonho. Um sonho!
Com a conclusão do que aconteceu, beirando entre alívio e desapontamento, fui me alimentar.
Rose começou a falar algo sobre fazer compras e acabei pegando seu número para mandar coisas que precisaria que ela comprasse no mercado. A ideia de ter alguém para fazer isso para mim, no entanto, era um pouco desconfortável.
E ainda tinha a estranheza de que minha roupa ia para uma lavanderia chique em vez de ser lavada com sabão em pó de uma marca barata em casa mesmo.
Escutei alguns comentários sobre as notícias da manhã vindas do que assistia ao noticiário atentamente. Ele falava para ninguém em particular do cômodo, entretanto seus seguranças soltavam resmungos de concordância totalmente desleixados. nem parecia querer uma segunda opinião na verdade.
Me levantei ainda com a boca cheia quando fez menção de sair, como por hábito.
— Me espera, quero pegar carona. — Falei inocentemente.
Vi um dos seguranças soltar uma risadinha que foi repreendida por um olhar duro de .
— É só chamar o Bälmer e ele lhe levará à Specter+Litt. — Explicou — Você não precisa de carona para ir a qualquer lugar, . Todos desta casa estão a sua disposição, inclusive os carros e motorista.
— Eu posso dirigir? — Perguntei com os olhos brilhantes.
A perspectiva de pegar no volante outra vez me animava. Fazia tanto tempo que eu tinha a maravilhosa sensação de estar em controle de algo que era provável que eu ficasse andando em círculos em um automóvel apenas para ter certeza que eu o controlava.
— Você dirige? — Ele arqueou a sobrancelha cético.
— Sim e sou uma ótima motorista se quer saber. — Respondi orgulhosa.
— E é? — Falou ainda desacreditado — Você conhece os bairros daqui? Acha que pode ir até à advocacia sem problemas?
— Precisaria do GPS. — repliquei com os ombros encolhidos.
— Tudo bem. — Titubeou um pouco com os dedos nervosos batendo em seus lábios. — Hoje à noite iremos fazer um teste. Apesar de confiar em você, quero ter certeza que não terei prejuízo com nenhum dos meus carros. Agora o Bälmer vai lhe levar, OK?
— Justo. — Disse sem delongas.
— Ótimo. — Ele sorriu como quem faz um bom negócio. — Te vejo mais tarde então?
Balancei a cabeça em concordância e peguei minha bolsa que me acompanhava para cima e para baixo. Ela era preta e não tinha muitos detalhes, entretanto era enorme. Embora fosse cara, foi um investimento que valeu a pena. Mesmo estando meio acabadinha, durou seis longos anos de muito pivô.
— Oh, senhorita — disse Bämler entrando pedindo licença ao em um sotaque carregadíssimo — Está indo agora? Quer que eu pegue seu casaco?
— Não, eu vou com esse daqui mesmo.
Rose, que se mantera calada aquele tempo todo, virou para mim horrorizada.
— Como assim? Criança, está congelando lá fora! Quer pegar uma hipotermia? — Falou indignada.
— Meus casacos não existem mais, vamos dizer assim. Esse é para vida e para morte. — justifiquei tentando não pensar nas roupas banhadas de tinta que deixei para trás na Ala O.
Eu apenas percebi que retirou seu sobretudo quando ele se aproximou por trás de mim e pediu para que eu abrisse os braços. Eu era relativamente alta e de salto batia na linha da sobrancelha de , mesmo assim o agasalho ficou grande em mim.
— Mas… — tentei protestar, contudo ele me interrompeu.
— Não quero ver você passando frio quando eu posso facilmente resolver isso. — explicou sorrindo — Iremos comprar algumas roupas de frio mais tarde e insisto em pagar. Sem objeções.
Eu replicaria alguma coisa se o cheiro que exala-se no casaco não fosse tão . Minha intuição dizia para que eu mergulhasse o nariz na gola como uma adolescente apaixonada, mas não ia fazer aquilo pois era ridículo.
Ao menos era ridículo fazer isso na frente dos outros.
— Obrigada, Excelência. — murmurei com um sorriso e beijei sua bochecha sentindo um comichão quente no peito de alegria.
Mal rocei os lábios em sua pele, quase não sentindo seu aroma, porém isso não impediu que ficasse paralisado e extremamente vermelho. Seria a coisa mais fofa do mundo se não estivéssemos em público, o que contribuiu para seu embaraço.
— Eu… Hm… Vou pegar outro casaco. — Enrolou-se a dizer e saiu como um relâmpago para fora do cômodo.
Quando olhei ao redor percebi que os empregados de fingiam fazer alguma coisa e não ter visto aquela cena peculiar de nós dois.
E, então, foi minha vez de ficar vermelha.
Ainda na garagem vi que Rose estava certa em me alertar sobre o frio; Carlos olhava alguma coisa no capô da BMW e sua respiração fazia uma fumacinha que para mim era melhor marcador de temperatura que muitos termômetros.
Me enrolei no casaco como se fosse um manto e andei com passos apressados até o automóvel. Apenas quando já estávamos saindo do bairro luxuoso da Ala A mergulhei o nariz no colarinho do casaco e fechei os olhos para me concentrar no cheiro. Ele era levemente amadeirado, mas tinha uma predominância mais exótica. Parecia baunilha, mas não tinha certeza; só sabia que era excepcional.
Constatei o olhar estranho para o casaco que a secretária de Harvey direcionou, mas a mesma não comentou nada. Passei alguns minutos conversando com Mike e ele me deu as últimas orientações para o depoimento. Quando entrei na sala de reuniões senti o ar mais pesado e um olhar superior vindo de um trio de advogados da empreiteira que eu estava processando; havia uma loira, um gordinho e um cara que parecia um personagem de Gotham, o Charada.
Uma pena para eles que aquele olhar arrogante não me abalasse. Já recebi tantos tratamentos hostis por vir de onde vim que no mínimo sentia desprezo por pessoas que tinham um pensamento tão antiquado.
Recebi um assentimento de coragem de Harvey e respirei fundo quando eles ligaram a câmera e o microfone. Do outro lado da mesa havia uma mulher digitando tudo que era falado por os advogados da empresa e os meus.
As primeiras frases e perguntas eram padrão para identificação do processo e serviram para me fazer relaxar. Respirei fundo antes de dizer calmamente meu nome completo.
Taya .
— Então, senhorita — chamou me uma mulher loira, a advogada do Trio Satanás — é verdade que a senhora passou três meses sem pagar o aluguel em diversos períodos nos últimos seis anos?
— Sim. — respondi evasiva — Mas todas elas foram pagas com juros adicionais. Não devo mais nada.
— Hm, e por que tal procedimento foi constante na sua vida? — indagou o Charada — Se não podia pagar a conta, por que não mudou de Ala?
— A minha cliente está na Ala em que deveria estar. — Interviu Harvey — Com a média de um salário mínimo por mês em uma casa com 2 ou 3 pessoas é destinada a Ala O, como vocês devem saber.
— A minha pergunta não foi respondida, Specter. — Falou mordaz.
— Havia meses em que minha mãe precisava de remédio extra para sua doença. Ela tinha Mal de Alzheimer. — Falei tentando não senti um bolo na garganta.
— Você falou “tinha”? A doença é curável agora? — Perguntou o gordinho.
Olhei para ele com a certeza que ele era um palerma.
— Ela morreu. — Expliquei.
— Não vejo como isso possa ser importante para o caso, senhores. — Falou Mike olhando os seus ‘inimigos’ com desafio.
O Charada pôs os cotovelos na mesa e me olhou como se eu fosse um ratinho de esgoto.
— Você é destinada de ?
Apesar de todos me reconhecerem como tal, não pude evitar sentir meu corpo gelar. Peter, Havey e Mike, ou até mesmo os empregados de , tinham essa informação, mas aquilo não era público para qualquer um. Como isso chegou ao ouvidos deles?
Ross e Specter se olharam com um ar conturbado e balançou a cabeça para que eu respondesse.
— É… sim. Eu sou.
— Você é consciente que um dos tios do seu destinado, Jacob , é dono de uma das empresas que concorre ao trabalho de cuidar dos lares das Alas M-P e que a mesma nunca conseguiu aprovação do Estado para isso?
Os mirei com confusão.
— Não sei do que você está falando.
— Ah, não sabe? — perguntou cinicamente a mulher — Se eu lembrar que parte do dinheiro que vem do seu destinado, um desembargador bilionário, vem dessa empresa? E que o tipo de acusação que você está fomentando pode acabar com a reputação dos nossos clientes apenas para que a de acabe com a concorrência?
— Protesto. — Interviu Harvey antes que ela falasse mais alguma coisa — O que destinado da minha cliente faz com o dinheiro dele não tem nada a ver com o caso. São os abusos que sua empresa tem com ela durante os últimos anos que está em pauta aqui.
— E o que não nos garante que a senhorita inventou toda história para favorecer a empresa do destinado? — Investigou a mulher loira. — Sabe que calúnia e difamação é contra lei e que você pode se dar muito mal por isso, não é?
Eu quis pular em cima daquela mulher e esmurra-la por insinuar que eu estava mentindo. Se não tivesse um pingo de autocontrole meus dedos já estariam marcados naquela cara coberta de reboco.
— Isso é uma ameaça? — Indagou Harvey com puro deboche.
— Não, estamos apenas falando sobre uma lei aleatória. É um aviso. — inquiriu o Charada.
— Têm poucos dias desde que descobri que estive pagando mais do que um cidadão da Ala O deveria. — Falei com firmeza — Tenho a cópia de todas as contas que paguei e posso provar isso, apesar de ter perdido quase tudo da minha casa por uns vândalos. — pus o cotovelo na mesa e os encarei — Acredita que eles usaram as cores do brasão da sua empresa? Muito conveniente.
— Isso é uma acusação? — Indagou o gordinho — Sabe que…
— Oh, céus, pare de ficar lembrando as leis — reclamou Mike.
— Não é uma acusação, senhor. — Harvey respondeu por mim com o ar de deboche que ele carregava naturalmente — É um aviso.
Apertei os lábios tentando não sorri vitoriosa quando Specter disse aquilo. A admiração que eu tinha por ele cresceu quase vinte por cento.
— Alguma pergunta a mais para fazer a minha cliente? — Indagou Mike olhando diretamente para Trio a nossa frente.
— Tenho sim. — Disse a mulher parecendo pronta para mostrar a sua última carta na manga. — A quanto tempo está casada com seu destinado?
Deixei minha cabeça cair para o lado sem entender.
— Eu não sou casada, muito menos com meu destinado. — respondi obviamente.
— Então por que moram juntos? — abri a boca para responder, mas ela continuou — Como funcionária de uma multinacional como você ganha só um salário mínimo por ser secretária de um CEO? Não faz sentido você continuar pagando impostos como se fosse da Ala O. Você desconhece a multa para quem comete esse crime de fraude, senhorita ? Roubar os direitos dos pobres é amoral e crime.
Com o sangue fervendo e com os palavrões tão bem aprendidos por mim na Ala O fazendo minha língua coçar.
— Escuta aqui, sua…
— Chega. — Interrompeu Harvey com uma calmaria calculada. — Esse depoimento não está chegando a lugar algum.
Ele se levantou e abotoou o terno cirurgicamente.
— Espero que não se sintam constrangidos quando forem dar a notícia que o acordo foi duplicado. — Falou enquanto assentia para que desligassem o microfone e a câmera. — Em contrapartida se insistirem em ir a julgamento com argumentos de calouros de direito, espero que estejam preparados para falir seu cliente.
Quando saímos da sala de reuniões e com uma conversa franca com Harvey resolvi estender um pouco mais o prazo para conseguir um acordo. Havia a remota possibilidade de não ganhar um bom retorno se o caso fosse a julgamento e era claro que a oposição queria nos levar até lá para apelar para o juiz. A secretária de Specter avisou a sobre nossa decisão de segurar mais um pouco e, embora não gostasse muito da ideia, ela era bastante sensata. Além disso, ele estava para jogar a notícia no jornal para o dia seguinte — porém ele ocultaria o seu nome enquanto eu estava disposta a arriscar-me ao me expor. Não pensei muito quando o fiz, mas ao ir ao trabalho percebi que não parecia preocupado na minha privacidade, a não ser a parte em que ele se envolvia.
E eu, como de costume, fiquei bastante desconfiada.
Ao passar no RH para entregar o ofício que justificava minha falta, mesmo depois de falar com Carter eu havia esquecido de levar aquilo no dia anterior, descobri que um estagiário ia encaminhar-se para ser meu assistente. Achei estranho, pois nunca precisei de ajuda extra para fazer meu trabalho, entretanto assim que li o sobrenome do chefe entendi o que se tratava.
Bryan Carter tinha a cara de adolescente rebelde sem causa, mesmo já estando com seus vinte e um anos. Fiquei um pouco mais aliviada em saber que a semana seria de treinamento para os novos funcionários e que eu não ia precisar lidar com ele no momento.
Depois que acomodei-me na mesa de sempre, foquei em cumprir minhas tarefas anotadas em post-its com a letra apressada do chefe. Aos poucos meu rendimento começou a voltar ao normal e pude me concentrar no trabalho.
Era quase fim do horário de almoço quando Daisy apareceu segurando uma sacola artesanal e uma fruta enrolada em papel alumínio. Quanto mais ela se aproximava um cheiro delicioso de coco, lavanda e outras especiarias dominava o andar.
— Alguém está com fome? — ela ofereceu a fruta para mim — Por que não desceu para o refeitório?
— Trabalho acumulado — respondi — Aliás, obrigada.
— A mesa fica tão chata sem você e Mary — comentou — Sabia que agora ela começou a fumar?
Franzi o cenho.
— Como ela nos faz um discurso inspirador sobre quanto negligenciamos nossa saúde e começa a fumar? — indaguei confusa.
Daisy deu os ombros e sentou-se em cima da minha mesa.
— Só sei que ela anda muito estranha ultimamente. — disse — Mas, mudando de assunto, estou fazendo sabonetes artesanais e queria que você testa-se. As meninas são muito frescurentas e estão com medo de ter uma reação alérgica — Bardot revirou os olhos.
Cerrei os olhos para ela desconfiada.
— Caraca, é cheiroso demais! — comentei quando abri a bolsa que ela ofereceu — Chega a ser enjooso.
Peguei três pacotes e fiquei encantada com os que escolhi. Eles eram um pouco maiores que os comprado em supermercado; os de coco e melancia davam vontade de comê-los. Daisy me explicou que ela estava pensando em abrir uma saboaria.
— Minha vida toda trabalhei para alguém e estou pensando seriamente em ser empreendedora — Disse ela — Como Mark, sabe? Claro que metade da fama dele vem dos meus contatinhos…
Soltei uma risada.
— Se ele escuta isso…— falei antes de dar uma mordida na pêra em minhas mãos.
Ela deu os ombros como de quem não liga.
— Falando nele, acredita que o idiota não quer pagar um plano de saúde? — reclamou — Acha que vai viver pra sempre.
— Homens… — falei balançando a cabeça.
Aquela situação me lembrava um pouco e como gatilho lembrei da nota fiscal que achei no dia anterior.
— Daisy? — A chamei hesitante.
— Sim, ?
— Você conhece o Hospital Lenox Hill?
— O hospital de tratamento de câncer?
Não se desespera.
Calma.
Isso não significa nada.
— ? Tudo bem? — Indagou Daisy. — Você ficou pálida de repente.
— Tudo sim. Só uma náusea. — Repliquei.
Desviei do assunto e falei que deveria voltar ao trabalho. Quando percebi que estava sozinha me permiti desabar na cadeira.
OK, apenas esteve em um hospital especializado em câncer. Ele podia estar visitando alguém, certo?
Respirei fundo tentando pôr esta justificativa em mente, mas logo me lembrei da sua constante falta de apetite e diversos comportamentos estranhos — inclusive ele falou que tomava remédio controlado. Não pude evitar lembrar das vezes que percebi seu olhar cansado e só pensei no pior.
Fechei os olhos com força para não chorar. Eu ainda não tinha certeza se era aquilo, mas a remota ideia de que estaria morrendo aos poucos me dava calafrios. Cheguei a procurar seu número no celular para tirar minha dúvida, mas não sabia como abordar aquele assunto.
“Ei, eu estava fuçando o bolso dos seus casacos e vi que você esteve em um hospital de câncer. Devo me preocupar?”
Como um lembrete de onde eu estava e do que deveria estar fazendo, Carter apareceu junto com Daniel saindo sua sala. Eles estavam enclausurados no escritório fazia horas e ainda sim saíram conversando sobre algo aparentemente muito importante. Jones comentou sobre o cheiro bom que estava no lado de fora do escritório e falei que era um dos sabonetes artesanais de uma amiga que eu guardei na bolsa. Assim que ele saiu do meu campo de visão, Albert pediu para que um email urgente deveria ser enviado aos quatro diretores da empresa para uma reunião emergencial para o dia seguinte; e, claro, ele refrescou minha memória sobre a viagem ao México que tivemos e minha responsabilidade de entregar um projeto para ele.
Embora mais concentrada no trabalho, não pude deixar de sentir um comichão no peito. Sempre que eu me distraía, minha mente teimava em pensar nisso.
Voltar para a Ala A nunca foi tão desejado por mim.
Assim que cheguei em casa mal cumprimentei Rose e perguntei sobre . Ela deu os ombros e disse que ele chegava em meia hora mais ou menos. Resolvi, então, ir tomar um banho e fingir estar esperando pacientemente.
Vi que estava com um problema quando percebi que eu havia apenas mais uma combinação de roupa limpa pra vida e a morte — e pra piorar, era o último vestido de verão que Ivanna tinha feito para mim. Definitivamente teria que ir às compras.
Escondida dentro do casaco que me deu para não tremer de frio, comecei a andar pela casa a fim de conhecê-la melhor. No terceiro andar havia a sala de música, como eu soube no dia anterior, e mais três quartos para hóspedes. Descobri uma sala de pintura e fiquei encarando quadros bem medianos, no mínimo. Havia um quarto enorme para jogos, com três tipos diferentes de aparelhos de vídeo games e uma estante repleta de DVDs deles.
Como conseguia ter tantos hobbies era uma questão que eu desconhecia a resposta.
Para passar o tempo, voltei a pesquisar mais sobre na internet. Não me sentia nem um pouco confortável em ter que fazer minha própria investigação para conhecer meu destinado, mas ele não cooperava.
Hesitante joguei no search “ e namorada”.
A principio achei uma foto antiga dele com uma moça de cabelo verde, mas duvidava muito que fosse essa com quem ele se casou; além de não parecer com a que vi meses atrás em minha pesquisa, a foto não indicava nada romântico — para ser sincera, eu diria que ela foi cortada e havia mais mais amigos na imagem.
As imagens interessantes só vinheram mais embaixo onde e uma mulher loira desciam do carro basicamente em todas elas. Os dois sempre usavam boné e óculos claramente tentando se esconder — sem muito sucesso. Não dava para reconhecê-la, no entanto. Mesmo em uma foto em que está com o rosto a mostra dentro do carro, saindo de um hotel na Califórnia, ela cobre o rosto com um casaco verde.
Seja lá quem era essa mulher, ela era ótima em se esconder.
Encontrei um artigo em que cogitava a possibilidade dele estar noivo, pois em um julgamento, na época que ele atuava como advogado, era possível ver uma aliança na mão direita. No entanto não houve mais nenhum “incidente” como esse e ele não se pronunciou sobre isso.
Depois de um tempo enrolando finalmente desci para ir até a cozinha. Encontrei sozinho comendo um pretzel encostado no balcão. Por causa da minha teoria de que ele estivesse doente, esperei vê-lo com o ar cansado e abatido, mas o que me deparei era totalmente diferente: ele parecia uma criança que acabou de ganhar um doce, com direito a farelo e açúcar sujando o terno.
— Tudo certo para irmos? — Indagou limpando a boca com o pulso.
— Tudo sim, mas e você? Como vai? — Perguntei tentando soar casual.
Ele cerrou os olhos para mim não comprando minha interpretação de amiga despreocupada.
— Eu vou bem, obrigado. Aconteceu alguma coisa?
— Tem certeza que está bem? — me aproximei dele visivelmente perturbada — Digo: não se sente mal, algum problema de saúde..?
me olhou como se eu fosse louca.
— Do que você está falando? Minha saúde é ótima! — explicou-se — Não escute o que Rose fala, ela ama exagerar.
— Mas...
— Estou bem, . — reafirmou — Se lhe faz se sentir melhor: eu visito um médico regularmente.
— E não deu em nada?
Era claro que minha tentativa de ser discreta falhou miseravelmente.
— Nada. — respondeu — Sou o homem mais saudável que você conhece.
Relaxei os ombros aliviada sentindo um fardo enorme saindo de minhas costas. Mordi minha língua quando me vi quase perguntando quem ele visitara na noite anterior e para que era o remédio que tomava regulamente.
— Vamos antes que o motorista congele lá fora. — Chamou-me estendendo a mão em minha direção.
Segurei sua mão morna com firmeza e o deixei me puxar para frente.
🌏🌍
— Primeiro que advogado nem é gente. — Falei para assim que entramos no carro para voltar para casa.
Expor toda sua indignação de modo divertido foi a forma que encontrei de contar o episódio do depoimento sem sentir vontade de mergulhar na miséria emocional que andava vivendo nas últimas semanas.
Ele deu uma risada.
— Diga-me, então, senhorita , como deixei de ser um Homo Sapiens na sua lógica. — brincou ele ao colocar o cinto.
— Ah, Vossa Excelência conseguiu burlar a evolução dos advogados. — Garanti tentando soar intelectual — Quase foi canonizado pelas minhas amigas.
— E você fala sobre mim para suas amigas?
— Não, mas elas comentam sobre você toda vez que você dá uma passadinha na empresa — respondi. — Posso dirigir daqui?
trocou um olhar pensativo com o motorista.
— É, vamos aproveitar que a rua está deserta e o máximo que pode atropelar é um poste.
Dei-lhe um tapa no ombro.
— Você vai morrer pela boca. — Ameacei trocando de lugar com o motorista que para variar não decorei o nome.
A ida até uma loja de artigos de inverno não foi tão difícil como pensei. Havia pouquíssimas pessoas no estabelecimento e os que estavam lá pareciam apressados para voltar a suas casas. Era um lugar aconchegante, moderno e não parecia o tipo de loja que imaginei que pessoas da Ala A fazem compras. No caso, não havia paparazzis e fãs loucas do — algo que inconscientemente imaginei acontecer, mas lembrei que, apesar de famoso, ele era um desembargador e não um astro do rock.
Durante todo tempo bati papo com a atendente universitária enquanto esperava sentando e ria de algo em seu celular. Distraído, meu destinado não percebeu quando passei o cartão em seu lugar e parcelei seis vezes sem juros (depois de pechinchar um descontozinho, claro). Apesar desse ato amaciar meu ego, tinha dor de cabeça só em pensar nas contas mirabolantes que teria que fazer para pagar. Fazia tanto tempo que não comprava roupas que era estranho vestir ao que não fosse Made In Ivanna’s.
— Do que você tanto ri aí? — Indaguei curiosa carregando as sacolas que havia comprado.
— Hã? — Respondeu atônito — Disse alguma coisa?
— O celular. — Expliquei — O que é engraçado?
— Ah, não é nada. Só estou falando com a Sarah. — Disse se levantando.
Quem é Sarah?, Pensei em perguntar, mas segurei minha língua. A chance da frase soar como namorada ciumenta era enorme e não estava a fim de prestar a esse papel.
— Aqui está a notinha. — ofereceu a atendente com um sorriso — Volte sempre!
— Ah, obrigada. — Sorri para ela em agradecimento.
olhou para nós duas não entendendo o que estava acontecendo.
— Espera, já pagou os casacos?
Me virei para ela balançando a cabeça em negação.
— Homens. — revirei os olhos.
Então, se sentindo contrariado e enganado por mim, fez questão de comprar um cachecol horroroso apenas para não dizer que não pagou nada.
Homens.
E daí que chegar nossa conversa no carro. Assim que sentei no banco do motorista ajustei-o a minha altura. sentou no passageiro e fiquei pensando em quão estranho era estar com um segurança no banco traseiro do carro.
— Então, sabe como dar partida no carro?
Olhei para ele desgostosa.
— Eu tenho carteira, gênio. É claro que sei.
Ele deu os ombros.
— Vai que você estivesse mentindo?
Como resposta ao seu comentário, dei a partida do carro e devagarinho tirei do estacionamento. Embora aparentasse muito concentrada na estrada, prestei bem a atenção nos olhares zombeteiros de meu destinado ao nosso guarda-costas.
Assim que entrei na avenida quase deserta troquei de marcha e pisei no acelerador.
— Caso você não saiba, não estamos em um filme de Velozes e Furiosos. — Falou ele apertando o cinto. — Pode diminuir a velocidade por gentileza?
O ignorei e mantive a mesma aceleração. Liguei o rádio e fiquei feliz em saber que tocava um blues que eu conhecia bem.
Fiz algumas perguntas diretamente ao motorista sobre a direção em que deveria ir. Ignorei durante todo o trajeto até a garagem de casa.
— Pode me dar um segundinho com seu chefe? — Pedi ao motorista e ele saiu prontamente.
Virei-me para frente e dei o suspiro.
— O que eu fiz agora? — perguntou ele.
Neguei com a cabeça.
— Nada. Apenas… — respirei fundo — Não gosto que me subestimem.
— Tudo bem, foi mal.
Dei os ombros e ficamos em silêncio.
— Eu não dirigo bem se isso a alivia. — Confessou ele.
— Ah, é? Então por que estava me zoando?
abriu um sorriso.
— Gosto de irritá-la. — Replicou — Você parece tão racional às vezes…
— Excelência, acho que você deve procurar outro passatempo. Irritar mulheres não me parece sábio.
Meu destinado bagunçou o cabelo deixando-o voltar para os cachos loiros ainda com o sorriso na face.
— Mas algo está lhe incomodando. — afirmou ele depois de um tempo.
— OK, Professor Xavier. — brinquei apesar dele estar certo.
— Por que perguntou sobre minha saúde mais cedo?
E eu, iludida, pensando que isso era passado. Pressioná-lo a responder as perguntas que rondavam minha mente nos últimos dias era tudo que eu queria fazer, mas não era o momento certo.
— Nada.
— Eu sei que não é “nada”, . — rebateu. — Você sabe que pode dizer qualquer coisa para mim.
— Estou pensando no que os advogados da P.A.F.E.R. disseram, só isso. — respondi — Não sei como eles descobriram que somos destinados. Pensei que essas informações eram confidenciais.
— E são. — afirmou — Irei conversar com Harvey e vamos tentar descobrir, apesar de não ter muito que fazer.
— Obrigada. — Murmurei.
virou a cabeça de lado me avaliando.
— Ainda acho que não é exatamente isso que lhe preocupa. Você sabe que não precisa ficar com medo de…
Não querendo escutar um sermão chato sobre confiança, deixei uma das minhas inúmeras perguntas escapar.
— Quem é seu irmão?
— Não quero falar sobre isso.
Revirei os olhos.
— O que descarta a ideia de que ele existe. — Concluir — Você sabe que não precisa mentir para mim, não é? Estar no México com uma ou dezenas de mulheres não influencia muita coisa. Agora eu vejo que foi infantil da minha parte ter bloqueado seu celular, afinal, você não tem nenhum compromisso comigo. Ter sido você ou não naquele dia não muda nada.
— Eu. Não. Estava. No. México — repetiu impaciente.
— E sua ex mulher? Quem era ela?
olhou para mim como se eu fosse um alien.
— Definitivamente não vou falar dela para você.
— Isso não foi um empecilho quando estávamos no parque.
— O que falei foi para ajudá-la e nesse momento não vejo como isso vá ajudar em alguma coisa.
Deixei meus ombros caírem em cansaço.
— Sabe, , o tempo todo você me pede para confiar ou seguir seus conselhos. Você deve saber até o horário do meu nascimento e não posso saber quem diabos é o seu irmão gêmeo?
— Você fala as coisas para mim porque quer. Eu não tenho nenhum dever de dizer tudo sobre meu passado. — retorquiu impaciente.
Olhei para ele por longos segundos sentindo que ele havia acabado de me dar uma facada e me empurrado para longe de qualquer que fosse a aproximação que eu estava querendo ter com ele.
— Verdade. — murmurei — Você não tem nenhuma obrigação de dizer as coisas para mim. Me desculpe por isso. Não vai acontecer de novo.
Saí do carro me sentindo estúpida. Por que eu tive que abrir a minha boca grande? Eu era errada da história, afinal. Não tinha o direito de pressioná-lo a contar seus segredos daquela forma. Ao mesmo tempo não queria ser invasiva nem nada; apenas desejava conhecer o homem que o destino disse que era perfeito para mim. Em nenhum momento quis entrar sem permissão em sua privacidade.
Eu sabia que o destino errava às vezes. Os divórcios pós-casamentos com destinados estavam ali para provar, mas não esperava que quando isso acontecesse me sentiria tão vazia. Seja lá o tipo de relacionamento que eu e estávamos construindo foi interrompido, sem previsão de volta, assim que deixei seu casaco no sofá e tranquei-me no quarto.
Capítulo 16
“Diga-me o que quer ouvir; algo que agradará os seus ouvidos. Estou cansado de toda esta insinceridade, então abrirei mão de todos os meus segredos dessa vez” - Secrets by OneRepublic.
Eu estava chateada pelo que havia dito e depois de uma noite de sono o sentimento havia se misturado com uma tristeza que deixou meu humor muito para baixo. Odiava pensar que estava tão ligada ao que ele facilmente poderia atingir meu emocional.
Atrasei-me para não encarar meu destinado naquela manhã da forma mais corajosa que você pode imaginar. Apenas apareci na cozinha quando tinha quase certeza que não iria encontrá-lo.
Tudo era uma grande confusão na minha cabeça e comecei a perceber o porquê sempre quis ficar longe daquela história de destinado. Como forma de lutar contra toda aquela desgraça mental, decidi focar no trabalho.
Só quando sentei junto com as meninas no refeitório da empresa no almoço vi o quanto sentia falta delas. Havia um prazer inexorável em jogar conversa fora sobre um programa de TV, músicas ou uma moda sem noção lançada por uma famosa marca de sapatos. Ouvir a risada singular e engraçada de Stella e Daisy narrando uma história qualquer com seu jeito pomposo era tudo que eu precisava para relaxar.
Escutei-as comentar sobre seus maridos e seus planos para o dia de Ações e Graças. Muitas iam visitar os pais ou os sogros e aquilo me deixou bastante para baixo. Eu não tinha uma verdadeira tradição de um jantar recheado nesse dia, mas minha mãe estava lá, apesar de sua doença.
Então, eu lembrei que aquele seria meu primeiro ano sozinha.
Sempre senti que traía meus pais de alguma forma quando pensava nisso, mas queria saber mais sobre os meus avós maternos e de onde eu vinha. Meu pai trocou de família diversas vezes e nunca teve a oportunidade de ter alguém para chamar de pai ou mãe, então, não conheci meus avós paternos também.
A família era só eu, Steve e Letícia e mais ninguém. Éramos suficientes até agora.
Cogitei me oferecer a ir com para o jantar de sua família, mas, além de ser muito inconveniente, se fosse um tipo de jantar em que juntava todos os Hoyers e antigos (como Carol Carter), eu não estava preparada para encarar Albert fora do campo de trabalho e ser apresentada como “a destinada que não quer ser destinada”.
Isso soava péssimo.
Sem contar que, bem, eu não estava nem um pouco a fim de sair junto com . Engraçado ele ter pedido para manter uma amizade entre nós quando não se predispôs a me contar sobre sua vida. Claro que tinha seu direito de não querer me dizer nada, mas não faria o seu comentário menos desagradável e contraditório.
Se meu destinado não queria falar, tão pouco eu iria fazê-lo. Me sentia desapontada; idealizei tanto como um homem gentil demais para ser real que me esqueci que, assim como eu, ele também cometia erros.
— Parece pensativa — disse Franz com os olhos atentos ao seu iogurte.
— Tenho passado por uns probleminhas, mas nada que se resolva com o tempo. — Respondi — E você? Como anda?
Ela deu um sorriso doce.
— Vai indo. — Franz suspirou — Tem sido difícil abrir mão do meu destinado, sabe? Você estava certa, mas deixar alguém que você gosta ir é doloroso.
Segurei sua mão livre e apertei-a dando lhe apoio.
— Você pode aproveitar esse tempo para conhecer mais sobre você mesma. — Sugeri — Há algo que sempre quis fazer, mas nunca fez?
Franz parou para pensar um pouco.
— Aulas de dança talvez? — Incentivei quando a vi passar os segundos em silêncio.
— Eu gosto de tango. — replicou — Acho bonito.
Sorri para ela.
— Então é isso que você deve começar.
Algum engravatado aumentou o som da TV no refeitório e vi boa parte da empresa prestar bem atenção no que era dito. Não consegui controlar a ansiedade quando vi que era justamente a matéria sobre o processo contra P.A.F.E.R, representado pela L&James e fiquei aliviada em saber que meu nome fora preservado.
Os comentários que vieram após isso foram mistos, mas em sua maioria ouvi boa parte dos trabalhadores — incluindo minhas amigas — que concordavam comigo (a vítima misteriosa). Boa parte das pessoas que desfrutavam do almoço no refeitório eram no máximo da Ala J e continham suas revoltas contra a forma poliearizada que o sistema das Alas funcionavam.
Alguma coisa estava nos eixos naquele dia, afinal.
A viagem para casa foi mais uma vez melancólica. Embora tivesse ignorado os problemas desde que saí da Specter+Litt, eles voltaram com toda força no caminho de volta para Ala A. Esperava com toda a minha força não ser necessário ter que fazer outro depoimento ou mesmo ir a julgamento. Ser mais uma vez intimidada pelos Irmãos Metralha estava fora de cogitação. Existia, também, o projeto pedido por Carter e minha total inexperiência. Observar os outros fazendo era uma coisa, fazer era outra.
E, então, havia .
Me sentia esgotada quando na mansão. Sendo um dia escuro e frio nada parecia melhorar meu humor. Após Rose falar que estava em seu escritório e que veio para casa mais cedo, fui direto para o quarto.
Tomei um banho demorado com o sabonete artesanal da Daisy — um dos cosméticos mais cheirosos que eu havia usado, era como vestir um mar de flores — vesti meu pijama quente, comprado no dia anterior, enrolei-me no cobertor e liguei a TV para assistir “The Young and the Restless”.
Era a forma mais confortável de se acabar um dia ruim.
Foi no meado do episódio que ouvi as batidas na porta.
— ?
Fui traída pelo meu corpo ao ouvir sua voz familiar. Antes de pensar muito respondi com um hesitante “sim?”.
— Posso entrar?
Não o respondi, mas abri a porta. Segurei um suspiro e tentei acalmar meu coração que acabava com a falsa frieza que queria demonstrar. usava camisa e calça social preta, mas toda dose de segurança parecia ter se esvaído dele. Parecia um cachorro que caiu do caminhão de mudança apoiado na parede. Não cairia naquela postura, no entanto. Cruzei os braços e me encostei na porta.
— Olá. — Falei tentando passar naturalidade e desdém.
— Você ainda está chateada comigo? — Indagou sem delongas.
Direto.
— Acredita que tivemos uma conversa parecida ainda essa semana? — Comentei sarcástica — Parece que foi há anos.
— … — Ele fechou os olhos cansado.
— Eu mesma.
— O que você quer de mim? — Perguntou transtornado.
— Quero que você seja sincero comigo. — Repliquei — Quero que pare de esconder as coisas de mim como seu eu fosse sua inimiga. Eu confio em você, . Por que você não confia em mim?
A última frase saiu como um sussurro velado por uma angústia que evitei sentir durante todo o dia. Me perturbava saber que enquanto eu depositava minha crença em , ele se recusava a me contar coisas básicas sobre sua vida.
Meu destinado ficou calado por um bom tempo. Estávamos próximo fisicamente, mas havia um espaço colossal entre nós no aspecto emocional. Um mar de segredos que ele não me permitia acesso.
— Isso é tão difícil pra mim, . — Confessou em um murmúrio — O tempo todo tenho que evitar que algo pessoal caía nas mãos erradas que me esqueço que nem todos querem me ver falhar. — Explicou — Ao mesmo tempo não quero envolvê-la no meu mundo.
Não contenho o sentimento de surpresa quando concluí o óbvio: tinha inimigos. Constantemente ele parecia estar com tudo sob controle, porque não podia demonstrar fraqueza. Ele era rico, trabalhava no sistema judiciário e era filho de um político famoso — um pacote cheio para ser odiado por muita gente.
Seguro seu rosto delicadamente para que olhe para mim. Sua pele era macia e esbranquiçada. Ele se aproxima mais um pouco e nossos cheiros se entrelaçam no ar, um contraste magnético com o clima da conversa.
— Não quero conhecer apenas o seu lado bom, Excelência. Quero conhecer você e seu mundo por inteiro.
Seus olhos, apesar de escuros, abrem a janela de sua alma. A frase proferida por mim foi o “abre-te, Sesámo” para que ele baixasse a guarda. O sorriso que ele tentou conter, sem sucesso, também evidenciava isso.
Lambi os lábios esperando que dissesse alguma coisa, embora eu meio que entendi a mensagem por sua linguagem corporal.
— Tudo bem. Eu… — Soltou a respiração — Eu direi o que você quer saber.
Sorri para ele.
— Obrigada. — Respondi — Mais alguma coisa?
retribuiu o sorriso em sua forma sedutora e ao mesmo tempo envergonhada.
— Desculpa por ter sido um insensível com você ontem. — Ele coçou a cabeça constrangido — A verdade é que não sei lidar conosco às vezes. Você é totalmente diferente do que eu esperava.
Levanto uma sobrancelha.
— O que exatamente está se referindo?
— Não sei. Apenas diferente. — Resmungou — Meus primos tiveram destinados superficiais em sua maioria, mas o destino resolveu me surpreender.
Me mexi desconfortável com aquela conversa de destino mais uma vez. Ainda não gostava da ideia que algo controlova o mundo e que minhas escolhas não eram realmente minhas.
Fiquei de lado para que ele entrasse no cômodo.
— Pode começar a contar. — Incentivei.
suspirou e caminhou até minha cama como se estivesse no corredor da morte. Ele deitou-se na cama deixando as pernas fora. Imitei-o e quase pude ver a briga que travava internamente.
— Não sei por onde começar. — murmurou.
— Comece pelo começo — respondi simplesmente.
virou seu rosto para mim com o olhar distante lembrando de coisas que tentava constantemente esquecer.
— Você já recebeu alguma mensagem ou recado estranho para repassar a Carter? Vindo de um banco desconhecido ou empresa que não existia? — Perguntou de súbito — Algo que parecia… errado?
Franzi o cenho tentando pensar naquilo. Relembrei, então, de um email de dois anos atrás. Vinha de um remetente desconhecido durante as férias de Albert; quando repassei a mensagem automática, o recado voltou, pois o email era inexistente.
Ao perguntar sobre, Albert disse que não era para se preocupar com isso.
— Talvez. Era algo sobre “uma transação de suma importância”, mas não vinha de banco algum. Acho que foi engano. — Repliquei depois de um tempo. — Por quê?
soltou um bufo de quem estava decepcionado.
— Não sei porque estou impressionado. São todos iguais.
— Pare de falar em código. Seja mais coerente. — Resmunguei apoiando-me pelos cotovelos.
— Na ala A não se sobrevive sendo honesto. — Ele iniciou — A partir do momento que você é passado para a mais alta ala consegue inimigos automaticamente; inimigos geralmente vindo da concorrência. Às vezes eles chegam antes que cresça seu negócio na verdade. Até mesmo a Coral teve seus momentos de tensão.
Continuei em silêncio interessada naquela conversa.
— Há um grupo que organiza os pequenos furtos, as pequenas propinas e transações estranhas que podem ser consideradas “aceitáveis”. Mas esse grupo também é responsável por coisas muito ruins.
Segurei sua mão e apertei o incentivando a continuação daquela explicação. Seus olhos escuros estavam assombrados.
— Eles são constantemente chamados para limpar a sujeira e cobram caro para isso. Assassinatos, tráfico de drogas, repartição de propinas… São conhecidos como a Shadow e eles trabalham apenas para Ala A.
“Não há uma alma viva ou morta que é da Ala superior que nunca contratou os seus serviços. Se você não o fizer, corre o risco de morrer e perder toda a sua família. Se acha a Ala O perigosa, não sabe o que é ser um rico que sabe que pode morrer a qualquer momento mesmo tendo o seu próprio exército à disposição. Ter inimigos é ruim, mas quando eles são da Ala A tudo se torna pior.”
Se aquela história que ele contava era para me assustar, tinha conseguido com sucesso. Pensei nos seus guardas-costas que lhe rodeiam e que mesmo eles não o deixavam seguro. O que era segurança, afinal?
— E é aí… — sua voz me quebrou no meio.
Aquilo tudo o afetava tanto que quis protegê-lo do mundo. Embora se mostrasse sempre bem, imparcial e até distante, era influenciado pelo ambiente que vivia.
Pigarreando, meu destinado recomeçou a sentença.
— E aí que entra meu irmão.
Arregalei os olhos.
— Seu irmão foi dado como morto? A Shadow está atrás dele? — desatei em indagar ansiosa.
— Não, . — Sua voz saiu sofrida e sentir meu coração encolher no peito.
A perturbação de me fazia pensar no pior. A demora para dar a informação que eu queria também foi agonizante; segundos que me pareceram mil anos.
— Ele é da Shadow. — Disse ele finalmente. — Meu irmão é um criminoso, . E Tobias gosta disso. Não, não: ele ama o que faz.
Um arrepio passou pela minha espinha ao pensar que estive tão perto de alguém assim. Me sentei na cama tentando digerir toda as informações que tinha me dado. O que mais me deixava agoniada era imaginar que pessoas como Carter não eram honestas como eu pensava e que as falsidades das alas altas não se limitavam a ignorância de ser elitistas.
Ninguém era santo.
Pigarreei nervosa.
— E você? Já se envolveu com isso?
se levantou tão subitamente que quase caiu com o pé enrolado no lençol, embora ele estava mais preocupado em mostrar sua raiva. Vi que escolhi mal as palavras quando apresentou-se vermelho e ultrajado. Aliás, ultrajado era eufemismo. Ele estava puto.
— Como você pode sugerir que eu possa ser desonesto a esse ponto?
Com cuidado me aproximei dele.
— Você falou que ninguém na Ala A é inocente.
Entendendo que se perdeu em suas próprias palavras, desviou o olhar.
Sempre vi meu destinado como um poço de racionalidade, maturidade e paciência. Aquela foi a primeira vez que o vi frágil daquele jeito.
Toquei seu ombro devagar e apertei sem muita força.
— Não estou aqui para julgá-lo, . — eu disse.
Talvez não fosse saudável pressioná-lo a dizer, mas além de estar super curiosa, aqueles segredos estavam destruindo-o por dentro. Havia um peso que incomodava meu peito ao pensar no tempo em que esteve guardando tantas informações.
Seus olhos escuros se mostravam estranhamente pálidos, puxando para o prata de um oceano profundo convidando-me a mergulhar. Antes de dizer qualquer coisa, me convidou a jogar-me em seu mundo.
E eu me lancei sem hesitar.
— Eu não sou o Pequeno .
Encarei-o como se ele estivesse maluco. O que diabos ele estava falando?
— Quando saí da Alemanha vim fazer o ensino médio — explicou — Ninguém, além da família, sabia da minha existência. Pedido da minha avó, ela odiava holofotes tanto quanto eu. — acrescentou com um gosto amargo na boca — Meu irmão estava iniciando, entrando na Shadow e precisava de algo que provasse que ele era bom no que fazia. Meu pai apoiava aquela loucura; ter um filho na Shadow era uma vantagem que pouquíssimos tinham. A ideia de Tobias era bastante… Como eu posso dizer?... Era pretensiosa. Sumir do mapa com um novo nome quando até pessoas desconhecidas o conhecem é impossível. Eles precisavam de alguém que ficasse no lugar do filho do futuro governador do estado e facilitasse o trabalho de Tobias. Eu era perfeito para isso.
Ele soltou uma risada seca, sem humor.
— Com quatorze anos tive que escolher entre aceitar o acordo deles ou não haveria ninguém para pagar minha faculdade. Hoje percebo que era besteira e eu poderia me virar, porém quem eu quero enganar? Se eu o fizesse teria poucas chances de estar vivo.
— Meu Deus. — Falei, pois foi a única coisa que me veio em mente.
Eu me sentia enojada e machucada no lugar de . Fazer aquele tipo de terrorismo mental para um garoto de quatorze anos era tão errado quanto um pai alimentando a psicopatia do filho por puro egoísmo e pensamentos calculistas. Estava totalmente decepcionada com o ótimo governador, mas péssimo pai que Aitofel foi.
O que mais me intrigava era pensar que um jovem de apenas quatorze anos pensava de forma tão horrível como Tobias e lembro de Jack, que tem a mesma idade.
Meu destinado passou as mãos pelo rosto tentando clarear as ideias e eu sentei mais uma vez na cama atônita.
— Você tinha medo que eu mudasse o que penso sobre você se soubesse isso?
Eu tinha consciência que era uma pergunta um tanto estúpida, mas aquela pulga atrás da orelha incomodava.
— Não, porque você nunca quis ver-me através dos olhos dos outros. — disse com um sorriso cansado — Isso é uma das coisas que mais gosto em você.
Ele sentou mais uma vez ao meu lado e ficamos um bom tempo em silêncio. Eu tentava digerir tudo aquilo que descobri e as coisas começaram a se encaixar em minha mente, enquanto outras perguntas se afloraram.
— É difícil de acreditar nisso, não é? — Comentou — Parece teoria da conspiração de blog apocalíptico.
Sorri concordando com a cabeça.
— A sua indicação para ser desembargador tão novo foi obra da Shadow? Para acobertar Tobias?
— Felizmente não. — Respondeu — Minha indicação vem de uma crise do judiciário e descrédito da população nos mesmos. Eles precisavam de um bode expiatório, alguém jovem que demonstrasse um caráter perfeito na mídia. Alguém para manipular e que pense que sabe alguma coisa.
Não gostava do tom que usava; aquilo tirava todo crédito que ele tinha em sua profissão.
— Não seja tolo, você é bom no que faz. — Elogiei, embora não soubesse muito do seu trabalho.
— Obrigado. — Agradeceu soltando um sorriso genuíno.
Abracei-o de lado e apoiei meu queixo no seu ombro. Apreciei aqueles segundos de silêncio e fechei os olhos para me concentrar naquele estranho momento de paz; o corpo de quente perto do meu e seu cheiro eram embriagantes.
— Sinto que só agora estou começando a conhecê-lo de verdade — falei.
— Não gosto muito dessa parte de mim. — Resmungou ele enlaçando seu braço ao meu redor.
Me aconcheguei em seus braços e uma boa sensação de segurança me dominou. Ao contrário do que ele disse, eu estava começando a simpatizar com aquela parte ”suja” do . Ali ele se mostrava um ser humano vulnerável e não o super herói indestrutível que sempre quis parecer ser. Ainda havia tanto para aprender sobre meu destinado e aquele covil de cobras que era a Ala A…
beijou meus cabelos cuidadosamente e o peito aqueceu com familiaridade.
— Mein Gott, você está muito cheirosa. — Elogiou ele descendo o nariz até meu pescoço. — Mal consigo me concentrar na nossa conversa.
O corpo tremeu com o seu hálito contra a minha pele e fico feliz em ter usado os sabonetes artesanais naquele dia.
Daysi, te amo.
Infelizmente ele se afasta de repente quando sua barriga ronca de fome.
Nunca o vi tão vermelho como naquela vez. Eu apertei os lábios um contra o outro tentando conter o riso quando ele me chamou para jantar lá embaixo desconfortável. Era uma pausa definitiva naquele pequeno interrogatório e tive mais tempo para refletir.
Confusa, parei de andar de repente quando vi um buquê de flores e uma caixa de bombons em cima do balcão na cozinha. Estavam ali antes?
— Sheisse, eu esqueci! — Reclamou colocando a mão no rosto.
Ele os pegou e constrangido me entregou devagar.
— São para você, .
Aceitei apesar de não entender o porquê de me dar só agora. Percebendo minha cara confusa, desatou em falar.
— Tecnicamente eu deveria ter lhe dado no almoço enquanto eu implorava por desculpas, mas tive uma videoconferência de emergência para fazer essa tarde e acabou complicando tudo. — falou um pouco rápido demais que o normal — Minha memória é uma merda, então acabei esquecendo de mandar.
Deus, como ele era fofo!
Abracei as flores com um sorriso e as depositei em cima do balcão novamente. Abri a caixa de bombons ansiosa, pois devo ter comido um daqueles apenas uma vez na vida. Eles eram caros demais para a maioria dos mortais, inclusive eu.
— Se você tivesse me dado só o chocolate nem precisaria pedir desculpas. — Comentei ao comer aquele doce feito pelos deuses.
— Vou anotar para futuros problemas — Ele disse enquanto procurava algo na geladeira — Tem frango frito aqui, você quer? É só esquentar.
Assenti e sentei na ilha para comer, esperando o microondas deixar a comida no ponto.
Provavelmente aquela era a primeira vez que vi comendo voracidamente. Parecia que não se alimentava há dias — nem tive oportunidade de puxar conversa. Eu não estava com muita fome, mas me forcei a comer alguma coisa.
Prestei um pouco mais de atenção em meu destinado e vi um pequeno desleixo em sua aparência. Seus cabelos não estavam penteados com gel e os cachos grossos o deixavam com ar de um anjo. Havia alguns pelos loiros em seu rosto, demonstrando que ele não se barbeou naquele dia.
deve ter tido um dia tão ruim quanto eu afinal.
Depois de terminar de comer e colocar os pratos na lavadora, tive aquela sensação de precisar puxar algum assunto; o silêncio se tornou algo bastante desconfortável.
— Sempre quis ter uma dessa. — Falei me referindo a máquina de lavar pratos.
— Acredita que minha avó odiava esse tipo de tecnologia? — Comentou com um sorriso nostálgico — Ela dizia que por causa disso nos tornamos uma geração de preguiçosos.
— ‘Tá aí uma preguiça que eu gostaria na minha vida. — Repliquei sorrindo — Sempre quis saber como é ter uma avó. Pelos seus relatos ela devia ser uma mulher interessante.
— E ela era. — Disse com satisfação — Se não fosse Chaia eu não teria uma infância tão boa e saudável, longe da Ala A.
Franzi o cenho.
— O nome dela era Chaia? Que nome esquisito! — Comentei, mas logo me arrependi. Estou falando do nome da avó de alguém, pelo amor de Cristo!
Todavia, agindo diferente do que imaginei, soltou uma gargalhada.
— Ela odiava o nome também! Embora sua mãe tenha colocado o nome por causa do primeiro livro que leu aos trinta e cinco anos, quando aprendeu a ler. — me lançou um olhar cheio de significado — Chaia significa vida.
Sorri com o coração descompassado. O olhar que me dava aquecia por dentro e por fora e não consegui evitar ficar fascinada com meu destinado.
— Venha, tem uma coisa que quero lhe mostrar — falou de repente e segurou minha mão.
Com entrelaçando nossos dedos me senti avoada e ele aproveitou para roubar um bombom que estava em cima da ilha dando sopa.
Ele soltou um suspiro parecido com o meu minutos antes ao comer o primeiro chocolate.
— Eu tenho muito bom gosto. — Se gabou e eu o empurrei para o lado, rindo.
me levou até o andar onde havia o seu quarto de música, a sala de jogos e um lugar em que achei algumas pinturas; no final do corredor havia uma imensa janela que dava para ver o jardim parcialmente. Eu gostei da familiaridade que ele segurava a minha mão; sua pele era macia, bem cuidada — uma mão que nunca fez trabalho pesados.
Paramos na última porta do corredor a esquerda, a única do andar que mantinha um sistema de segurança parecido com o escritório. Depois de colocar a senha e sua digital, a porta abriu com um clique e fiquei deslumbrada com o quarto de luz vermelha.
Parei na entrada de súbito um pouco apreensiva e saiu procurando o interruptor ligou a luz branca. Minha boca se formou em um grande ‘o’ quando eu vi um grande mural de fotos, organizado como uma linha do tempo. Me aproximei lentamente percebendo nas imagens o rosto conhecido do meu destinado e de pessoas semelhantes a ele, ou seja, sua família.
— Vovó gostava de organizar tudo. Era um TOC na verdade. Ela começou a fazer o mural e eu terminei — disse ele. — Gosto de tirar fotos também como hobby.
No canto da sala havia uma mesa com notebook e impressora e outra com duas câmeras profissionais, uma Polaroid e algo parecido como uma câmera da Idade da Pedra.
— Não sei se fico mais impressionada com isso — apontei para o painel de fotos — ou com o fato de que você mantém hobbies demais para um adulto normal.
Ele soltou uma gargalhada.
— Estou falando sério — repliquei um pouco ressentida, mas ainda curiosa — Você é músico, tem videogame de última geração e até encontrei uma sala com algumas telas de pintura. — apontei — Agora, você também é metido a fotógrafo. — adicionei — Como você consegue manter todos esses hobbies?
sorriu sedutor.
— Sendo ruim em todos. — respondeu simplesmente — Menos como músico; nisso eu sou bom sim.— Ri de seu comentário e ele continuou — Não costumo fazer tudo ao mesmo tempo, a verdade é que enjoo fácil demais de qualquer atividade. Era assim também na escola, sempre estava fazendo uma coisa diferente.
Eu nunca participei de nenhum clube ou atividade extra curricular na escola. Na época apenas cheguei a participar no grupo de líderes de torcida por dois meses, mas não consegui organizar o tempo para isso e os cuidados que devia a minha mãe.
O mural era datado com letras miúdas em baixo; havia fotos de desde que era um bebê. Na primeira imagem da linha do tempo sua mãe segurava duas crianças idênticas, apesar de que, para mim todos os nenéns têm cara de joelho. No começo as fotos eram sempre com os dois irmãos juntos, no entanto, já se mostravam diferentes de alguma forma. Podia apostar que o menino sempre acuado era o .
— Quem é quem aqui? — Perguntei tentando provar meu ponto.
— Esse aqui. — Apontou para a criança mais extrovertida.
Encarei-o surpresa.
— Sério?
Ele concordou com a cabeça.
— Eu era um pestinha, não parava quieto. — Comentou com um sorriso ladino.
As fotos depois dos três primeiros anos passaram a ser mais dele com a vó. Chaia era Carol Carter mais velha e com o rosto mais severo; nas fotos sempre usava roupas de montaria em uma fazenda, uma propriedade digna de filmes. As imagens passaram a ser mais da paisagem do que de a partir de seus dez anos. Eu me vi sorrindo abobalhada quando cheguei aos seus dezesseis anos onde ele tocava saxofone com um chapéu de Papai Noel. Meu destinado era muito encantador quando mais novo e tinha certeza que se eu estudasse na mesma escola que ele, me apaixonaria facilmente.
Em algum momento avisou que ia em seu quarto e que eu poderia checar alguns vídeos da família no notebook. Não me surpreendi ao descobrir que a senha do seu PC era Berlim assim como a do celular.
estava claro como água para mim. Cada vez que via suas fotos e conhecia parte de sua história, mais me encantava com quem ele era. Não consegui evitar achar um pouco estranho saber que ele me deixara sozinha dentro de um quarto cheio de memória suas, mas me senti muito feliz em saber que confiava em mim o suficiente para isso.
Abri uma pasta com vídeos de anos anteriores no Natal. Havia diversos com crianças correndo, pessoas montando a árvore natalina e adultos cantando algo em alemão — muitos estavam claramente bêbados. O que mais gostei foi um vídeo em que tocava All I Want For Christmas da Mariah Carey. Tudo começa escuro e reconheci o toque da música em um instante. Congelei quando aparece em uma posição um tanto feminina e dublava como se fosse a própria artista. Em cada frase aparecia uma mulher diferente, fazendo então um grupo de quatro; a dança me lembrava Meninas Malvadas e soltei uma gargalhada ao ver , meu destinado, exalando mais femilidade que aquelas mulheres juntas.
Minha barriga doía de tanto rir e coloquei o video para repetir. fazia um rebolado meio estranho, mas mostrava estar se divertindo muito, até mais do que todo grupo. No final, eles se juntava para mais próximo da câmera e diziam juntos: “Feliz Natal, nós amamos vocês!”.
— O que está vendo aí? — Indagou ao voltar no cômodo de repente.
Ele vestia um pijama xadrez azul e aparentava ter saído do banho. Não consegui prender a risada quando, escutando o barulho da música, mudou de expressão como se tivesse visto um fantasma.
— Meu bom Deus.
Ele fechou a tela do notebook em alarde, como se aquilo apagasse o que vi de alguma maneira.
— Você precisa me ensinar essa dança! — Falei assim que controlei minha crise de risos — Espera, deixa eu ver se aprendi.
Apontei para ele e cantarolei a música imitando sua performance que deixava a própria Mariah Carey no chinelo.
cobriu o rosto vermelho com as mãos e falava frases um pouco desconexas. Entendi algo como “o que eu fiz para merecer isso?” “nunca confiar” e “criei um monstro”.
— Oras, não fique assim, Excelência. — Disse me aproximando dele — Aquele show foi digno de uma diva.
— Odeio você.
Ele me olhou raivoso.
— Odeia nada! Vai até me ensinar a rebolar desse jeito. — Respondi tirando suas mãos do rosto. — Quem diria! O desembargador discreto tem seus momentos de Drag Queen.
— Ah, pelo amor de Deus. — Reclamou ele se afastando fingindo que sairia da sala.
Aquilo só me atiçava mais, só meu destinado que não tinha percebido.
— Ei, espera! — Chamei tentando parecer séria.
recuou e olhou para trás em uma carranca.
— O que é?
Joguei o cabelo para trás e apontei para frente.
— Era assim que você fazia?
Como um simples mortal, não aguentou a pressão e riu. Eu amava o jeito que ele desviava o olhar toda vez que o gargalhava, como se não quisesse que eu o visse.
— Você precisa de um pouco mais de molejo. — Comentou com o sorriso no rosto fazendo exatamente como o vídeo.
Imitei-o e nós caímos na risada.
— Não é fácil para principiantes. — Ele deu os ombros se aproximando mais uma vez.
— Um dia serei tão boa quanto você. — Repliquei pousando minhas mãos em seu peito.
— Não sonhe muito alto, criança. — Ele piscou.
Com um sorriso, abracei-o pela cintura.
— Obrigada por confiar em mim me mostrando tudo isso. — Sussurrei.
me enlaçou e apertou-me com força contra seu corpo. Seu calor me dava uma sensação reconfortante e deixei-me soltar um suspiro.
— Quero que você me conheça por inteiro, . — Disse enquanto afagava meus cabelos.
Levantei a cabeça e pude ver seu olhar recair sobre meus lábios. O abraço mudou de significado quando o imitei. Observei com atenção como sua boca era rosada e aparentava ser um grande marshmallow. Ela implorava para ser beijada.
posicionou suas mãos até minha cintura, os dedos desenhando minha pele. Os nossos sentidos estavam aflorados, o ar estava carregado repleto de um mistério novo. O coração palpitava no peito pedindo para que eu avançasse e fizesse alguma coisa.
Eu iria beijá-lo. Eu necessitava beijá-lo.
Quando o vi lamber os lábios, arfei por antecedência.
Quando o vi abaixar um pouco a cabeça, fechei os olhos.
Quando seus lábios tocaram os meus, o mundo se tornou um grande silêncio.
Algo em mim desacordado por muito tempo se levantou com um estrondo.
Meu sangue corria quente em meu corpo gelado pelo inverno; uma adrenalina louca possuiu todo meu ser e quase entro em pane. Entreabro os lábios e desliza sua língua em minha boca. Seu gosto é predominado pelo chocolate devorado mais cedo e deixei um pequeno gemido sair.
Era bom. Era maravilhoso. Era inebriante.
Derreti-me, as pernas já perderam toda a força que tinham. Apesar de ser extremamente delicado com o beijo, os dedos de encravados em minha cintura sugerem algo diferente. Posso sentir quase todo seu corpo indo a loucura e minhas mãos nervosas encontram seus cabelos ainda úmidos do banho. Puxei-os com menos força que previa e arranhei sua nuca. Meu destinado arfou e apertou-me contra ele quase fundindo-os a ponto de sermos um.
Se a mansão caísse sobre minha cabeça, eu não sentiria.
O chão poderia se abrir debaixo dos meus pés e eu não me importaria.
Ali, nos braços de , eu estava segura.
Eu era uma sem teto, mas naquele momento eu estava em casa.
Os lábios de estavam inchados quando nos afastamos e deduzi que devia estar no mesmo estado. Nossas respirações estavam descompassadas, mas ele ainda mantinha os braços em volta de mim com firmeza.
Ele temia que eu saísse, que fugisse dele.
Olhei-o nos olhos e pude ver uma chama prateada em sua íris escura e meu íntimo estremeceu. Estava zonza, atônita, sem saber o que fazer ou como reagir.
Ficamos em silêncio, pois nada era preciso dizer.
Main Gott.
Eu estava perdida.
Capítulo 17
ㅡ !
Dei um pulo de susto ao ouvir Carter gritar meu sobrenome. O meu chefe me olhava com um olhar irritado e eu engoli o seco já pensando na bronca que levaria.
ㅡ Estou lhe chamando há quase… ㅡ ele checou o relógio ㅡ … dois minutos e você não me atendeu. O que anda acontecendo com a senhorita? Nunca foi de ser distraída.
ㅡ Não vai acontecer de novo. ㅡ Falei, apesar de achar difícil de cumprir a promessa ㅡ O que o senhor deseja?
— Há algum recado para mim?
Mexi o mouse do notebook e abri a área de trabalho.
— Sim, sua esposa o aguarda às 14 horas para o acompanhamento do exame, porém o senhor tem que estar na fábrica às 15 horas. — Expliquei — Quer que eu deixe para o outro dia?
— Não, alguém tem que ir à fábrica. — Disse ele ponderando — Ligue para Daniel e peça-o para ir até lá em meu lugar.
Assenti digitando rapidamente as informações necessárias para que lembrasse o que fazer.
— Seus advogados estão disponíveis para conversar às 17 horas. — Ele balançou a cabeça concordando — Cassandra deseja vê-lo ainda essa manhã.
Ele fez uma careta.
— O que essa mulher quer agora? — Indagou.
— É algo sobre as canetas vermelhas que ficaram rosa no mês passado. — Resumi.
Albert balançou a cabeça mais uma vez concordando.
— Chame Garry Fordnelly para nossa conversa. — Pediu e eu assenti já antecipando a dor de cabeça que teria para conseguir contatá-lo.
Ainda não entendia porque ele vivia naquela bolha e era considerado um bom profissional. Eu nunca o vi trabalhando, então não podia dizer muita coisa. Por que a Coral o mantinha em seu time? Só Deus sabe.
— Vai precisar que o acompanhe nesses compromissos? — Indaguei.
Ele negou com a cabeça e sem se despedir do meu campo de visão.
Observei meu chefe sair com uma pulga atrás da orelha. Depois das revelações que me ofereceu no dia anterior, não consegui parar de pensar na Shadow e como toda a Ala A estava envolvida com isso.
Foi quando abri o arquivo com o projeto pedido por Carter que recebi uma mensagem de . Mordi os lábios tentando conter em vão o sorriso que toma
va meu rosto. Aconcheguei-me na cadeira e li a mensagem de meu destinado.
: “Acabei de descobri que sou um meme. Isso é bom ou ruim?”
E, junto com seu recado, havia três imagens em que tinha o recorte de com uma expressão de desagrado com a bata de juiz em plena audiência judicial. Não pude evitar rir de cada uma das piadas e mandar risadas exageradas para ele.
: “Não se preocupe, isso é bom!”
Ponderei um pouco antes de mandar outra resposta. Eu me sentia nervosa em falar com ele, já que não fazia ideia do que éramos um do outro. Nunca tive certeza na verdade, mas agora a insegurança parecia maior.
: “Que tal a gente almoçar juntos hoje? Tem um restaurante legal aqui perto...”
demorou um pouco para responder e fingi ler algo que tinha escrito como base para o produto que tinha feito. Minutos depois meu celular vibrou e fiquei desapontada com sua resposta.
: “Não vou poder :( Tenho um almoço importante hoje. Te vejo à noite?”
Mandei uma mensagem positiva, embora estivesse com uma dorzinha no peito.
Após nos beijarmos na noite anterior passamos a trocar olhadelas e risos típicos de casal de quarta série. Ele parecia mais bonito, sedutor e principalmente encantador. Não lembro o teor da conversa, mas sei que antes de nos despedirmos, ele me beijou tirando me o fôlego — uma ótima forma de desejar boa noite.
Demorei para conseguir dormir. Meu cérebro teve bastante dificuldade de digerir tudo que tinha dito, pois ainda tinha uma desconfiança no fundo dizendo que ele não me contou tudo. Apesar disso adormeci suspirando, almejando sentir mais uma vez o gosto dos lábios do meu destinado.
De manhã apenas trocamos um bom dia, pois ele parecia estar super atrasado, embora fosse o mesmo horário de sempre.
No almoço mal pude prestar atenção no que minhas amigas falavam. Fiquei rabiscando um caça-palavras antigo, sem muita pretensão em terminá-lo, quando aumentaram mais uma vez o som da TV no refeitório. Muitos grupos pararam de conversar para assistir enquanto outros aumentavam o som das vozes para serem ouvidos; todavia a cacofonia não impediu que eu escutasse com clareza a repórter comentar sobre o Escândalo das Casas Mais Baixas.
Um nome horrível, tenho que admitir, mas fazia jus ao caso. Ela dava mais informações sobre o processo e divulgava a nota para imprensa feito pelos advogados da P.A.F.E.R.
— Pra mim essa história está muito estranha. — disse Mary olhando para a televisão. — Vocês viram que o advogado da “vítima” é o Specter? Ele não é muito caro para alguém da Ala baixa? Nem eu poderia pagá-lo.
— Pode ser um caso pró-bono. — argumentou Stella.
— Acho muito difícil. — continuou ela — Na época que eu era da Ala P, nunca tive problemas com essa empresa.
Levantei a sobrancelha, mas mordi minha língua para não puxar briga.
— Só porque eles foram honestos com você, não significa que serão com os outros. — disse Daisy como se fosse óbvio.
Mary deu os ombros.
— Eu só acho estranho. — resmungou voltando-se para sua comida intocada.
Durante a conversa percebi que Mary estava mais quieta, algo totalmente atípico. Até mesmo Franz, que costumava ser um túmulo, comentou alguma coisa quando o assunto mudou para celulares. Ao voltar para o trabalho, interceptei minha amiga perguntando se estava tudo bem e ela me deu uma resposta afirmativa. Mesmo querendo insistir, deixei que Mary voltasse para recepção, deixando claro que estava disponível para ouvi-la.
A tarde passou devagar e soltei um suspiro aliviada quando vi que meu expediente tinha acabado. Fiquei surpresa quando percebi que Carlos veio me buscar, ao invés do Bälmer.
— Senhor pediu para que eu a buscasse hoje, pois a mulher de seu motorista está em trabalho de parto. — justificou ele misturando o inglês com espanhol.
— Oh, muito bem. — respondi em espanhol — Há quanto tempo mora aqui no país, Carlos?
— Oito anos. — disse em sua língua materna — Não sabia que falava espanhol.
Dei os ombros e pelo retrovisor o vi sorrir.
— Trabalho para os Hoyers desde os trinta. — disse ele — Chaia me contratou assim que se mudou para o país e passei a trabalhar para quando ela morreu.
Enquanto conversávamos, descobri que a matriarca veio a falecer há cinco anos de uma parada cardíaca. Embora fosse de bom coração, tinha problemas com ele, disse Carlos. Rose estudava engenharia civil quando a conheceu e os pais dela não aceitaram muito a ideia de ter um genro dez anos mais velho que sua filha, motorista e mexicano, porém aqueles “defeitos” eram indiferentes para Rose.
Não demorou muito para que ela saísse do curso e começasse a fazer gastronomia. Seus pais ficaram loucos quando perceberam que não podiam a controlar, mas aceitaram suas mudanças com o passar do tempo. Apesar de Rose ser uma ótima cozinheira, ela não se encaixava em um restaurante, de acordo com seu marido. Trabalhar quase como chefe da casa de era muito mais gratificante para ela.
ㅡ Temos um menino de 7 anos, Jorge é o nome dele. ㅡ Comentou ele assim que chegamos em casa ㅡ Ele passa as tardes aqui com Rose, mas nesse horário está fazendo judô com o tio.
Sorri para ele.
ㅡ Espero poder conhecê-lo qualquer dia desse.
Ao entrar na cozinha, deparei-me com Rose perguntando o que eu queria para jantar, no entanto pedi para cozinhar naquele dia, pois sentia falta de fazê-lo. Ela me olhou desconfiada em resposta, com um sorrisinho de lado que sugeria segundas intenções.
ㅡ Tá querendo conquistar o chefinho pela barriga, hein? Muito inteligente da sua parte.
Neguei veemente mesmo com meu rosto esquentando e denunciando minha façanha.
Depois de me ensinar onde estava cada coisa, comecei a pegar os ingredientes para fazer um Risotto. Rose avisou-me que estava trancado há três horas em seu escritório trabalhando e provavelmente ia estar morto de fome quando saísse.
Quando fui até seu escritório já se passara uma hora e meia em que tinha chegado em casa; tinha me banhado e vestido um casaco e calça jeans.
Abri a porta devagar e ela não fez ruído algum. Por um minuto analisei com um olhar perdido, sentado em sua cadeira estofada.
Seu escritório tinha uma decoração amadeirada e escura, com coleções de livros suficientes para uma biblioteca privada. Atrás de sua mesa havia uma grande janela de vidro que dava para o jardim.
mexia as mãos cautelosamente e falava algo em alemão, como se tentasse entrar em consenso com sua mente. Ele puxou os cabelos para trás e começou a batucar os dedos em sua testa, como tentasse lembrar de alguma coisa. Suas roupas estavam amassadas e a gravata já se encontrava jogada em cima de uma das cadeiras da frente.
Bati levemente a porta para chamar sua atenção e ele ergueu a cabeça alarmado e com os olhos esbugalhados.
— Desculpa, não quis lhe assustar.
— Não há nenhum problema, eu que estou distraído demais. — Disse voltando a pilha que estava sobre a mesa.
Fitei a bandeja em cima de uma cadeira cheia de biscoitos basicamente intocada.
— Está com fome?
Ele balançou a cabeça negando sem me olhar.
Cruzei os braços não entendendo sua atitude tão distante. Meu estômago se embrulhou em ver minhas expectativas por aquela noite murchar aos poucos. O que eu esperava, afinal?
Abri a boca para pedir — quase ordenar — que ele descesse e comesse algo quando soltou um suspiro de frustração.
— Qual é o problema? — indaguei me aproximando.
— Faz quatro malditas horas que tento ler isso e não consigo entender absolutamente nada.
— Talvez você devesse dar uma pausa — sugeri gentilmente — Fiz risotto e tá com uma cara tão boa…
Ele franziu o cenho.
— Você fez? Não a Rose?
Dei os ombros.
— Gosto de cozinhar.
Meu destinado olhou mais uma vez para sua mesa em dúvida.
— Quero terminar isso hoje.
Me posicionei atrás de sua cadeira e massageie seus ombros. Senti seus músculos tensos relaxarem devagar.
— O que há de errado em fazer uma pausa? — perguntei beijando sua bochecha.
agarrou minha mão direita e beijou a palma lentamente. Estremeci no íntimo quando ele roçou o nariz na minha pele e fiquei feliz por saber que o outro sabonete artesanal de Daisy também surtia efeito.
— Vem, você come e depois volta pra o trabalho — falei dando tapinhas encorajadoras em seu ombro.
— Estou meio enjoado. — Disse ao se levantar de supetão.
Como para confirmar seu pensamento, desequilibrou-se por alguns segundos e se segurou na mesa.
Meu sangue gelou quando o vi arregalar os olhos e balançar a cabeça tentando voltar a órbita. Pus a mão em sua cintura com o coração na mão.
— , está tudo bem?
— Só uma tontura. — Comentou ele piscando repetidamente.
— Quando foi a última vez que você comeu? — perguntei com tom acusatório.
— Sei lá. — Respondeu — No almoço? Hm… É, foi no almoço.
— Não me surpreende que você esteja sem conseguir se concentrar. — resmunguei — Você precisa cuidar de sua saúde, . É a primeira vez que sente tontura?
Ele balança a cabeça negando.
— Não precisa se preocupar, vou comer o Risotto e estarei novinho em folha. — disse com um sorriso encantador.
me colocou em sua frente e aproximou-se para beijar-me. Mesmo o desejando — e muito — não cairia naquele jogo. Cruzei os braços e dei um passo para trás.
— Sabe o que eu acho? Acho que você deveria ir ao médico — afirmei sem cerimônia.
— Eu vou amanhã — falou dando um passo para frente e segurando meus braços devagar até que eles ficassem livres ao lado do meu corpo.
— De verdade? Mesmo sendo um sábado?
concorda com a cabeça.
— Tenho consulta marcada. — disse ele concentrado em mirar meus lábios — Você vai ver que estou perfeitamente saudável.
Bufei.
— Espero que sim. — eu disse descontente.
— Provavelmente meu mal estar vem da minha má alimentação, só isso. — garantiu ele — Eu vou me cuidar, prometo.
Mirei-o desconfiada por um tempo e fez questão de fazer sua melhor cara de inocência.
ㅡ Tudo bem. ㅡ eu falei por fim deixando meus ombros caírem ㅡ Você sabe que só falo isso porque me preocupo, não é?
Ele me dá um sorriso genuíno, aquele que faz meu estômago congelar. toca em meu queixo e inclina-o em sua direção. Apoio-me em seu peito, segurando-o pela camisa que usava.
ㅡ Eu sei que sim. ㅡ falou em um sussurro. ㅡ Obrigado por se preocupar comigo.
ㅡ É um trabalho pesado, Excelência. Mereço um salário. ㅡ respondi sorrindo para ele e com o olhar recaído em sua boca.
O calor da novidade de beijar era deslumbrante. Grudei-me em seu corpo e ele mordeu meu lábio inferior com avidez. Suas mãos abraçavam meu corpo delicadamente antes de roçar a boca em meu queixo, provocando-me. Ao ver minha pele arrepiada, meu destinado riu e se afastou.
ㅡ Vamos comer! ㅡ exclamou ele me arrastando para fora do escritório.
Porém a essa altura minha fome era de outra coisa.
Enquanto comíamos eu e o projeto para Coral se tornou o foco da conversa. se mostrava bastante interessado no meu trabalho, mesmo eu percebendo que aquele número de perguntas era apenas para disfarçar o fato de que ele mal tocou na comida.
Apesar de saber que ele não comia por causa de seu mal estar, me senti um pouco mal em não vê-lo desfrutar da minha comida. Eu gostava de cozinhar e até mesmo inventei pratos com os poucos ingredientes que possuía em casa e sempre recebi vários elogios. Aquilo era uma das poucas coisas que fazia questão de ser pomposa sobre.
ㅡ Está muito bom. ㅡ elogiou ele ao terminar de comer suas quatro garfadas.
Sustentei o olhar para ele por alguns segundos e me virei para a lavadora de pratos e guardei a louça suja.
ㅡ Obrigada. ㅡ murmurei sentindo uma inquietação estranha.
foi até a mim e pôs as mãos nos meus ombros.
ㅡ O que foi? ㅡ Indagou.
ㅡ Nada, eu só… ㅡ suspirei e virei-me de frente a ele ㅡ Você nunca me falou o motivo de usar remédio controlado ㅡ lembrei repentinamente.
Ele apertou os lábios e me analisou por um tempo. Aquela atitude era parecida com a que tinha no dia anterior ㅡ uma luta interna para não se fechar em seu casulo e me deixar na escuridão. Podia até vê-lo se afastar de mim.
ㅡ “Quero que você me conheça por inteiro” ㅡ repeti a sua frase com mágoa e levantei a sobrancelha.
Demorou alguns segundos até que ele soltou a respiração cansada e desviou o olhar ao dizer:
ㅡ São antidepressivos.
Fiquei em silêncio, sem saber exatamente o que dizer. De todas as coisas que se passaram em minha cabeça, nenhuma delas envolvia depressão. era um homem bem de vida, bonito, divertido e cheio de energia ㅡ não que isso evitasse a total existência da doença, mas me fazia questionar se eu prestava atenção o bastante nele.
ㅡ Eu troquei de remédios há três semanas atrás e eles são mais pesados, por isso tenho falta de apetite e diversos efeitos colaterais. ㅡ explicou ele.
Abracei-o forte meio arrependida por ter pressionado daquela forma, mas ao mesmo tempo feliz por finalmente saber o que diabos acontecia com ele.
ㅡ Desculpe ter sido tão insensível com você. Eu não fazia ideia.
ㅡ Você não foi. ㅡ ele disse com um sorriso cansado ㅡ Só não sei como lidar com isso direito, . Mesmo esses problemas psicológicos sendo antigos, eles estão sempre ali, uma sombra que nunca me deixa ir embora.
ㅡ O que você quer dizer com problemas? No plural?
Ele engoliu o seco. Sua respiração pesou e consegui ver um sofrimento aterrorizante por seus olhos escuros. Meu peito doeu, pois minha intuição diz que há marcas e cicatrizes profundas em lugares que nunca teria acesso. Qual seria a causa da sua depressão?
ㅡ Eu confio em você, . Juro que confio. ㅡ falou com um tom de súplica ㅡ Mas posso deixar isso para outro momento? Por favor.
ㅡ Sim, meu amor. Sim. ㅡ As palavras escorregam pela minha boca antes que eu pense e o beijo desesperadamente.
Queria aplacar qual seja a dor que sente com o carinho que possuía por ele. Minhas mãos tremeram ao acariciar seu pescoço e gritei no meu interior as palavras que não tinha coragem de dizer em voz alta.
Eu estou aqui, . As coisas vão ficar bem, você vai ver.
Meu destinado descansou sua cabeça em meu ombro, uma cena engraçada para quem olhasse de fora, pois ele era mais alto que eu. fungou meu pescoço e soltou uma risadinha.
ㅡ Mein Gott, amo seu cheiro.
E meu coração se encheu de ternura que só aquele homem podia me proporcionar.
…
Na manhã de sábado acordei mais cedo do que pretendia. Não havia ninguém pela casa, nem mesmo os empregados; lá fora pude ver todo o jardim coberto de neve. Fiquei na sala vendo um programa qualquer de culinária enquanto checava pelo celular as ruas que estavam fechadas por causa da tempestade que houve de madrugada.
Eu havia conversado com Jean antes de ir à Ala A e marcado para encontrá-la na Clínica ainda antes do almoço. Mal podia esperar para contar para ela e Ivanna o que aconteceu naquela semana, embora tivesse que ir carregando a notícia de que boa parte das roupas que Ivanna fez com tanto carinho foram destruídas.
Quando ouvi um barulho vindo da cozinha deduzi que era Rose e fui em sua direção, no entanto o som da campainha, alto o suficiente para acordar todo o primeiro andar, me fez hesitar.
Não havia TV alguma no corredor em que estava, por isso não fazia ideia quem era. Demorou alguns segundos para que um estrondo das grandes portas principais fosse ouvido e passos ligeiros chamaram minha atenção.
Assim que cheguei na cozinha, fui atropelada por trás por duas crianças. Desequilibrada, agarrei-me na parede para não cair de vez.
— , hora de trabalhar! — uma voz masculina gritou — Pirralhos, parem de correr! Tem comida para… oh!
Se interrompeu ao me ver agarrada à parede com uma expressão confusa e eufórica.
— Olá! Desculpe o transtorno, só estamos à procura do Senhor . Sabe onde ele está? — Perguntou educadamente.
O rapaz aparentava estar na faixa etária de 19-22 anos e era muito alto. Continha alguns traços parecido com , mas nada muito gritante. Os cabelos, por exemplo, eram escuros enquanto os olhos eram azuis como o céu.
— Acho que ele está dormindo ainda. Quer que eu suba e o chame? — Me ofereci solícita.
— Senhorita ?
Virei-me para trás e só então observei que as duas crianças que me atropelaram eram as filhas de meu chefe. As duas tinham cabelos loiros, olhos claros e um nariz meio arrebitado de Carol Carter. A mais nova, que se chamava Rowe, no entanto, tinha um ar mais inocente e confuso que a irmã.
— Oi, meninas. — Falei nervosa.
— A senhora é secretária do também? Assim como do papai? ㅡ Indagou Presley Carter, a mais velha.
Olhei para os lados procurando uma resposta para aquilo sem que me comprometesse. Felizmente não tive tempo para dizer alguma coisa, pois uma adolescente morena, com a idade de Jack, apareceu de repente. A mesma segurava um menino com a capa de um trompete na mão.
ㅡ está lá em cima dormindo. ㅡ disse ela cheia de segundas intenções.
Os visitantes se entre olharam compartilhando um sorriso maléfico e um plano que ia além da minha imaginação. Esquecendo-se de mim, o grupo saiu em passos apressados. Olhei para o fogão e encontrei Rose com uma expressão tão confusa que eu.
Fui cuidadosamente ao andar de cima e cheguei a tempo de vê-los entrar no quarto de com risinhos graduais. Quando alcancei a porta, vi o rapaz mais velho segurando um trompete no ouvido de meu destinado e as três crianças prontas para pular em cima da cama de casal. Deitado, sem saber o que lhe aguardava, dormia como um bebê.
A adolescente contou em alemão.
Eins, zwei, drei.
O som do instrumento soou com o despertador mais insuportável de todos os tempos; para piorar, as crianças subiram na cama e começaram a pular na cama como se fosse um pula-pula recém montado. A cena se completou com levantando-se em um solavanco assustado e desesperado; um grito de terror enterrado na garganta. Pus a mão na boca para segurar a risada, contudo o grupo não teve o mesmo pudor e caiu em gargalhadas.
Sai do caminho quando vi meu destinado ficar vermelho de raiva e trincar os dentes. Os gritos em alemão vieram depois e o grupo correu entre gritos histéricos e risos afetados; bateu a porta com fúria e por um segundo acreditei que a mesma seria destroçada pela sua força.
ㅡ Eu avisei, Prince. ㅡ afirmou a morena com um ar de riso. ㅡ Sou Luna -Smith, prazer. ㅡ falou ao perceber-me ao seu lado assistindo toda a cena.
ㅡ Sou e uau acho que vocês acordaram uma fera que eu não conhecia. ㅡ comentei assistindo-os voltarem à escada, provavelmente em direção à cozinha.
Minutos mais tarde enquanto atacavam um bolo feito no dia anterior por Rose, descobri que os visitantes não eram estranhos naquela casa, na verdade, eles eram os primos que costumavam visitar ao periodicamente. O rapaz mais velho era Spencer , estudante de teatro e música na Universidade de Columbia e meio irmão de Luna, que ia entrar na faculdade de música no próximo semestre; o menino mais novo era Jason Ruthford, também primo deles.
De acordo com o que me falaram, meu destinado havia marcado para ensaiar as apresentações de Natal aquele final de semana e prometeu acordar cedo. Sabendo que seu primo nunca o fazia, Spencer e Luna ameaçaram acordá-lo com muito barulho se ele não cumprisse o horário.
Dito e feito.
Em meio a piadas e histórias de reuniões de família, acabei não vendo o tempo passar e quase me esquecia que ainda ia para Clínica. Foi só quando Nelson Balmër, meu motorista e guarda-costas, apareceu dizendo que não podia me autorizar sair sozinha sem o aval de que Luna fez uma pergunta sobre mim.
ㅡ Você e são só amigos?
Eu percebi onde ela queria chegar apenas pelo tom da sua voz. Até mesmo as meninas que discutiam sobre qual princesa era mais legal pararam um segundo para ouvir minha resposta.
Além de não saber como responder essa pergunta, não podia dizer simplesmente que èramos destinados, pois sei que corria o risco de uma das meninas falar alguma coisa para os pais e a última coisa que eu queria no momento era que Albert Carter soubesse pela suas duas filhas pequenas.
ㅡ Eu e ele somos só amigos.
ㅡ Só amigos? ㅡ Indagou mais uma vez Spencer sem acreditar.
ㅡ Só ㅡ reafirmei.
Mas assim que falei percebi que foi um erro.
havia acabado de entrar na cozinha apressado e parou rapidamente ao ouvir o teor da conversa. Ainda carregava uma cara amassada de quem acordou há pouco tempo e vestia um casaco pesado de inverno e segurava um par de luvas, touca e um cachecol verde.
Sua expressão era de decepcionado, mas logo se transformou em uma carranca fofa e meu estômago embrulhou de antecipação. Ele era lindo sorrindo, sério ou mesmo desconcentrado, mas com raiva ele era simplesmente…
Engoli um suspiro.
ㅡ Vejo que já conheceu os pirralhos. ㅡ disse ele tentando soar brando e falhando miseravelmente.
ㅡ Eles são uns amores. ㅡ respondi em contrapartida.
ㅡ Não hoje ㅡ resmungou lançando um olhar severo para eles.
As crianças deram um sorriso inocente e quase pude ver as auréolas em cima de suas cabeças.
ㅡ Posso pegar um dos seus carros? Marquei de encontrar Jean na Clínica agora de manhã. ㅡ pedi ㅡ Quero ir só dessa vez.
Ele abriu a boca para responder, mas hesitou. Tirou a chave que estava dentro do bolso da calça jeans e jogou em minha direção.
ㅡ Diga ao Balmër que você não precisa de escolta ㅡ avisou enquanto atravessava a cozinha até a porta para o estacionamento ㅡ Afinal, eu não mando guarda-costas para cada um dos meus amigos, não é verdade?
Aí.
Ok, eu mereci isso.
ㅡ Onde você vai? ㅡ indagou Luna a ele.
ㅡ Tenho uma consulta agora de manhã. Volto mais tarde.ㅡ Respondeu e sumiu do nosso campo de visão.
Presley virou para Spencer parecendo desolada.
ㅡ Prince ficou muito chateado, eu não queria que ele ficasse assim ㅡ disse ela com um bico.
ㅡ Não se preocupe, ele vai ficar bem ㅡ falou Luna fazendo carinho em seus cabelos ㅡ Ele vai voltar melhor, você vai ver.
ㅡ Por que Prince? ㅡ perguntei curiosa.
ㅡ Teve uma vez que ele cantou duas músicas de Prince nas apresentações de Natal e o apelido acabou ficando. ㅡ Spencer disse me com um dar de ombros.
Ao entrar no estacionamento mexi no controle do alarme do carro para saber de qual automóvel era a chave. Passei cinco minutos babando a moto de , mas o porsche que ele me emprestara era bom demais para ser deixado de lado.
O carro tinha cheirinho de novo e estava com o tanque cheio. Saí em uma velocidade pequena, já que as ruas estavam escorregadias. Cheguei na Clínica perto da hora do almoço arrependida de não ter trazido as luvas comigo.
Encontrei Jean tremendo de frio e com os lábios brancos esperando-me do lado de fora. Depois de lhe dar uma bronca por correr o risco de ter hipotermia, entramos no prédio onde Ivanna vivia.
Por ser das Alas mais privilegiadas, minha amiga desfrutava de um lugar maior do que a maioria dos pacientes. Havia espaço para sua máquina de costura, um banheiro e um quarto; além do mais, seu quarto era perto do refeitório, onde ficamos a maior parte do tempo do nosso encontro.
Foi difícil contar a Ivanna sobre o que aconteceu com as roupas que ela um dia fez para mim. Com o coração pequeno no peito, vi seu rotiniro sorriso de deboche murchar quando dei a notícia. Percebendo o que acontecia, Jean contou um mico que tivera no seu primeiro dia de estágio para mudar o clima.
ㅡ Eu paquerei meu chefe, ㅡ disse cobrindo o rosto com as mãos ㅡ Que vergonha!
ㅡ Normal, criança. ㅡ falou Ivanna empurrando um copo de chocolate quente para ela ㅡ Isso acontece o tempo todo nos filmes.
Soltei uma risada com a cara de “sério?” que Grey fez para a mais velha.
ㅡ Que saia justa! ㅡ comentei a fitando tomar um gole de sua bebida. ㅡ Mas nada comparado ao banho de suco que dei em quando nos conhecemos.
Jean engasgou e ficou entre tosses e risadas. Dei tapinhas nas costas dela enquanto Ivanna ria da situação.
ㅡ Se o fato dele ainda ir atrás de você depois dessa amorosa recepção não é uma prova de amor, não sei o que é ㅡ falou Ivanna. ㅡ Aliás, você ainda está se fazendo de difícil para ele? Mesmo morando juntos?
ㅡ Já beijou ele? ㅡ Indagou Jean interessada.
ㅡ Ah, minha filha. ㅡ Respondeu Ivanna ㅡ A essa altura eles com certeza fizeram algo além de beijar…
Senti todo meu corpo esquentar de vergonha e soltei um grito para que ela parasse.
ㅡ E eu falei alguma mentira?
Jean soltou um gritinho animado.
ㅡ Quero saber todos os detalhes ㅡ disse Grey.
ㅡ Nós apenas nos beijamos, apenas isso! ㅡ repliquei.
ㅡ Ele beija bem?
ㅡ Você tem quantos anos, Jean? Doze? Que tipo de pergunta é essa? ㅡ Resmungou Ivanna.
Sentindo uma vergonha enorme, contei que estava conhecendo melhor meu destinado e cada vez mais via que ele era uma pessoa muito interessante. Escolhi as palavras com cuidado, tentando parecer mais racional possível e enganando a mim mesma falando que não estava levando para o lado emocional.
Ainda não conseguia organizar meus sentimentos.
Já havia me apaixonado antes. Quando estive com fui impulsiva e passei por cima até da promessa que um dia fiz a minha mãe e apesar de sair machucada no final, foi algo que eu precisava fazer.
No entanto me despertava um paradoxo de sentimentos intensos e ao mesmo tempo simples. Não tinha como ser prática com ele.
ㅡ OK, já entendi a parte técnica da coisa. ㅡ interrompeu Ivanna ㅡ Agora quero saber se você gosta dele.
Parei um segundo para pensar e captei a imagem de na última semana. O sorriso desenhou-se em meus lábios de forma involuntária.
ㅡ Eu gosto dele sim. Seria maluca se não gostasse.
Ainda pensava nisso enquanto voltava para casa no final da tarde. Jean estava estranhamente quieta ao meu lado enquanto íamos à Ala O. Fiz menção de ligar o rádio quando ela resolveu dizer o que a incomodava.
ㅡ Sei que não quer saber de , mas me preocupo muito com ele ㅡ desembuchou ㅡ Nos últimos dias percebi que ele tem andado alarmado e se assustando com facilidade. Será que seu destinado tem a ver com isso?
ㅡ Claro que não. ㅡ parti em sua defesa ㅡ tem mais coisas para se ocupar do que meu ex-namorado.
Ela levantou as mãos em rendição.
ㅡ OK, não está mais aqui quem falou.
Soltei um suspiro.
ㅡ Jean, com certeza seu irmão está bem. Ele é um homem adulto e embora seja levemente perturbado, é esperto. ㅡ Afirmei fazendo-a rir. ㅡ Além disso já disse o que queria dizer naquele dia, não tem porque fazer algo contra ele. Duvido que se lembre ainda da existência de .
ㅡ Tem razão ㅡ ela confirmou ㅡ Até porque qualquer um pode ver que você está caidinha por ele.
ㅡ Não é bem assim. ㅡ repliquei.
Minha amiga não disse nada, mas manteve um sorriso que dizia muito mais do que qualquer resposta.
Depois de me despedir dela, demorei alguns segundos olhando para porta de casa interditada pela polícia no começo da semana. Minha casa na Ala O continha minha infância, adolescência e parte da vida adulta; carregava lembranças de uma família simples e feliz e como ela foi reduzida com o tempo.
Eu estava ali na frente de casa quando a notícia de que meu pai tinha morrido chegou aos nossos ouvidos.
De repente me senti muito sozinha.
A cozinha da casa de estava repleta de bandejas com quitutes para os visitantes. Ofereci minha ajuda e junto com mais duas empregadas ㅡ que eu não conhecia ㅡ subi até o salão de música do segundo andar.
Eles estavam no final de uma cantiga natalina em alemão quando chegamos com a comida; Luna era quem cantava soprano belíssimo, Presley tocava seu violino desajeitadamente, Spencer usava seu trompete, Jason e Rowe, por ser os menores, tocavam tambores; e, claro, havia meu destinado com seu saxofone. Ao terminar a música, as crianças deixaram seus instrumentos de lado vorazmente; Spencer os acompanhou, mas Luna pediu para tocar no violão a canção que haviam ensaiado mais cedo.
Sentei-me no sofá mirando meu destinado com cuidado. Ele aparentava estar mais calmo, embora tivesse seu rosto claramente cansado. trocou o saxofone pelo violão e começou a tocar uma melodia lenta e romântica; me surpreendendo, meu destinado cantou a primeira parte da letra.
Sua voz era um tenor morno, afável e doce para meus ouvidos. Era como estar rodeada de conforto e de calor apenas pelo som da suas palavras. O eu-lírico da composição fazia promessas para pessoa amada, dizia que iria amá-la como nunca ninguém o fizera. Dizia que não importava onde eles estivessem, ele só precisava estar com ela.
A voz de Luna era a que mais se destacava; ela tinha uma técnica vocal esplêndida e rara em mocinhas tão jovens como ela. Se fosse em um programa de talentos ela seria aquela artista promissora que todos se perguntavam o motivo de não ser mais famosa.
Ainda assim minha atenção estava em . Ele parecia mais acanhado do que quando tocava saxofone. Todos olhavam para Luna, mas eu apenas via meu destinado.
A música se tornou cada vez mais romântica e sensual. A harmonia entre as vozes era instável, mas me ajudou a fitar com mais afinco. Sentia estar sozinha naquele cômodo com ele, como na noite em que curtimos jazz; havia mais intimidade no entanto.
Então ele olhou para mim e algo dentro de mim derreteu. Quase podia escutar o som dos meus batimentos ao perceber que um brilho prateado que cruzava seu olhar era direcionado a mim.
Sua expressão não mudou, embora Luna tenha alcançado uma nota alta e surpreendido todos que assistiam o show particular.
Mesmo encantada com o talento de sua prima, não tive muito tempo para pensar nela. Como se clamasse pela minha atenção, cantou uma estrofe em francês. Minhas pernas ficaram bambas e fiquei feliz em ter sentado antecipadamente. Já havia ouvido meu destinado falar em alemão e espanhol, mas nada se comparava ao seu jeito convidativo de sussurrar na língua francesa. Seus lábios pareceram mais vermelhos e experimentei uma sensação arrebatadora que me consumia por inteira.
Eu deveria estar babando descaradamente, pois ao terminar a música ele me deu um sorriso que dizia “eu sei o que você está pensando e sim, eu faço de propósito”.
…
Apesar de não ter passado a maior parte do tempo com eles, os primos de foram bastante simpáticos ao se despedir. Parabenizei-os pelo trabalho, principalmente Luna, que se mostrou muito tímida com meus elogios. Com eles indo embora e os empregados também, a casa parecia exageradamente vazia.
Estranhei quando vi sair da cozinha à passos apressados e devorando macarrão instantâneo como se fosse um manjar. Acompanhei-o com o olhar e gritei:
ㅡ Como foi a consulta?
Ele parou de súbito na escada e virou-se para mim. Com a boca cheia disse-me:
ㅡ Foi bem, inclusive tenho uma consulta com um nutricionista na terça. ㅡ respondeu e engoliu a comida ㅡ Se precisar de mim estarei no escritório.
ㅡ Hm, posso pegar um livro na sua biblioteca? ㅡ indaguei acompanhando seu passo.
ㅡ Não sei ㅡ disse levantando as sobrancelhas ㅡ Somos amigos suficientes para isso?
E ali estava: o ponto que deveríamos discutir. Ao contrário do que ele pensava, sorri dócil para ele.
ㅡ Sim, nós somos. ㅡ Respondi ㅡ Inclusive tivemos uma longa conversa para estabelecer que dois beijos roubados me faz querer dizer a todo mundo, inclusive as filhas do meu chefe, que sou sua destinada, não é?
Ele ficou calado e deduzi que sabia que eu tinha razão.
ㅡ Foi o que eu pensei.
Entrei em seu escritório que já estava aberto e fui em direção a parte em que eu imaginava ser o lugar dos livros de ficção.
ㅡ , ainda assim acho que não… ㅡ disparou em falar mostrando-se impaciente atrás de mim.
ㅡ Amanhã nós conversamos com mais calma, . ㅡ falei sem olhá-lo ㅡ Você está estressado e eu entendo o porquê, mas não sou obrigada a ser bode expiatório.
Puxei um livro rosa quando eu vi o nome Natashia e Evie na capa. A capa era bonita; tinha detalhes lilás e o desenho mostrava uma menina acima do peso. O nome era “O Corpo Que Pedi A Deus”. Franzi o cenho e virei-me para meu destinado.
ㅡ Nunca imaginaria que você gostasse de chicklit.
ㅡ É um dos livros da minha mãe com tia Evie. ㅡ Respondeu. ㅡ Não gosto desse gênero, mas Natashia ainda é a minha progenitora.
ㅡ Ela tem algum livro que dedicou a você?
esticou o braço e pegou um de capa verde chamado “A Lei do Sr. Cohrigam” com o design parecido com o outro e o desenho de um advogado loiro. Nas primeiras páginas havia a dedicatória: Para meu filho .
ㅡ Vai me dizer que ela inspirou-se em você para fazer o Cohrigam. ㅡ Comentei com um ar de riso.
ㅡ Eu não sou tão arrogante assim. ㅡ Reclamou ㅡ Nem ambicioso.
Guardei o primeiro livro e fiquei com o que Natashia dedicou para meu destinado. estava atrás de mim e quando virei para partir esbarrei nele.
ㅡ Vamos ver se minha sogrinha é uma boa escritora mesmo. ㅡ Fiz graça e dei um beijo em sua bochecha ㅡ Boa noite.
Mas antes de sair, agarrou meu braço e puxou-me contra seu corpo. Senti os músculos do seu tronco rígidos e embora não estivesse mais carrancudo, eu sabia que seu mal humor não tinha morrido de vez.
E eu o entendia completamente. O dia foi longo e se eu tivesse sido acordada da mesma maneira que ele, era bem provável que uma das crianças morreria estrangulada.
ㅡ Mereço um beijo de verdade antes de dormir.
Olhei para ele cética, apesar de manter-me tentada a fazê-lo. Apertei os lábios um contra o outro analisando-o.
ㅡ Hoje você vai ter que beijar seu trabalho.
Escapei de seus braços e corri para meu quarto. Felizmente ele não me seguiu, já que dificilmente conseguiria resistir mais uma vez. precisava de um tempo à sós e eu precisava confessar a mim mesma que queria tentar um relacionamento com ele.
…
Acordei mais tarde do que pretendi no domingo por causa do livro A Lei de Sr. Cohrigam. Bruce Cohrigam era uma advogado bem sucedido que defendia os piores tipos de criminosos e costumava sempre ganhar os casos ㅡ mesmo que a vitória fosse a redução da pena. Ele pegou um caso particularmente fácil: o chefe de uma empresa de bebidas estava assediando uma das suas executivas e ele precisava defendê-lo. Tudo mudou quando ele descobriu que aquela executiva era sua ex-noiva, a única mulher que um dia tinha balançado seu coração.
A escrita era gostosa e fluia com facilidade. Mesmo não sendo uma leitora voraz e ter lido no máximo seis livros de ficção na minha vida, me vi tentada a passar a madrugada lendo aquela história.
Havia uma mulher diferente na cozinha de manhã e descobri que Rose tinha um dia de folga escolhido por ela toda semana. A cozinheira se chamava Clarie era bem mais calada e parecia temerosa quando me viu procurando algo para comer nos armários.
Depois de desfrutar algumas torradas feita pela cozinheira substituta, fui de elevador até o terceiro andar da mansão de , pois ela me avisou que o mesmo estava lá. Eu ainda não conhecia aquela parte da propriedade e me peguei pensando o porquê de tanto espaço para uma casa que vivia apena suma pessoa.
O terceiro andar se constituía praticamente em um salão de festas para churrascos ou qualquer reunião de família. A parede lateral era feita de vidro e podia se ver todo o terreno coberto de neve; o aquecedor, no entanto, não tinha tanta força naquele andar.
estava deitado com uma coberta em uma das espreguiçadeiras com um notebook no colo e segurando uma maçã mordida. Ele olhava para fruta como se fosse uma espécie de alien e não pude evitar sorrir com isso.
ㅡ Ela não está envenenada, Branca de Neve. ㅡ Brinquei ao chegar no seu lado.
ㅡ Saiba que só estou comendo isso porque você me pediu para cuidar da saúde. ㅡ replicou ele ㅡ Não estou com fome.
Olhei para uma mesinha cinza perto dele e vi uma bandeja com o café da manhã intocado.
ㅡ Me sinto honrada de saber que me escutou finalmente.
Deixando a fruta de lado, fechou o notebook e o deixou no chão com displicência.
ㅡ Vem aqui ㅡ pediu ele abrindo espaço em seu cobertor.
Ao ver que a esbreguiçadeira era forte o suficiente para nós dois e que meu corpo perdeu o calor habitual, me meti nos lençois abrançando-o com firmeza.
Com a cabeça apoiada em seu peito, senti uma pulsação diferente ao ter o corpo de tão colado ao meu. Estremeci, mas não de frio, e sim de desejo quando seus lábios beijaram minha orelha.
ㅡ Vejo que acordou com bom humor hoje. ㅡ eu disse.
ㅡ Sobre ontem, peço desculpas. ㅡ Sussurrou ele incapaz de falar alto quando estava tão perto de mim ㅡ Você tinha razão, é muito melhor conversar agora que estou com a cabeça fria.
Levantei os olhos para ele e me defendi:
ㅡ Não fiz nada de errado quando falei que éramos só amigos.
não pareceu me ouvi e afundou seus dedos em meu cabelo macio fazendo um pequeno cafuné. Meu corpo se arrepiou quando ele inclinou-se e beijou-me invadindo minha boca com o desespero de quem não me via há dias. Sua língua experimentava minha boca como se fosse o doce que ele mais desejava no mundo e uma névoa se apoderou da minha mente. Só Deus sabia o quanto o quis naquele momento. Não consegui pensar direito e demorei alguns segundos a mais quando subitamente se afastou e sussurrou:
ㅡ Nós não somos só amigos.
Perdi o raciocínio quando vi seu olhar intenso fazendo-me formigar, mas formulei a frase:
ㅡ Então eu estava errada em não querer que Presley saísse correndo para contar sobre nós a Carter?
Ele balançou a cabeça negando.
ㅡ Você estava certa, quero que ele saiba por nós e não por terceiros. ㅡ ele sorriu ㅡ Só desejo que se lembre desse momento toda vez que disser que somos apenas amigos.
Como se em algum momento eu fosse capaz de esquecer, quis replicar, porém apenas assenti.
Estava adorando conhecer aquela nova faceta do .
ㅡ Se não somos só amigos, o que somos? ㅡ indaguei curiosa.
ㅡ Somos destinados, oras. ㅡ Respondeu com seu sorriso “eu sei de tudo, bobinha”.
Abri a boca para replicar alguma coisa, mas seu celular começou a vibrar entre os lençóis. Ele ficou sério ao ler quem era e se levantou para atender.
ㅡ falando.
Cada vez mais que os segundos se passavam mais seu rosto ficava duro como mármore e o nosso momento de diversão parecia nunca ter acontecido.
ㅡ , o que houve? Aconteceu alguma…
Parei de falar assim que ele ligou a telvisão esquecida no canto e colocou no canal de notícias. Mais uma vez meu corpo ficou todo gelado e uma sensação de pânico me invadiu quando li o assunto daquela manhã de domingo na CNN e vi uma foto minha na TV:
Destinada do Desembargador é quem processa a P.A.F.E.R, colocando o verdadeiro motivo em xeque.”
Capítulo 18
“Se eu te dissesse que isso só iria machucar? Se eu te avisasse que o fogo iria queimar? (...) Você apelaria pelo nome do amor?” - In The Name Of Love, Martin Garrix feat. Bebe Rexha
Aquele domingo que começou tão agradável se tornou um caos instaurado. andava para os lados do seu escritório fazendo inúmeras ligações e pela primeira vez o vi xingar em nossa língua.
Eu tentava ser a mais calma e racional de nós dois, mas minhas mãos tremiam. Os nervos estavam à flor da pele e ver a matéria por inteiro não ajudava. O jornalista falava exatamente o que os advogados da L&James me disseram no dia do depoimento, entretanto ainda tinham uma expressão mais neutra ao relatar os “fatos”.
O assessor de meu destinado apareceu horas depois tremendo de frio como se tivesse vindo andando de sua casa até a Ala A. Mais tarde descobri que ele havia sido tirado do meio da criação de um boneco de neve com os dois filhos pequenos. O homem parecia muito jovem, apesar de ter bolsas escuras abaixo dos olhos azuis. Foi educado comigo, mas estava mais ocupado em não ser engolido vivo pelo .
— Qual a solução que você me sugere, Seth? — indagou ainda vermelho de raiva.
— Confirme que ela é a sua destinada e que não tem nada a ver com o processo. Deixe o resto com Specter. — Respondeu fazendo bufar — Eu lhe falei que isso ia acontecer mais cedo ou mais tarde, . Com todo o respeito, sua ex-mulher era muito melhor se escondendo do que sua destinado.
Mexi-me desconfortável na cadeira assim que ouvi suas palavras. Ser comparada com a ex de não era lá uma das coisas mais legais do meu dia.
— Você acha que foi a Ruby? — indagou meu destinado.
— Ela está tentando sabotar sua pseudo campanha, isso é fato. — Seth fez uma careta — Seria uma tacada de mestre se você fosse se candidatar mesmo.
— Você não vai se candidatar? — Perguntei para confusa — Mas todo mundo está falando que você será nosso próximo governador!
Ele deu uma risadinha.
— Não quero mais gente me odiando de graça. — Explicou — Ademais minha fase de querer mudar o mundo já passou.
E virou-se para seu assessor.
— Quanto tempo para conseguir uma ordem de restrição para ? Quero paparazzis e jornalistas o mais longe possível.
— Duas semanas no mínimo.
titubeou.
— Publique uma nota oficial negando a história e apele. Diga que ela veio da Ala O e que antes de me conhecer não sabia que estava sendo roubada. — Aconselhou Seth.
Meu destinado soltou um suspiro.
— Vamos ter que aceitar o acordo, se pegarmos Joaz Kovish a causa será perdida. — pensou alto — Irei resolver isso com Specter e lhe mandarei por email a nota para ser publicada.
Seth assentiu e tirou o celular do bolso digitando algo.
— A nota sairá amanhã de manhã e mandarei para o mesmo jornal que espalhou a falsa notícia. — Disse Seth. — Deseja fazer alguma entrevista?
levantou as sobrancelhas e o assessor dele riu ao receber a resposta muda.
— Sem entrevista então.
De repente o toque padrão do iPhone começou a tocar e todos nós direcionamos nossos olhares até a mesa. Era o celular de .
— Encrenca. — disse ele mostrando o celular.
O nome Albert Carter brilhava na tela e senti meu corpo gelar mais uma vez naquele dia. Aquilo era quase uma mensagem da vida avisando-me que havia muito mais em jogo do que eu supus.
Infelizmente, prezando pela sua privacidade, não pude escutar a conversa. Não obstante, enquanto levava bons e longos minutos do lado de fora conversando com seu tio, eu e Seth ficamos a sós no escritório em um silêncio estranho.
— Há quanto tempo trabalha para ? — perguntei puxando assunto.
— Quatro anos. — disse ele aparentemente sem saber onde pôr as mãos.
— Você acha mesmo que preciso de uma ordem de restrição? Não é muito exagero? — indaguei.
Ele riu da minha inocência.
— Exagero será o que eles vão fazer com você.
Embora eu tenha detestado aquela frase e o jeito prepotente que Seth Connor a disse, entendi que ele estava certo assim que a segunda-feira chegou.
De manhã havia uma tensão no ar e a sensação de que o dia não seria fácil. Quando cheguei na Coral havia jornalistas cercando uma Mercedes que acreditava ser de um dos CEOs da empresa. Ao perceber que não era de quem eles estavam procurando, os repórteres se afastaram.
Em minha inocência e burrice, desci o vidro do carro para perguntar o que tinha acontecido. Fui recepcionada por flashs e perguntas das mais variadas e sem nenhuma sutileza. Levantei o vidro mais uma vez com uma velocidade impressionante e pedi para Nelson deixar-me na garagem ao invés na frente do prédio como de costume.
Demorei alguns minutos checando se havia algum jornalista escondido na garagem da Coral para depois sair desconfiada. Embora o lugar mostra-se livre, Bälmer me escoltou até chegar no salão principal. Minha mão formigava e o coração quase saía pela boca enquanto andava pelo corredor geralmente usado pelos cargos altos da empresa; por sorte, ainda não havia ninguém por lá.
Ao pisar na sala da recepção vi diversos pares de olhos em minha direção e cochichos eram ouvidos entre os funcionários. Eu, que nunca tive problemas para estar em público, fiquei extremamente desconfortável e com vergonha daquela atenção exacerbada que recebi.
Tentei mostrar naturalidade e fui até o balcão para bater ponto como fazia todos os dias, mas o olhar de Mary era tão censurador que me encolhi dentro do meu casaco.
— Ah… Bom dia, Mary. — desejei — Sabe dizer se o irmão do Carter já chegou? Eu irei treiná-lo por um tempo.
— Não vi ele chegar — respondeu — Pessoas que têm emprego garantido costumam ser assim, sabe? Totalmente sem responsabilidade.
Dei-lhe um olhar longínquo tentando entender, ou talvez não entender, o que ela estava insinuando.
— Tudo bem. — falei devagar — Onde está Daisy?
— Bom dia. Além de mim, quem já chegou?
Ao ouvir aquela voz feminina atrás de mim senti meu corpo travar no lugar. Como em um passe de mágica, Mary voltou a posição simpática e profissional que ela ostentava a maior parte do tempo.
— Carter e Fuller já chegaram, senhora. — avisou com um sorriso.
— Obrigada. — respondeu a mulher e me virei devagar para fita-la.
A CEO da Coral e única mulher entre os cinco diretores executivos se chamava Cassandra Peterson e era o tipo de modelo profissional que todo mundo, principalmente as pessoas do gênero feminino, desejavam ser um dia. Com os cabelos cacheados e traços que evidenciam sua afro-descendência, Cassandra tinha orgulho de quem era e de onde vinha, além de ser muito competente no que trabalhava, o que a fazia ser uma das minhas maiores referências profissionais.
Peterson olhou para mim por alguns segundos e pude ver reconhecimento em seu olhar. Apesar de participar de diversas reuniões — ora, eu era secretária de Albert Carter, amigo e sócio dela — Cassandra não costumava reparar na minha existência, mas, naquele momento, logo depois da notícia de que eu era destinada de , duvidava muito de que não seria ao menos lembrada por ela.
— Bom dia, senhora Peterson.
Ela me analisou por alguns segundos e seu olhar me escaneou de cima a baixo antes de dizer:
— Bom dia, .
Ao subir em direção ao meu andar ainda senti os olhares curiosos sobre mim no elevador. Por sorte não havia quase ninguém no setor que eu trabalhava e cheguei na minha mesa sem momentos constrangedores além da cota.
Em cima das coisas que deixei na semana passada, bem organizadas, por sinal, havia um stick note azul com a caligrafia de Albert Carter. A letra do meu chefe era bonita, embora quase ilegível. Os dizeres eram assim:
‘‘Assim que chegar venha falar comigo.”
Andei em passos lentos até a porta do escritório de Carter e bati antes de entrar. O sentimento de ansiedade era parecido com a época em que quase reprovei por falta e tive que apelar ao diretor; foi o ano em que minha mãe piorou e precisava de mais atenção do que o normal.
Após liberar minha entrada, andei com passos de gato até a cadeira de visitantes que me foi oferecida. Albert olhava cada movimento meu com um cuidado até me ver sentar de costas eretas na cadeira. Imaginava que o fato de não ter me mandado nenhuma mensagem referindo-se àquela conversa no dia anterior ou de manhã antes de chegar na empresa, era a porque Carter não desejava que soubesse desse encontro. Aparentemente aquela conversa ia ser bastante desagradável.
— Eu sempre me considerei um homem inteligente, . — começou ele — Costumo ver coisas além do que elas são, por isso consigo ver um bom investimento de longe.
Balancei a cabeça concordando. Carter acomodou-se em sua cadeira e virou-a em direção à janela atrás de si. Geralmente ele estava fechada, mas naquele dia era possível ver as duas vias da avenida principal. Era uma vista estonteante.
— Quando passou a se interessar por você pouco mais do que o normal, principalmente na sua vida pessoal, pensei ser seu jeito de contratá-la às minhas custas. Fazer alguma proposta que abalasse seu emocional. — contou ele — Mas, então, percebi que o interesse dele ia além disso.
Carter levantou o seu olhar para mim.
— Porém, em nenhum momento, imaginei que fosse porque você era destinada dele. — ele deu uma risadinha — Agora vejo que era óbvio o que estava acontecendo.
Olhei para as minhas mãos sem saber onde as colocar. Não sabia para onde Albert queria levar aquele papo, mas não achava que seria algo bom. Eu tinha consciência que o fato de ser destinada de me dava um passe livre para nunca ser demitida da Coral, contudo não gostava da ideia de me tornar acomodada ou usar a influência de para conquistar qualquer coisa. Esse tipo de atitude era simplesmente errado.
— E isso nos leva a o que exatamente? — indaguei.
Carter apertou os lábios e inclinou seu queixo levemente para cima. Seus olhos azuis ficaram um pouco mais cinzentos e entendi que ele estava na defensiva.
— Qual é o seu objetivo na empresa?
Traguei a saliva segurando minha língua e tentando, em vão, não me senti decepcionada com as insinuações que meu chefe implicava naquela pergunta. Arrumei minhas costas e olhei diretamente para Albert com obstinação.
— Senhor Carter, pensei que minha intenção na Coral sempre estivesse clara. — afirmei — Sou muito grata pelo emprego e sei que não estou totalmente qualificada para tal, mas mesmo assim tive a chance de crescer tanto como profissional quanto como pessoa aqui. Desejo continuar a evoluir na empresa do jeito certo. O fato de ser ou não destinada de não muda que irei conquistar o que quero pelos meus méritos como qualquer outro funcionário da empresa.
Albert balançava a cabeça concordando, apesar de dar impressão que estar com o pensamento longe. O silêncio que se seguiu minha resposta tornou-me mais insegura que antes.
— Bem, eu acredito em você, . — soltei um suspiro — Mas seu argumento não será suficiente para os outros.
Abri a boca para perguntar quem eram os outros, mas deduzi meio segundo depois.
— Teremos uma reunião com você agora à tarde — continuou ele — e então veremos sua permanência na empresa.
Meu rosto, o qual demonstrava calma até aquele dado momento, se tornou uma mistura de confusão e quase histeria.
— Mas… Mas… Mas…
— Atualize-me dos compromissos desta manhã e cancele tudo que tiver à tarde. — Orientou Carter desviando do assunto e ignorando minha gagueira — Meu irmão já chegou?
Neguei com a cabeça incapaz de falar qualquer coisa.
Albert soltou um suspiro.
— Por que será que não estou nem um pouco surpreso? — indagou para si mesmo.
Ao sentar na minha mesa tentei não surtar, mas tudo que eu conseguia pensar era que o meu emprego na Coral estava mais uma vez em jogo, porém, dessa vez eu não iria me demitir por força maior, mas sim era vista como ameaça para os CEOs da Coral, mesmo quando não tinha feito absolutamente nada.
Atualizei as planilhas de vendas de uma forma um tanto anti-profissional e, aproveitando que meu novo pupilo estava extremamente atrasado, tentei contatar constantemente , sem sucesso. Desejava que ele me desse alguma informação que eu não estava vendo e não conhecia; algo que pudesse salvar meu emprego. Não ia contar a parte que estava correndo o risco de estar desempregada, obviamente, e talvez ele não soubesse de nada, mas precisava que alguém me passasse segurança.
Depois de várias tentativas sem sucesso de falar com meu destinado, decidi que resolveria minha situação sozinha. deveria estar tão ocupado quanto eu. Percebendo que Bryan não chegaria tão cedo, fui até a sala de Arquivo SPW onde apenas secretários do alto escalão tinham acesso.
Embora a maioria dos documentos estavam digitalizados, havia aquela parte confidencial que apenas os CEOs podiam ver. As informações pessoais dos acionistas, por exemplo, estavam guardados em um programa que apenas os diretores executivos tinham a senha. No entanto, apesar disso, eu sabia que poderia achar algo interessante no meio dos arquivos esquecidos da Coral.
Após garantir que meu chefe não sairia do escritório, direcionei-me até a sala SPW.
Embora tive um crise de tosse ao entrar no cômodo, consegui encontrar sem dificuldades as finanças do ano passado, mas não havia nada que citasse os acionistas. Nervosa, procurei os repasses de lucro até o último mês, mas só achei algo interessante quando investiguei na pasta do mês de Setembro.
Com o coração martelando no peito, li e reli o documento em minhas mãos. Era um simples extrato sobre os prejuízos que a Coral teve por causa da mudança de material usado nas canetas vermelhas, uma troca que não deu muito certo. Encontrei o nome , Thurman e Lehman rabiscado ao lado dos acionistas e fiz uma rápida contagem para deduzir o quanto cada um possuía em ações da empresa.
, ao contrário dos outros acionistas da Coral, tinha o capital de quinze por cento, assim como os diretores executivos. Ele poderia mandar e desmandar na empresa o tanto que quisesse, apesar de não se mostrar nem um pouco interessado nisso. Então, naturalmente deduzi que era esse o motivo de ter meu emprego na berlinda.
Era bem provável que ao saber da minha existência na empresa e o meu recente interesse em ascender de cargo somado com minha ligação com , os diretores executivos começaram a cogitar que eu passaria a ser uma espiã dele, ou pior, queira assumir seu lugar na empresa. Por isso estavam loucos para encontrar novos investidores desde Loreno Martin; provavelmente esse era um dos motivos pela qual visitou a empresa sobre o pretexto de ter uma reunião com os CEOs.
Pus as mãos no rosto tentando digerir toda aquela camada de informação. Como eu convenceria-os que tudo que eu queria era organizar a agenda de Carter? Por que diabos eu não conseguia passar uma semana sem me envolver com nenhum problema? O que o destino tinha contra mim?
A sensação de peso que costumava me acompanhar, a qual sumiu na última semana, voltou com força quando percebi que estava sem saída. Mais uma vez senti-me sozinha, pois sabia que se eu pedisse ajuda a estaria fazendo exatamente o que eles queriam. O que eu desejava era voltar a ser uma menina que se preocupava apenas em vencer a corrida de bicicleta que eu fazia com meus vizinhos.
Detestei-me quando engasguei o choro ainda cercada de papéis e desejando meus pais e a sensação de proteção que eles me davam. Lembrar que eles estavam a sete palmos abaixo da terra deixou-me mais miserável do que antes. Àquela altura percebi que não havia muito o que fazer ou dizer.
Ao voltar à minha mesa, não fiquei nem um pouco surpreendida em receber um telefonema de Bryan avisando que estava doente e por isso não pode ir ao trabalho. Até acreditaria em sua situação se sua voz não estivesse rouca de sono ou não ouvido alguém gritar que ele tinha que jogar as garrafas de cerveja espalhadas da sala.
Entrar no refeitório para almoçar foi outro momento constrangedor. Sentei-me na mesa de sempre e cumprimentei a todos, embora seus olhares fossem cuidadosos a me fitarem. A conversa era um burburinho irritante e aquilo me deixou muito incômoda. Atipicamente, Daisy não estava na mesa e descobrir que ela havia tirado licença para ir à médica naquela manhã.
Durante a refeição vespertina me mandou uma mensagem perguntando se algo havia acontecido e o motivo de ter lhe ligado tanta vezes. Escondendo o celular das minhas amigas, digitei várias mensagens e apaguei-as logo em seguida. Julgando que eu teria que sair daquela situação sozinha e que pedir para conversar com Carter não ia ajudar em muita coisa, apenas respondi que não era nada e que conversariamos em casa.
Assim que enviei a mensagem percebi quão íntimo e natural aquela simples frase se mostrou e por alguns segundos voltei a pensar na relação que tinha com . Apesar de eu insistir e negar até a morte, meu destinado já havia tomado um grande espaço da minha vida e não parecia que iria sair tão cedo.
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Entrei na sala de reuniões com toda a dignidade que ainda me restava e sentei-me diante dos cinco diretores executivos da Coral. Eles me encararam e eu reconhecia cada um deles: Shawn, com sua barba ruiva; Carter, com os cabelos cinzentos; Daniel, com seu olhar obstinado e cabeleira loira; Hunter, sempre comprementado no celular; e Cassandra, que claramente mostrava ser a verdadeira presidente da empresa em seu lugar na ponta da mesa.
O interrogatório começou com algo básico, indagando-me a quanto tempo tinha descoberto ser destinada de . Respondi, mas logo após entrei na defensiva e perguntei como isso ia afetar minha vida profissional na Coral. Depois de longo segundos de silêncio, Cassandra explicou:
— Ao se tornar acionista da empresa, confiou-nos que não se iria envolver nos assuntos da empresa desde que continuasse ganhando seu dinheiro em dia e que a Coral não falisse. Mandamos um relatório completo de finanças todo mês para ele no entanto. — acrescentou.
— Interessante. — repliquei — Apenas não entendo no que isso remete a mim.
Cassandra deu um sorriso quase fatal antes de dizer:
— A questão é que de repente passou a ficar muito interessado na Coral, querida. Uma coisa que não era costumeira dele passou quase a ser uma rotina.
Mordi minha língua para não retrucar que era um exagero dizer aquilo quando havia vindo a Coral no máximo cinco vezes no último mês. Não obstante, o que tinha de errado em seu desejo de saber e acompanhar aqueles que manejavam parte de seu dinheiro?
— E na mesma proporção tivemos seu incentivo a qualificação de nossos funcionários, onde você entra. — acrescentou — Não gostamos de pensar que ele estava usando a destinada apenas para vigiar-nos, senhorita .
— Ele não me mandou aqui para vigiar-los, pelo amor de Deus. — repliquei impaciente — Estou na Coral há cinco anos e fiquei meu trabalho melhor que muito dos qualificados. Se falou ou não em meu nome para passar de cargo foi por única e exclusiva vontade dele. Em momento algum passei quaisquer informações confidenciais da Coral ou até mesmo do meu chefe. — olhei para Carter de relance — Além do mais, ninguém aqui é obrigado a acatar as ordens dele, afinal, vocês são os donos da empresa, não é verdade?
Minha pergunta pareceu atingi-los e o silêncio que seguiu-se quase poderia ser palpável de tão frio.
— OK, diga-me . — pediu Daniel encontrando sua voz de repente — Quais são os planos de para a Coral?
— Eu não sei. — soltei um suspiro — é meu destinado, mas isso não significa que irá me dizer tudo que faz com o seu próprio dinheiro. Nem mesmo estou interessada em saber.
Embora a ausência de barulho não fora tão cortante quanto a anterior, o peso daquela conversa inundava o cômodo. Aquela reunião, no entanto, continuava sem fazer muito sentido para mim quando boa parte das perguntas podiam ser facilmente respondidas por , não eu.
— Soube que tem um projeto para apresentar a Carter. — comentou Shawn, sua voz aguda arranhando meus ouvidos — Quando será sua apresentação?
— Hã… Acho que daqui a um mês ainda. — respondi incerta — Por quê?
— Prepare-o para a próxima semana. — Ordenou Cassandra — Apresente aqui para todos nós e discutiremos sobre sua permanência na Coral.
As poucas palavras retumbaram nos meus ouvidos de forma que o que se passou após aquela afirmação era um borrão em minha mente. Aliviada por ainda ter uma chance de manter-me na Coral, voltei para minha mesa ainda sentindo os ombros tensos.
Enquanto tentava não pensar no meu projeto que deixei de lado por um tempo, passei a mexer nas abas abertas do notebook e tentei organizar meu birô cercado de bagunça.
Assim que coloquei o telefone de volta no gancho — havia tirado em querer mais cedo a pedido de Albert — o barulho irritante do telefone fixo ecoou sobre o corredor.
— Escritório de Albert Carter, bom dia. — cumprimentei — Digo, boa tarde. — me corrigi coçando os olhos.
— Aqui é Aisla Hennes da Daily Times e gostaria de falar com .
Franzi o cenho confusa.
— Está falando com ela.
— Ah, , que bom falar com você! — disse — Queria marcar um café para termos uma conversa! Será super interessante escutar seu lado da…
Desliguei o telefone sem me despedir e afastei as mãos como se o aparelho estivesse pegando fogo. Olhei para os lados sem saber bem o que fazer, mas tendo certeza de que não queria dar uma entrevista.
Cinco segundos depois o telefone tocou mais uma vez e Aisla agiu como se eu não tivesse desligado na sua cara. Bem educada como eu era, parei de responder o telefone e deixei-a falando sozinha.
— Ainda bem que você não me disse que seu destinado era . Se eu soubesse, tinha te internado no dia em que você falou que o rejeitou.
Apesar da voz estar cheia de reprimenda, meus ombros relaxaram ao reconhecer quem estava dizendo aquilo para mim.
Daisy ainda tinha neve nos cabelos quando a vi enrolada em seus cinco casacos de frente a mim. Ela parecia mais pálida que o normal, embora seus olhos contivessem a mesma animação de sempre.
— Não é como se eu fosse me apaixonar pela conta bancária dele. — Repliquei com um sorriso.
— Ah, mas se fosse eu… — ela argumentou — Se fosse eu tinha agarrado aquele homem e não soltado mais! Além de rico e bonito, ele é legal, ! É tipo uma promoção da Lower que cabe no meu bolso e que tem como brinde os brincos da nova coleção!
Dei um sorriso ambíguo.
— Bem, sou uma pessoa muito difícil de ser conquistada.
Ela me analisou com a sobrancelha arqueada antes de dizer:
— Nem mesmo consegue conquistar esse coração de gelo?
— Hm… Mais ou menos. — balancei a mão em desdém — Como foi na médica?
— Ela só me passou alguns exames de rotina, nada desastroso. — Bardot deu os ombros — Aliás, você experimentou meus sabonetes? Estou esperando seu feedback há dias!
— Ah, sim. — confirmei distraída com um novo e-mail do banco — Gostei muito, são cheirosos demais! adorou.
— Quem adorou o sabonete?
Abri a boca para repetir o nome de meu destinado, mas me interrompi assim que vi a expressão chocada de Daisy.
— Você deu um dos meus sabonetes de experimento para ? — sua voz cresceu uma oitavas — Você ficou maluca, ? Se ele tivesse uma crise alérgica, hein? Com que dinheiro eu ia pagar a indenização? Minha saboaria nem abriu e você já quer fali-la.
— Eu não dei nenhum sabonete a , Daisy! — apressei-me em explicar — Ele só sentiu o cheiro em mim.
Mas, assim que expliquei, percebi que foi um erro. Com um sorriso cheio de até quartas intenções, ela me disse:
— Você anda encontrando muito ele?
— Às vezes a gente se esbarra por aí . — disse com modéstia.
— Hm, sei. — ela resmungou — Continuam sendo bons amigos?
Rapidamente lembrei do dia anterior e de como apenas com alguns beijo deixou-me sem fôlego. Sua principal frase vibrava em minha mente:
Nós não somos só amigos.
— Com toda certeza. — respondi sorrindo.
Alguns minutos mais tarde, após meu chefe aparecer com cara de poucos amigos e Daisy inventar uma desculpa para estar ali durante o expediente, minha amiga disse que preciava voltar ao trabalho. Embora nossa conversa tenha ido para caminhos diversos, ela nunca citou sobre o caso da L&James, me deixando com uma pulga atrás da orelha. Bardot era a pessoa mais curiosa que eu conhecia e de jeito nenhum iria ficar tanto tempo sem perguntar sobre o caso. Antes que ela se fosse indaguei insegura:
— Você acredita no que eles estão dizendo sobre mim, Daisy? Sobre o processo judicial?
Ela soltou um suspiro.
— Posso acreditar que pessoas ricas fazem qualquer coisa para ganhar mais dinheiro e confesso que não conheço para dizer se ele é capaz ou não de fazer isso — Bardot deu um sorriso singelo — Mas você nunca faria tal coisa, . Não é do seu fetio.
No engarrafamento que a neve nos deu enquanto voltava para casa de , comecei a pensar em tudo que me sucedeu naquela caótica segunda-feira. Ainda lembrava quando, perto das cinco da tarde, recebi a ligação de Donna falando sobre o acordo com a P.A.F.E.R que me daria apenas vinte por cento do dinheiro que me foi roubado, o que era quase cinquenta mil dólares.
Apesar de achar o número satisfatório e sentir-me bastante tentada a me livrar daquela sina, disse que responderia no outro dia após uma longa conversa com .
Massageei a nuca quando as imagens daquele dia culminaram minha mente. Não imaginava que teria que enfrentar os diretores executivos da Coral, os quais me acusaram de espionagem sem possuir sequer uma prova; nunca esperaria, também, que Mary estaria tão estranha comigo depois das notícias mentirosas que se seguiram. Para piorar havia as ligações insistentes de revistas que queriam a todo custo fazer uma entrevista comigo.
Jesus, eu não era famosa! Por que eles queriam tanto encher meu saco?
Cheguei na casa de exausta com o corpo e mente implorando por cama. Necessitava continuar meu projeto, mas precisava descansar um pouco.
— Ei, !
Parei de repente, saindo do meu modo automático, e virei-me para Rose.
— Nossa, você está horrível. — comentou ela — Com todo o respeito.
Ri e balancei a cabeça apontando para cima.
— já chegou?
Ela negou.
— Você não tem alergia a crustáceos, não é? — indagou Rose e finalmente prestei atenção no cheiro diferente que pairava no ar — Gosta de lagosta?
Dei um riso de deboche.
— Lagosta é comida de rico. Tenho cara de rica por acaso? — resmunguei grosseiramente.
— Não precisa me engolir. — replicou a cozinheira resignada — Vá tomar um banho de água fria para espantar esse mau humor.
Concordando com ela e pedindo desculpas pela indelicadeza gratuita, subi até meu quarto e tomei um rápido banho, porém de água quente. Fazia menos de dezessete graus lá fora, pelo amor de Deus.
Após vesti um suéter cinza e calça moletom preta, levei meu lençol até a sala de estar, onde a TV era cinco vezes maior, e fui ver a reprise de The Young and the Reckless. Por alguns minutos minha maior preocupação era se Victor ia ficar com a mocinha agora ou apenas na próxima sexta-feira.
Senti meus olhos pesarem e cogitei dormir com a barriga vazia. Era bem provável que me acordasse assim que me visse deitada, então, só precisava descansar os olhos um pouquinho.
De repente a imagem televisiva de Victor chorando como um crocodilo — um choro que não convencia nem o próprio ator — mudou drasticamente para o desenho de dois personagens que eram a caricatura de De Volta Para o Futuro.
— Rick & Morty é apenas um desenho e consegue ser bem mais inteligente do que essa novela.
Sorri ao reconhecer aquela voz morna, a qual parecia entrar em cada poro de meu corpo e dar uma sensação de relaxamento como a de uma cerveja gelada após o trabalho em uma sexta-feira.
— Você não acha que é velho demais para assistir desenho animado?
apareceu à minha frente agachado e com um sorriso de orelha a orelha. Ele tinha algumas ruguinhas nos cantos dos olhos e as covinhas eram perceptíveis; apesar de ter bolsas escuras de várias noites mal dormidas, ainda possuía uma animação jovial; uma característica essencialmente dele.
— Ninguém nunca está velho demais para ver desenho animado. — replicou com um sussurro.
Estendi minha mão para acariciar seu cabelo bem arrumado, mas me arrependi assim que senti a melequeira do gel que o fazia mantê-lo no lugar.
— Eca. — resmunguei — Você precisa urgentemente lavar esse cabelo, .
Ele deu uma risadinha ao ver me fitar a mão suja com nojo e roubou-me um beijo. Enlacei meus braços em seu ombros e mergulhei na sensação cálida de seus lábios. Meu coração batia com pressa e todo o sono que eu sentia sumiu de uma hora para outra.
Paciente, afastou-se de mim e com a voz morna indagou:
— Como foi seu dia?
Ainda sentida pelo seu beijo, murmurei com um sorriso.
— Bom. Muito bom.
Ele me olhou zombeteiro.
— O seu dia ou o beijo?
Empurrei-o levemente fazendo-o cair para trás no chão felpudo enquanto ria demasiado pela sua própria piada.
— O dia foi cheio de problemas, mas não quero falar sobre isso. Não hoje à noite. — respondi sentando no sofá — Fale-me do seu.
— Cheio de problemas também. — resumiu respirando fundo — E amanhã de tarde, depois de ir ao médico, tenho que ir à capital. Provavelmente só volto na quinta.
— Hm, então terei essa mansão toda só pra mim? Posso fazer uma festa? — brinquei.
— Desde que os vizinhos não chamem a polícia. — replicou ele com graça e dando os ombros — Mas, se você quiser, pode chamar alguma amiga para dormir aqui. A mansão costuma ser bem assustadora à noite.
— Ah, sim. Outro dia até encontrei o fantasma de um músico tocando saxofone de madrugada. Foi terrível.
deu uma gargalhada. Era um som muito gostoso de ouvir e enchia meu peito de ternura vê-lo rindo daquela maneira. Ainda lembrava de quando ele mesmo me disse que tomava anti-depressivos e não pude evitar pensar que agora que eu fazia parte de sua vida, transformá-lo em um homem mais feliz era, com toda certeza, um dos meus planos.
Mas isso, bem, ninguém iria saber.
Demorou apenas alguns segundos até que me chamasse para comer. Ele disse que pedira mais cedo para que Rose preparasse lagosta, já que ele achava que eu nunca tinha experimentado. Aquela noite foi a primeira vez que sentamos juntos a mesa para comer e não na ilha da cozinha. Rimos e conversamos de coisas tão supérfluas que não vale a pena contar, mas foi crucial para que eu esquecesse dos problemas da vida adulta.
Claro que em algum momento eu contaria sobre o que acontecia na Coral, mas eu sabia que assim que ele tomasse conhecimento, iria tirar satisfações com Carter e, talvez, confirmando suas suspeitas sobre mim. Por enquanto eu lidaria com aquilo sozinha.
Com os dedos melecados de molho e rindo de qualquer piada, aquela noite foi especial a sua maneira e poderia muito bem virar rotina. Ainda pensava em meus pais e a dor no peito de ter pedido os dois para morte continuava a existir, no entanto, algo me dizia que eu podia seguir em frente.
Contudo a vida não é um paraíso. Mesmo quando saímos para espairecer e deixamos de lado tudo aquilo que nos perturba, nós temos que voltar para dura realidade em dado momento.
Enquanto colocava seu prato na lavadoura, um número desconhecido me ligou. Meu coração tremeu no peito, pré-sentindo o que viria a seguir.
— Alô?
— Boa noite. — disse uma voz masculina desconhecida — Esse é o telefone de ?
— Sim. Com quem eu falo?
— Brandon Miner, senhorita . Sou recepcionista do Jonh Sciense Hospital e encontramos o seu número na carteira de um dos nossos pacientes. — explicou — Você, por acaso, conhece Jack Woodreck? É parente dele?
Com as mãos frias respondi:
— Sim, eu o conheço. O que aconteceu?
— Senhora , veja bem... Jack Woodreck foi vítima de bala perdida. Precisamos da senhora aqui o mais rápido possível.
Capítulo 19
“Essa vida é tão frágil como um sonho e nada nunca é realmente como parece ser.” - As It Seems, Lily Kershaw. Havia se completado quinze minutos desde que eu tinha desligado o celular após falar com os atendentes do hospital em que Jack estava internado. Após o susto e a longa noite que se seguiu, descobri que o tiro tinha atingido sua perna, mas não havia sido grave. Em poucos meses e várias sessões de fisioterapia, ele estaria novo em folha.esteve todo momento ao meu lado, embora tivéssemos uma pequena discussão no meio do caminho. Ele não pareceu contente em ter que lidar com um traficante logo após um escândalo que nos permeavam, todavia deixei bem claro que não deixaria Jack na mão em um momento como aquele.
Calado o tempo todo, não respondeu nada além de “não está mais aqui quem falou” e se acolheu em seu mundo interno. Se não estivesse tão nervosa esperando notícias da cirurgia de retirada da bala no Woodreck, ficaria por boas horas titubeando o comportamento de .
De manhã, após uma noite muito mal dormida, não encontrei meu destinado na cozinha como de costume. Rose me avisou que não havia o visto também, então deduzir que era algo relacionado com a viagem que ele faria à capital.
Com diversas coisas para fazer, não parei para pensar que esqueci de comentar com sobre o acordo proposto pelos advogados. Logo lembrei-me que teria que pagar a cirurgia de Jack, já que sua mãe continuava sumida.
Foi tudo isso que me levou a cena inicial em que fitava meu aparelho eletrônico sem saber o que dizer. Esperando um tombo da conta gorda do hospital, não acreditei quando, com todas as letras, o atendente deixou claro que Jack fora contemplado por um bom samaritano e que era desnecessário que eu pagasse.
O nome de brilhava em minha mente assim que desliguei o celular. Diante de tantos atos de bondade advindas do meu destinado aquilo não deveria me surpreender, porém, naquela situação, o peso da consciência deve ter influenciado sua atitude. Mesmo assim, não pude deixar de perceber que mais uma vez ele se adiantava e evitava mais uma dor de cabeça minha.
Eu não sabia como agradecer a ele.
E nem mesmo tive tempo para fazê-lo. O dia que se passou foi um dos dias mais corridos que presenciei na Coral.
Entre reuniões, ligações e problemas com o projeto que eu iria apresentar, pouco me lembrei de comer. Quase no final da tarde, Daisy apareceu no corredor do segundo andar com um cachorro quente na mão e me obrigou a me alimentar.
Por sorte consegui sair mais cedo para visitar Jack no hospital. Albert não pareceu feliz em ter que se virar sozinho com o novo contratante, mas ele sabia que era necessário deixar-me ir, já que não tinha nem mesmo saído para o almoço.
Desconfortável em ter que passar por uma dupla de policiais antes de entrar, mirei Jack comendo uma gororoba quando cheguei no seu quarto. Na TV velha, parecida com a que eu tinha em casa, passava algum desenho animado antigo da Cartoon Network. Sua perna direita estava cheio de ferros e se encontrava suspensa no ar. Ele me olhou e sorriu torto, então pude ver que o mesmo possuía alguns arranhões superficiais.
O choro subiu em minha garganta quando a ficha caiu finalmente. Jack, um adolescente que só tinha tamanho e irresponsabilidade, quase perdeu a vida por causa de uma péssima escolha.
一 Oh, , não chora. Não sei lidar com gente chorando. 一 disse ele desconcertado 一 Eu tô bem, você não vê? Só foi um susto.
Limpei as lágrimas com aspereza antes de dizer.
一 Um susto e tanto, hein, garoto? 一 falei sarcástica 一 Espero que tenha aprendido a lição. O que você estava fazendo ali naquela hora, afinal?
— Tomando um ar. 一 respondeu dando os ombros.
Esperei que ele continuasse a dizer, mas o mesmo continuou calado. Levantei a sobrancelha antes de indagar:
一 É tudo isso que tem a me falar?
Ele balançou a cabeça afirmando.
— Pois, então, você está proibido de tomar um ar pela Ala O. — ordenei.
Jack riu, não levando a sério o que falei, e se remexeu na cama.
— Não se preocupe, vou morar com meu tio.
Pus a mão no peito sentindo a dor da eminente saudade que eu sentiria.
— Você também vai me deixar? Quem é esse seu tio, afinal? É irmão de seu pai ou sua mãe? — indaguei metodicamente.
— Tio Peter Bane. — falou uma voz masculina que não pertencia a Jack.
Virei-me assustada ao ver detetive na porta do quarto. Ele estava parado de forma despojada, ainda vestido com um grande casaco cinza.
— Antes que você me pergunte: não, eu não tenho nenhum parentesco com esse garoto.
Olhei para ele e depois para Jack esperando achar uma resposta em seus rostos, no entanto, como era esperado, não havia nada além de sorrisinhos cheios de prepotência.
— Alguém vai me explicar o que diabos está acontecendo? — perguntei, embora minha voz tenha soado autoritária demais para ser vista como uma simples indagação.
Peter retirou o casaco com a pressa de uma lesma e andou em deslize pelo quarto. Deus sabia que se ele enrolasse mais um pouco eu espernearia como uma criança. Já Jack, o qual tinha tudo a ver com a história, aparentemente tinha jogado a responsabilidade de falar para o detetive. Sua atenção estava monopolizada pelo Pica-pau roubando gasolina na TV.
— Nosso querido Jack resolveu ser um justiceiro no modo X9 para a polícia. — Começou Bane olhando ao redor para ter certeza que ninguém o ouvia. — Qualquer policial com dois neurônios não deixaria um garoto de 14 anos fazer tamanha burrice, mas não é novidade que segurança dessa cidade está jogada às raposas.
— E onde você entra na história? Lembro de que você era detetive na área de homicídios. — falei confusa.
— Acredita em mim se eu disser que não faço ideia? — respondeu se pondo de frente a Jack — Só sei que estou trabalhando quando deveria estar de folga e estou começando a me arrepender por ter entrado na academia.
— E Bonnie?
— O pessoal da proteção à testemunha está com ela. — explicou Bane — Eles são os únicos que prestam no departamento, sem ofensas.
— Eu ia pedi pra levarem a Charli também. — completou Jack — Se ela não tivesse agido como uma filha da puta…
— Hey! — eu e Peter repreendemos em uníssono.
— Qual é o problema desses adolescentes de hoje? Na minha época ao menos eu fingia ser educado. — Resmungou Bane.
Dei uma risadinha, porém coloquei a mão na cabeça ao senti-la doer. Era muita informação de uma vez para mim.
— Levarei para uma cidade perto e prometo que o manterei longe de problemas. Não poderei ficar por muito tempo, mas garanto que ele estará em boas mãos.
Balancei a cabeça sentindo-me mais aliviada e, de certa forma, feliz em ter sido enganada por Jack. Ele estava apenas fazendo o que achava certo, apesar de ser de um jeito suicida.
Lambi os lábios e aproveitei o tempo que o silêncio dominou o quarto para colocar as informações em ordem. Demorei alguns segundos fitando o rosto esbelto de Peter antes de fazer a pergunta que culminava minha mente.
— tem a ver com isso?
Eu pude ver que Bane tentou segurar o riso, mas foi inevitável; suas covinhas denunciavam o que passava pela sua cabeça.
— Apesar de parecer onipresente, ele não sabe da nossa ligação. — Replicou ele — Inclusive irei mandar suas coisas pelo correio, tudo bem? Algumas coisas se salvaram.
— Quem é ? — indagou Jack completamente perdido na conversa.
— Papo de adultos, garoto. — alertou Bane prepotente — Irei buscar um café, você quer um?
Declinei a gentileza e aproveitei aquele momento de privacidade entre mim e Jack para dar-lhe um tapa na cabeça. O menino apenas resmungou de dor, mas não disse nada. Nós dois sabíamos que ele realmente merecia.
Respondi-o e liguei a TV da cozinha, pois o silêncio daquela casa me incomodava mais do que o usual. Digitei que sentia sua falta e apaguei logo em seguida, não sabendo se o fato dele ter sido tão neutro no seu recado significava alguma coisa.
Escutei o nome do meu destinado ao sentar para comer e minha atenção direcionou-se para ao canal de notícias a minha frente. A matéria falava da CAD - Conferência Anual Judiciária - a qual os juízes de segunda instância se reuniam junto com o supremo para discutir as leis que o legislativo propusera a cada trimestre. Aquela era a décima primeira e ainda carregava críticas daqueles que não concordavam com essa nossa nova forma de fazer política. Eu acreditava que funcionava, no entanto.
e mais dois juízes estavam dando uma coletiva de imprensa e respondia sobre o processo de uma lei que quase foi barrada pelos senadores. Meu destinado mantinha os ombros erguidos e o rosto sério, aparentando ser outra pessoa, uma muito mais altiva. Ele defendia a aprovação de tal lei e mostrava-se firme no que dizia.
— Não importa se a herança será partilhada entre destinados por meio do casamento, essa será uma escolha dela. — afirmou dele — Já passamos da fase de encarar as mulheres como seres inferiores, elas são plenamente capazes de cuidar das suas próprias finanças. São seres humanos como nós. Injusto é entregar o dinheiro que é seu por direito para alguém que casaria com você por amor.
— Isso mesmo, querido! — gritei para TV embora ele não me ouvisse ou a lei não me atingisse.
O teto outorgado pela lei era enorme, a herança que as mulheres poderiam receber era exorbitante, mas a regra não fazia o menor sentido para mim.
Logo após os jornalistas não perderam tempo em tentar puxar para a polêmica que acontecera no final de semana, de forma totalmente desonesta, citaram meu nome e a P.A.F.E.R. Gelei no meu assento e fitei o maxilar de trincado ao ouvir aquelas palavras.
— Não vejo como isso pode ser coerente com a discussão tida no CAD. — disse ele com o nariz levemente erguido.
Então, o jornal relembrou aos telespectadores o furo com aquele ar de quem sabia a verdade, mas também dedicou alguns minutos para a nota publicada por defendendo-me. Depois da garantia que aquilo não prejudicaria o andamento do caso, não me senti tão desconfortável em ver meu rosto na Tv; na verdade, apenas me incomodei com o fato da foto ser antiga e eu estivesse muito magra e muito pálida. Meus cabelos eram mais ondulados e claros aos 22 anos e não havia tantas olheiras como as que eu possuía agora.
Desliguei a TV e após terminar o jantar, foquei-me na apresentação que eu ia performar na Coral. Felizmente o projeto fez meu chefe reconhecer que não dava para tutelar seu irmão preguiçoso, por isso ele foi encaminhado para outro setor.
Alguma coisa teria que dar certo afinal.
Embora tivesse sentindo o cansaço de um dia corrido, minha mente não queria desligar. Mesmo com o colchão quente, não preguei os olhos até às quatro da manhã. A casa estava vazia demais e eu tinha que admitir que sentia falta de .
A quarta-feira passou a ser um dia esgotante desde o momento que pisei na Coral. Sentia-me aborrecida e solitária, mas me neguei a descontar em qualquer outra pessoa. Albert parecia disposto a testar essa minha determinação, no entanto. Nunca cheguei tão perto de ter um ataque de histeria e estrangulá-lo por não me deixar quieta organizando planilhas.
Para piorar, aceitei rever os investimentos feitos por Daisy para a abertura da sua saboaria, deixando o dia mais atarefado. Ela estava bastante determinada em fazer dar certo e corta-lhe asas parecia cruel demais até para meu mau humor.
Esgotada, decidi ir ao único lugar que poderia me dar um abrigo.
O sol estava se pondo quando Bälmer me deixou no cemitério da Ala O. Eu não era supersticiosa, mas não gostava de andar por catacumbas à noite. Ainda assim sentia uma vontade absurda de visitar meus pais. Os túmulos dos dois se situavam em diferentes lugares do grande cemitério, pois na época não p
ensamos em guardar uma lápide para minha mãe e nem tínhamos dinheiro para isso. Primeiro vislumbrei o nome de Steve já escurecido pelo mofo.
Limpei com as mãos a frase que ficava logo abaixo e joguei as flores mortas que eu havia levado no ano anterior. Li mais uma vez a sentença:
“Aqui jaz um ótimo marido e um pai dedicado.”
Era injusto ter que escolher apenas uma frase para descrever alguém tão importante para nossas vidas. Meu pai morreu muito jovem, foi um ótimo marido e um pai dedicado, assim como diz a lápide, contudo, ele era mais do que isso. Eu poderia descrever com diversas palavras contidas no dicionário quem ele foi para mim, mas nenhuma delas seriam suficientes para defini-lo.
Steve teve a vida interrompida e fora resumida a uma frase genérica em seu túmulo.
— Pai, sinto sua falta. 一 Sussurrei ao tocar o relevo do anjinho cravado na pedra.
Era maluquice conversar com alguém que estava morto. Eu não esperava ser correspondida, mas necessitava falar. Até mesmo , o qual eu naturalmente recorreria, estava ocupado naquele momento.
Falei sobre como estar de volta na Coral não parecia tão bom para mim e em quantos problemas havia me metido; comentei sobre Jack e quão idiota ele tinha sido em se meter com os traficantes da Ala O. Falei sobre minha mãe e indaguei-me se os dois estavam juntos no além, apesar de estarem a dez metros de distância no cemitério. Lembrei-me então de quando ele voltava para casa e me abraçava como se eu fosse seu mundo; lembrei-me de seu olhar de adoração a minha mãe quando lhe chamava de querida.
Ir em direção ao túmulo de Letícia foi o que mais doeu, porém o conforto estava em algum lugar no meu interior enlaçando o coração. Pela primeira vez pensei que talvez fosse melhor assim e, se existisse um céu, algo que eu acreditava, ela estaria finalmente livre para fazer o que quisesse. Ela poderia usar seus vestidos floridos, cantar desafinadamente e cozinhar comida italiana, sua especiaria. Apesar de ter um final trágico e angustiante, sei que minha mãe foi feliz enquanto viva. Letícia teve a família que sempre quis, viveu com o homem que amava e me criou até onde pode. Ela havia passado por vários pesares, mas eu tinha quase certeza que não havia nenhum arrependimento em si.
Eu não estava realmente sozinha, embora fosse órfã. Eu tinha Jean, Daisy, Mark, Mary 一 até o Andrew 一 os quais estariam ali quando eu pedisse ajuda.
E, é claro, tinha o , o qual entrou em minha vida por causa do destino e já tinha se tornado uma das partes mais doces dela.
Enquanto voltava para a mansão na Ala A, depois de contrabandear comida de verdade para Jack no hospital, deixei meu orgulho de lado para mandar uma mensagem a :
“Como as coisas estão por aí? Espero que bem. Sinto sua falta.”
Minutos depois respondeu “Também sinto a sua, .” deixando-me suspirando abobalhada pelos cantos o resto da noite.
Capítulo 20
“Eles dizem: Você é um pouco demais para mim. Você é um fardo (...) Então eles recuam, fazem outros planos. Eu entendo, sou um fardo.” - Liability, Lorde. Eu fitava Andrew, mas não entendia o que ele dizia. Observei-o clicar em uma janela no computador, fazer uma piada e rir na sequência. Dei-lhe um sorriso, mesmo sem entender o porquê da sua risada. Pela quarta vez olhei para o relógio no canto da tela e o tempo parecia estacionado no lugar. Maldição! Por que as horas não passavam?一 ...não é, ?
一 Sim, isso mesmo. 一 afirmei balançando a cabeça para reforçar a ideia que era desconhecida por mim.
Andrew mirou-me com o olhar cético.
一 Você acabou de concordar com o fim dos filhotes de panda.
Pus a mão no rosto envergonhada.
— Só estou meio distraída hoje, desculpa.
— Você não é de ficar distraída. — comentou ele com os olhos semicerrados. — O que aconteceu?
— Nada não. — respondi constrangida.
Não admitiria tão facilmente que a fonte da minha distração era a iminente chegada de . Havia se passado dias, mas pareceram meses!
— , o que é? — indagou irritado.
Ignorei-o deliberadamente e me voltei para a apresentação que estávamos montando. Queria fazer algo simples no PowerPoint, mas Andrew disse que conhecia um aplicativo muito mais eficaz e que daria uma nova cara ao projeto. Topei fazê-lo no horário do almoço, então, apenas comi uma maçã para estar no setor quase vazio fazendo aquele trabalho. Apesar de adorar trabalhar na Coral, algo naquele projeto estava errado. Não sabia o que era, mas sentia lá no fundo que a pressão advinda do meu chefe e seus sócios continha algo muito estranho.
O dia foi marcado por várias ligações para o pessoal da organização da festa anual da Coral que ia acontecer na sexta-feira à noite. Carter, como sempre, desejava que tudo estivesse impecável e me perguntava constantemente sobre o bufê e à decoradora.
Voltei para casa após passar no hospital. Jack estava com a perna enfaixada e mais uma vez agradeci aos céus por vê-lo tão bem. A bala tinha dilacerado apenas parte dos músculos da batata da perna e a recuperação dele tinha uma chance gigantesca de dar certo.
Cheguei na mansão de com uma sensação de ansiedade dominando o estômago. Meu rosto deveria estar expressando isso já que assim que pus os pés na cozinha, Rose disse sem delongas:
— está lá em cima no quarto de jogos desde que chegou. Mande ele descer, fiz uma sopa de legumes maravilhosa.
Subi as escadas de dois em dois degraus e tropecei um par de vezes por causa da minha afobação. Encontrei-o sentado no sofá do quarto de jogos matando zumbis no videogame. estava jogado desajeitadamente no móvel e apertava os botões do joystick como se sua vida dependesse disso. Ele usava um casaco moletom da Columbia University e uma touca que cobria toda sua cabeça.
Toquei em seu ombro e ele olhou para trás por puro reflexo, voltando rapidamente para a tela da TV. Como se apenas reconhecesse meu rosto depois, pausou o jogo e virou-se pra mim de súbito.
— Mein Liebling. — disse ele sorrindo ternamente.
Ele veio até mim e abraçou-me como tanta vontade que pensei que ele me partiria ao meio; mesmo assim, sentir o calor tão perto do meu destinado era como estar finalmente em casa, protegida e cheia de conforto. cheirava a baunilha e aproveitei para afundar meu rosto em seu peito.
Não dissemos nada por dois longos minutos, a sensação de estar com ele me acalmava. Naquele abraço, eu lembrava quão real era. Seu corpo se encaixava perfeitamente ao meu.
beijou o lóbulo da minha orelha e, em resposta, tremi. Com os braços apoiados em seus ombros largos, fitei seu rosto tão familiar a mim; quando ele sorriu, pude ver as rugas que formavam no lado dos olhos e as covinhas discretas e quase imperceptíveis que possuía. E havia seus lábios rosados, os quais aparentavam como a coisa mais desejosa no momento.
Não demorou muito para que ele me beijasse e eu agarrasse em seu corpo com desespero. não foi delicado, porém eu gostava da rudeza em que sua boca invadia a minha, explorando-a e reivindicando-a como se fosse sua. Seus dedos cravados nos meus quadris encontraram uma pequena parte exposta da minha pele e acariciava-a com a delicadeza de seus nódulos. Embora tivesse mãos estritamente masculinas, elas eram macias, sem calos e mantinha a leveza de um bom músico.
Embora ele tenha desgrudado nossos lábios, ainda mantinha o nariz roçando na minha bochecha. Meu destinado tinha os olhos fechados e a respiração pesada, então, prestei atenção nas suas novas olheiras. Ao fitar-me diretamente percebi as nuances de quem estava abatido.
Preocupada, afastei-me um pouco para perguntar.
— Está tudo bem? Aconteceu alguma coisa?
— “O que não aconteceu?” deveria ser sua pergunta, — resmungou — mas por certo estou muito melhor agora.
falou da sua viagem e que tivera o vôo cancelado na ida; também contou sobre a correria em que sucedeu os seus dias na capital, pois o mesmo saía e entrava em diferentes sessões a cada três horas. Mal dormira nos últimos dias, disse ele.
No meio da conversa nos jogamos no tapete felpudo do salão, a cabeça de apoiada em meu colo enquanto lhe fazia cafuné com as costas apoiadas no sofá. Comentei que seu cabelo estava grande e ele disse que já havia ficado careca por um tempo — o que não perdi tempo de tirar uma com sua cara. sem cabelo deveria continuar bonito, mas isso não significa que não seria algo muito estranho.
— Como está aquele garoto? Você já o visitou? — perguntou em meio aos bocejos.
— Ele está bem, sim. — respondi — Obrigada por financiar o tratamento dele, . Realmente não precisava.
— Precisava sim. — afirmou com um sorriso. — Não quero ver você preocupada quando eu posso resolver suas preocupações apenas passando um cartão. Sem contar que acalmou minha consciência.
Eu ri. segurou minha mão e beijou a palma delicadamente.
— Bem, então é sorte que você seja milionário, porque essa deve ser a terceira vez que você gasta dinheiro com a saúde de alguém que é importante para mim. — comentei.
— Segunda vez. — corrigiu. — Inclusive, li em um artigo esses dias que mal de Alzheimer pode ser passado de pai pra filho, é verdade?
— Não, ao menos não funciona assim. — replique — Os filhos podem herdar os genes defeituosos e ter maior probabilidade adquirir a doença, mas é relativo. Nem todos herdam isso.
Ele inclinou um pouco a cabeça para me tirar diretamente.
— Você tem?
Balancei a cabeça afirmando.
— Já fiz tratamento quando era criança, mas tenho que voltar a fazer quando tiver aos trinta anos.
ficou calado parecendo bastante perturbado em ter aquela informação. Não deixei de ficar tensa, também. A perspectiva de passar por isso era a sombra de um pesadelo que, embora eu adiasse, uma hora chegaria. Era inevitável.
O silêncio que se instaurou não era confortável como de costume, mas não se caracterizava como desconcertante. Quase pude ver as engrenagens do cérebro de funcionando e tentando resolver a situação, como ele sempre fazia, no entanto, aquilo estava longe do seu alcance. Imaginava quão frustrante deveria ser para alguém calculista como ele lidar com uma situação que dependia exclusivamente do destino.
ergueu-se o suficiente para abraçar minha cintura com firmeza e beijou minha barriga. Acariciei seus cabelos sentindo uma mensagem silenciosa de incerteza compartilhada entre nós dois. Sua linguagem corporal falava o que as palavras nunca poderiam me dizer com exatidão.
Quando lembrei de chamá-lo para comer, apesar de eu mesma não sentir fome, dormia apoiado em mim. Fiquei com pena de acordá-lo, então, apenas apoei minhas costas com o travesseiro do sofá jogado no chão e tentei dormir também.
Acordei ainda de madrugada com uma forte dor nas costas e uma vontade enorme de ir ao banheiro. ainda mantinha-se na mesma posição de antes parecendo estar mais mergulhado no seu sono.
— , preciso me levantar. — pedi balançando-o suavemente.
Meu destinado abriu os olhos, se levantou devagar e se jogou no sofá para dormir de novo. Sorri com aquela cena tão simples, mas que marcava uma intimidade que compartilhávamos. Havia muito mais do que apenas desejo e atração entre nós dois.
Por fim, beijei-lhe a testa antes de correr para o banheiro do segundo andar. 🌎🌏🌎 — O que você tanto procura na geladeira? — indagou abraçando-me por trás.
Era manhã e o sol havia dado as caras. O clima estava bem mais atraente do que antes, apesar de ainda fazer bastante frio. Mesmo não dormindo como uma princesa, me sentia animada para começar o dia.
— Alguma fruta. — respondi pegando um melão. Virei-me para ele e o olhei confusa ao vê-lo vestido como um reles mortal — Não vai trabalhar hoje?
— Estou de folga. — disse pegando a jarra de suco dentro do eletrodoméstico — Meu único objetivo hoje é vagabundear pela casa.
— Ser funcionário público deve ser uma maravilha. — comentei sentando na ilha.
Rose colocou um prato de torradas a minha frente e disse:
— Concordo. Funcionário público é cheio de regalias.
— E ainda acham pouco. — completei puramente para irritá-lo.
— Você não tem que estar na Coral antes das sete, não? — — E Rose, você está demitida.
A cozinheira, em resposta a sua piada, deu uma gargalhada alta, estridente e que parecia muito com um porco enquanto saia da cozinha.
Troquei o olhar com e tentamos segurar o riso sem sucesso. A risada me deu dores de barriga depois, mas valeu a pena. Aquele dia começou muito bem.
Passei boa parte do dia acompanhando os decoradores andar pelos lados e supervisionando seu trabalho. Conheci bastante pessoas novas e os ajudei quando era preciso. Nos pequenos intervalos, eu mandava uma atualização por mensagem para Albert explicando o que acontecia e alimentando seu jeito controlador de ser; às vezes pesquisava algo sobre o projeto já que àquela altura ainda não tinha o produto inovador pedido por Carter. Cada vez que os dias se passavam a ansiedade me dominava e a quase demissão jazia as portas.
Com quase tudo pronto no espaço alugado por meu chefe, Albert ainda achou na última hora do meu expediente um horário propício para comprar remédios para enjôo para Carol Carter, sua mulher. Estava voltando para empresa apenas para dar-lhe o remédio, bater ponto e buscar um par de sapatos que pedi emprestado a Daisy, quando de longe presenciei uma cena suspeita.
Mary descia a escadaria deserta da Coral desconfiada. Por estar descendo do lado esquerdo, ela não me viu subindo pelo lado oposto e observando-a. De repente, uma Ranger Rover branca saiu do estacionamento do prédio e parou em sua frente. Ela abriu a porta do passageiro, falou algo com o motorista e entrou rapidamente. Fitei o carro com o coração acelerado até ele sumir do meu campo de vista.
Só havia uma pessoa em todo aquele prédio que possuía uma Ranger Rover branca: Garry Fordnelly.
A perspectiva de que Mary, a mulher que sempre se mostrou feliz com o seu casamento, estivesse traindo o esposo me perturbou intimamente. Ela sempre fora uma pessoa de caráter “elevado” ao meu ver, embora estivéssemos afastadas, desde o escândalo que havia ocorrido no final de semana.
Minha expressão facial denunciava alguma coisa já que, ao me ver, Daisy franziu o cenho preocupada.
— Está tudo bem, ?
— Sim, está sim. — murmurei — Hmm… é… Você tem ouvido falar do Robert? Ele arrumou um emprego, não foi?
— Mary disse que sim e que é um que ele passa a maior parte da semana viajando — replicou ela — Eu não sei como ela consegue realmente. Morro de saudades do Mark se ele passa mais de dois dias viajando a trabalho.
— Ah, sim. — falei balançando a cabeça para evitar tirar qualquer conclusão precipitada — Cadê os sapatos maravilhosos que você disse que tinha?
O rosto de Daisy brilhou como uma árvore de Natal e rapidamente o assunto mudou.
Voltei para casa apenas para trocar de roupa e estar presente no local da festa antes dos chefões da Coral para ajudar na recepção dos convidados e funcionários da empresa, então, corri para o quarto sem parar para conversar com Rose.
Usando um vestido de inverno que estava ainda com a etiqueta da loja e os sapatos meia pata, azul de veludo de Daisy, uma maquiagem um pouco mais elaborada do que eu usava todos os dias, saí do quarto mexendo o celular quase descarregado.
— Sheisse. — me ouvi xingando, embora não fizesse ideia do que aquela palavra significasse, ela parecia bem pertinente para aquele momento.
— Não sabia que tinha aprendido a falar palavrões em alemão.— comentou atrás de mim e virei-me para vê-lo.
estava usando roupas de malhar e tinha testa suada. Ao me checar em toda minha pompa, uma sombra prateada cruzou seu olhar deixando-o parecendo um predador. Um arrepio atravessou minha espinha.
— Uau. Você está linda. — elogiou — Para onde está indo?
— Festa de comemoração de doze anos da Coral. — repliquei com um sorriso — Pensei que você fosse também.
— A festa é hoje? — indagou confuso — Sheisse. Passo um dia sem Ms. Snyder e fico desabilitado de lembrar de qualquer compromisso.
— Bem, você tem tempo. O evento só começará daqui a duas horas.
— Ótimo. — falou — Então tenho tempo para entregar-lhe uma coisa.
Franzi o cenho confusa.
— O que é?
Segui até o seu quarto — o qual era tão bagunçado quanto um porão de uma casa abandonada — e o vi sumi dentro do seu closet.
— Pode entrar, . — chamou de longe.
O closet de tinha o tamanho suficiente para ser um segundo quarto e ternos o bastante para vestir metade dos advogados do país. Algumas portas estavam abertas revelando gravatas espalhadas, assim como meias e camisas sociais.
— Aqui está. — disse ele segurando uma caixinha pequena de veludo vermelho.
— O que é isso? — perguntei alarmada.
— Uma amiga me disse uma vez que mulheres não deveriam andar sem joias e eu sei que você não tem muitas. — comentou um pouco constrangido — Ela me ajudou a escolher esse par de brincos e acho que combina com você.
Aproximei a caixa ao meu olhar e vi o símbolo da Lower na fechadura de modo discreto. Abri com cuidado para encontrar um par de brincos pequenos, azuis e parecendo duas gotas d'água. Sem palavras olhei para meu destinado também às fitava em minha mão.
— Isso é diamante? — indaguei maravilhada. Só havia visto um desses na TV. Ele assentiu com a cabeça — Não posso aceitar.
— Não só pode como irá aceitar. — advertiu segurando-me pelos ombros.
Olhei para eles pensando que nunca imaginaria ganhar joias daquele nível e que talvez eu não fosse digna de usar algo tão precioso. Aquilo era um pouco demais para mim.
— Deixa eu te ajudar. — disse direcionado-me para frente de um grande espelho de seu closet e segurando meu cabelo solto para trás.
Sua mão era leve e a carícia delicada sob meu couro cabeludo fez minha pele arrepiar de um jeito prazeroso. Hipnotizada, levei os brincos até os lóbulos das orelhas. observou cada movimento com a perícia de um profissional, como se tivesse medo de perder qualquer detalhe da cena.
— E aí? O que acha? — sussurrei.
— Perfeita. — ele respondeu e tivesse certeza que não falava sobre a joia.
Quando retirou o acalento do seus dedos para que eu me virasse senti a sensação estranha de fim do encanto. No entanto, meu destinado inclinou meu queixo com delicadeza e encaixou sua boca na minha.
Embora eu tenha beijado uma dúzia de vezes, cada uma delas foi uma novidade para mim. Naquele momento ele me seduzia como se os movimentos tivessem sidos calculados para me agradar, derramando uma onda de encantamento sobre mim.
Ele riu de alguma coisa, os olhos escuros se tornando meio cinzentos ao fitar os pequenos detalhes de meu rosto.
— Acho que você tem que ir.
— Concordo. — falei, mas não sai do lugar.
Foi difícil voltar em órbita depois daquele encontro com . Durante os primeiros dez minutos, apesar de ter o ponto eletrônico no ouvido e as anotações com a logística da recepção, passei boa parte do tempo andando como barata tonta pelo salão da festa até finalmente começar a trabalhar.
Não havia nenhuma desordem pelas equipes que contratei. Elas eram eficientes e tinham sido bem instruídas com suas determinadas funções.
Os convidados mais ilustres chegaram primeiro em seus carros de luxos e andaram no tapete azul royal preparado para pousarem diante das câmeras. Figuras políticas, empresários de outros ramos e parceiros da Coral estavam entre as celebridades que faziam parte do círculo de amizade dos diretores executivos da empresa. A festa anual era sempre glamourosa e digna de algumas matérias em revistas de moda.
Os funcionários da Coral apareceram, também, mas não tinham a mesma recepção que os ilustres convidados. Nem todos chegavam a ir, apesar do convite se estender a empresa em peso, apenas os mais antigos e importantes apareciam. Porém havia um trio de fotógrafos contratados que cuidavam das fotos dos empregados, não os deixando de lado.
Naquele ano, por estar responsável pela organização, eu não tive o privilégio de me divertir naquela noite. Em todas as festas anuais corriam boatos, escândalos e fofocas por meio dos funcionários; alguns se davam a liberdade de beber além da conta, mas costumavam carregar a carta de demissão no dia seguinte.
Carter chegou com sua esposa, a qual estava deslumbrante. Sua barriga estava apenas um pouco protuberante, no entanto sua roupa disfarçava a gravidez. Ela deu dois beijinhos na minha bochecha e pude sentir o cheiro doce que adveio dela.
— , querida! É tão bom vê-la de novo. veio com você? Estou tão feliz em saber que agora somos família! — Carol desatou em falar — Temos que ir às compras antes do 's Christmas, afinal, agora você é quase minha sobrinha.
Olhei para ela alarmada. Toda aquele monólogo que sugeria uma adição dentro de uma família que não conhecia me deixou aterrorizada. Tendo em vista que isso aconteceria um hora ou outra, a perspectiva de conhecer não só os pais de , como toda a família me dava medo.
— Vamos deixar trabalhar, querida. — advertiu Carter puxando sua mulher para o lado — Após a festa você pode conversar com ela.
— Claro, claro. — afirmou a mulher — A festa está magnífica, querida.
— Obrigada, senhora Carter. — agradeci embaraçada.
Depois de perceber que sua esposa estava suficientemente distraída em meio a uma conversa com Cassandra, Carter veio até mim para checar se tudo corria realmente bem.
Respondi suas perguntas com monossílabos, do jeito que sua personalidade prática preferia. Satisfeito, meu chefe saiu para seu grupo de amigos após andarmos pelo salão observando se as mesas estavam cheias de petiscos. Foi aí que encontrei entre dois homens desconhecidos. Ele usava um terno azul escuro e colete da mesma cor por dentro; em seu apogeu, meu destinado mantinha sua postura que exalava autoridade e arrogância. Embora segurasse uma taça de champanhe como a maioria dos convidados, ele nunca levava-o a boca e durante a conversa apenas assentia.
— ? — ouvi a voz de George, responsável pelos garçons, através do ponto eletrônico.
— Sim?
— Um dos garçons se acidentou e preciso levá-lo ao hospital ou ficaremos sem pessoal. — avisou ele.
— Espere um minuto que eu vou resolver seu problema. — respondi indo em direção à cozinha.
Vi Carter direcionar seu olhar para mim como se tivesse sentido o cheiro de confusão. Sorri como se nada tivesse acontecido e andei com mais cautela.
Um garçom havia quebrado uma das taças de champanhe em sua mão direita e o ferimento era feíssimo, por isso eu entendia a preocupação de George. Pedi para que uma das garçonetes o leva-se a uma enfermaria que tinha nos arredores e expliquei que deveria direcionar-se ao hospital pela conta da empresa, se necessário. Troquei dois funcionários que estavam responsáveis a lavar os pratos para a ajudar na distribuição de comidas, no entanto, arrumar uniforme que coubesse neles eram outros quinhentos. Para não acumular trabalho para eles, decidi ajudar na cozinha. No começo George não gostou da proposta — eu estava bem vestida demais para botar a mão na massa — porém nada que o tirar dos saltos e o vestir de um avental não resolvesse.
Depois de quase uma hora de correria, meu pescoço doía de tensão. Pela fresta da cortina pude ver Carter rindo com Daniel totalmente alheio aos problemas que enfrentávamos. A cozinha, como era de se esperar, era um caos, mas organizado. Havia muito burbúrio de conversa, mas os cozinheiros se davam bem e sabiam o que estavam fazendo. O jantar logo começaria, então, as comidas deveriam estar bem cozidas a tempo.
Senti um par de mãos segurando meus ombros e virei-me alarmada para descobrir quem era. Felizmente, o dono delas era , o qual sorriu do pequeno sobressalto que dei.
— Carter está começando a sentir sua falta. — comentou ele massageando o local — E eu também.
— Já estou indo. — respondi enxugando as mãos e retirando o avental.
Foi então que percebi que a cozinha tinha sido tomada pelo silêncio. Os cozinheiros fitavam-nos com curiosidade e trocavam cochichos explicitamente, como se não os víssemos.
— Senhor . — uma das mulheres chamou-o.
— Avalon. — respondeu meu destinado com um leve assento. A mulher sorriu encantada e todos os funcionários passaram a relaxar os ombros. Olhei para confusa, mas ele apenas piscou para mim antes de sair da cozinha.
Quem me viu andando pelo salão naquela hora não deve ter imaginado quão cansada eu me sentia. Pus meu melhor sorriso falso e cumprimentei meus colegas de trabalho, os quais estavam famintos. Depois disso, voltei as rodas de conversa dos convidados VIPs indagando se eles precisavam de alguma coisa.
— . — chamaram-me segurando em meu cotovelo.
Virei-me um pouco surpresa, mas suavizei a expressão ao ver Phillip de Luca com seu receptivo sorriso.
— , que bom vê-la outra vez! Estava falando de você agora mesmo com minha esposa. — disse ele.
Fitei seu olhos azuis e a familiaridade que ele me olhava deixou-me desconfortável. Philip era igualzinho a alguém que eu conhecia, mas não consegui associar ninguém no momento.
— Olá, Phillip. — cumprimentei-o — Espero que esteja gostando da festa.
— Sim, com certeza. — falou ele olhando para os lados à procura de alguém — Está vendo aquela moça de rosa? É a minha esposa.
Procurei-a com o olhar e não evitei parecer surpresa ao ver quão linda aquela mulher era. Ela usava um vestido rosa claro de mangas longas que dava-lhe um ar de ninfa. O cabelo loiro brilhava como ouro e seus olhos azuis reluziam como diamantes. Nunca imaginaria que Phillip — um homem tão comum — tivesse ao seu lado alguém que possuísse uma beleza tão acentuada como ela. Claro que aquela era só minha constatação puramente artificial.
Percebendo que era alvo dos nossos olhares, a mulher de De Luca veio em nossa direção.
— Oi, . Como vai? Phillip falou muito sobre você! — disse ela em uma animação calculada.
— Essa é Heather De Luca, também conhecida como minha esposa. — apresentou-a Phillip com orgulho.
— Prazer em conhecê-la, Heather. — cumprimentei-a sentindo que seu nome era conhecido por mim.
— Digo o mesmo! Você tem dado o que falar na TV ultimamente.
Observei-a achando estranho sua colocação, mas abstive-me de qualquer comentário.
— Foi mesmo? Achei que tinha sido uma ou outra menção. — repliquei modestamente.
— Ora, claro que não! — disse ela segurando meu cotovelo e quase atropelando seu marido. Heather cheirava a rosas. — Você é a destinada de ! Sabia que o conheci quando éramos adolescentes?
— Ah, vocês eram amigos?
Ela hesitou, sua face mudando em um lampejo meio culpado, no entanto, rapidamente a mulher de Philip voltou em seu falatório frenético.
— Vamos dizer que sim. — disse ela jogando o cabelo para trás. — Ele continua sendo muito intenso?
— O que quer dizer com isso? — indaguei na defensiva.
— Ah, você sabe. — ela deu uma risada nervosa — às vezes é um fardo grande demais para carregar.
— Heather.
Virei-me para trás no automático assim como Philip, mas a esposa dele ficou pálida e incapaz de procurar pelo dono da voz que o chamou. Atrás deles estava com o maxilar trincado e os olhos mais negros do que o usual.
— Manter-se fiel é um fardo pesado demais para carregar, Heather? — indagou .
A mulher continuou muda, incapaz de responder além de um vermelhão que dominava seu rosto de pura vergonha. Percebendo o quão perturbada sua esposa estava, naturalmente, Philip se pôs de frente ao meu destinado.
— O que você está insinuando com isso? — interpôs ele com a voz mais alta.
— Acredito que eu fui bem explícito.
As pessoas ao nosso redor passaram a cochichar e prestar atenção na agitação que acontecia. Com um sorriso amarelo segurei o braço de meu destinado afastando-o do casal De Luca.
— Não vamos fazer uma cena, sim? — sussurrei tranquilamente para .
— Você ouviu o que aquela mulher disse? — ele perguntou visivelmente alterado — “Intenso demais” é a vontade que eu tenho de...
— , estamos em público.
Ele levantou as sobrancelhas cético. Ao dar uma olhada ao seu redor e perceber a atenção que começou a receber, trincou o maxilar contrariado.
— Tudo bem. — replicou a contra gosto.
Se a situação não fosse tão trágica, talvez eu riria da inversão de papéis, pois, dias antes, estava falando de quão era importante manter-se a margem de novos escândalos.
Os comentários rodeavam-nos como fantasmas e as olhadelas passaram a me incomodar mais do que o normal. Estressado e à beira de um colapso, meu destinado sumiu dentro da cozinha. Fui até a banda que havia contratado e pedi para que fosse cantada um dos hits que mais tocavam na rádio, uma tentativa bem sôfrega para desviar a atenção dos convidados.
Heather e seu marido, no entanto, não pareciam muito a fim de esquecer o episódio. De longe pude-os ver conversando com Cassandra e Shawn com expressões amedrontadas e um tanto inocentes demais para meu gosto.
Minutos depois, logo após liberar o jantar, recebi um recado de avisando que havia ido embora antes mesmo de que eu tivesse tempo de o procurar.
No resto da noite fiquei entre a vontade de correr para casa e conversar com e a responsabilidade de conduzir a festa até o final. Pedi o celular emprestado de George para mandar mensagem para meu destinado, porém ele não o respondeu. A preocupação me dominava e evitei trocar mais do que conversas fiadas com quem monopolizava minha atenção durante a festa e desviando de qualquer comentário que citasse . O casal De Luca saiu mais cedo também alegando cansaço de uma semana turbulenta, como se nada tivesse acontecido, o que acendeu uma ira levemente adormecida dentro de mim.
Embora tivesse que ficar até que o pessoal da limpeza transformasse o salão novinho em folha, fugi para casa em um táxi ansiosa e torcendo para estivesse realmente lá.
Encontrei-o no seu escritório. Sentado em sua cadeira, estava olhando para a janela que dava para o jardim — e não conseguia ver nada além das frestas que a lua proporciona, já que estava muito escuro. Em sua mão direita tinha um copo de vidro com um líquido marrom, o qual ele mexia para um lado e para o outro, repetindo e repetindo.
Não tinha total certeza do que fez ficar alterado, mas achava que fora a junção de tudo. O comentário de Heather foi desnecessário ao extremo e, tendo em vista seu histórico de infidelidade, encontrar quem antes era sua esposa não deveria ser uma das melhores sensações. Ainda assim havia a parte egoísta que se perguntava se meu destinado não tinha superado a ex.
Percebendo minha presença por causa dos meus passos, perguntou como a festa terminou.
— Bem. — repliquei — Na medida do possível. Posso beber com você?
— Isso aqui é suco. — disse ele, amargo, e virando-se para mim — Nem sofrer direito posso.
Acomodei-me em uma das poltronas que ficavam de frente de sua mesa sentindo meu coração diminuir no peito. Ele estava com uma cara horrível, parecendo muito mais cansado do que quando chegou da capital.
— Você está bem? — indaguei, embora a resposta fosse óbvia.
negou com a cabeça e manteve-se calado. Eu não sabia o que dizer, mas tão pouco queria continuar naquele silêncio constrangedor. Foi quando eu vi quão importante tinha se tornado para mim; vê-lo abalado daquele jeito me doía muito mais do que eu desejava admitir.
— Eu namorei Heather no final do Ensino Médio. — começou ele — Ela parecia perfeita: bonita, simpática, gentil, paciente… Era a personificação da mulher ideal. Heather gostava das mesmas coisas que eu e ela me fazia feliz. Nós éramos um ótimo casal. — ele pausou para beber o suco — Volta e meia uma paixão de adolescente se tornou algo muito maior do que eu esperava. Eu fiquei enfeitiçado por ela, cheguei até enfrentar nossos pais e minha avó que não apoiavam o namoro. Me entreguei por inteiro. Foram quatro anos de namoro até que a pedi em casamento. Sempre fui impressionável e acreditava que ela era a mulher da minha vida. Hoje percebo que desde antes ela não estava realmente querendo estar comigo. Ela não quis fazer festa e nunca contou ao seu pai que estávamos casados. Para eles, apenas tínhamos passado a morar oficialmente juntos. Heather é uma arquiteta, sabia? Ela viajava muito. Logo depois que voltamos da lua de mel, Heather passou a ficar estranha. Voltava tarde para casa e parecia… — ele engoliu o seco — Parecia que ela tinha nojo de mim. Eu não entendia o que estava acontecendo e Heather não me contava, embora eu perguntasse. Ela sempre estava cheia de trabalho e eu entendia, mas às vezes passava dias sem vê-la direito. Então, falei que não dava mais para ficarmos assim, visando que ela agisse para salvar o casamento que havia começado há pouco, mas, em vez disso, ela me jogou a bomba que já conhecia o destinado fazia meses e que estava confusa. Por muito tempo tentei conquistá-la de novo, mas Heather nunca esteve confusa. Ela não queria continuar casada comigo e deixou isso muito claro quando disse que eu era um fardo para ela.
Mordi os lábios para não soltar um palavrão e esperei que ele continuasse.
— Heather me conhecia e sabia que aquele tinha sido meu mantra por anos. — lágrimas desceram em seu rosto. — Eu não quero ser um fardo, . Eu cansei de ser um fardo. Fui um fardo para os meus país, pra minha avó e logo depois pra minha esposa! Sempre fui distraído demais, burro demais, intenso demais!
Corri em sua direção e o abracei, ainda que meio sem jeito. chorava em meu ombro como uma criança e não pude deixar de me comover. Quão ferido por dentro ele estaria? Durante todos esses anos, o que o fez acreditar tão pouco em si mesmo? era um dos homens mais bem sucedidos e bondosos que eu conhecia! Ele não conseguia enxergar isso?
Segurei o seu rosto com firmeza para que em seu olhar estivesse bem focado em mim antes de dizer:
— Você não é um fardo, meu amor. Você nunca foi. — falei em um sussurro — Não conheci sua avó, mas se ela o considerava um fardo, ela teria se livrado de você na primeira oportunidade. O que Heather disse só foi algo que ela repete para si mesma apenas pra justificar o que ela fez. Você não tem que se sentir culpado.
tentou se desvencilhar para contrapor, mas continuei firme ao dizer.
— Querido, você é um presente pra mim, não um fardo.
Com isso, meu destinado me encarou por um longo tempo. Não fazia ideia do que passava por sua cabeça, mas foi suficiente para que ele beijasse meu nariz com ternura.
— Ich liebe dich. — murmurou com um sorriso.
— Odeio quando você fala alemão comigo. — resmunguei — O que isso significa?
Ele riu e balançou a cabeça.
— É um agradecimento.
Repeti a frase que falara e ele segurou riso, parecendo uma pessoa totalmente diferente da que eu havia encontrado naquela madrugada. Como se ele fosse uma criança com medo, conduzi-o até seu quarto e esperei-o dormir.
Antes de finalmente pegar no sono, refleti cada palavra que eu dissera e vi que, de fato, era apenas uma pequena porção do que sentia.
Capítulo 21
“Estrelas quando brilham, vocês sabem como eu me sinto. Aroma do pinheiro, você sabe como eu me sinto. Oh, a Liberdade é minha e eu sei como eu me sinto.” - Feeling Good, Nina Simone. Era cedo quando eu acordei naquele sábado na cama de , sem os sapatos e o cinto do meu vestido. Meu destinado me abraçava com tanta segurança e conforto que fora difícil levantar, mas eu precisava terminar os últimos detalhes do meu projeto.Havia mais empregados do que o habitual na mansão e Rose estava lá cedinho fazendo um bolo bem elaborado para . Sentei-me na ilha digitando enquanto ouvia os passos e murmúrios entre os funcionários.
Meu destinado apareceu coçando os olhos quando eram quase dez horas da manhã. Segurando o bolo cheio de glacê vermelho e branco, os empregados de fizeram um coro em uníssono cantando parabéns para você. Talvez eu entrasse na cantoria se não estivesse tão compenetrada na resposta de uma pesquisa que havia feito na internet.
Com a cara inchada de sono, agradeceu a todos com um discurso clichê, mas honesto. Logo, sentou-se de frente a mim e eu me esforcei para parecer o mais desinteressada possível.
— Feliz aniversário, . — desejei dando um sorriso rápido e voltando ao notebook — Bem que havia suspeitado da fartura dessa mesa. Não poderia ser para mim com toda certeza.
— Obrigado. — disse ele meio tímido, meio decepcionado pelas felicitações sem graça que eu fiz.
— Vai sair hoje à noite para comemorar algo?
Ele balançou a cabeça em negação enquanto servia-se de café.
— Na verdade, eu estava...
— Tem como me levar lá na Clínica hoje às sete? — o interrompi — Nelson vai estar de folga e preciso de companhia. — justifiquei segurando ao máximo não parecer entusiasmada com a ideia.
— Tudo bem. — murmurou.
Como ultimato, levantei-me segurando o notebook e fui para outro cômodo.
Eu sabia muito bem a rotina de para aquele dia: ele iria ao terapeuta e voltava às duas, depois ficava o tempo todo ziguezagueando a casa. Enquanto isso eu confirmava nossa participação com Ivanna para a festa temática que ocorreria na Clínica naquela noite.
Ao contrário do que eu esperava, passou o dia fora e só voltou às seis da noite com cara de poucos amigos. A ideia inicial era não contar nada sobre a surpresa, mas seu rosto abatido fez meu coração diminuir no peito. Meu objetivo era surpreendê-lo, não fazê-lo se sentir um lixo.
Vestida com uma saia godê vermelha na altura do joelho e um casaco azul, encontrei-o deitado no sofá da sala mexendo no celular.
— Querido, acho que você deveria ir um pouco mais arrumado. — comentei ao vê-lo de calça jeans e moletom.
— Eu não vou sair do carro. — replicou ele, confuso.
Respirei fundo antes de dizer:
— Quero te mostrar uma coisa, mas você precisa estar com uma roupa mais social. — tentei explicar sem expor totalmente meu planos.
sentou-se no sofá desconfiado.
— E confortável. — acrescentei — Uma roupa formal de dança, talvez. E sem seguranças, pelo amor de Deus.
— Uma roupa formal de dança? — repetiu, não entendendo o que acontecia — O que você está aprontando, dia)?
Fiz a minha melhor cara de inocência.
— Nada, ué?
Ele se vestiu do jeito que eu pedira, mas, em troca disso, começou a fazer perguntas, logo após jantarmos. A maioria delas foram respondidas com um “lá você descobre” ou “só digo na presença dos meus advogados”. Aquilo o deixou intrigado o suficiente para que aquela sombra escura do desânimo sumisse por um tempo.
Ainda quando passávamos horas no telefone conversando, falou o dia do seu aniversário. Já tinha uma ideia das músicas que ele gostava e a sua preferência eram jazz e blues dos anos 70, 80 e 90. Com isso em mente, ao ver que o baile dos anos de ouro da Clínica seria no mesmo dia em que meu destinado completaria 29 anos, percebi que era uma oportunidade perfeita.
Era difícil achar um presente bom para alguém que tinha tudo o que o dinheiro poderia comprar e os últimos acontecimentos da minha vida me fizeram esquecer completamente de ter reservado duas entradas para aqueles evento. Se Ivanna não ligasse no dia anterior perguntando se eu ia, talvez não me lembrasse mais.
Com passos hesitantes, saiu do carro observando as luzes que vinham do salão de festas da clínica. Alguns grupos de pessoas, em sua maioria adultos, andavam animadas até as portas iluminadas de pisca-pisca. Na fachada tinha o letreiro: “7° Baile Anual dos Anos de Ouro”.
Segurei na mão de meu destinado e puxei-o para que andasse com mais firmeza.
— Quero dançar The Beach Boys com você — falei e senti-o apertar meus dedos com sua palma morna.
— O que é isso exatamente?
Expliquei como funcionava e pude ver a animação de florescer com a perspectiva de dançar como se voltasse no tempo.
Quando eu vi a felicidade reluzir no rosto de ao entrar no salão de festas da Clínica, o mundo pareceu fazer sentido mais uma vez. Ele tinha um sorriso tão lindo e alegre que podia ver rugas novas atrás dos olhos.
Havia mais gente do que eu imaginava naquele lugar. A grande maioria eram casais de meia idade, aqueles que eram novos demais para serem chamados de idosos e velhos demais para serem chamados de jovens. Isn't she love de Stevie Wonder passou a tocar e logo puxou-me para dançar.
Uma das suas mãos estava em minha cintura e a outra segurava a minha esquerda. Ele me conduzia enquanto cantarolava a música, rodopiava-me pelo salão e eu sentia que estava flutuando. Era como estar dentro de um filme dos anos 70, dançar assim era muito mais prazeroso do que imaginei. Não havia sensualidade exacerbada, ela existia, no entanto, nos pequenos toques trocados. O homem constantemente retratado como simpático, mas reservado diante do público, deu lugar a uma pessoa muito mais calorosa, incentivado pela regra de proibição de câmeras e celulares no recinto, a não ser dos organizadores do evento. Era bem verdade que o grupo de pessoas de lá eram bem menos sem frescura para falar, mas vê-lo envolvido com um grupo de idosas e logo depois repetindo uma coreografia de Cherrybomb dos The Runaways era de se espantar Enquanto isso eu ria em deleite, a sua felicidade me dava uma densa calidez no peito.
não poderia estar mais feliz e me arrastava junto sempre que podia, apresentando-me para diversas pessoas que eu não conhecia, mas que via andar pela clínica periodicamente. Ivanna apareceu, sendo ela uma das organizadoras, e foi uma daquelas raras vezes que ela não demonstrou um grande mau humor.
Eu tomava água enquanto via conduzi Hazel Bridgestone, uma das mulheres que estava em início de Alzheimer. Nos próximos meses, a memória desse momento iria desintegrar até ser reduzido a nada em sua mente, mas isso não importava. Com destreza, segurava sua mão direita e mantinha uma postura de príncipe. God On Knows tocava e Hazel sorria com as bochechas coradas, uma reação clara de flerte. Eu o via murmurar algumas coisas em seu ouvido e ela ficou vermelha como um tomate. Tomei um gole da minha bebida e suspirei sentindo-me intensamente apaixonada.
Aquele homem incrível que amava jazz, tinha problemas para decorar horários e possuía uma sagacidade própria era o que o destino havia preparado para mim. Se eu soubesse que o sentimento de plenitude me sucumbiria desta maneira, não tinha relutado com a ideia de destinado.
Os feixes de luzes laranja e amarelo davam uma aura mágica no local. Peguei uma garrafa de água e entreguei para meu destinado quando ele finalmente parou para descansar. Estava frio lá fora e o aquecedor não era um dos melhores, mas, por causa da sua constante movimentação, já havia desabotoado os primeiros botões e estava com as mangas da camisa dobradas.
— Não sabia que Vossa Excelência era tão talentoso na dança. — comentei.
— Talentoso? Você quis dizer desengonçado, não? — perguntou segurando-me pela cintura, deixando-nos mais próximos.
— Bem, não vi você pisar no pé da pobre Hazel.
Depois de dar um longo gole da sua água, sorriu, divertindo-se como ninguém. Passei meus braços em seus ombros para abraçá-lo.
— Feliz aniversário, meu amor.
Ele beijou-me na bochecha e sussurrou:
— Obrigado, liebe. Esse foi o melhor presente que ganhei em anos.
Acariciei seu rosto memorizando cada detalhe de sua feição. Através de seus olhos, eu podia ver que aquele agradecimento era real. Como fora os seus últimos aniversários? Será que ele passara todos esses anos comemorando sozinho?
— Como é estar mais perto dos trinta? — indaguei brincando com seu colarinho.
franziu o cenho.
— Me diga você, já tem vinte e seis.
Dei língua para ele e fui puxada para pista. Come a Lit Bit Closer dos The Americans estava na metade e não evitei fazer a dancinha segurando suas mãos e gargalhei me sentindo a mulher mais sortuda do mundo. Logo, o som de Frank Sinatra invadiu o salão. F me to the moon era uma das minhas favoritas, pois era a música dos meus pais. Embora tinha acontecido apenas uma vez, ainda possuía uma fresca lembrança de ver os dois abraçados na minúscula cozinha enquanto essa música tocava na rádio.
Com a cabeça encostada no ombro de , me senti melancólica de repente. Durante muito tempo estive presa nas lembranças dos dois e admirei-os pela cumplicidade, paciência e, sobretudo, o amor que sentiam um pelo outro.
Quando a música Feeling Good de Nina Simone, ele segurou-me perto em um balanço mais lento, nossos corpos tão perto que o seu calor dava uma sensação de frescor em mim.
Infelizmente, tão logo como começou, o evento terminou. Lá fora caía um pé d'água, deixando as estradas muito mais perigosas do que já eram. Ivanna aconselhou que procurássemos o hotel Morada Azul para passarmos à noite, pois a previsão era de chuva até de manhã. Enquanto fitava correndo até o carro para pegar seu guarda-chuva na mala da Frontier, Ivanna se posicionou ao meu lado.
— E aí? Muito cansada? — perguntei apenas para iniciar a conversa.
— Só preciso encostar a cabeça e irei dormir — disse massageando o pescoço — Já você ainda tem uma longa noite esperando, hein?
Senti todo o meu rosto esquentar e fiquei muda. Em resposta, Ivanna soltou uma das suas gargalhadas escandalosas, zombando da careta que eu havia acabado de fazer.
— O que há de tão engraçado? — indagou ensopado, mas segurando o guarda-chuva preto com firmeza nas mãos.
— Nada. Nada. Boa noite, Ivanna. — falei quase o empurrando antes que minha amiga dissesse mais alguma coisa que me deixasse mortificada.
O hotel era a menos de 2 quilômetros da clínica, o que facilitou nossa chegada. Muitos dos hóspedes eram familiares que acompanhavam os pacientes da clínica e não conseguiram vaga para acompanhante de graça. O recepcionista era um homem de vinte anos e mexia no celular, totalmente entediado. teve que chamá-lo ao menos três vezes para que fôssemos vistos.
— Sheisse. — xingou ao ver que até sua carteira foi molhada. Meu destinado pegou um dos cartões e acrescentou: — Qual é o melhor quarto que vocês têm?
Levantei as sobrancelhas, me perguntando se algum dia eu falaria algo parecido sem ficar com a consciência pesada. Se eu estivesse no lugar do perguntaria “qual é o quarto mais barato?”
Com os dedos entrelaçados, meu destinado me arrastou acompanhando o passo do recepcionista, o qual pareceu bastante solícito assim que percebeu que era de uma ala mais elevada. A única vantagem do quarto era de que ele era grande e tinha os dois aquecedores funcionando, pois a pousada era destinada aos moradores de bairros mais pobres, os quais não exigiam nada além de um lugar confortável para dormir.
Sentei na cama enquanto vi entrar no banheiro para se enxugar. Ele apareceu em minha frente passando a toalha no cabelo, comentando algo sobre o quanto se divertiu na festa.
— Fico feliz em saber isso. — repliquei enquanto tirava as sapatilhas — Meus pés estão doendo, mas a experiência valeu a pena.
Ele olhou para mim com um dos seus melhores sorrisos, aquele que fazia os meus joelhos amolecer.
— Você é incrível, dia), eu já te disse isso? — elogiou sentando ao meu lado. — Obrigado mais uma vez.
Pus minhas mãos em seus ombros ainda úmidos. Os dedos correram pelo seu pescoço e rosto e vi o arrepio que se alastrava através de meu toque. Seus olhos brilharam, uma luz atrevida cruzou sua íris quando massageei seus cabelos molhados com carinho.
— Não me encha de elogios, amor. Apenas… — suspirei — Apenas quero vê-lo feliz.
Lembrei-me dos nossos diversos momentos juntos, inclusive, quando o disse que não era um fardo. Eu queria aqueles momentos e muito mais. Queria sua alegria, sua vivacidade, seu cheiro impregnado em mim. Queria que ele fosse amado.
— Eu amo você. — as palavras escorregaram da boca tão naturalmente que não percebi que havia dito até tê-lo feito.
Naquela manhã, quando os funcionários bateram palma, pesquisei o significado da frase que ele me ensinou. Não sabia muito bem o que fazer com aquela informação antes, mas, naquele momento, eu soube. Porque, assim como ele, eu também estava apaixonada.
— Ichi liebe dich. Amo você. — falei.
Como em um clique, senti meu coração encher de uma calidez voraz, a qual não podia suportar no peito. Era intenso demais para uma pessoa só. Eu o amava. Cada pedacinho que fazia ele ser quem ele era, cada fio de cabelo daquele homem.
— Eu te amo. — replicou ele aproximando-se e segurou meu rosto com suas mãos. Os olhos escuros brilhando com algo tão bom e agradável, quase sobrenatural. — Eu te amo com todas as minhas forças, liebe.
mordeu meu lábio inferior fazendo-me soltar um gemido involuntário. Logo, ele encaixou suas boca na minha com voracidade, acomodando me em seu colo. Seu corpo era duro e voluptuoso abaixo de mim, a excitação nos envolvendo de forma incontrolável.
O frio da noite se dissipou dando o lugar do calor produzido pelo atrito nos nossos corpos. Após retirar sua camisa molhada, meus dedos deslizaram sobre suas costas macias, descobrindo cada detalhe de seu corpo que antes não conhecia. Os lábios de dominaram meu colo e com cada beijo ele marcou minha pele. Escutei-o sussurrar palavras em alemão e, apesar de não conhecer os significados delas, cada uma delas despertava um nova necessidade de tê-lo perto de mim.
Entre carinhos, gemidos e promessas, nossos corpos se uniram em um só. Gostaria de falar mais daquele noite, de como foi estar nos braços de quem eu amava com todos os detalhes sódicos, mas esse momento tão especial, e íntimo apenas ele, eu e o destino saberemos. 🌍🌏🌎 Era quase oito horas da manhã quando saímos da Morada Azul e fomos para casa. Eu me sentia exausta pela noite mal dormida e parecia tão cansado quanto eu. Ao entrar no carro, meu destinado massageou o pescoço com uma careta.
— Nunca mais piso aqui — resmungou ao ligar o automóvel — Aquele colchão acabou com as minhas costas. Dormi muito mal essa noite.
— Sim, foi o colchão com certeza — disse eu com sarcasmo.
me olhou inocentemente antes dizer:
— Se não foi isso, então, o que seria?
Dei-lhe um empurrão e começamos a rir como alunos da quarta série. Peguei-me fitando sorriso tão bem desenhado de e a sensação da certeza de amá-lo ainda estava lá.
Passei boa parte do domingo na sala de estar envolvida com o projeto da Coral. Minha ideia para a empresa não estava exatamente na linha de produtos oferecida, mas acreditava que a novidade ia chamar atenção dos donos da Coral. Só de pensar que aquilo valia meu emprego, o estômago esfriava.
Estava tão compenetrada no notebook que só percebi a presença de quando o flash brilhou bem no meu rosto, assustando-me.
— Droga! — resmungou ele — Pensei que tinha desabilitado isso.
— Tem a discrição de um elefante em um ataque de diarréia. — repliquei digitando mais uma nota ao lado do slide. — Tsc, tsc, tsc.
sentou-se ao meu lado e tirou outras fotos. Na última, virei-me para ele e sorri com exagero. Aparentemente, meu destinado não queria me deixar trabalhar. Com o queixo apoiado no meu ombro, ele tirou outra fotografia de nós dois, mostrando-se estar se divertindo com aquilo.
— Amor, eu tô ocupada.
— Eu sei, mas já faz horas que vejo você aí digitando... — respondeu, porém não parou de fazer sua sessão particular de fotos. — Estou entediado, dia).
— Estou vendo. — repliquei com os olhos semicerrados — Por que não lê um livro? Vê um filme? Você pode pintar ou jogar video game.
— Cansei dessas coisas. — murmurou abraçando-me e deixando a câmera de lado — Preciso de um novo hobby.
— Por que não toca um pouco de sax ou piano, hein?
Ele pensou um pouco, afastou os cabelos da minha nuca e beijou ali. Um calafrio atravessou meu corpo e a boca secou em antecipação.
— Pode ser. — disse, mas não se mobilizou para fazê-lo. — Na realidade, quero tocar outra coisa.
Soltei um gemido involuntário quando suas carícias passaram a ser na minha orelha, queixo e rosto. tinha uma delicadeza própria, como a de um artista que conhecia a técnica do desenho com perfeição.
— … — embora o objetivo era adverti-lhe, o tom saiu mais como uma súplica do que outra coisa. — Eu preciso trabalhar. — resmunguei afastando-me dele. — Não é uma boa hora pra ser seduzida.
— Toda hora é uma boa hora para ser seduzida. — contrapôs em seu sorriso ladino, de predador, cheio de segundas intenções.
Ele era absurdamente atraente. Desde os cabelos encaracolados ao queixo masculino. Ao abrir os olhos, uma nova excitação acendeu em mim ao ter suas íris negras em minha direção. O brilho prateado estava lá, forte como nunca, a boca entreaberta… Sua personalidade também deixava-o mais bonito e pensar em suas qualidades fazia com que seus defeitos se transformassem em nada.
— Você precisa mesmo trabalhar agora? — indagou ele.
— Sim! — repeti com mais ênfase.
— Sua apresentação vai ser segunda? — indagou de repente.
— Sim, isso mesmo — repliquei — Como sabe?
Ele deu um sorriso, aquele que sinalizava esperteza, e a resposta pareceu óbvia. Então, nós dois falamos em uníssono:
— Carter.
— Ele me convidou para ver sua apresentação — adicionou ele — Tudo bem se eu for?
— Claro — respondi sem pensar muito. — Agora, preciso ficar sozinha.
— Isso mesmo, me expulse da minha própria sala de estar — disse ele levantando-se meio desajeitado — Vou andar um pouco, qualquer coisa estou no jardim.
Olhei para a janela e pude ver a extensão de árvores sem folhas e a imagem sem graça do jardim por causa do inverno. Dei os ombros, lhe dando um selinho antes de vê-lo sair.
A segunda-feira chegou e com ela o nervosismo. Eu já havia lido as anotações o suficiente para decorá-las e repeti-las de trás para frente. Meu estômago revirava de ansiedade e sentia vontade de vomitar a qualquer momento. A movimentação do carro também não me ajudava muito.
Percebendo que não me sentia bem, segurou minha mão.
— Suas mãos estão frias — comentou — Vai dar tudo certo, liebe.
— Eu não sei, — repliquei olhando para a janela do carro. Como estávamos indo para o mesmo lugar, não fazia sentido usarmos dois carros diferentes — Estou com uma sensação ruim.
— Não fique assim — disse ele abraçando-me de lado e beijando minha testa — Você é talentosa e vai se sair bem. Eu vou estar lá pra te dar apoio.
Balancei a cabeça em concordância sentindo-me mais aliviada em tê-lo na apresentação. Ao menos alguém estaria torcendo por mim. Lembrando daquela conversa estranha que tive com os diretores executivos da Coral, abri a boca para comentar, mas o carro parou subitamente.
— Pronta? — indagou segurando a porta para que eu saísse.
Soltei um suspiro e murmurei uma afirmação. Nós dois entramos lado a lado na Coral, embora sem nos tocarmos, e enquanto marchei até a recepção, subiu até o andar da sala de reuniões como de costume. Não esquecendo, é claro, de piscar para mim antes de ir.
— Amigos, hein? Mais amigos que vocês só dois de vocês — comentou Daisy com sarcasmo logo depois me desejar bom dia.
— Nem tão amigos assim, suponho — respondi com um sorriso — Hoje vai ser um grande dia.
— Felicidades pra vocês — desejou Mary sem muita vontade.
— Obrigada — agradeci incomodada com sua atitude.
Estranhamente todos os CEOs estavam na empresa à espera da apresentação. Todos os cinco estavam sentados em suas respectivas cadeiras quando entrei na sala de reunião para arrumar o datashow. também estava lá e me deu um sorriso discreto de motivação. Logo eu estava pronta para apresentar o projeto.
Engoli o seco ao ver o rosto nada simpático de meus chefes, mas me agarrei as palavras de . Vai dar tudo certo.
Comecei falando da concorrência e de seus avanços os produtos, mostrando estatísticas e propagandas das empresas que disputavam seu lugar no mercado. Expliquei que não havia nada de novo nas outras empresas, a não ser, é claro, do desenvolvimento de plataformas de estudo individual, sendo a maioria focada em anotações de aulas e organizações de agenda. Foi aí que entrei na ideia de criação de um aplicativo que toda uma escola pudesse utilizar, onde os professores controlariam e disponibilizaram as atividades e estariam conectados com os alunos. A novidade seria uma parceria com empresas de livros didáticos e professores da área para o desenvolvimento dos exercícios complementares disponíveis no aplicativo. A ideia inicial era o uso para educação básica para depois atingir as áreas mais complexas da educação. Defendi meus argumentos a partir de alguns estudos científicos e pesquisas sobre a facilidade que as crianças mais jovens tinham para o uso da tecnologia.
Expliquei cada mínimo detalhe do projeto para tirá-lo das margens da dúvida. Foram duas horas e meia de falatório em que eu parava apenas para beber água e responder perguntas dos diretores executivos.
Então, quando concluí, um pesado silêncio pairou no ar. Entrelacei meus dedos, nervosa, e encarei um ponto atrás dos donos da Coral, incapaz de olhar em seus olhos.
— O que acha da ideia, ? — indagou Cassandra virando-se para meu destinado.
— Um pouco arriscada, mas tem grande chance de dar certo. — respondeu com simplicidade, mostrando-se orgulhoso.
— Essa ideia é sua, senhor ? — perguntou Shawn. Eu e meu destinado franzimos o cenho com essa pergunta. — Levando em consideração que tem estado perto demais da empresa, duvido que tenha vindo da sua destinada.
— O quê? Do que diabos está falando? A ideia é de dia), oras. Nosso relacionamento não tem nada a ver com sua vida profissional — replicou irritado com aquela insinuação.
— não tem nenhuma relação com meu projeto, eu… — argumentei.
— Silêncio. — disse Carter com seu tom cortante, sem olhar para mim. Albert virou-se para com as sobrancelhas erguidas — Realmente achou que não iríamos descobrir que está morando com sua destinada, ? Que não íamos perceber seu intuito de tomar a empresa de nós?
— Que baboseira. Você mais do que ninguém sabe que dirigir empresas nunca foi meu desejo, Carter — replicou confuso.
— Você sabe, senhor , que espionagem cancela todo contrato que nós estabelecemos há alguns anos atrás, não é? — perguntou Hunter, parecendo um domador de leões com sua arrogância.
Comecei a suar frio, lembrando-me de ter sido acusada de ser espiã há uma semana.
— Mas o que… — interrompeu-se ao olhar no meu rosto e pude ver pela sua expressão que ele entendeu — Isso é rídiculo. dia) trabalha com vocês há anos e nunca trairia a confiança de ninguém só por causa de mim.
— Ah, é? Isso explica a vontade de crescer na empresa depois de ausência 5 anos trabalhando do mesmo jeito? — replicou Cassandra — Aliás, senhorita , seu trabalho está feito aqui. Pode passar no RH para pegar sua carta de demissão. Temos que conversar a sós com o nosso acionista.
O sangue fugiu do meu rosto e senti a língua pesar na boca. Não consegui falar nada, apenas olhei para os CEOs da Coral. A sala parecia cada vez menor, o ar sumiu os meus pulmões. Desde o momento que eles me disseram para apresentar o projeto, a demissão já estava à caminho. Eles só aguardavam a presença do meu destinado para ver a minha humilhação.
— Isso é injusto! — exclamou alterado — Estão acusando dia), uma inocente, com falsos pretextos, sem nenhuma prova, apenas achismos seus.
Sai da sala lentamente, segurando-me para não desabar na frente daqueles lobos, mas parei subitamente ao abrir a porta.
— Acreditem vocês ou não, nunca traí a Coral ou fui espiã de . Mas, diante desse ato tão estúpido, infantil e sem escrúpulos que os senhores cometeram, acredito que esse é o momento para lhes dizer que, de acordo com a última pesquisa, a que saiu hoje de manhã minutos antes de vir até aqui, a Coral caiu para a décima colocação das melhores empresas de materiais escolares. — expliquei com uma frieza crua e difícil de digerir. — Boa sorte com a nova crise que irão enfrentar.
Com cuidado, fechei a porta e andei devagar em direção ao elevador. Não derramei uma lágrima sequer até sair do prédio com a carta amassada em minhas mãos e uma caixa com os meus pertences. Tive que devolver o meu celular e o notebook, obviamente, e inventei uma desculpa qualquer para evitar as perguntas da Daisy, que me viu caminhar segurando a caixa de papelão.
Só quando cheguei no carro deixei as lágrimas externar a sensação de decepção e raiva que me dominava. O sentimento de ser injustiçada era tão ruim quanto comer algo estragado.
— Carlos, você pode me levar para casa e depois vir buscar ? Por favor. — pedi com um fiapo de voz.
O motorista de obedeceu sem me responder e me levou até a Ala A. Ao chegar em casa, Rose percebeu pela minha expressão que nada estava bem, mas não insistiu quando eu disse eu não queria falar do assunto e desejava ficar só. A cozinheira me ofereceu o último pedaço de bolo que ainda tinha na geladeira e eu passei uns bons 40 minutos encarando a tela da TV desligada da cozinha.
chegou com passos pesados depois de quase 1 hora desde que eu havia voltado para cada. Ele estava vermelho e seu cabelo se mostrava todo desarrumado.
— Diga-me, pelo amor de Deus, que você leu antes de assinar a carta de demissão.
Senti um calafrio na espinha quando eu percebi que havia apenas passado os olhos, sem prestar atenção nas palavras que lia, e assinado sem pretensão alguma.
— Cassandra disse que você sabia que tinha sido acusada de espionagem. É verdade? — sua voz mantinha uma raiva contida e seus olhos pareciam duas lâminas afiadas.
— Sim. — respondi culpada — Mas eu pensei que pudesse resolver sozinha.
— Por que você não me contou?! Meu nome tava envolvido! Eu merecia saber disso! — sua voz aumentou duas oitavas de histeria.
— Baixe seu tom para falar comigo, — disse com frieza e sem medo — Eu posso ter errado, mas isso não lhe dar o direito de gritar comigo.
pôs as mãos no rosto, parecendo cair a ficha do que estava sendo dominado pela raiva e não pensava com clareza. Sua voz perdeu a agressividade, mas estava carregada de mágoa e de desolação.
— Se você tivesse dito alguma coisa, eu teria resolvido a situação. Mas quando chegamos juntos na empresa eles entenderam como um deboche — disse ele como se não acreditasse no que acontecia — E o pior que toda a história que eles criaram faz a porra do sentido.
puxou os cabelos para trás e a culpa se instalou firmemente no meu peito.
— Eu sei que não sou perfeito, dia), mas… — ele soltou um riso sem humor — Minha destinada não confia em mim e meu tio acabou de dar uma punhalada pelas costas. Ótima forma de começar uma segunda-feira.
Logo, quando abri a minha boca para me desculpar, seu celular tocou. Ao olhar para tela, ele coçou os olhos incomodado e atendeu.
— Pai? Sim, senhor. Preciso de sua ajuda, Carter quer pôr as mãos na herança de vovó.
Franzi o cenho sem entender. Então, tudo aquilo era um plano maior do que eu havia previsto? Por isso ele parecia tão transtornado? Havia muito mais dinheiro envolvido? Eu era só mais um peão naquela jogada?
resmungou afirmações até desligar o celular.
— Depois conversamos.
E foi embora, deixando me confusa, ressentida e com metade do pedaço de bolo ainda no prato.
Capítulo 22
“E há certas coisas que eu adoro e há certas coisas que eu ignoro, mas estou certo de que eu sou seu.” - Certain Things, James Arthur. — Detesto essas novelas — comentou Jack fitando a televisão do hospital.— Eu gosto — falei sentada na beirada da cama e assistindo meu casal favorito de The Young and the Restless brigar.
— Ninguém é perfeito.
Ficamos nós dois em silêncio observando os personagens vivendo suas intrigas. Eu gostava daquele tipo de show de TV pela maneira genérica e clichê que ele funcionava. Tudo acabava bem no final, não importava o tamanho dos problemas.
Gostaria de ter essa certeza na vida também.
— O detetive Bane voltou para Missouri, sabia? — comentou Jack de repente — E me deixou com um tal de Garrett King.
— Ele é um cara legal, ao menos? — indaguei sem tirar os olhos da TV.
— Ele vai me levar para o Texas. Meus tios já se mudaram pra lá pela proteção à testemunha — disse ele — Assim que conseguir a transferência para outro hospital para mim, eu vou. Eles estão apressando o máximo.
Voltei a olhar para ele.
— E o que você pensa sobre isso?
— Penso que vou sentir sua falta.
Sorri segurando a mão cheia de arranhões já cicatrizados que ele tinha.
— Você terá uma nova chance, Jack. Poucos conseguem uma extra. Não a desperdice. — alertei com o tom de voz maternal — As coisas não vão ser fáceis, mas vão valer a pena. Prometo.
Ele deu um sorriso e lembrei-me de quão jovem ele era. Jack Woodweck tinha 14 anos e viveu coisas na vida que nem mesmo um adulto deveria presenciar. A vida lhe transformara para o mal e agora lhe dava uma nova oportunidade.
Era uma boa notícia depois da noite mal dormida que tive. não apareceu depois da nossa discussão e aparentemente não dormiu em casa. Rose disse que apenas o viu tomar café e sair quando chegou na mansão. Não aguentava ficar em casa esperando que me tirasse do escuro e, ao mesmo tempo, não tinha coragem de descobrir o que acontecia sozinha. Por isso, resolvi sair um pouco para desanuviar a mente.
Naquela manhã eu recebi uma caixa com alguns pertences que a polícia conseguiu salvar: um casaco de lã que um dia fora verde, um par de chinelos e metade da foto do dia do casamento dos meus pais. Felizmente dava para ver os rostos dos sorrindo um para o outro na frente do fórum, logo após terem assinado a certidão de casamento. Lá também tinha a autorização de voltar para minha casa, porém Specter me alertou que até que o acordo estivesse devidamente assinado, era melhor continuar longe.
Fui até à Ala O, após visitar Jack, e passei um bom tempo encarando a porta lacrada da minha casa. O clima tinha ficado um pouco melhor, mas não deixava de ser extremamente frio. Andei devagar até a porta de Jean, pois sentia uma saudade absurda dela e de sua mãe. Eu gostava de morar na Ala A — lá era calma e me sentia segura naquele bairro — mas nada se comparava a dinâmica da minha rua.
Bati a porta rapidamente e pus as mãos no bolso por conta do frio. Sabia que devia ter levado um par de luvas, mas na pressa acabei esquecendo. Logo, escutei o barulho das trancas sendo abertas e vibrei de ansiedade, doida para abraçar a minha amiga. Infelizmente, quem abrira a porta foi .
— Oi, entra. — murmurou saindo da minha frente como se eu tivesse uma doença contagiosa.
Percebi que ele estava mais magro e tinha um pequeno hematoma não tão bem escondido na região do pescoço.
— , meu Deus! — exclamou Jean correndo em minha direção e abraçando-me como se não me visse há séculos — Que surpresa maravilhosa!
— Senti muito sua falta, pirralha. — murmurei ainda com seus braços ao redor de mim.
Annie apareceu logo em seguida oferecendo bolo e suco. Enquanto eu sentava e declinava a oferta, percebi a bagunça que a sala estava com as anotações e livros que Jean estava usando. Eu, inconvenientemente, cheguei no momento em que ela estudava.
— Ah, não liga pra isso. Eu já ia dar uma pausa mesmo — disse ela cruzando as pernas. — Como está sendo esse tempo na Ala A? É tão legal quanto os filmes?
— É sim. — repliquei — Mas não conheço ninguém por lá e as ruas são extremamente desertas. Só costumo ver os funcionários andando na rua. É como se gente rica tivesse medo de pisar no asfalto.
— Mãe, vou sair com a Gia. — gritou da porta e logo depois escutamos o barulho dela sendo fechada.
— Ele anda tão estranho ultimamente. — comentou Annie, a face enrugada denunciando sua preocupação — Não sei o que tá acontecendo, mas aposto que é culpa daquela destinada dele.
— De todas as idiotas do mundo, o destino escolheu aquela mulherzinha… — resmungou Jean.
— Oras, o que há de errado nela? Por que não gosta dela? — indaguei curiosa.
Eu não tinha mais nenhuma ligação com , nem mesmo me importava com ele como antes, porém eu tinha sido amiga dele por um longo tempo. Apesar de ter me machucado e agido como um completo babaca, eu não o odiava, nem o amava tampouco. O que verdadeiramente sentia era pena.
— Ela sempre inventa uma desculpa pra não vim aqui e o tempo todo monopoliza a atenção de . Acredita que ela o fez ser demitido? — falou Jean cheia de rancor. — Ás vezes ele passa dias sem voltar pra casa e nem avisa!
— Ah, que triste. — murmurei ao tomar meu suco.
Algo naquela história soava estranha, mas não pensaria no assunto. Eu tinha meus próprios problemas; que lidasse com os seus.
A tarde foi bem agradável, mais do que imaginei. Além de fofocar sobre a vida dos vizinhos, assim que sua mãe foi fazer algo na cozinha, Jean me confidenciou que tinha beijado o médico que ela sentia-se atraída que a acompanhava no estágio. Fiquei surpresa, pois ela não era costumava viver esse tipo de aventura, mas ela me garantiu que só foi um momento de distração e que não ia ocorrer novamente. No entanto, por causa do brilho no olhar que ela carregava, o qual só vi quando deu seu primeiro beijo com Alisson, na quarta série, eu duvidava muito que isso não iria acontecer de novo.
Porém, o tempo passou e eu tive que voltar para casa. Por estar sem telefone, não pude ligar para Nelson me buscar, então, voltei para Ala A de ônibus.
Foram as 4 horas e meia mais reflexivas da minha vida. Eu pensei, repensei e pensei de novo, mas não sabia como encarar bem a discussão que tive com . Talvez não fossemos feitos um para o outro, afinal. Talvez o encantamento do destino estivesse acabando. Mesmo assim, a ideia de ficar longe dele por mais um minuto me dava uma sensação de perda tão grande que mal podia suportar. Eu já havia perdido tantas coisas naquele ano, não podia deixá-lo escapar também. Se eu o fizesse, não aguentaria.
Ao chegar em casa, encontrei meu destinado ainda de roupa social olhando a janela da sala de estar. Estava escuro e mal dava para ver os postes que iluminavam o jardim.
— Já ia cogitar ligar pra polícia. — comentou ele ao ouvir meus passos.
Olhei para o relógio no canto da sala e vi que eram quase nove da noite.
— Eu também pensei nisso ontem à noite. — repliquei me posicionando ao seu lado — Mas estou sem celular.
— Poderia ter usado o telefone fixo.
— Verdade.
Ficamos em silêncio e pude ouvir o tic-tac do relógio. parecia bem, se não fosse os olhos sem vida observando a escuridão da noite.
— Sabe o que foi mais difícil escutar na reunião de ontem? — indagou ele de repente. Neguei com a cabeça e fiquei a pouco centímetros dele, bem ao seu lado. — Foi ouvir que a ideia era minha, não sua. Vi você se dedicar para aquele projeto e eles duvidaram da sua capacidade tão facilmente.
Engoli o seco tentando não lembrar disso. Eu estava muito machucada, mas diante de tantos problemas que tinha enfrentado, me sentia dopada para não sentir a ferida. Contudo, ela estava lá esperando o momento para doer. E aquele foi o momento. As lágrimas desceram sem autorização e pouco pude fazer para que elas parassem.
— Mas o pior foi como eu agi, . Joguei a culpa em você quando você precisava de apoio, simplesmente porque a ideia de pedir ajuda para última pessoa da Terra que gostaria de falar, o meu pai, me assustava. — ele coçou os olhos — Eu fui tão egoísta, . Falei que a amava, mas na primeira oportunidade fiquei só olhando pra meus próprios problemas, o dinheiro que eu ia perder, o orgulho que teria que engolir… Eu a amo. Amo de verdade. Mas, talvez, você mereça algo melhor e eu…
— Pelo amor de Deus, cala a boca. — eu disse com a voz de ganso por causa do choro e dei um soco sem muita força em seu ombro — Você tem defeitos assim como todo mundo. O fato de eu amá-lo não significa que às vezes não vou sentir vontade de te estrangular. Um relacionamento é difícil de se manter, . Só amor não sustenta tudo. Você foi egoísta e eu também. Tive tanta certeza que iria resolver aquilo sozinha que esqueci que era sobre nós, não eu. Eles estavam acusando não só a mim, mas a você também. Não posso prometer que não vou fazer isso nunca mais, porém eu vou tentar melhorar. Mas, nunca, em hipótese nenhuma, ache que seu amor não é suficiente. Por acaso você já se olhou no espelho?
Ele soltou um risinho e me abraçou. descansou a cabeça em meu ombro, o cheiro de baunilha impregnado nele lembrou-me em quão real ele era. Nós estávamos longe de ser um casal perfeito, mas poderíamos fazer dar certo. Eu queria que desse certo.
— Me desculpa por não ter lhe contado. — murmurei.
— Me perdoe por ser… Bem... eu. — respondeu ele.
— Inseguro e chato? — indaguei afastando-me um pouco e mirando seus olhos.
deu um sorriso ladino antes de complementar:
— Inseguro, chato e completamente apaixonado.
O sorriso se desenhou em meu rosto antes que eu o pude conter e revirei os olhos.
— Como você é brega.
— É uma das minhas melhores habilidades. — respondeu ele antes de me beijar.
Duvidava muito que um dia me cansaria dos nossos beijos ou do simples tocar dos seus dedos em meu rosto. A língua de fazia uma carícia terna, deliciosa, me dando um formigamento no baixo ventre. Ele me seduzia de forma que meu cérebro parecia uma gelatina.
ー Preciso que me prometa uma coisa. ー falei ao encostar minha testa na sua. ouviu me atentamente ー Na próxima vez que discutimos, não saia correndo porque não consegue controlar a raiva e me deixando no escuro. É irritante.
ー Não posso prometer nada. ー respondeu ele e dei-lhe um soco no ombro por causa disso. ー Ei! Isso dói.
Muito mais leve depois de ter esclarecido algumas coisas, nós dois fomos até a cozinha comer alguma coisa. Para variar, mal beliscou sua comida e se pôs a falar.
— Quando eu virei acionista da Coral só possuía 0,5 por cento da empresa.— começou ele — Comecei a investir depois de uma longa conversa com meu pai que, para todos os efeitos, ficou rico justamente por causa dos seus investimentos. Nunca tive o objetivo de tomar a empresa pra mim pelo mesmo motivo que não gostava de pegar casos assim quando trabalhava como advogado. Meu negócio sempre foi criminalística e a vara familiar.
“Porém, no meio do caminho, minha avó morreu e, para surpresa de todo mundo, incluindo eu mesmo, ela deixou a maior parte da herança pra mim. É de se imaginar como a forma de todos me tratarem passou a mudar da água para o vinho. Carter, então, me convenceu a comprar mais ações da empresa e fez uma mudança no contrato deixando ele mais específico. Na hora achei um bom negócio e foi durante os últimos anos, até agora.
Uma das cláusulas era que eu não podia, em hipótese alguma, interferir na forma com que eles regiam a empresa. Como eu sabia que eles eram competentes e confiava em Albert, deixei que seguissem com isso.
Boa parte da herança da minha avó foram investidas nas empresas dos meus tios. Inclusive a de Tio Jacob, aquela que acusam você de querer tirar vantagem. Até hoje não consigo lembrar o nome. Parece que é um nome grego. Bem, eu não sei.
Alguns deram errado, naturalmente, mas o resultado foi positivo no geral. O fato de eu conseguir manter essa mansão mesmo não tendo a menor necessidade de viver nela é a prova viva disso. A herança se multiplicou e logo me tornei um novo rico da Ala A, não pelo meu pai, e sim por mérito.
Nem tudo são flores, no entanto. Desde o começo do ano, Carter tem tentado me convencer a vender minhas ações que já estavam ficando maiores do que eles pretendiam. Tem um espanhol, um tal de Lorenzo Martin, que quase se tornou um acionista grande o suficiente para concorrer comigo. Eu não abri mão, porque queria conversar com meus contadores primeiro. Sou muito leigo com esse assunto, entende? Prefiro deixar para quem sabe resolver.
Só que a partir do momento em que Carter percebeu que você era minha destinada, que, de repente, você estava interessada em crescer na empresa e eu procurava saber o que acontecia com a Coral que um quebra-cabeça louco encaixou-se na cabeça deles. Quando você apresentou seu projeto comigo lá dentro, foi como se tivesse fisgado a isca.
Espionagem quebra o contrato e os dá o direito de ter as ações de volta sem precisar gastar um tostão. Para piorar, eu tenho que pagar uma multa de 3 milhões de dólares. O valor inicial da herança da minha avó”.
Ao terminar de explicar, tinha as mãos nos cabelos e um ar tão cansado que imaginava que assim que deitasse, ele dormiria em dois segundos.
— Tive que pedir ajuda a belzebu, vulgo meu pai, porque ele sabe lidar com essas coisas. O grande problema é que nunca é de graça. — explicou ele. — Na última vez tive que fazer um habeas corpus para um delinquente da Shadow que não sabe fazer seu trabalho direito.
— O que ele quer agora? — indaguei temerosa.
O pouco que sabia do pai de , Aitofel , um homem que eu admirava, mas, depois de conhecer parte de sua história, percebi que era só mais um político corrupto que tinha como hobby manipular seu próprio filho, só podia imaginar o pior.
— Ele quer te conhecer no jantar de Ações de Graças — respondeu .
Eu não tinha uma carta de recomendação e saí da empresa com uma mão na frente e outra atrás. Tinha a opção de recorrer na justiça, mas eu já havia colecionado problemas demais para menos de um ano. Estava esperando o resultado do processo contra a P.A.F.E.R e, talvez, eu tentasse ir para a concorrência depois que o dinheiro chegasse ao fim.
— Ainda não acredito que você saiu da Coral. Sempre achei que iria se aposentar lá. — comentou Daisy de repente — Mas não foi você que perdeu a Coral, foi a Coral que lhe perdeu.
— Obrigada. — agradeci com um sorriso — Porém eu estou pensando positivo. Só quero que esse ano acabe.
— Bem, você quer ser minha sócia na Saboaria Bardot?
Olhei para ela assustada, sem saber o que dizer. Daisy foi direta em sua pergunta e os olhos brilhavam em expectativa. Até o momento, eu estava imaginando que era apenas uma ajuda, não uma reunião de negócios.
— Mas eu não sei nada sobre sabonete, Daisy. — repliquei confusa.
— Você sabia algo sobre cadernos quando entrou na Coral?
— É diferente! — contrapus.
— Não é! Eu fico com a parte da produção e você com a parte burocrática. — disse ela como se fosse a coisa mais simples do mundo.
— Eu… — hesitei — Não sei o que dizer.
— Apenas pense. A sua ajuda ia ser muito valiosa — falou Daisy — Eu preciso de uma renda complementar agora que o estúdio de Mark tá em reforma. Infelizmente o plano de casar com um homem rico não deu certo. Ainda bem que você teve mais sorte do que eu.
— Daisy…
— OK, parei. — ela murmurou — Ah, tenho uma fofoca quentíssima pra você! — Bardot falou batendo palmas — Mary saiu de casa e tá morando com Fordnelly.
— O quê?! — gritei totalmente chocada — Mas os dois são casados! Não consigo acreditar nisso.
— Pois acredite. — ela reforçou seu ponto — Sempre soube que o casamento de Mary era muito perfeito pra ser real, mas Fordnelly? Aquele homem é nojento.
— Meu Deus. — murmurei ainda surpresa. — Semana passada eu os vi juntos, mas não sabia que era tão sério. Como será que Robert está? E a mulher do Garry?
— Boa pergunta, . — disse Daisy enquanto enrolava o cacho de seu cabelo com o dedo — Só sei que a mulher do Fordnelly tem cara de ser vingativa. Mais do que metade da fortuna dele vai para ela, com certeza. Ainda bem que por eles serem destinados, as coisas vão complicar para ele. Acho bem pouco.
— Uau. Tô sem palavras — comentei, balançando a cabeça para tirar os pensamentos inoportunos — Seja o que for, vamos terminar isso aqui. Falar de Garry Fordnelly não vai regulamentar sua empresa.
Ela soltou uma risadinha e voltou ao assunto inicial.
Eu relia a receita para garantir que fiz tudo direitinho quando chegou.
Ele usava um terno preto e um colete por dentro. Ao me ver sentada em cima da ilha, aproximou-se e deu-me um beijo rápido antes de perguntar:
— Rose tá cozinhando Rouladen?
— Não, sou eu. — respondi com um sorriso.
— De repente senti uma fome… — comentou ele como de quem não quer nada.
Ri e beijei sua bochecha ao me levantar para checar se estava pronto.
— Como foi o seu dia?
— Corrido — respondeu ele seguindo-me pelo cômodo — Aliás, tenho uma proposta pra você.
Virei-me para ele interessada. Ele parecia muito melhor do que ontem, a vivacidade retornou gradativamente em seu olhar, apesar de estar igualmente cansado. Meu destinado mantinha um sorriso discreto de quem estava escondendo algo.
— Por quanto você vende o seu projeto? — perguntou ele.
— O que fiz pra Coral? — ele balançou a cabeça em afirmação — Ah, não sei. 500 doláres?
Ele me olhou cético.
— Só isso? Não paga nem a energia que você gastou carregando o notebook.
— Ok. Que tal dois mil dólares? — falei, mas, pela sua careta, não foi um bom preço — Acho que não sei negociar para mais, só pra menos.
revirou os olhos e riu.
— Posso vender por 7 mil?
Engasguei com a saliva.
— Isso é muito dinheiro!
— E provavelmente vai tirar a Coral da possível crise. — contrapôs ele — Fiz um acordo para não precisar pagar a multa e em troca eles pediram sua ideia. Eu não daria de graça, é claro, principalmente porque ela não é minha. Então vou comprar para revender.
Pisquei, mais uma vez sem palavras naquele dia.
— Você não vai tirar a carne do forno? Tô morrendo de fome. — disse colocando a mão na barriga para enfatizar sua vontade.
— 7 mil naquele projeto? Com aquele protótipo cheio de problemas? — perguntei embasbacada vendo procurar algo na geladeira.
— Sem contar o royalties que vai chegar na sua conta todo mês. Não pude vender por um preço maior porque precisamos ver o projeto executado primeiro. Acredita que eles realmente acham que tive tempo para registrar sua ideia? — falou ao pegar o suco que estava lá dentro — Eles podiam ter pego de graça se não fossem tão burros.
— Você mentiu? — indaguei assustada.
— Eu blefei. — disse ele em tom de correção.
— Mas é a mesma coisa!
me lançou um olhar inocente.
— Eu sou advogado, . Advogados blefam o tempo todo.
Levantei a sobrancelha em desafio.
— Até comigo?
Ele riu e veio em minha direção. acariciou meus braços com leveza e me encarou antes de sussurrar:
— Claro que não, mein liebling. Não é como se eu conseguisse, também. Você me olha como se lesse minha alma. — brincou ele, por fim. — Se esse Rouladen estiver ruim, não conseguiria mentir, por exemplo.
— Uhum, sei. — virei-me de costas e desliguei o forno. ー Hoje tem sido um dia de surpresas pra mim. Uma amiga minha até ofereceu para que eu fosse sócia dela, acredita?
ー Sério? ー disse surpreso ー Que bom, mas tenha cuidado. Acho que você deveria aproveitar para tirar umas férias. Aconteceu muita coisa esse ano pra você.
ー Verdade ー concordei com um suspiro.
Com cuidado retirei a comida do forno e coloquei em cima da ilha. A aparência estava boa e fiquei feliz com o resultado. Esperava que o gosto também estivesse tão bom quanto.
ー Pega dois pratos e… ー fui interrompida pela mão de na minha cintura puxando-me para ficar mais próximo ao seu corpo.
ー Mein liebling ー sussurrou ele ー estou pensando em viajar em janeiro com você. Um lugar quente e que tenha praia. O que acha?
Sorri para ele com ternura.
ー Seria ótimo, querido, embora eu… ー hesitei posicionando minha mão em seu peito ー Foi em janeiro que perdi meu pai.
ー Se você não quiser, eu posso…
ー Não, não ー respondi com ênfase ー Eu tenho… ー suspirei ー eu tenho que seguir em frente. É o que meus pais iriam querer.
Surpreendentemente comecei a chorar, sentindo a carga emocional dos últimos dias mais uma vez me atingir. Claro que a TPM influenciava, porém aqueles dias costumavam ser momentos de melancolia que tentava rechaçar sempre que podia.
ー Oh, liebe. ー ele me abraçou com força.
ー Desculpa, eu não queria…
ー Tudo bem, . ー murmurou ele ー Às vezes é bom chorar.
ー Mas eu só choro o tempo todoー ele riu e seu peito vibrou contra minha bochecha.
ー Mesmo assim consegue ressurgir como uma fênix. ー disse ele e levantei a cabeça para fitá-lo ー Queria ter metade da força que você tem. Se tivesse passado por tudo que você passou não sei se aguentaria, mein krieger.
ー OK, acho que terei que aceitar as aulas grátis de alemão. ー murmurei ー Simplesmente cansada de não entender o que diabos você está falando.
ー Com toda a certeza! ー replicou ele ー Mas, antes, vamos comer. Quase posso ouvir o Routalen gritar pedindo por atenção.
Capítulo 23
“E de uma só vez, você é tudo o que eu quero. Nunca vou te largar, rei do meu coração, corpo e alma.” - King Of My Heart, Taylor Swift. Andar pelo quarto de era como caminhar em um campo minado. Embora fosse periodicamente arrumado, meu destinado não demorava muito para transformar seu próprio canto em um depósito cheio de roupas espalhadas ao chão. Não sabia como ele conseguia viver naquela bagunça.Outro obstáculo era o fato de que ainda estava de madrugada quando acordei e eu não fazia ideia onde estava o abajur. Depois de rolar na cama completamente sem sono, decidi me levantar e procurar algo para me distrair.
dormia na mesma posição que caiu no sono na noite anterior. O torso nu estava amostra e sua mão ainda se mantinha apoiada na barriga. Eu o observava pela penumbra há um tempo, enquanto tentava dormir. Deveria ter já se passado duas horas até eu finalmente me levantar.
Embora tenha chutado algum sapato e soltando um gritinho de susto, meu destinado não acordou, me deixando aliviada. Com cuidado, fui até seu escritório e biblioteca para pegar algum livro que me distraísse. A mente estava em um emaranhado de informações não digeridas ainda e havia coisas novas da minha vida que não caíram a ficha.
Depois de certificar que o escritório estava aberto, busquei pelas prateleiras algo que não fosse ficção. Parei quando encontrei o Guia Politicamente Correto da Histórias das Alas e Destinados, escrito por um grupo de historiadores de Harvard. Na escola, aprendemos muito pouco sobre como chegamos aquele sistema e focamos em como viver na sociedade dos destinados, então, fiquei curiosa.
Ironicamente, aquela enxurrada de informação e conhecimento sobre o mundo dos destinados foi meu escape da realidade. Ao contrário do que pensava, a crença nos relógios não se tornou unânime facilmente. A terceira mulher presidente do país fez uma declaração em que dizia ser uma vidente e que sabia quem era a alma gêmea das pessoas e quando elas se encontrariam. Ninguém acreditou na sua história de primeira, no entanto, várias pessoas passaram a consultá-la e a satisfação era unânime. Outros videntes foram aparecendo e os muitos procuravam suas previsões tinham total sucesso. Então, quase três décadas depois, a discussão entrou no congresso. Um homem chamado Richard Goulart foi o primeiro a criar leis que regulamentaram o ofício de vidente e com o tempo a ideia de destinado foi disseminado de tal forma que eram poucos os não adeptos.
A verdadeira revolução aconteceu em 2025, com a segunda quebra da bolsa de New York. Famílias foram dizimadas pela fome e pelo desespero durante décadas e quase um terço da população morreu. Para resolver isso, várias nações mandaram mantimentos, porém eles eram divididos em grupos de acordo com a renda. Esses grupos passaram a se chamar Alas e tinham alguns representantes políticos que tomavam conta delas. Foi assim que todo o país foi salvo. A fusão e reforma a partir do sistema de Alas e Destinados aconteceu com o objetivo de despertar esperança para o povo, algo que funcionou em todos os aspectos. Outros países como México, Inglaterra e Japão adotaram o sistema de destinados, mas não de Alas. A maioria dos países tinham videntes vagando por aí, mas eles não eram tão rígidos em suas leis e nem todas as cidades funcionavam como a nossa, até mesmo as que eram do nosso país.
Os dados de desenvolvimento eram chocantes de tão bons, o que me fez duvidar um pouco da sua veracidade. No entanto, como um dos autores explicou, a mudança era mais presente em cidades pequenas onde o controle era mais fácil de malear, enquanto as cidades grandes — como a nossa — tinham problemas para atender todas as Alas. Descobri que havia cidades que não possuíam todas as Alas e percebi que tinha a mente muito fechada para o mundo em que vivia.
— Caraca, . São cinco horas e quarenta da manhã.
Levante a cabeça apenas para encontrar encostado na porta do escritório enrolado no lençol como um filósofo grego. Ou, levando em consideração sua beleza angelical, um deus grego.
— Estava sem sono. — apontei para o livro que lia — Eu tô adorando esse livro.
— Nunca li — disse ele dando os ombros — Ganhei de presente no Natal do ano retrasado.
— Deveria tentar — falei voltando para o objeto em minhas mãos. — O que o fez acordar tão cedo?
— Só durmo cinco horas por dia — replicou ele andando até sua cadeira — E isso é quando tenho sorte.
— Adorei seu look — comentei segurando riso.
— Obrigado, é a última moda do inverno — disse ele rindo, mas então soltou um suspiro antes de confessar: — Eu dormi com minha destinada e sonhei com Daniel Fuller flertando comigo no julgamento. Tem como isso ser mais constrangedor?
Soltei uma gargalhada alta e vi ficar vermelho de vergonha enquanto falava.
— Acho que vou passar esse caso para outra pessoa. Não vou poder encará-lo.
— Nunca imaginaria que ele era o homem dos seus sonhos. Sabe, , os sonhos refletem os nossos desejos mais profundos — provoquei.
fez uma careta de nojo.
— Eu acho que vou vomitar.
Eu ri mais uma vez, mas logo ficamos em silêncio.
— Vou encontrar seus pais amanhã, não é?
— É.
Então, o clima ameno e a graça se perdeu em um instante. 🌍🌏🌎 Olhei para o rosto de pensando que meu nervosismo e a curiosidade para saber o que diabos os pais dele queriam comigo não era nada comparado ao que ele sentia dentro do carro. Tinha nevado à noite e ele estava tão envolto de casacos que parecia ser bem menos magro que era. Toda sua roupa era escura, preta e marrom, apenas o cachecol vermelho se destacava em seu pescoço e a touca cobria boa parte de seus cabelos. Parecia um grande presente de tão embrulhado que estava. Ele mostrava-se perturbado em ir para casa dos pais e tentava disfarçar com assuntos triviais, sem sucesso. Era possível ver o leve tremor no canto da boca e o esforço que fazia para manter o rosto sem expressão.
ー Gostou mesmo do meu casaco, hein? ー comentou ele ao virar a rua.
Por ser no mesmo bairro, a casa de seus pais era bem perto, por isso ele andava quase parando, tentando evitar o inevitável. O fato das ruas estarem escorregadias também colaborou sua lentidão.
Dei um sorriso ao passar a mão no tecido fofo que vestia antes de respondê-lo:
ー Tem seu cheiro.
fitou-me em segundos e depois voltou a prestar atenção na estrada, no entanto, não conseguiu segurar esboçar um sorriso saboroso e verdadeiro, o primeiro naquele dia. Ficava imaginando o que havia mais por trás do relacionamento de com os pais, principalmente com Aitofel, que o deixava ansioso e preso em seus próprios pensamentos.
ー Posso te dar um perfume igual ao meu de presente de Natal ー replicou ele sem me olhar.
ー Não é a mesma coisa. Prefiro senti-lo em você ー falei colocando minha mão em seu joelho.
A reação era quase imperceptível, contudo eu pude ver seus dedos apertarem o volante com mais firmeza assim que meus dedos o tocaram.
ー A gente poderia se atrasar, você sabe ー comentei aumentando um pouco mais o som Hotel Room do Donald Stark ー A neve é uma boa desculpa.
ー E já está escurecendo. ー murmurou ele diminuindo a velocidade.
Deitei em seu ombro quando estacionou o carro e ficamos em silêncio por longos minutos. retirou o cinto e abraçou-me.
ー Sou um completo covarde, não sou?
Com o rosto apoiado em seu peito respondi que não.
ー Se eu tivesse um pai como o seu também agiria desse jeito. ー complementei ー Queria entender mais sobre a relação de vocês. Por que ele foi a primeira opção que veio a sua cabeça quando deu merda na Coral?
ー Vovó deixou a herança para mim, mas devia ser regida em comum acordo entre mim e meu pai. Foi a forma dela tentar criar um laço em algo que nós dois nos importamos: dinheiro. Ela sempre dizia que era para tentar ser mais compreensível com meu pai, que família era importante e que deveríamos perdoar e tudo mais. Se ela soubesse da ameaça que ele me fez quando tinha 14 anos, talvez não acreditasse nisso.
ー Então ele é um dos seus três contadores?
balançou a cabeça afirmando.
ー Ele é formado em economia e cresceu mais comprando ações e investindo do que com o negócio de meu avô ー explicou.
ー Você sabe que não precisa continuar tentando só por causa da sua avó. É claro pra mim que te faz mal essa relação de vocês.
Meu destinado assentiu, mas não disse nada, apenas beijou minha testa.
ー Eu mereço um pouco mais do que isso, você não acha?
deu uma risada e segurou meu queixo com delicadeza.
ー Claro que sim, madame ー respondeu antes de beijar-me de verdade.
Os lábios de eram como um doce açucarado e tudo que eu queria era sentir seu gosto. Meus dedos retiraram sua touca com velocidade e os mergulhei no mar de cachos, leves e macios como algodão. Reclamei quando tentei tirar-lhe a camisa e percebi que havia outra por baixo e ele apenas riu, transportando seus beijos a parte exposta do meu pescoço.
Bem, acredito que não seja necessário explicar o porquê de termos chegado na casa dos meus sogros quarenta minutos atrasados e com a sensação térmica um pouco maior do que o resto da população da nossa cidade.
Embora a mansão de fosse muito mais requintada pelo lado de fora, por dentro não faltava itens que exalavam riqueza. Fomos atendidos por um mordomo e ele nos levou até a sala de visitas, não esboçando nenhuma reação quando chamou-o pelo nome. Tentei parecer menos embasbacada com os móveis brilhantes e que valiam quase minha vida de tão caros, mas acredito que não tive muito sucesso.
A sala de visitas era tão cheia de riqueza quanto os corredores, toda mobiliada com peças antigas que dava um ar de vintage ao local.
A primeira pessoa a nos receber foi Natashia e me surpreendi ao ver que ela era bem mais bonita pessoalmente do que nas fotos. Ela tinha o rosto redondo e um sorriso doce, quase como de uma criança. Natashia e não tinham sequer uma característica física parecida — ela era baixinha, roliça, a pele era bronzeada, o cabelo era castanho escuro e ostentava uma franja, e seus olhos azuis eram grandes como duas bolas de gude. Também percebi que ela aparentava ser muito jovem, embora devesse estar no auge dos quarenta anos. Foi, então, que lembrei-me de ter visto a história de amor dos há muito tempo, quando Aitofel ainda era governador do nosso estado. A diferença de idade entre os dois era gigantesca, pois, enquanto Natashia esperou apenas dois anos para conhecer seu destinado, Aitofel esperou treze longos anos para encontrá-la.
— Você deve ser — disse ela ao me ver e estendeu a mão em minha direção — É um prazer conhecer a destinada de .
Natashia tinha uma mansidão calculada em sua voz, algo conhecido por mim. Vi nela nuances de autocontrole de emoções que encontrava constantemente em e entendi de quem ele aprendeu ser prudente daquele jeito.
Apertei a sua mão com um sorriso me sentindo desengonçada perante sua elegância. Até mesmo jeito a forma em que ela balançava a cabeça em assentimento era assustadoramente familiar.
Se Natashia possuía um jeito notório de , olhar para Aitofel era como ver a versão mais velha de meu destinado. Os cabelos cacheados e cinza, os olhos escuros, a estatura média… Não havia como negar o parentesco. O ex governador tinha uma irreverência no sorriso, uma simpatia tão bem calculada que enjoava de tão forçada. Era óbvio que essa impressão já vinha do pré-conceito que eu tinha sobre ele, mas não estava nem um pouco a fim de lhe dar uma segunda chance.
— Nora, que bom finalmente lhe conhecer! — disse Aitofel abraçando-me como se fôssemos velhos conhecidos — estava escondendo você só para ele, acredita? Bastante ciumento esse menino.
Dei um sorriso amarelo, totalmente desconcertada com a intimidade que ele forçava. Senti os dedos de se agarrarem com mais força na minha mão e vi que não havia o soltado desde que entrei na casa.
— Desculpe o atraso. — se pronunciou meu destinado — As estradas estavam horríveis.
Apertei os lábios tentando não denunciar o verdadeiro motivo do nosso atraso e fissurei o olhar em uma versão de Noite Estrelada de Van Gogh no topo da lareira.
— Tudo bem, querido — disse Natashia sorrindo com doçura para seu filho — Vamos comer que vocês devem estar famintos.
— Eu estou! — respondeu Aitofel com entusiasmo de uma criança.
Natashia deu uma risadinha e beijou a bochecha do filho antes de fazer um sinal para que a seguisse. Troquei um rápido olhar com , mas não pude titubear o que passava em sua mente.
O jantar foi farto e durante a maior parte do tempo manteve-se calado. Aitofel tentou puxar assunto, mas meu destinado respondia de forma tão direta que não dava margem a outros assuntos. Quando as perguntas provinham de sua mãe, no entanto, ele se mostrava menos resignado.
— Há quanto tempo vocês se encontraram? — perguntou Natashia diretamente para mim.
— Hm, acredito que três meses. — olhei para esperando confirmação.
— Ainda vai fazer três meses. — ele franziu o cenho pensativo — Estamos no final de novembro e nos conhecemos no meio de setembro…
— Nossa, mas parece que faz uma eternidade — comentei — Sinto que o conheço há séculos.
Ele deu um sorriso contido, mas cheio de significado.
— Eu também.
— Não há dúvidas que sejam destinados — falou Natashia com um sorriso para o marido — Estou muito feliz por você, filho. Está aí uma coisa que estou grata essa noite.
— Estou grato que encontrou alguém melhor que Heather. Nunca gostei daquela garota — disse Aitofel enquanto se lambuzava com a comida.
Mexi-me desconfortável em ser comparada com a ex do . Não que eu gostasse dela, mas o passado ficava para trás, o dele e o meu.
— Não era como se isso fosse da sua conta, não é, papai? — replicou meu destinado com um tom tão pragmático que aparentava falar sobre o clima.
O silêncio que se instaurou poderia cortar como uma faca afiada. O barulho que se seguiu era apenas dos talheres e os passos dos funcionários trazendo e levando comida. Ignorando a resposta atravessada do seu filho, Natashia começou a falar que estava planejando um livro de aventura, uma mudança na sua linha editorial. Quando se é uma autora consagrada, poderia fazer qualquer coisa que venderia, comentou ela, principalmente quando você é casada com alguém que poderia comprar todas as cópias apenas para deixá-la feliz.
Não podia negar que os pais de gostavam um do outro de verdade, embora meu contato tenha sido bem superficial. Aitofel olhava para a esposa com adoração enquanto Natashia o tratava com carinho.
Então, quando acabamos de comer e eu sentia que havia me alimentado o suficiente para as próximas semanas, Natashia deu uma desculpa esfarrapada para levar longe e deixar-me a sós com Aitofel . Ele me levou até seu escritório, o qual era duas vezes maior do que o de , no entanto, não tinha prateleiras de livros como decoração e sim quadros de artistas plásticos com nomes que eu não conseguia pronunciar, no entanto, eu tinha ideia de que eles eram importantes.
O pai de me ofereceu algo para beber, mas declinei. Servindo a si mesmo, Aitofel passou um bom tempo calado fitando o líquido de seu copo.
— Acredito que conversou com você.
Assenti em silêncio.
— Eu realmente fiquei feliz em saber que ele estar com alguém forte ao seu lado — disse ele — Soube do que você perdeu a mãe há pouco tempo. Sinto muito.
— Obrigada — murmurei tensa.
— Que louco aquilo que aconteceu na Coral, não é? Entendo a desconfiança de Carter, mas ele e o quarteto fantástico foram muito imprudentes. Além de perder um acionista, vão continuar perdendo informações para a concorrência.
Levantei a sobrancelha.
— Do que você está falando?
— Oras, não lhe disse? Estão sabotando as fábricas que oferecem matérias primas para Coral. O caso das canetas foi só o começo — comentou e eu fiquei pensando em como ele conseguiu essas informações sigilosas, quando nem mesmo eu sendo secretária de Carter sabia disso. — Foi bom você ter corrido enquanto havia tempo.
Dei uma risada silenciosa, achando engraçado que ele falava como se eu tivesse saído por vontade própria.
— sempre foi o mais medroso de todos nós — disse meu sogro dando um gole na sua bebida — Falei para sair da Coral há dois anos atrás, mas ele estava muito mais preocupado com o esposo da Carol. Deu em nada, está vendo? Ele o considerou tanto, mas Albert não pensou duas vezes em humilhá-lo na sua frente.
— Onde quer chegar com essa conversa? — indaguei impaciente.
— Você deve conhecer meu filho melhor que eu, — disse ele em resposta — Sabe que ele pode ser bem covarde às vezes. Nem sei como continua sendo juiz.
Mordi a bochecha para não dar uma resposta mal educada em defesa do meu destinado e escutei o que ele dizia.
— Assim como com a Coral, vai perder uma oportunidade incrível na política. Tentei fazê-lo ver a luz, mas ele não consegue — explicou parecendo realmente preocupado com seu filho — Se ele se candidatasse ia ajudar tanta gente! Ele é jovem e generoso. Já conquistou tanta coisa na vida.
Tentei manter a expressão neutra e fingir não entender que Aitofel tentava me manipular. Eu também acreditava que poderia ser um grande político se quisesse, porém eu seria a última pessoa a dizer o que ele devia ou não fazer. Meu destinado era um homem crescido, podia muito bem saber o que era melhor para ele.
— Ele tem total direito de não querer. — dei os ombros.
— Mas ele pode ajudar tanta gente! — replicou — Aquele caso seu do aluguel, por exemplo. Não duvido que há pessoas da sua Ala que sofrem com isso também, mas não tem privilégios como você.
— Veja bem, senhor …
— Aitofel — corrigiu ele.
— Tudo bem, Aitofel — falei — Eu concordo com você que é competente, mas não acho que uma carreira política seja o que ele deseja agora e eu respeito suas decisões.
— Você não está entendendo, — disse ele parecendo decepcionado — Não consegue ver todos as vantagens em ser esposa do governador? As coisas boas que pode fazer?
— Eu posso fazer coisas boas sem ser esposa de governador. Isso nem chega a ser uma profissão — repliquei com firmeza.
— Entendo, — disse ele terminando de beber o que havia em seu copo. — Bem, espero que você mude de ideia e me ajude a fazer abrir os olhos.
Levantei-me tentando esconder o alívio de estar no final da conversa. Eu pensava que seria muito mais complicado, contudo só tive que mostrar o quanto não me importava com o que escolhia para o seu futuro, afinal, só ele sabia o que era melhor para ele.
— Bem, se não há mais nada a falar…
— O que ele disse quando descobriu sobre sua família? — perguntou de repente — Deve ter sido difícil lidar com o parentesco.
— O que você está falando? — disse eu na defensiva — Meus pais eram pobres, mas honestos. Não vejo como…
— Não, estou falando da família da sua mãe — replicou ele com um sorriso maquiavélico — Quem iria imaginar, não é? Ganhar junto com uma namorada uma família problemática. — percebendo meu espanto, Aitofel fez uma careta chocada — Espera, você não o disse?
— Não conheço a família da minha mãe e nem quero.
— Isso é bom, eu acredito — disse por fim me acompanhando até a saída.
Apesar de estar ansiosa para sair daquela tensão instaurada, a neve e a neblina tinham dominado as ruas de modo que era perigoso voltar de carro. Depois de vários argumentos cheios de preocupação da minha sogra, resolveu ficar lá à contra gosto.
Após cumprimentos desconfortáveis e abraços desajeitados, meu destinado levou-me até seu quarto de adolescente, o qual era no segundo andar e no final do corredor. Ao contrário do que esperava, o cômodo possuía muito pouco do , aparentando ser apenas um quarto de hóspedes qualquer. As únicas coisas que o lembravam eram o pôster de Donald Stark em cima da cabeceira da cama e a prateleira cheia de porta-retratos.
— Vou procurar alguma roupa para… — interrompi ao abraça-lo.
Senti relaxar em meus braços aos poucos, mostrando o quão tenso estava durante o jantar e pude ver que piorara depois da conversa com a mãe.
— Quer conversar sobre o que aconteceu?
— Não. É bem capaz que tenha algum gravador dentro desse quarto implantado por meu pai. Aquele filho da puta — replicou ele com ranco — Com todo respeito a vovó.
Eu ri, mesmo não sendo um bom momento para humor.
— Se tem algo pra gravar aqui ele vai ver você o chamando disso.
— Espero que ouça. — ele levantou o tom da voz. — Ouviu pai? Você é um filho da puta!
Tive uma crise de riso com a forma tão explosiva que ele gritou e não duvidava que Aitofel poderia aparecer do nada querendo tirar satisfações. me acompanhou, todavia sua risada parecia vir de histeria e não de humor.
pegou outro travesseiro, encontrou um casaco moletom antigo e me emprestou para dormir. Logo, estávamos nós dois abraçados na cama de solteiro, no escuro, fingindo que iríamos dormir em breve. Seu carinho no meu cabelo era rítmico e dava uma sensação estranha de plenitude.
— Eu passei minhas piores noites nesse quarto — sussurrou ele.
Fiquei imaginando quão dramática deveria ser sua adolescência. Essa fase era difícil por si só e ter pressões familiares como aquela deveria ser sufocante; eu havia passado por maus bocados nessa época, também, mas havia a paz e a segurança dos braços de minha mãe.
— Minha mãe veio falar de Tobias comigo. Disse que o viu semana passada e que ele já havia encontrado a destinada — continuou — Tenho pena dela, realmente.
— Por que seus pais não criaram vocês juntos? Por que você cresceu com sua avó?
— Antes de tudo, meu pai nunca quis ter filho. Só teve por causa da insistência da minha mãe. Se ele não estava a fim de ter um, imagina dois! — explicou — Eu tenho problemas de atenção e hiperatividade. Consigo lidar com isso hoje, mas, naquela época, eu era uma criança insuportável. Não dava para me levar a lugar algum porque não me comportava e meus pais sempre me deixavam com babás. Tentaram me colocar para fazer natação, porém eu tinha energia para dar e distribuir. Então, um desses médicos de esquina recomendou que eu tomasse ritalina. E foi isso até minha avó descobrir e ficar com raiva o suficiente para pedir a minha guarda. O resto é história.
— Mas sua mãe não relutou nem nada? Você era filho dela, afinal. — contrapus totalmente chocada com aquela história. Dá esse tipo de medicamento para uma criança deveria ser crime.
— Um filho que só fazia ela passar vergonha? Que fez quatro babás pedirem demissão em três meses? — argumentou ele. — Lembro que ela ligava para mim todo dia no começo da minha mudança, mas não demorou para ser algo semanal e posteriormente mensal. Eu sentia muita falta deles, mas vovó supriu minhas necessidades e me ensinou a ser uma pessoa descente. Se ela não tivesse ficado doente, nunca sairia da Alemanha. Tobias sempre foi o preferido da minha mãe, assim como do pai. Eles deixam isso muito claro para mim. Ele é o original e eu sou a cópia.
— Não fale besteira, — recriminei-o — Não há cópias e sim duas pessoas que se parecem. O que você pode fazer se vocês dividiram a mesma placenta?
Ele parou de acariciar meu cabelo e pôs as mãos no rosto com um grunhido.
— Só de entrar nesse quarto já começo a me sentir um bosta — disse . — Eu lembro quando eles viviam dizendo para que eu fosse menos idiota e fosse mais esperto, como meu irmão.
Sentei-me na cama e liguei o abajur.
— Vamos criar novas memórias aqui, então.
— O que você sugere?
Demorei alguns segundos pensando até que deixei mão deslizar pelo seu abdômem e o sentir estremecer com a insinuação, porém, ele retirou minha mão delicadamente de lá.
— Estou tendo uma crise agora, liebe. Tenha um pouco de pudor.
Olhei-o ofendida e puxei o travesseiro com força apenas para acertá-lo na cabeça. pegou o dele e me atingiu em cheio e logo estávamos correndo pelo quarto como duas crianças, gritando quando éramos pegos e espalhando penas por todo o lado.
Segurando parte do meu travesseiro nas mãos como escudo e respirando com dificuldade, subi em cima da cama para ficar longe de .
— Você nunca me alcançará!
— Ah, e é?
segurou minhas pernas e puxou-me para baixo, fazendo-me cair com tudo no colchão. jogou o travesseiro para longe de cercou-me com o seu pesado corpo por cima de mim.
— Acho que agora quero aceitar sua sugestão.
Sorri de lado e entrelacei minhas pernas em sua cintura antes de puxá-lo e deixar que o desejo dominasse aquele quarto. 🌎🌏🌍 Teimosamente, eu e voltamos para casa depois do café da manhã. Voltei ao livro da história das divisão das Alas enquanto ele começou a trabalhar em alguma coisa que não sabia ao certo. Durante horas passamos calados no escritório, ele em sua cadeira digitando e lendo diversos documentos e eu jogada na poltrona relendo algumas passagens que havia gostado.
— ?
— Sim? — disse ele levantando a vista de supetão.
— Desculpe, não quis te assustar — falei me levantando para guardar o livro.
— Eu não estava prestando atenção no que lia mesmo — disse ele dando de ombros.
— Sério? Você parecia tão concentrado…
— O que foi, ? — indagou, finalmente, entendendo que eu estava enrolando para dizer o que queria.
Respirei fundo antes de tudo.
— Seu pai sabe sobre a família da minha mãe e acha que isso vai te perturbar de algum modo. — resumi a conversa — Ele quer que você se torne governador e aja como um justiceiro social e blablablá.
— Querer não é poder, não é verdade? — respondeu com tranquilidade — E sobre a família de sua mãe: bem, eles podem ser o que quiserem. Sou seu destinado, não da família da sua mãe.
Deixei meus ombros caírem relaxados e me perguntei porque achei que ele iria ter uma resposta diferente do que essa. Talvez o pai de entrou em minha cabeça de alguma forma, mas ele estava errado. Aitofel não conhecia seu filho e não era injusto com ninguém.
— Posso lhe pedir um favor?
Ele levantou a sobrancelha, mas nada disse.
— Tem como você descobrir quem é a família da minha mãe? Talvez eles queiram saber sobre a morte dela. Não sei. Nunca parei para pensar nisso — pedi meio insegura.
— Posso tentar — replicou ele com cuidado — Tem certeza que quer saber disso? Se eles deixaram sua mãe a sorte...
Assenti com a cabeça.
— Está bem. Agora ligue para Specter — disse ele com um sorriso e oferecendo seu celular a mim — Ele tem boas notícias.
Franzi o cenho, entretanto fiz o que ele pediu.
Depois de ouvir os cumprimentos usuais de Harvey, ele explicou como estava o caso. Com a ameaça de abertura de processos antigos e a insistência de continuar com o caso, apesar da destruição da possível campanha de , a P.A.F.E.R se sentiu pressionada até os ossos. Specter conseguiu um acordo bem generoso em troca do meu sigilo, do tipo que não conseguiria nem com o juiz mais justo que existia na Terra. Eu só precisava ir até a firma assinar e tudo estaria resolvido.
— Quinhentos o quê?! — gritei agarrada ao celular.
— Quinhentos mil e trezentos dólares. — falou Specter e pude sentir humor em sua voz.
— Meu Deus! Eu tô rica! — exclamei.
— Dependendo do ponto de vista…
— Obrigada! Muito obrigada! Deus abençoe! — falei com veemência.
Ouvi uma risada de Specter antes que ele dizer disponha.
— Diga a Vossa Excelência que estamos à disposição.
— Claro, claro.
fingia que não me via surtar em seu escritório e olhava para os papéis como se eles fossem a coisa mais interessante da face da Terra. Após desligar a ligação, corri para seu colo e distribuir beijos pelo seu rosto, completamente feliz.
— Se eu soubesse que seria tão amado tinha lhe dado metade da minha fortuna há muito tempo — falou entre sorrisos.
— , isso é muito maior do que o valor que vou ganhar da Coral. Além de ser o justo pelo que eles me roubaram, há muito mais! — falei animada — Eu vou poder comprar uma casa nova, pagar uma faculdade, devolver o dinheiro que lhe devia…
— Vamos com calma, gafanhoto. — disse com o cenho franzido — Não sabia que estava querendo se mudar e, pelo amor de Deus, esqueça aquele dinheiro.
— Mas…
— Não — falou seriamente.
— Então, o dinheiro irá para a caridade — decidi prontamente.
— Ótimo — disse ele — Agora fale me sobre ir comprar uma casa nova.
— Não vou abandoná-lo, . — abracei-o — Eu só preciso de um espaço para mim. Algo meu.
— Ah — murmurou parecendo meio decepcionado — Se é o que você quer…
— Depois eu penso sobre isso. Não precisa ficar chateado. — beijei sua bochecha — Eu vou visitar você todos os dias, se quiser. Faço até Routalen e trago.
— Agora nós podemos conversar.
Ri, imensamente feliz com o que estava acontecendo na minha vida. As coisas estavam indo para o caminho certo. Nada poderia dar errado agora, não é verdade?
Capítulo 24
"Você olha para mim como se o amanhã pudesse esperar, perdido em uma névoa. (...) Gostaria que pudéssemos permanecer nisto.” Way Too Good, Lauren Aquilina. Mesmo desempregada, mal parei em casa nos dias que se seguiram. Resolvi participar mais ativamente dos eventos da Clínica como voluntária, contudo, não parava de pensar no que iria fazer assim que aquelas semanas se seguissem. Já havia preparado meu currículo, porém ainda pensava muito na proposta de Daisy. Começar um negócio do zero não era fácil; teríamos que ter um bom planejamento, ter em mente que no começo os lucros são escassos e a sorte, assim como o mercado, deveria estar ao nosso favor. Embora fosse apenas uma complementação da renda da minha amiga, para mim seria um trabalho integral. Sem contar que, sendo ela a única fabricante, não sei se ela daria conta da demanda da forma com que ela acreditava e, ao mesmo tempo, teria seu emprego na Coral.Apesar de tudo isso, eu havia encontrado boas ideias desde que comecei a cogitar entrar no barco da Saboaria Bardot. já tinha ouvido quase todas elas e, como recompensa, lhe dei atenção enquanto ele falava dos processos jurídicos do caso de Daniel Fuller, dos depoimentos que o vereador fez e como tudo apontava para sua condenação. Não entendia muita coisa, mas havia percebido que falar sobre era a forma que encontrava para organizar seus pensamentos. Eu me sentia extremamente privilegiada em receber aquelas informações facilmente, enquanto os jornalistas estavam loucos à procura de qualquer furo para alavancar suas carreiras.
ㅡ Terra para . Terra para .
Sorri amarelo para Ivanna quando ouvi-a chamar-me. Em seu colo, minha amiga levava uma caixa de papelão cheia de pisca-piscas.
ㅡ Seu último trabalho do dia é decorar a fachada do lado de fora do salão com essas belezinhas aqui ㅡ explicou ela entregando-os em minhas mãos ㅡ aliás, tem que desenrolar eles.
Fiz uma careta de sofrimento e ela riu maliciosa.
ㅡ Se voluntariou porque quis. Nem abra a boca para reclamar.
Levantei as mãos como em rendição e fitei-a ir mexendo com destreza o controle de sua cadeira de rodas, cantarolando feliz.
Depois de desenrolar o que parecia cinco metros de pisca-piscas, fui até o lado de fora, subi as escadas com ajuda de uma adolescente que cumpria horário de voluntariado para a escola, e logo a fachada do salão principal estava iluminado.
Já estava anoitecendo e o pátio começou a ficar mais movimentado. Fazia frio, era óbvio, no entanto, com aproximação do Natal cada vez mais pessoas saiam de sua toca para socializar.
Demorei um tempo observando a fachada para ter certeza que estava simetricamente posicionado quando sentir um par de mãos segurar minha cintura. Dei um pequeno salto de surpresa, porém a risada familiar a mim me fez relaxar os ombros.
ㅡ Está pronta? ㅡ indagou beijando meu cabelo. ㅡ Se sairmos agora talvez dê para evitar o engarrafamento.
ainda usava camisa e calça social, no entanto, havia tirado a gravata e usava um casaco mais simples. Daisy e Mark havia nos chamado para um jantar, um encontro entre casais, e achei que era uma boa ideia. não se animara muito no ínicio e pude ver que parte da sua relutância vinha de uma timidez velada que ele conseguia disfarçar muito bem às vezes. Além de sentir falta de Mark e suas provocações, eu queria se soltando um pouco mais e abrindo-se para novas amizades. Ele sempre fora muito sozinho e não queria monopolizar sua atenção.
Ficamos em silêncio por um bom tempo dentro do carro, observando as ruas passarem como flash. Carlos dirigia naquele momento e apenas o som baixinho do rádio era ouvido dentro do automóvel. A música que tocava era do grupo A-ha, mas não conhecia o título da canção. Observei a perna de balançar pelos lados fora do ritmo, mostrando que estava nervoso a ponto de nem mesmo prestar atenção na música.
ㅡ Esse Bardot é fotógrafo, não é? ㅡ perguntou ele de repente.
ㅡ Sim. E não chama ele desse jeito, Mark não gosta. Acha muito formal ㅡ acrescentei.
ㅡ Ótimo, agora vou ter que ficar me lembrando desse detalhe o tempo todo.
Virei-me para ele achando engraçado seu nervosismo.
ㅡ Mark é gente boa, . Não precisa ficar nervoso ㅡ falei tentando segurar a risada ㅡ E a Daisy também te adora. Embora não tenha falado nada além do que “Bom dia, senhor ” para você.
ㅡ Isso não é engraçado. ㅡ resmungou.
ㅡ É sim ㅡ respondi dando um beijo estalado em sua bochecha.
Paramos de frente a uma casa de boliche. Segurando a mão de , entramos no estabelecimento com faces antagônicas: eu, a felicidade de rever meus amigos, ele, nervoso até a raiz dos cabelos.
ㅡ Veja só, Daisy, se não é a mulher do dinheiro ㅡ disse Mark assim que me viu e abraçou-me ㅡ Quanto tempo, hein?
ㅡ Você que está sumido! Pensei que tinham te sequestrado achando que era o Chris Evans — comentei ao perceber o corte de cabelo parecido com o do ator.
— Queria ele ser bonito como eu — respondeu vaidoso.
— Bem, Mark, esse é . — apontei para meu destinado — , esse é o Mark.
deu um sorriso discreto enquanto apertava a mão do meu amigo.
— Vocês ainda são só amigos ou já pararam com essa frescura?
— Deus santo! — resmungou Daisy antes de empurrar seu marido para o lado — Desculpe o que Mark fala, senhor . Ele tem alguns parafusos a menos, sabe? A mãe dele me contou que quando ele era criança caiu de uma árvore…
— — interrompeu meu destinado — Me chame apenas de .
Daisy deu um sorriso brilhante e imaginava o quanto ela iria se gabar para as meninas depois daquele jantar. Era engraçado estar namorando uma “celebridade” como , levando em consideração que eu não o via igual a maioria das pessoas. Ele não era o intocável senhor , o desembargador. Ele era meu senhor . Meu .
— Bem, vamos comer. Sinto que estou esperando vocês há horas.
Durante os trinta minutos que se seguiram, percebi que começou a relaxar em seu assento e seus comentários aumentaram gradativamente. Era claro que a conversa era protagonizada por Mark e Daisy a maior parte do tempo. Adorava a forma com que eles se alfinetavam, principalmente Mark, quem sempre chutava o balde e falava sua opinião de forma que às vezes parecia uma simples piada. Talvez fosse seu jeito que fizera Daisy se tornar menos impulsiva em seus pensamentos preconceituosos, já que Mark sempre deixava claro quão ridículo era sua atitude elitista. Ao mesmo tempo, minha amiga ajudou Mark a se tornar menos rabugento e extremamente chato. Claro que aquelas características ainda estavam presentes neles, mas havia melhorado com o passar dos anos e a convivência dos dois.
ㅡ OK, vamos dividir as duplas. ㅡ começou Daisy quando pegamos nossa pista ㅡ Casal contra casal?
Concordei com a cabeça enquanto via olhar para as bolas de boliche com curiosidade.
ㅡ Ehh… Eu esqueci de falar, liebe, que sou um péssimo jogador de boliche ㅡ sussurrou ele para mim.
ㅡ Ah, tudo bem, eu também não sou muito boa. ㅡ dei um sorriso tranquilizador e acariciei seu braço ㅡ Apenas se divirta.
Apesar de tenha ido bem nas duas primeiras rodadas, se mostrou um péssimo jogador. Sendo o Mark um provocador, ele fez questão de fazer piada toda vez que se levantava para jogar.
ㅡ Caraca, , tu é muito ruim ㅡ disse ele ao ver que inacreditavelmente a bola foi para fora da pista e não atingiu nenhum pino. ㅡ Você já jogou isso alguma vez? Sabe que é para acertar o pino, não desviar dele, não é?
ㅡ Uma ou duas vezes ㅡ replicou ele com uma careta ㅡ A verdade é que eu não sou bom em esportes no geral. Só sou um nadador mediano.
ㅡ Ainda bem que você não precisa ter uma boa mira para ganhar dinheiro ㅡ falou Mark parecendo mortificado ao ver quão ruim meu destinado era.
Daisy, que estava sentada bem ao meu lado, sussurrou para mim:
ㅡ Estava com medo de que não gostasse do Mark, sabe? Ele é bem inconveniente às vezes.
ㅡ Você quer dizer sempre, amiga ㅡ repliquei rindo ㅡ Eu acho que eles estão se divertindo, não acha?
Olhei para e o vi soltar uma gargalhada alta, ao passo que Mark falava empolgado uma de suas anedotas.
ㅡ Quem imaginaria que o senhor estaria dando gargalhadas com o Mark? Isso sim é que é uma coisa estranha ㅡ comentou ela entre risos ㅡ Ah, e quando terei minha resposta?
ㅡ Em breve, querida. Em breve.
Aquela noite se tornou muito mais divertida do que imaginei. voltou para casa relaxado, satisfeito e elogiando o casal Bardot. Pude ver a animação juvenil cruzar seu rosto e sorri satisfeita e feliz por ter despertado esse sentimento nele. 🌍🌏🌎 carregava algumas bolsas com presentes no braço assim como eu e seus dois seguranças. Cantarolando uma das músicas de Mariah Carey que tocava no rádio do shopping, o vi observar as vitrines distraidamente. Meu destinado tinha uma família enorme e a grande maioria iria receber o mesmo tipo de presente a partir de sua idade. havia explicado que não precisava fazê-lo, mas gostava de presentear todo mundo. Foi a primeira vez que peguei-o sentado calculando os preços antes de sair para comprar alguma coisa. Pensei que uma das vantagens de ser rico era poder comprar sem responsabilidade, mas aparentemente, ele era mais cuidadoso com seu dinheiro do que aparentava.
Ao perguntar o que ele desejava de presente, foi pragmático em dizer que qualquer coisa vindo de mim seria legal ㅡ o que não me ajudou em nada. Os dias estavam passando e faltavam apenas alguns dias para o Natal. A perspectiva de ir ao ´s Christmas me deixava mais nervosa do que quando conheci os pais de meu destinado, já que ele deixava claro quão importante era aquele evento. Além da maioria das pessoas serem elitizadas, os parentes de incluíam meu ex-chefe e não sabia se poderia encará-lo depois da injustiça sofrida por mim. Franz me deu alguma informações sobre o que acontecia na Coral e soube que a crise ainda não tinha se desencadeado, mas havia rumores.
Confesso que embora eu me sentisse vingada pelas circunstâncias, boa parte de mim se compadecia com meus amigos e conhecidos que trabalhavam lá. Era questão de tempo para as demissões terem seu início.
Naqueles dias de início de dezembro comecei a procurar apartamentos pela Ala J. Por estar desempregada, eu era considerada sem ala durante um ano, até renovar meu cadastro no governo. Até lá, se eu não tiver conseguido nada bom o suficiente, eu poderia voltar para uma casa na Ala certa e alugar o apartamento para passar a ser minha renda.
argumentou contra dizendo que eu poderia muito bem continuar morando com ele, no entanto, eu estava decidida. Apesar de ter uma comodidade enorme na mansão de , não havia nada realmente meu naquele ambiente. Eu queria poder comprar móveis, pintar as paredes da cor que eu quisesse e decorar minha varanda. Eu não sentia aquela liberdade dentro da casa de meu destinado e eu não queria me intrometer e mudar toda a aparência da casa de quando estávamos tão pouco tempo juntos. Era claro que eventualmente eu desejava voltar a morar debaixo do mesmo teto com ele, mas, até lá, acreditava que nosso relacionamento teria amadurecido.
E, pensando assim, escolhi um apartamento de dois quartos em um bairro relativamente seguro. estava comigo quando eu visitei o lugar e fez questão de observar cada detalhe. Ao perceber que não havia defeito, ao menos não grande o bastante para eu desistir da compra, ele disse que havia gostado do lugar e que tinha achado minha cara.
Quando voltamos para sua casa, beijei-o com vontade em agradecimento por aceitar minha decisão. Eu sabia que estava sendo difícil para ele, mas gostava de saber que apesar do nosso envolvimento, não se achava detentor da minha liberdade. Quanto mais eu prestava atenção em suas atitudes, mais me sentia apaixonar-me por meu destinado. De certa forma, ele era tudo que um dia havia sonhado, mas, por causa dos muitos problemas que a vida me deu, nunca tinha dado asas aqueles desejos.
Durante aqueles dias comecei a me achar bastante idiota por não ter cumprido a promessa que fiz a minha mãe e duvidado do sistema de destinados apenas para me proteger emocionalmente.
ㅡ Um dólar pelos seus pensamentos.
Pisquei tentando voltar ao presente e observei dirigir o carro lentamente. Era dia 24, final da tarde. Tínhamos previsão de neve para mais tarde, então todos a família estava indo mais cedo que o normal.
ㅡ Só estava pensando em como mudei de ideia sobre o destino ㅡ respondi.
baixou o som da música La Vie En Rose do Louis Armstrong para continuar a conversa.
ㅡ Você acha que se interessaria por mim se não fosse os relógios? Já parou pra pensar nisso? ㅡ perguntou ele em contra partida.
Levantei a sobrancelhas achando a perguntei bem capciosa.
ㅡ Eu que lhe pergunto: você se interessaria por mim, uma zé ninguém da Ala O, se não fosse o relógio?
— Você jogou um copo inteiro de suco em cima de mim, liebe. Seria muito difícil não se interessar por você — respondeu ele com um sorriso.
— Não sabia que jogar sucos em homens desconhecidos era a nova forma de sedução — comentei rindo.
— Mas, sério, acho que me interessaria sim. Você é linda, interessante e tem esse olhar… — disse parecendo bem reflexivo.
— Esse olhar?
Ele ficou vermelho e eu ri encantada com seu constrangimento quando já éramos íntimos. guardava muitos pensamentos inapropriados na cabeça apenas para si, porém aos poucos ele deixava escapar um ou outro, principalmente quando ele estava muito ocupado tentando enlouquecer-me com suas carícias. — É, esse olhar que me faz parecer um pirralho da quarta série — resmungou, chateado por não evitar mostrar sua timidez.
— Isso é só uma das suas facetas, amor — falei observando a estrada —
Eu gosto de cada uma delas. Principalmente dessa aí.
— Bem, responda minha pergunta — retomou o assunto — você se interessaria por mim se eu não fosse seu destinado?
— Não sei. Provavelmente sim — dei os ombros — A verdade é que você é incrível, acho que eu me interessaria por você assim como todas as mulheres héteros que te conhece.
— Eu não tô com essa bola toda, .
Dei dois tapinhas em seu joelho ignorando o que ele disse.
— E ainda é humilde, veja só!
A mansão alugada pelos era tão grande quanta a de , porém a mobília e a decoração eram bem mais modestas. Assim que chegamos já havia duas dúzias de pessoas andando para cima e para baixo e conversando freneticamente. Era possível ouvi o barulho de gritos de adolescentes ao se encontrar e crianças correndo desembestadas; o ambiente era caloroso e pude perceber que o clima também atingia meu destinado, já que seus ombros relaxaram e as pontas de seus lábios subiram assim que pisou no imóvel da família.
O barulho do grito que um grupo de crianças deram ao vê-lo ressoou como em o som de uma multidão gritando por um artista famoso. Levando em consideração que gritaram “Prince”, a comparação foi instintiva.
Fui deixada de lado por alguns minutos, mas fiquei observando como ele era amado pelos primos e dava atenção para cada um deles ao seu modo. voltou para o carro apenas para pegar o sax que tinha esquecido e tentou apresentar-me para o máximo de pessoas. Só lembrava dos nomes pequenos e daqueles que já tinha conhecido como Luna e Spencer, os quais estavam bastante agitados com a apresentação. O problema mesmo veio quando os adultos passaram a me cumprimentar. Seus olhares eram sempre mal intencionados e viam com uma olhadela de cima a baixo, tencionando a se mostrar superiores a mim.
Era de se esperar, porém. Eu não estava lá como a invisível, mas simpática assistente de Carter e sim como destinada de , desembargador e bilionário.
Se bem que bilionário não é exatamente uma profissão.
A maioria dos parentes de pertenciam da Ala A à D e isso era notável pelo seu andar pomposo e roupas cara. Apesar de ter ficado tentada a vir mais arrumada do que o costume, ouvi meu destinado sugerir que usasse algo confortável, pois a festa duraria horas. Então, vesti um suéter vermelho e branco e uma calça escura de couro. Não havia nada de muito especial na minha roupa para ser invejado e isso pareceu suficiente para que os narizes fossem franzidos. No geral, muito deles estavam interessados em como eu havia conhecido e eu contei a história curta. “Foi em uma lanchonete”, eu respondia com um sorriso contido, sabendo que a história era muito maior e complexa do que aquela.
Encontrei a família de Carter e Carol conversou comigo com sua natural amabilidade e exagero. Ela lamentou minha saída da Coral, entretanto desejou boa sorte na minha carreira profissional, mostrando-se bastante desinformada com as circunstâncias da minha demissão. Ou, talvez, ela fosse apenas uma boa atriz.
Para Albert Carter desejei apenas “feliz natal” da forma mais fria que consegui e sorri para suas duas princesinhas.
Era um pandemônio o barulho de toda a família junta, já que ela era composta de quase 42 pessoas. Chaia tinha nove filhos, sendo cada um tendo de dois a quatro filhos e alguns já eram avós e bisavós. Então, é de se entender a grande quantidade de pessoas. Até mesmo na cozinha, onde eu havia oferecido ajuda, o barulho era grande. Eu preparava uma tigela de salada enquanto fingia não ouvir o resmungar das cunhadas de Carol dizendo o quão folgada ela estava sendo naquele Natal.
“Quem vê pensa que engravida perto do final do ano apenas pra ter uma desculpa para não ajudar”, comentou minha sogra irritada.
Elas não pareciam ligar para minha presença, o que foi uma benção nos primeiros minutos, até que elas finalmente me notaram.
— Então, querida, você trabalha com quê? — perguntou Jessica , esposa do Jacob, filho de número três da avó de .
— Eu sou… Era secretária na Coral, mas por enquanto estou desempregada — expliquei.
— Ah — falou ela sem ter exatamente o que comentar — E o casamento? Quando saí?
Arregalei os olhos levemente antes de dizer:
— Acho que é um pouco cedo para isso.
— Já acho que vocês não têm o que esperar — comentou Natashia — não quer ter filhos logo? Ele sempre quis ser pai.
Arrumei meus ombros antes de dizê-la:
— Se formos ou não ter filhos vai ser no momento em que nós dois quisermos e de forma planejada — falei pragmática — Além do mais, não há porque ter pressa. Uma criança é uma responsabilidade enorme e deve ser tratada como tal.
Minha resposta causou um certo tipo de tensão no ar da cozinha e o silêncio que eu sentia falta veio de forma incômoda. Não me arrependi do que tinha dito, obviamente. Não iria ceder tão fácil sobre uma decisão tão crucial como a maternidade apenas por desejo de gente que não conhecia.
— É, acredito que você está certa — murmurou, por fim, Jessica — Vocês viram a última da filha do presidente? Agora paga de boa moça, a sujeita.
Logo, eu fui mais uma vez esquecida e respirei aliviada por isso.
Porém, havia sim pessoas legais e interessantes na família e a maior parte delas eram crianças. Elas eram umas pestinhas e tinham energia para sustentar o país inteiro. Por ser nova na família, recebi perguntas de todos os tipos e respondi-as entre risos. May, uma das crianças, a qual mais parecia interessada em mim, conversava em sussuros comigo. Ela tinha a pele esbranquiçada e o cabelo bastante curto e ruivo. Contou-me que era seu primo favorito e o considerava muito.
— Digam ‘x’. — chamou a atenção e nós nos viramos para posar para foto.
Ele havia esquecido sua câmera, por isso tirava fotos pelo celular. ria em deleite e percebi que valia a pena passar algumas horas de perrengue com sua família em troca de sua felicidade.
— Vejo que conheceu minha princesa — disse baixando-se para ficar a altura de May.
— Ela é maravilhosa — falei sorrindo.
— E uma guerreira também. — reforçou sua ideia mexendo seus cabelos, deixando-os bagunçados. May riu e empurrou seu braço para ele parar e logo ouvimos o grito:
— Vamos jantar, pessoal.
Felizmente o jantar aconteceu às nove e de meia-noite eles iriam fazer a troca de presentes. A mesa dos adultos era enorme e ficava em um salão tão grande quanto. Muitos já estavam bêbados a essa altura e entoavam músicas em alemão euforicamente. A comida era farta e dava para alimentar um exército. Havia muitas iguarias alemãs, mas não tinha muita certeza que gostei. O máximo que eu poderia dizer era que tinha achado estranho.
Eu estava sentada, alheia as conversas ao meu redor enquanto mexia no novo celular que havia comprado. Pelo canto do olho vi alguém sentar-se ao meu lado e levantei o olhar por instinto. Era uma mulher na faixa dos trinta anos e ruiva e ela sorriu para mim com simpatia, embora tivesse o rosto abatido.
ㅡ Você deve ser a , não é? ㅡ sua voz era bem grossa, apesar de sua aparente delicadeza ㅡ Sou Sarah Little. Talvez tenha falado de mim. Somos primos.
Assenti com a cabeça, porém apenas me lembrava de ter visto-o falar ao telefone, apontar para o aparelho e dizer que era Sarah, não explicando quem era ela.
ㅡ Deve ser um choque pra você ficar no meio desse tanto de gente. Aparentemente somos responsáveis por metade da população da cidade. — brincou ela com um sorriso ladino.
Dei os ombros em resposta.
— Minha família era bem pequena, então, é ainda novidade, não tive tempo de desgostar — falei e ela deu um risinho.
Depois de prestar bem atenção em como ela falava e gesticulava, percebi que havia a visto no vídeo em que dançava All I Want For Christmas. Ao tocar nesse assunto, Sarah riu deliberadamente contando suas travessuras de Natal junto com meu destinado.
— era da nossa faixa etária e sempre foi um pestinha. Uma vez ele derrubou a árvore de natal jogando futebol americano dentro de casa e, quando vovó reclamou, ele disse “ao menos fizemos um touchdown” na cara dura. Pensei que ela ia matá-lo ali mesmo.
Procurei com o olhar e encontrei-o conversando com um grupo de homens de cabelos cinza e deduzi serem os seus tios. Ele segurava o sax em uma das mãos e conversava com a tranquilidade de um monge, apesar dos homens falarem quase o engolindo, em alemão.
— Você gosta mesmo dele, não é?
Virei-me para Sarah com as bochechas queimando de vergonha por ter sido pega no flagra.
— Acho que gostar é uma palavra muito simples pra explicar o que sinto.
Sarah pareceu genuinamente feliz ao ouvi minha resposta.
— Cuide bem dele, ok? — disse ela segurando a mão em que eu não segurava o celular. — faz parte do grupo raro de pessoas nesse mundo e merece ser tratado como um príncipe. O que ele fez por mim e por minha filha… — seus olhos se encheram de lágrimas — É sério, . Você não sabe a preciosidade que tem ao seu lado.
— O que ele fez para sua filha? — indaguei curiosa.
Enxugando o rosto molhado, Sarah começou a explicar que no final do ano anterior sua filha de nove anos foi diagnosticada com leucemia. Sendo ela viúva de um capitão do exército e tinha um relacionamento ruim com os pais, Sarah se viu sozinha para enfrentar a doença junto com sua filha, May. , no entanto, esteve ao seu lado em todos os momentos, ajudando-a manter a esperança. Na primeira sessão de quimioterapia, May odiou a ideia de perder todos os seus cabelos, então, apoiou-a raspando os dele também. Era por esse motivo que ele tinha os cabelos bem mais curtos quando o conheci. Sarah também contou o quanto ele a fazia rir quando tudo que ela desejava era desabar e que muitas vezes lembrava-a que era necessário manter a esperança. Era May quem visitava no hospital do câncer, quando eu imaginava que era ele quem estava doente. Por isso May parecia ainda tão frágil, já que sua doença não havia ido embora de vez.
Senti-me emocionada com a história e a abracei quando ela terminou, embora não tivéssemos intimidade. Eu me via em seu lugar na época em que cuidava da minha mãe e observava sua piora aos poucos. Contudo, felizmente, ela teve a oportunidade de ver a filha se curar. Assim que ela se levantou para beber água e dizendo que precisava se recompor, fui em direção a . Pedi licença aos seus tios, pois não podia esperar para expor o quanto eu o amava. Arrastando-o pela mão, procurei naquela mansão um lugar vazio, enquanto ouvia indagar sobre o que estava acontecendo.
Encontrei um corredor vazio e sem mais delongas o beijei com intensidade e afobação como se dependesse disso para viver. estava claramente surpreso, porém não deixou de retribuir com tamanha vontade a carícia. Meus dedos deslizaram pelo seu cabelo, nuca e a pele coberta pelo suéter verde escuro. Ele apertou meu quadril contra o seu e eu gemi enquanto falava que o amava e que não conseguiria imaginar minha vida sem ele.
Apenas nos afastamos quando o fôlego faltou, mas mantive minha testa encostada na dele. Eu pude ver seus olhos cinzas de volúpia, a boca entreaberta, vermelha e inchada por meus beijos. Acariciei seu rosto lentamente em silêncio até ele perguntar:
— Não estou reclamando, mas gostaria de ser avisado na próxima vez que você quiser uns amassos, amor — falou lentamente — Posso arrumar um lugar muito mais reservado que esse.
Ri e beijei seu nariz empinado, o que deixava com ar pomposo.
— Amo você, engomadinho. Apenas queria dizer isso.
— Amo você também, liebe. — ele me analisou por alguns instantes, ainda muito confuso.
As duas filhas de Carter correram em disparada no corredor escuro e colei minhas costas na parede para não ser atropelada. Eu devia estar com uma careta assustada o suficiente, pois tirou sarro disso enquanto voltávamos para o foco da festa.
Uma hora antes do Natal, todo mundo se reuniu no que antes era a sala de estar, onde haviam improvisado um palco ㅡ que era nada mais, nada menos do que um grande tapete negro. Foi, então, que o silêncio sepulcral se instalou na casa e todos pareciam bastante vidrados. Meu sogro, o qual agia para comigo como se nunca tivesse me ameaçado, abriu a apresentação desejando feliz natal e soltando alguma piada. Ele era talentoso com o público e por isso não me admirava que ele fosse tão querido pelo povo ㅡ até mesmo eu gostava dele antes de conhecer seu verdadeiro caráter.
Eles fizeram um minuto de silêncio para Chaia e Klaus , os antigos líderes da família. Os s pareciam um clã irlandesa, o que me fez indagar se eles vieram do país certo mesmo.
Então, logo após a homenagem, o grupo de primos, incluindo , se organizaram para tocar seus instrumentos. Luna tocava teclado, Spencer violoncelo e as duas filhas de Carter flauta, além de com seu sax. Havia mais um casal de adolescentes que não esteve no ensaio e tocavam violino. Eles tocaram um clássico de natal White Christmas em alemão com o solo de Luna Smith-. Não posso deixar de acrescentar que ela era talentosíssima e não me surpreendi quando, conversando com ela mais cedo, havia descoberto que ela era caloura de Música na Columbia University. A audiência estava muito alerta e prestava bem atenção na música e tive que me segurar para não bater palmas animada quando fez seu solo.
Logo depois pegou o violão e cantou a música que eu ouvi-o cantar junto com Luna. A voz dele não tinha nada muito exuberante, mas era bonita e suave. Não foi possível evitar arrepiar-se quando, mais uma vez, ele cantou o verso em francês mirando-me com seu olhar cheio de malícia. Por já saber o que aquilo significava, o calor subiu em meu âmago e fincou no meu baixo ventre. Duvidava muito que algum dia poderia perder a atração quase sobrenatural que sentia pelo meu destinado.
De repente, a pequena orquestra começou a tocar uma música natalina e toda a família começou a cantar em um coro, todos de pé. Até mesmo as crianças cantavam, mesmo não sabendo falar as palavras direito. No final, alguém soltou confete vermelho, verde e branco e gritou “feliz natal”. Abracei um monte de gente que não lembrava o nome na euforia e desejei um Natal feliz para todos que encontrei. Foi difícil achar naquele mar de afobação, mas valeu a pena ter seus braços me acalentando e seus lábios macios e deliciosos como marshmallow me beijando. Após isso os núcleos familiares se formaram, transformando a troca de presentes em algo muito mais fácil. Imagina como seria ter que comprar presente para toda essa gente? entregou algumas caixas de presente para seus primos, inclusive Sarah e May, antes de se reunir com seus pais e eu.
Minha sogra ganhou uma bolsa Gucci do filho e deu-lhe um casaco moletom cinza da Adidas. Aitofel deu de presente um relógio dourado que reluzia contra luz e ganhou uma camisa de puro linho de . Todos aqueles presentes deveriam custar meu fígado no mercado negro. Os abraços trocados foram meramente superficiais e aconteceram apenas para não criar um clima estranho, afinal, ainda estavam toda a família junta os observando.
Os pais de me presentearam também, o que, para mim, foi uma surpresa. De Natashia ganhei um livro chamado O Parto da Girafa e falava sobre gestão de pessoas, o que achei interessante; Aitofel, no entanto, me deu um cartão presente da Lower. Agradeci aos dois e me senti bem acanhada em entregar apenas canecas natalinas a eles, mas, apesar de ter bastante dinheiro na conta, eu não podia esbanjar se quisesse comprar um apartamento, mobiliá-lo e ainda manter-me enquanto não achava um emprego. Ademais, eu não gostava tanto assim deles para caprichar no presente. Principalmente do meu sogro, que felizmente não tocou no assunto da nossa última conversa. Eu e ignoramos deliberadamente quando Aitofel comentou sobre o quanto sentia falta do outro filho e que era uma pena ele não poder aparecer.
me deu um pequeno envelope com um laço vermelho e abri com curiosidade. Dentro havia duas passagens aéreas para Cancún no final de janeiro e eu o abracei animada, quase quebrando seu pescoço ao meio.
ㅡ Calma, ㅡ disse ele com a voz de riso ㅡ Quero estar inteiro até o final da festa.
O presente que eu lhe dei era um pouco mais modesto, mas fez uma festa quando mostrei a compra do novo FIFA, o qual ele não tinha comprado ainda por causa da correria dos dias.
Suas palmas tocaram minhas costas com carinho e afundei meu rosto em seu suéter sentindo a fragrância do seu novo perfume quando nos abraçamos. Embora ainda pudesse ser considerado um cheiro oriental, o que ele usava era mais amadeirado transmitindo um pouco mais de calor ao meu olfato. Passamos bastante tempo em silêncio até que o burbúrio oficial dos s nos trouxeram a realidade. Estávamos em público, afinal.
Ainda assim, mais tarde, quando fomos para o nosso quarto, descobri que o que tinha recebido não era exatamente o único presente de Natal que iria ganhar. O cômodo era relativamente pequeno, com o papel de parede bege e vermelho, mas aconchegante, o suficiente para que dormíssemos apenas aquela noite.
ㅡ Estou morta de cansaço. Nunca pensei que socializar fosse tão cansativo ㅡ comentei rindo enquanto entrava por dentro das cobertas.
ㅡ Ainda tenho um presente para você ㅡ disse meu destinado e pude perceber que ele estava bastante sério. ㅡ Fiz o que você pediu e procurei saber sobre seus avós.
Fiquei calada ao relembrar meu pedido feito a quase um mês atrás. entregou um envelope amarelo e estava escrito seu nome em piloto vermelho. Segurei o objeto por um tempo antes de comentar:
ㅡ Minha mãe não usava documentos individuais ㅡ falei lembrando-me de sempre levar sua certidão de casamento, mas nunca sua identidade. Mesmo assim, o casamento era tão supervalorizado na sociedade que era tido como um documento muito mais importante. ㅡ Por isso nunca vi nem ouvi o nome dos pais dela. Era como se eles não existissem. Você leu? São conhecidos?
afirmou com a cabeça e apertou os lábios temendo dizer mais alguma coisa.
Abri a envelope com cuidado e o mesmo continha três papéis escritos que tinha o símbolo do cartório oficial do governo estadual. Pulei a parte burocrática e comecei a ver uma árvore genealógica ㅡ a minha, no caso ㅡ sendo ela começada a partir de mim.
No documento pude ver que meu pai tinha uma irmã mais nova, que morreu por uma doença desconhecida quando era adolescente. Minha avó se chamava Carola e meu avô era Michael , os dois morreram muito cedo: um por infarto e o outro por diabetes. Eu lembrava de ter ouvido meu pai explicar isso, mas era uma memória tão vaga que talvez fosse apenas minha mente pregando-me peças. De qualquer jeito, embora o ano do nascimento e da morte estivessem ali, não havia a causa de óbito.
Porém, não era o passado paterno que eu procurava e sim dos meus avós maternos. Prendi o fôlego quando li Genevieve De Lucca e Pietro De Lucca, sendo o último já falecido. Eu tentava acreditar que aquilo era uma simples coincidência até ver que minha mãe não era filha única; na verdade, teve dois irmãos e ela era a filha do meio. A mais velha não usava o nome de solteira e se chamava Josephina Fordnelly, enquanto o mais novo tinha pelo nome Giovanni De Lucca. Não foi de admirar ver que o filho de Giovanni se chamava Phillip De Lucca e era casado com Heather De Lucca.
Soltei um longo suspiro tentando clarear as ideias para entender como eu havia me enfiado naquela grande novela. Deitei minha cabeça no ombro de e ele abraçou-me de lado, em silêncio. Talvez a ignorância fosse mesmo uma benção.
Phillip de Lucca, esposo da ex-mulher de , uma das últimas pessoas que eu gostaria de encarar no último momento, era meu primo.
Capítulo 25
“Doce criatura, tivemos outra conversa sobre onde estamos errando. Porém ainda somos jovens, não sabemos para onde estamos indo, mas sabemos aonde pertencemos.” Sweet Creature, Harry Styles. — Sim.Daisy saltou da cadeira e deu um grito histérico, do tipo que me fez ficar com vergonha a ponto de virar o rosto e fingir que não a conhecia. Porém, a estratégia se mostrou falha quando ela me abraçou desajeitadamente em meu banco.
— Eu sabia! Eu sabia! Saboaria & Bardot. Vai ser um fenômeno! — gritou ela em animação.
— Hm, na verdade… — repliquei — Eu não acho que seja bom colocar esse nome na Saboaria, Daisy.
— O quê? Por quê? — perguntou ela deixando a euforia de lado e voltando a sua cadeira.
Acomodei-me antes de contar algo que eu estava pensando nos últimos dois dias depois do Natal.
— O nosso alvo é as Alas mais altas do que a nossa, não é? — ela assentiu — Então, temos que levar em consideração que o produto deve parecer elitizado para eles. & Bardot parece nome de corporativa de advogados e não é esse nosso objetivo. Acho que produtos Bardot é o suficiente. O nome tem um ar sofisticado e consigo imaginar facilmente qualquer uma dessas modelos famosas falando em um comercial “amo os sabonetes Bardot”.
Vi os olhos de Daisy brilhar mais uma vez de animação.
— Sabia que não ia me decepcionar em escolher você, . — Daisy abriu a bolsa e entregou mais dois pacotes embrulhados em papel papelão, dando um ar bem artesanal, como o produto propunha. — Estou testando o cheiro da maçã e tentei um junto com lavanda. Mark detestou a junção, mas talvez esse lhe agrade. Meu marido já tá começando a perder o olfato de tanto que eu o uso de cobaia. — ela riu daquele jeito que apenas apaixonados fazem.
— Você tem outras amostras? Não precisa ser grandes como esse, apenas uns pequenininhos. Conheço um pessoal que talvez ficasse interessado no sabonete e seria bom preparar o terreno. — pensei nas pessoas que havia conhecido na festa de Natal dos Hoyers e pensei em lhes dar amostras grátis do produto, apenas pela divulgação.
Antes de decidir se iria ou não ser sócia da Daisy, estava cogitando tentar entrar na faculdade, porém a verdade é que eu não sentia nenhuma vontade de entrar na vida universitária. O que lembrava me das promessas que eu fiz para minha mãe, todas as duas fracassaram. Contudo não permitir me sentir culpada por causa disso, afinal, eu era uma adolescente quando prometi aquilo e estava desesperada em acabar com a feição de sofrimento da mamãe.
Depois do almoço, fui em direção ao hospital onde Jack permanecia internado. Ele iria viajar para ficar juntos dos seus tios e Bonnie. Conversando com o detetive consegui descobrir que as pessoas que estavam atrás dele conheciam a casa dos tios e chegaram a ameaçá-los se não informassem o paradeiro do sobrinho. Jack estaria em segurança fora da cidade.
Abracei-o assim que cheguei em seu quarto. Não cheguei a chorar, mas sentia a garganta pesada e a língua dormente. Fiz Jack prometer a mim que iria tentar uma nova vida e que me visitaria assim que as coisas estivessem mais calmas.
— Volte para escola — ordenei.
— Sim, senhora.
— E não se envolva com delinquentes.
— Sim, senhora.
— Diga a Bonnie que mandei um beijo.
— Sim, senhora.
— Não fique fora até tarde.
Ele riu antes de dizer:
— Sim, senhora.
Com emoção segurei seu rosto. Ele era uma criança ainda, apesar de ser muito alto e ter músculos que deixavam parecendo um frango depenado perto dele.
— Eu amo você como um irmão caçula.
— Eu também amo você, tia — respondeu ele e o abracei.
Voltei para casa de com a esperança de uma nova vida para aqueles garotos e aproveitei que estava com tempo livre para relaxar na banheira do meu quarto. Liguei a TV para ver as notícias e lembrei-me que aquele era o dia do julgamento de Daniel Fuller. No canal de notícias era possível ver a ao vivo.
Aumentei o volume enquanto afundava entre os sais e a espuma da banheira, fitando o rosto sério do meu destinado ouvindo o advogado de Fuller. parecia uma placa de gelo de tão frio e seus olhos escuros estavam opacos, como se não houvesse alma alguma dentro dele. Era interessante vê-lo daquela maneira, por isso entendia o motivo das pessoas se sentirem agraciadas quando ele era simpático fora do tribunal. Sorri em pensar que o brilho no olhar que assemelhava-se com labaredas negras e prateadas eram constantes quando ele estava perto de mim.
Fingindo entender os termos técnicos que um dos desembargadores falava, comecei a me ensaboar com o novo sabonete Bardot. Ao contrário do de melancia, o novo era um pouco mais cremoso e deixava a pele macia como uma seda, como um hidratante corporal. O cheiro era mais intenso e dava a sensação de frescor de uma tarde entre macieiras. Daisy era incrivelmente boa no que fazia e se fosse um pouquinho mais organizada provavelmente estaria em alta no mercado. Era aí que eu entrava de qualquer maneira. Não conseguia imaginar Daisy conversando com um investidor sem deixá-lo confuso com sua indecisão ou euforia.
Passei o resto da tarde comendo batatas chips e assistindo ao julgamento de Daniel Fuller. Às vezes ficava mexendo no meu novo celular pesquisando alguma palavra que ouvia-os falar. Como era esperado, o vereador foi condenado, porém apenas por cinco anos. Felizmente eu sabia que aquele era apenas primeiro de muitos outros julgamentos e que as denúncias chegaram aos ouvido da segunda instância, embora eles tenham escolhido continuar calados.
Desci para a cozinha e o bom cheiro de pizza pairava no ar. Rose já lavava as mãos para sair, mas antes me advertiu: “faça-o comer tudo”. Bati continência e respondi “sim, senhora capitã”, arrancando uma das risadas escandalosas da cozinheira.
chegou logo depois com seu terno preto sob medida e a gravata azul escura, mostrando-se um pouco mais animado do que costume. Estava bastante feliz em perceber que ele havia até mesmo começado a comer com mais frequência nos últimos dias e era questão de tempo para que ele engordar alguns quilinhos. Como estava acostumado, roubou-me um beijo e foi em direção à comida em cima do fogão, porém, parou no meio do caminho de repente. Curiosa, observei-o voltar até ficar de frente a mim com sua testa franzida.
— O que foi?
— Só um segundo — replicou.
Meu destinado afastou meu cabelo do ombro e mergulhou seu nariz na curva do meu pescoço. Ao sentir sua respiração quente contra minha pele, me vi inclinando-se para ficar mais perto e soltei um murmúrio positivo quando seus lábios começaram a fazer uma trilha de beijos lentamente, torturando-me com sua língua atrevida.
— Maçã… Hm… — sussurrou ele — Liebe, nunca tive um olfato apurado, mas desde que você entrou na minha vida sou um perito em seu cheiro.
— É o novo produto da Bardot — foi o que eu disse antes de ser beijada por ele mais uma vez.
Derreti-me em seus braços, agarrada ao seu pescoço, inebriada pelo jeito em que ele apertava-me contra seu quadril rígido. Seu gosto era de bala de cereja e o desfrutei com prazer.
— Sinceramente não consigo pensar em um emprego melhor pra você, — disse ao se afastar com um sorriso lascivo.
Ainda com os lábios inchados e o rosto sem a palidez rotineira, sentou-se para comer. Os últimos dias estavam sendo uma correria para ele e era a primeira vez que realmente sentamos para conversar depois do Natal. Falei sobre Jack e o quanto sentiria falta dele, expliquei algumas ideias que tinha para Bardot e escutou com atenção. Quer dizer, com a atenção o suficiente para responder com murmúrios vagos, já que ele estava comendo. Meu destinado também falou alguns bastidores do julgamento e como havia ficado aliviado, pois tudo foi bem tranquilo, na medida do possível.
— Querido?
— Sim? — respondeu ele enquanto colocava seu prato na lavadora.
— Por que você não disse que visitava May quando ela estava no hospital?
ficou em silêncio e virou-se para mim hesitante.
— Não queria parecer que estava me gabando. De qualquer forma, ela já saiu do hospital e se depender de mim não irá voltar.
Os cantos dos meus lábios subiram automaticamente, um comichão bom atingiu meu peito, uma dor boa.
Seria possível não se apaixonar por ? Com ou sem o relógio, eu teria chance de não cair de amor por ele? 🌏🌍🌎 Ao contrário do que eu esperava, o último dia do ano não foi tão calmo. Meu estado melancólico se instaurou, algo que sempre acontecia naquela época do ano, e me transformei em uma idiota que brigava por qualquer besteira. tinha sido convidado para três festas diferentes, sendo duas delas de filantropia e uma da Coral. Obviamente não iremos àquela última, mas foi o suficiente para que o meu mau humor desencadear-se. não era nenhum santo, embora fosse bem paciente não aguentava escutar-me resmungar como uma velha, e logo estávamos brigando por causa de uma coisa tão supérflua que mais tarde me perguntei se já tínhamos chegado a fase adulta.
No final, como era de se esperar, ninguém saiu de casa e passamos as últimas duas horas do ano ignorando o outro por pura birra. Eu bufei quando vi balançar a perna nervosamente na poltrona da sala enquanto tirava a gravata vermelha com violência, possuindo uma carranca no rosto. Desviei o olhar quando ele percebeu que era observado e retirei os sapatos altos que tinha comprado, porém os coloquei com cuidado no chão. Eu não achei oitenta dólares no lixo, afinal, tinha que cuidar deles.
Os minutos se passaram com lentidão e a tensão que sobrevoava o ar era quase palpável. A culpa era minha daquele clima terrível e foi difícil admitir isso.
— O que eu fiz dessa vez? — inquiriu soltando um suspiro.
— Nada. Eu que sou uma imbecil — respondi em um sussurro — Desculpe pelo que eu disse.
Ele coçou os olhos cansados.
— O que há de errado? — perguntou baixando a guarda e me olhando preocupado.
Eu não o merecia. O destino deveria muito bem saber disso.
Mirei o teto em silêncio imaginando em como ia explicar aquilo. A ferida estava cicatrizada, mas era doloroso falar sobre. Sempre foi. Sempre seria.
— Meu pai morreu no primeiro dia do ano — comecei a dizer — Mais ou menos uma hora da manhã do dia um de janeiro.
continuou em silêncio, porém sua atenção estava toda em mim. Lembrei que durante uma das nossas brigas ele havia indagado sobre a morte de Steve , o que me faz pensar que, de alguma forma, ele já sabia como foi. Ainda assim, agradeci internamente por ele ter ficado calado, apenas me escutando.
— Teve um tiroteio na rua em que ele trabalhava. Era o último dia do ano e ele tava pintando uma casa. Meu pai era um faz tudo, sabe? Não era nenhum profissional, mas sabia um pouquinho de tudo. Era um homem muito inteligente — soltei um suspiro — Ele tava voltando pra casa quando a troca de tiros começou e um deles atingiu sua nuca. Morreu na hora.
Apertei os lábios sentindo vontade de chorar, mas as lágrimas não vieram. Quando a notícia de que meu pai estava estirado no meio da rua chegou aos nossos ouvidos, mamãe não deixou que eu fosse ver seu corpo, mas ela viu. Foi uma única vez que Letícia , a calma em pessoa, teve um ataque de histeria.
Não vi quando veio em minha direção, só sei que sentir seus braços me acalentando de repente. O cheiro tão conhecido por mim e o calor da proximidade me ajudou a continuar meu monólogo. Por dentro, me sentia miserável, porém o seu aconchego me traziam de volta a realidade.
— Há algumas evidências que dizem que o tiro veio da arma do homem que era o pai biológico do Jack. Lembro pouco dele, era um dos vizinhos, mas sei que a altura e o cabelo eram iguais — falei.
— Nossa — disse — E mesmo assim você tem ajudado o filho do suposto assassino do seu pai. Por quê?
Eu tinha diversas respostas para aquela pergunta, entretanto respondi a mais sincera.
— Porque seria o que meu pai faria. — algumas lágrimas desceram pelo meu rosto — E eu não queria que ele se tornasse como o pai. Jack não vai ser igual ao pai dele.
segurou meu rosto para que eu olhasse diretamente em seus olhos e enxugou as lágrimas que desciam com a delicadeza que só ele possuía.
— Não conheci seu pai, mas sei que ele ficaria orgulhoso em ver a mulher que se tornou, amor — disse ele com expressão de ternura — Você é inteligente, linda e bondosa. E ainda tem um monte de elogios que não consigo lembrar agora. Nunca os tenho quando preciso. — eu ri — E ele iria querer ver você feliz, . Nunca duvide disso.
Balancei a cabeça em assentimento e abracei-o. Tinha sido tão mais fácil deixar o desejo de vingança me consumir, mas fiz o que foi preciso para orgulhar meu pai de onde quer que ele estivesse. apertou-me contra seu peito e o choro se tornou compulsivo. Meu destinado não disse mais nada, pois sua presença já era suficiente. Apenas o estar ali ao meu lado, quando tudo que eu queria era desmoronar, era uma prova de amor maior do que palavras poderiam dizer.
Então o barulho dos fogos de artifício ao longe nos despertou daquele momento íntimo. Pela janela dava para ver as cores iluminando o céu e sorriu para mim.
— Feliz ano novo, liebe.
— Feliz ano novo, — falei antes de beijá-lo. … As primeiras semanas de janeiro foram surpreendente boas. Eu estava muito animada com o projeto da Saboaria Bardot e já havia recebido bons feedbacks de algumas primas de sobre o produto. Já tínhamos o produto registrado assim como a marca, embora o logo ainda estivesse sendo preparada por um designer. Tudo estava caminhando para que a empresa tivesse um bom rendimento no primeiro ano.
Depois de passar mais um almoço conversando com Daisy sobre a empresa, resolvi ir à farmácia para comprar remédio para cólica e absorvente, pois minha menstruação iria vim em poucos dias. Em poucos minutos iria ligar para Nelson, meu motorista, para que me buscasse como de costume.
Porém, ao cruzar a rua senti uma mão puxar-me e outra apertar minha boca. O grito saiu estrangulado e mordi minha bochecha ao tentar pedir por ajuda. O desespero tomava conta de mim e eu me debati para sair dos braços do desconhecido. Meu corpo foi jogado para dentro de um caminhão de carne e eu tremi com a dor que atravessou toda a minha espinha.
Havia homens estranhos e me senti aterrorizada. Então, olhei para frente e vi com a arma apontada para mim.
O cabelo tinha o mesmo corte, o rosto possuía as mesmas feições, mas o olhos tinham uma malícia que eu não conhecia. Senti todos os meus membros gelarem quando percebi quem realmente era.
— É um prazer conhecê-la, cunhada — cumprimentou-me.
Capítulo 26
Narrado por . “Se você quer amor, você vai ter que passar pela dor.” If You Want Love, NF. O barulho do alarme de meu celular me fez submergir do texto jurídico que eu tentava ler por quase uma hora e meia. Desliguei o som assim que li a mensagem “comprar flores para ” que eu havia colocado para que evitar ser traído pela minha péssima memória. Na tela, mostrava-se a foto que eu havia tirado quando estávamos no Natal e ela brincava com os meus primos menores. Vestida com um suéter vermelho e branco, o sorriso que ela carregava no rosto era tão grande que era quase palpável a genuína felicidade que sentia.Eu amava . Gostaria de fazer diversas comparações em relação às estações do ano ou como a natureza se comportava para esclarecer o que eu sentia, mas a verdade é que eu não tinha alma de poeta.
Queria muito ter a coragem de pedi-lhe em casamento de vez e construir nossas vidas juntas, mas eu não tinha mais 20 anos e o sonho ingênuo de constituir uma família de uma hora para outra, sem uma base forte. Não tinha mais aquela certeza de que iria ter filhos e envelhecer ao lado da mesma mulher, no entanto, isso não significava que eu achasse impossível. E por haver a remota possibilidade de que aqueles sonhos pudessem se tornar realidade, eu seria o mais cuidadoso possível.
poderia dizer que não sentia-se insegura com nosso relacionamento, mas há muito havia aprendido que ela escondia muita coisa em seus grandes olhos castanhos. Ela era namorada de um completo babaca antes que nos conhecemos e era natural não querer apressar as coisas. Seja o que for, embora minha preferência era de tê-la perto, não iria sufocá-la. Antes de mais nada, era uma mulher independente que sentia a necessidade de ter coisas para si. Eu não iria ser quem tiraria sua individualidade quando fora um dos motivos que me fez apaixonar-me perdidamente por ela.
Depois de ligar para a floricultura e pedir que enviassem o buquê para casa, voltei ao trabalho tentando não pensar nos planos que havia feito para aquela noite.
Já estava escurecendo quando saí do meu escritório. Cumprimentei os funcionários que encontrava no meio do caminho e entrei no carro para ir direto para Ala A.
Após liberar minha entrada, fui para dentro da cozinha. Como de costume, Rose estava já arrumando-se para sair. Às vezes eu conseguia chegar antes que ela fosse embora, às vezes não. Quando eu tinha a oportunidade de encontrá-la, perguntava sobre como ia a manutenção da casa. Uma mansão como aquela não era fácil de cuidar e muitas vezes pensei em me mudar para um apartamento, algo mais prático.
— Como andam as coisas?
— Bem, . Só tivemos um problema com a encarnação do banheiro da área de lazer em cima, mas vamos resolver em breve.
Assenti e inspecionei a cozinha com o olhar até ele cair sobre o buquê intacto em cima da mesa.
— Onde está ?
— Não chegou ainda — disse Rose.
Mandei mensagem para minha destinada, mas ela não respondeu. Tentei ligar para , porém seu celular estava fora de área ou desligado. O telefone dela provavelmente estava sem bateria, então.
Murmurei uma despedida para Rose e fui para a garagem procurar por Balmër. Ele estava rodando a chave da minha BMW com distração, por isso endireitou as costas com rapidez ao me ver.
— Senhor — disse assim que cheguei mais perto.
— Você não acompanhou hoje? — inquiri colocando a mão no bolso da calça cinza claro que eu usava.
— Estou esperando ela ligar para que eu vá buscá-la, senhor — respondeu.
— Pensei que fosse seu guarda-costas — falei com frieza.
— Estou fazendo o que você pediu, senhor . Protejo sua destinada, não a persigo — falou ele usando as palavras que eu havia dito quando o escolhi para trabalhar para ela.
— Quando ela ligar, me avise — ordenei me sentindo um completo idiota por estar preocupado sem motivo.
Subi para meu quarto e tomei banho. Já vestido como um reles mortal, passei boa parte do tempo passando os canais da TV da cozinha esperando que Balmër aparecesse. Só então que uma longa hora se passou, voltei a chamá-lo e Nelson não havia recebido nenhuma resposta de .
Desbloquei meu celular para ligar mais uma vez quando recebi a mensagem com apenas uma frase que liberou uma onda de desespero sobre mim.
“Por que você não levou a sério meu recado, irmãozinho?”
E abaixo estava a imagem de amordaçada. Os seus olhos castanhos estavam inchados, aterrorizados e o rosto estava molhado, como se tivesse chorado por muito tempo.
O terror dominou o meu corpo como uma onda de frio e minhas mãos começaram a tremer. Aquilo não podia estar acontecendo, não podia! Nós tínhamos um acordo, sheisse!
Entrei em um carro qualquer e dirigi como se minha vida dependesse disso. E dependia, realmente. Se algo acontecesse com eu nunca me perdoaria.
O canto dos olhos já enchiam de lágrimas, mas eu não podia cair completamente no desespero naquele momento. Quase bati em dois carros, porém continuava a pisar no acelerador. Se eu ligasse para a polícia, nada aconteceria. Nem mesmo Peter poderia me ajudar naquele momento, pois ele estava no meio do país. Só existia uma pessoa que tinha o poder de me ajudar, a mesma que mandou o recado de Tobias.
O nome Tobias era amargo em minha boca. Além de roubar todos os meus sonhos e projetos, assim como minha liberdade, ele tinha a sequestrado. Eu conhecia a mente sórdida do meu irmão e por pura falta de responsabilidade ignorei sua ameaça.
Cheguei no meu destino e entrei na casa ignorando qualquer pessoa que dissesse meu nome. Subi as escadas de dois em dois degraus sentindo o ódio aquecer meu peito e a vontade absurda de socar alguém atacando meus nervos. Fui em direção ao quarto que eu me direcionei tantas vezes e abri com violência.
Minha mãe deu um salto de susto da poltrona e meu pai saiu do closet alarmado e segurando uma toalha nas mãos. Olhar para aqueles dois vivendo suas rotinas na maior tranquilidade, enquanto estava sofrendo sabe Deus lá o que, fez minha raiva florescer.
— Filho, o que houve? — indagou Natashia com o olhar mais inocente do mundo.
— Onde está ela? — perguntei com a voz em tom glacial que sugeria que minha sanidade estava a um fio.
— Ela quem? — disse meu pai fingindo não saber do que se tratava.
— , seu idiota — respondi sem um pingo de paciência — O que vocês fizeram com ela?
Aitofel ainda teve coragem de parecer surpreso ao comentar:
— Por que você não liga para ela, ? Não precisa fazer esse show todo — então, acrescentou: — Quem sabe ela não fugiu de você, não é? Ela parece uma garota esperta, deve ter se cansado de seus dramas.
Dei um passo em sua direção e cerrei o punho, sentindo suas palavras pesarem em meu peito.
— Você já ligou para ela, querido? Talvez tenha ido para casa de uma amiga — falou minha mãe. Olhei para aquela conta de forma cética.
— Foi você que me avisou que poderiam fazer alguma coisa com ela, sheisse! Para de se fazer de cínica — gritei ainda com a memória das palavras dela em mente. Ela deu um passo para trás, assustada.
— Não grite com sua mãe — advertiu Aitofel. Ignorei-o.
— Eu estava fazendo justiça, mãe. JUSTIÇA! Qual é o problema de vocês dois? Três, aliás. Daniel Fuller tinha que pagar pelo que fez, mas vocês preferem ir onde a Shadow ganha mais, não é? — eu disse olhando com firmeza os olhos azuis da minha mãe. — E, para isso, pegam uma inocente, que não tem nada a ver com a história!
Percebi que estava muito perto e já encurralava Natashia na parede com o relevo persa. Ela me olhava amedrontada, finalmente mostrando algo verdadeiro além daquela preocupação fingida.
— Fique longe da sua mãe, porra! — gritou Aitofel e quando olhei para ela vi uma arma apontada para mim, a qual estava escondida debaixo da toalha que ele segurava anteriormente.
Dei dois passos para trás com as mãos levantadas. O suor descia pela têmpora.
— Se você fizesse o que Tobias pediu isso não teria acontecido, caralho — ralhou ele — Mas não. Você tinha que ser o Superman, o herói brilhante. A Shadow está de olho há muito tempo e você sabia disso. Daniel tem muito mais poder do que você pensa, . Tobias está apenas cumprindo ordens.
— Eu só quero ela de volta.
— Então vamos resolver isso como pessoas civilizadas — falou Natashia erguendo as costas, parecendo inabalável — É questão de tempo para que Tobias peça o resgate.
Porém o resgate não veio naquela noite. Eu sabia que localizar o celular seria perca de tempo, pois Tobias era profissional. Assim que enviei uma mensagem perguntando o que ele queria em troca, recebi a notificação de que o celular não existia.
Além da imponência que sentia, havia a normalidade que meus pais lidavam com a situação, como se eu estivesse ali em sua casa apenas para fazer uma visita. Minha mãe ainda teve coragem de me oferecer biscoitos e, da mesma forma calma que ela me falou, respondi que ela fosse ao inferno.
Eu não podia fazer nada a não ser esperar a boa vontade do meu irmão. Só de pensar no sofrimento que ele e os outros componentes da Shadow causava em minha destinada, meu peito sangrava junto. E eu não podia fazer porra nenhuma.
Quando deu meia-noite recebi um vídeo, dessa vez de um número da Bulgária. Nele vi Tobias segurando o rosto de com violência e ele ordenava para que ela sorrisse para mim. Aquilo foi a pior dor que já senti na minha alma. Pela primeira vez quis matar meu irmão com minhas próprias mãos e fazê-lo tomar de seu próprio veneno.
Minhas mãos fincaram nos braços da poltrona em que estava sentado no escritório do meu pai. Desejava ameaçá-lo e fazê-lo dá alguma informação sobre Tobias, mas ele não largava a arma de maneira nenhuma. Planejei uma luta corporal, porém eu tinha ideia de que não conseguiria. Sempre fui quem apanha, nunca quem bate. Aitofel atiraria em mim e a certeza existia. Ele não mataria — eu era precioso demais para isso — contudo meu progenitor podia muito bem deixar-me sem andar ou coisa pior. Toda a maldade que Tobias possuía vinha do meu pai.
Quanto mais o tempo passava mais difícil era segurar as lágrimas da desesperança que me dominava. Tobias não precisava daquele teatro se tivesse alguma forma de resgate. Ele ia matá-la e iria levar minha alma junto.
Assim que aquela noite tempestuosa acabasse, eu receberia o corpo sem vida de na frente da mansão. Quando isso acontecesse, o esquema da Shadow ia parar no jornal por minhas mãos e antes que a punição chegasse a mim, eu mesmo iria dar um fim em minha vida. era a única cor que havia no mar de cinza que eu vivia e se ela fosse embora, então não valia a pena continuar. Fazia muito tempo desde que eu não planejava minha morte, mas naquela vez nunca foi tão real.
Eu não iria viver em um mundo onde não existia.
E foi aqueles pensamentos que alimentei até a manhã seguinte. Meu corpo doía, os lábios estavam secos e no peito sentia uma angústia tão grande que tudo que eu desejava era gritar em desespero, mas o clamor estava entalado na garganta.
Às oito horas da manhã, quando me levantei até a cozinha da minha antiga casa para beber água, recebi outra mensagem de Tobias.
“Acabei.”
O choro subiu na garganta e mordi o lábio com força, cortando-o. Meus joelhos cederam até o chão, as forças esvaindo como uma névoa passageira.
“Prepare o habeas corpus de Daniel Fuller. Assim que ele estiver fora da prisão, você terá . Ao menos o que sobrou dela.”
Apesar da última frase fosse ambígua, agarrei-me aquele fio de esperança que apenas quem ama pode possuir.
Além de chegar no forúm tarde e sem o habitual terno, tive tonturas até chegar na minha sala por causa do longo período de tempo sem comer e sem dormir. Fui amparado por uma dupla de funcionários conhecidos e eles me levaram até o meu local de trabalho. Ms. Snyder estava alarmada com meu estado caótico de vestimenta, mas obedeceu-me de imediato quando ordenei que digitasse um ofício para mim. Eu não tinha condições nem mesmo de olhar para meu celular sem sentir uma enorme dor de cabeça, muito menos conseguiria escrever algo legível.
A ordem foi deferida e a tarde os jornais já noticiavam a saída de Daniel Fuller da prisão. Em outra situação, eu ficaria incomodado com a ideia de quantos artigos criticando minha atitude seriam publicados, mas pouco importava naquele momento. Eu apenas queria que estivesse em segurança.
A mensagem dizendo a localização chegou logo em seguida e o aviso prévio para que eu não fizesse nenhuma gracinha ou “os três vão morrer”. Lembro de ter suspirado com alívio com o subentendido da frase.
estava viva.
Só descobri quem era a terceira pessoa ao chegar no terreno baldio, que antes foi um lixão, e tinha se tornado abrigo para a grande maioria dos cidadãos que eram da Ala Z. O lugar fedia a esgoto, tinha uma aparência horrível e as condições eram tão degradantes que nem mesmo animais deveriam ser tratados com aquele descaso. Não pude prestar mais atenção, no entanto. Meu foco era achar minha destinada com vida e a proteger do monstro que era meu irmão.
Demorei bastante tempo para encontrá-la, o que me fez começar a pensar que talvez eu tenha caminhado ingenuamente em direção a uma armadilha. Porém, pela graça de Deus, encontrei-a com o último homem que eu pude imaginar defendê-la naquele momento.
Corri em sua direção e meu coração afundou no peito ao ver seu rosto inchado e cheio de hematomas. era alta e esguia, mas o tremor que passava por seu corpo dava a impressão que tinha ficado miúda de uma hora para outra. também não parecia inteiro. Ele tinha mais hematomas do que minha destinada e parecia mais magro do que a última vez que o vi. Em seu olhos vi que algo importante no fundo da sua alma se quebrou, algo difícil de ser reparado e automaticamente senti empatia. Eu já havia sido quebrado uma vez também.
— , sou eu — falei com a voz tremendo de emoção — Você vai ficar bem. Vou levá-la para casa.
Ao contrário do que eu esperava, agarrou a camisa cheia de sangue de com força e se afastou de mim. Seus olhos estavam esbugalhados e temerosos. A dor que eu senti foi dilacerante. Eu causei aquilo nela. Se eu tivesse ouvido o aviso, nada disso teria acontecido. Se eu tivesse deixado Daniel Fuller em paz, tudo estaria bem.
— Fique longe de mim, Tobias — disse ela em desespero — Eu não fiz nada, por favor!
Ser confundido com Tobias por ela foi suficiente para deixar-me sem chão. Era como se todo meu mundo tivesse sido estraçalhado.
, no entanto, me reconheceu de alguma maneira e levou-a com dificuldade até meu carro.
Os dois ficaram em silêncio e embora eu tivesse curiosidade para saber como o ex namorado de se envolveu com toda aquela história, continuei calado tentando assimilar tudo que aconteceu nas últimas vinte e quatro horas.
Levei-os ao hospital pouco me importando no que iriam dizer quando descobrissem que minha destinada estava tão ferida como um gato de rua. Levando em consideração o dinheiro que dei para a secretária e a enfermeira, sigilo não seria um problema.
Eu senti a exaustão chegar quando sentei para esperar eles terminarem de ser atendidos e acabou que eu também tive que ser levado à emergência, pois comecei a vomitar o que parecia apenas suco gástrico, já que não tinha comido nada.
Nós recebemos alta quase no final da noite e liguei com o telefone do hospital para que um dos meus motoristas nos levasse para casa. pediu para ir à Ala D e deixei-o de frente a um condomínio fechado. Acompanhei-o para ter certeza que ele não precisava de ajuda para entrar — afinal, ele estava vestido de trapos. Não ia fingir que poderia ser mal interpretado por causa das roupas que vestia e não desejava que ele sofresse mais um perrengue naquele dia. Sua destinada desceu minutos depois e agarrou com tanta força que ele soltou um gemido de dor, mas abraçou-a mesmo assim.
Voltar para casa sentado ao lado de foi outra angústia. Queria abraçá-la e dizer que aquilo não ia acontecer de novo, que eu iria protegê-la e que acima de tudo eu a amava. Queria mostrar quão aliviado me sentia em tê-la ali do meu lado respirando e viva. Porém, a realidade nua e crua era que eu era igual ao meu irmão na aparência e isso tinha confundido sua cabeça. Só Deus sabia o que tinha acontecido nas últimas horas e o que Tobias fez para .
Felizmente aos poucos minha destinada foi acalmando-se e seu olhar deixou de ser tão amedrontado como antes. Toquei a sua mão e longos segundos depois ela apertou sua palma na minha sem muita força e em silêncio.
Rose esperava por notícias na cozinha e ficou assustada ao ver os curativos e bandagens que carregava. Disse a ela que explicaria depois e subi com minha destinada até o seu quarto. Com cuidado e delicadeza, ajudei-a tomar banho e vestir o pijama. De todos os momentos ruins que eu havia passado com , com certeza aquele foi o pior. Nunca tinha a visto tão frágil, tão vulnerável enquanto chorava debaixo do chuveiro. E eu não podia fazer nada para que ela melhorasse. Eu havia falhado em protegê-la.
Ela dormiu com a cabeça apoiada em meu colo, o silêncio foi nosso acompanhante naquela noite. Cochilei uma ou duas horas, mas não consegui dormir de verdade por causa da concessão de pesadelos que tive.
O relógio indicava que era três da manhã quando finalmente me levantei e fui tomar um banho quente. Não conseguia pensar em mais nada a não ser levar a um psicólogo o mais rápido possível, alguém que pudesse ajudá-la de verdade. Minha reputação como juiz deveria estar um caos e provavelmente eu tinha ganhado mais um escândalo para meu histórico, no entanto, pouco importava. Nada daquilo importava.
Ao entrar no quarto de , encontrei-a acordada e em pé do lado a cama.
— Tudo bem, ? Você teve pesadelos? — perguntei aproximando-se dela.
Inesperadamente, minha destinada começou a chorar e balançar a cabeça em desespero.
— Fique longe de mim, por favor. Tobias, por que não me deixa em paz? Eu não fiz nada!
Aquelas palavras foram como facas afiadas em meu peito, dilacerando cada pedaço que havia sobrado da minha alma. Foi nesse exato momento que decidi que Tobias e Daniel Fuller tinham seus dias contados.
Capítulo 27
“Lágrimas caem, e os sonhos se vão, a esperança se vai (...) Como, quando, onde e por que são questões que me impedem de te ver.” Lágrimas, Jotta A. Aos 26 anos eu já havia enfrentado mais batalhas do que tinha imaginado enfrentar quando era criança. E, acredite, eu sempre soube que a vida não era fácil. Meu pai era um homem cético e detestava mentir ou fantasiar a vida para mim. Esse princípio tem sentido, apesar de eu não concordar muito com ele. Nunca acreditei em Papai Noel, coelho da páscoa ou fada dos dentes. Steve dizia que não fazia sentido trabalhar como um condenado o ano todo para dar o melhor para sua filha, e no final entregar os créditos a uma pessoa que nem existia. Aprendi desde cedo que a vida é difícil, injusta e que ela ia querer tirar tudo de bom que você tem, por isso eu teria que lutar com todas as minhas forças contra a maré que só queria me derrubar.Amadureci cedo, não porque eu queria, mas porque era necessário. Tornei-me a provedora do meu lar no final do ensino médio, quando ninguém tinha mais coragem de dar um emprego a minha mãe. No ano anterior havia passado por tantos altos e baixos que imaginei não sobreviver, no entanto, descobri que existia uma força muito maior dentro de mim. Eu era feita de um material muito mais resistente.
Porém, eu não era feita de aço. Quando Tobias deixou-me em algum lugar na Ala Z, ele não tinha devolvido uma mulher apenas cheia de ferimentos. Ele devolveu uma versão covarde, amedrontada e, acima de tudo, quebrada de . Eu não era mais a mesma.
Eu tinha quebrado.
Aquela verdade se tornava real a cada dia que passava. Não conseguia sair de casa e pensar em outras coisas, além do mais, a única pessoa que eu desejava estar perto, eu também desejava que estivesse longe. O meu lar era os braços de , porém a semelhança dele com o irmão era de um nível tão assombrosa que a insanidade passou a dominar por constantes momentos do meu dia. Quando voltava a vida real, olhar para meu destinado em desolação doía. Eu via a culpa em seu rosto e todo e qualquer progresso que tínhamos em nosso relacionamento parecia estar em suspenso.
As memórias se tornaram um grande emaranhado de fios sem sentido, confundindo-me e machucando-me por dentro. A liberdade e intimidade que eu e tínhamos havia se esfarelado, tornando nossas conversas cheio de cuidados e delicadezas que antes não acontecia. Ele tentava não me machucar ou reativar a parte psicológica da minha mente que sentia medo de Tobias e eu fingia que não via seu sofrimento refletido nos seus tiques nervosos.
O mundo para mim era apenas a mansão na Ala A. Eu apenas saia para ir em direção a um consultório médico e passei a ter visitas diárias de uma psicóloga. Ainda não sentia pronta para falar sobre nada e boa parte do tempo chorava como uma criança em sua frente, ou ficava calada.
Eu tinha quebrado.
Constatei aquilo mais uma vez quando assisti o noticiário e descobri que os últimos dias estavam sim sendo um completo inferno para . Havia uma pressão gigantesca em suas costas por causa da liberdade dada de mão beijada a Daniel Fuller e cada vez mais se perguntavam sobre sua verdadeira faceta como membro do judiciário. Ao contrário do que a anterior faria, não conseguir falar palavras de ânimo para o confortar. Nem mesmo uma abraço eu me sentia capaz de lhe dar.
Foi durante uma ataque de histeria meu em que joguei um prato em direção à sua cabeça, acreditando falsamente que ele não era meu , que decidi que não dava mais para ficar ali cutucando a ferida com uma faca toda vez que o via. Conforme o tempo passava me sentia mais sobrecarregada emocionalmente, a sensação de que iria explodir culminando a cada segundo que se passava.
A viagem para Cancún tinha sido cancelada e no dia em que iríamos viajar confessei meu desejo. Já havia se passado três semanas desde que Tobias de sofrimento quando chamei-o para conversar.
entrou na sala de visitas com cautela, os ombros tensos e o terno preto amarrotado. Sentou-se em uma das poltronas ao meu lado e por mais que não estivesse olhando em seu olhos, eu sentia toda a sua atenção em mim.
ー Eu… ー soltei o ar devagar quando percebi que havia perdido toda eloquência que um dia eu possuia ー , querido, eu… ー minha voz embargou-se ー Não posso fazer você sofrer mais. Não acho que morar aqui vá ajudar em alguma coisa.
ー , o que você está tentando me dizer?
ー Acho que a gente deveria se afastar por um tempo até eu voltar a sanidade ー sussurrei sem muita coragem de falar aquilo em tom alto.
O silêncio se tornou denso. Aquela decisão era dificílima, mas eu havia me tornado uma ameaça para o amor da minha vida, dono do meu coração e a única pessoa que eu queria ter ao meu lado. Compreender isso me deixou ainda mais miserável.
ー Eu entendo. Não quero, mas entendo ー respondeu desolado.
Olhei para meu destinado e a fragilidade que ele esboçava foi como um soco no estômago. chorou silenciosamente e eu podia imaginar o que se passava em sua cabeça. Existiam tantos planos e projetos ー tinhamos começado algo tão bonito juntos. Ainda havia tanta coisa para acontecer.
O barulho de alguém entrando na sala me fez pular da poltrona alarmada.
ー Quem está aí?
ー Ninguém, liebe ー falou mostrando-se cansado de tentar me acalmar.
ー Eu ouvi alguma coisa. ー continuei olhando para os lados com atenção.
A sala estava bem iluminada e não havia muitos lugares para se esconder. Olhei para os cantos até ter certeza que estávamos sozinhos.
ー Onde você vai morar? ー indagou ele percebendo que eu não deixaria meu estado vigilante nem tão cedo.
ー No apartamento que comprei mês passado. Vou pedir pra Jean ficar comigo por um tempo ー expliquei meu plano. ー A doutora disse que eu deveria tentar voltar a rotina, mas acho que minhas reuniões com Daisy vão ser apenas pela internet por enquanto.
ー Me parece um bom plano.
Assenti e fiquei em silêncio. Com uma timidez estranha, desviei o olhar antes de perguntar:
ー Posso ligar pra você nesses dias?
riu.
ー Eu ligaria mesmo se você negasse, liebe. levantou-se devagar e me abraçou. Eu sentia muita falta do seu toque e desfrutava muito quando estava bem da cabeça o suficiente para recebê-lo. Fechei os olhos com força enquanto mergulhava no cheiro familiar de .
Esse é , seu destinado. , . O homem que você ama.
Repeti esse mantra em minha mente até ter coragem de beijá-lo. pareceu assustado com meu movimento, mas logo se rendeu a carícia cheia de saudade, dor e consolo ao mesmo tempo. Ele tinha os lábios mais acalentadores e doces que eu havia beijado. Era claro que eu não tinha uma vasta experiência, mas eu sabia que poderia procurar no mundo todo apenas para encontrar meu lar ali, com ele.
ー Você vai me esperar? ー perguntei insegura ainda com os olhos fechados.
ー E existe outra opção? Te amo demais para te deixar sozinha. Eu cometi o erro de não protegê-la uma vez. Não vai acontecer de novo.
Abri os olhos apenas para constatar que ele falava a verdade. Dei um passo para trás quando a memória dos olhos de Tobias também atravessou aquela imagem antes imaculada de .
Balancei a cabeça tentando afugentar aquela horrível sensação e sorri forçado para ele.
Talvez, se eu não estivesse tão perturbada, eu teria visto em seus olhos que ele estava mentindo.
Jean era um companheira ideal, embora fosse curiosa demais às vezes. Minha amiga também não era lá uma pessoa discreta, mas me divertia muito com suas atrapalhadas quando começamos a mobiliar a casa. Apenas contei a ela que havia sido sequestrada, mas os detalhes foram deixados de lado. Até mesmo o fato de que junto comigo estava seu irmão, o qual parecia não ter dito o que havia acontecido. A informação foi o suficiente para que ela ficasse quieta com a presença constante de dois seguranças na nossa porta ou andando pela cozinha. O par se chamavam Claire e Gregory, os dois eram bastante profissionais, porém me faziam companhia quando Jean não estava em casa.
Para Daisy entender meu problema foi difícil, no entanto. Para ela, não fazia sentido não falar com a polícia ou contatar a imprensa, porém minha amiga e sócia preferiu focar no fato de que eu tinha sumido nas últimas semanas e não dado nenhuma notícia. Depois de vários pedidos de desculpas, nós voltamos a falar sobre a saboaria e ela afirmou que já tinha material suficiente para primeira triagem e que em duas semanas estaria com tudo feito. Conversar sobre a empresa e traçar projetos foi o escape que eu precisava para sair do meu ostracismo.
Pouco antes do jantar eu sempre ligava ou mandava mensagem para . Aquilo me lembrava do começo da nossa amizade, quando eu ainda fingia não sentir-me atraída por ele. Contudo, nossos diálogos não eram dinâmicos como antes. Duas semanas longe foi o suficiente para parecer perder o interesse em nossas conversas, mas ele não se esquecia de perguntar ao menos sobre meu bem-estar. Aquela atitude me machucava profundamente, mas eu aceitei porque a culpa era minha também. Eu havia me afastado dele, não o contrário.
Quase um mês depois do sequestro, consegui contar à psicóloga o que tinha acontecido. Lembrava que o lugar onde eu fui levada aparentava ser uma fazenda no meio do nada e tudo era bem limpo. Não parecia um cativeiro que costumamos ver nos filmes. Quando eu fui jogada para dentro do porão, já estava no chão sangrando pelo nariz, com os braços e pernas amarrados e meio desacordado.
ー Se ele tivesse sido inteligente, talvez você não estivesse aqui, ー comentou Tobias com um olhar de desprezo para Grey ー Sabe, eu havia apenas pedido para que ele afastasse de você, mas ele fez o contrário, o imbecil. ー cuspiu em cima dele ー Esses ratos das Alas inferiores realmente se acham super heróis, não é?
Tive meus braços e pernas também presos e fiquei boa parte do tempo encolhida na parede entre a expressão de puro terror por não saber o que ia ser de mim nos próximos minutos; ainda tinha o assombro que sentia em ver que Tobias era uma cópia cuspida e escarrada de . Até mesmo o corte de cabelo era igual, o formato do rosto dispensava detalhes. Se não fosse os músculos que meu destinado não tinha e a malícia presente em todas as atitudes de Tobias, eu teria muito mais dificuldade de diferenciá-los.
Infelizmente, Tobias sabia disso. Aquele monstro fez questão de vestir um terno e fazer um teatro para seus subordinados, imitando deliberadamente . E ele era um ótimo ator. Foi vestido desse jeito que ele gravou vídeos enquanto me batia e eu nunca gritei de tanta dor e desespero como naquela madrugada. Não dormi com medo de morrer nesse meio tempo. O irmão de fazia insinuações de quão fácil seria colocar-se no lugar dele e quão divertido seria. O momento mais assustador, no entanto, foi quando Tobias tocou meu corpo com insinuações sexuais.
ー Você até que não é feia, cunhada. Apesar de que meu irmão já teve melhor gosto para mulheres ー comentou ele ao tocar deliberadamente em minhas coxas.
Naquele momento, eu quis morrer. Morrer antes de passar por um trauma que nunca iria superar. deve ter percebido isso em meu olhar, pois foi quando ele começou a gritar para que se afastasse de mim, que Fried ー como ele o chamava ー era um sádico, doente e que deveria morrer. Por causa dos seus gritos, Tobias lembrou-se de sua existência, o surrando tão forte que pensei que ele havia o matado.
E em nenhum momento daquelas longas horas Tobias hesitou.
Ouvi um ou outro comentário sobre Daniel Fuller entre os capangas, mas nada concreto. Apenas liguei os pontos quando assisti o noticiário no dia seguinte, quando já estava no conforto do meu lar.
Contar tudo que havia passado no sequestro foi um duro golpe no meu emocional, a ponto de me pego chorando nos braços da psicóloga. Não sei se aquilo era ético ou não, mas me senti muito grata em ser amparada pela doutora Miller, que foi extremamente paciente comigo.
Pensei que era um grande passo para a reconstrução do velho eu, porém a notícia que recebi no dia seguinte fez me ficar perdida, sem saber o que fazer. No dia seguinte ao meu confessionário, mandou mensagem avisando que estava voltando à Alemanha e não tinha previsão de volta. Iria tirar umas férias, confessou ele.
Eu havia sido abandonada.
Durante meu relacionamento com , sempre pensei em quão perfeito e intrigante ele era e que eu não o merecia. Depois daquela atitude, comecei a repensar aquilo. Eu o amava ー claro que o amava, mas isso não facilitava as coisas. Eu não fazia ideia do que se passava em sua cabeça desde meu sequestro, porém entendia que algo bem dentro dele mudou. Eu só não sabia se isso era bom ou ruim.
Conhecendo-me como ninguém, mandou outra mensagem que deixou-me confusa e ao mesmo tempo esperançosa.
“Apenas confie em mim, liebe.”
No mês de março quando o frio já estava começando a ser suportável, apareceu no apartamento pedindo permissão para entrar. Jean ficou meio receosa, mas longe de mim ser quem iria afastá-los, ele era seu irmão, afinal, e Grey estava comigo durante as piores horas da minha vida.
Passei boa parte do tempo na varanda sentada e observando a movimentação da rua. Não era tão agitada como na Ala O, onde crianças brincavam a maior parte do tempo, mas as pessoas estavam sempre caminhando por lá e alguns se cumprimentavam, sendo eles velhos conhecidos. Uma velhinha que sempre passava naquele horário desejou-me bom dia e eu sorri para ela. Claro que não era seguro como na Ala A, contudo o bairro era calmo e me dava uma sensação boa de está suspensa no ar.
sentou-se ao meu lado quando Jean foi tomar banho. Ele contou que ela o levaria até a universidade, algo que ele nunca tinha feito antes.
ー Vejo que finalmente está deixando as garras da burguesia lhe prender ー brinquei e ele deu um riso tímido.
ー Ainda não gosto dos colegas dela. São todos uns esnobes. ー dei os ombros.
ー Universitários são assim mesmo, eu acho ー falei e prestei atenção nos lugares de seu rosto que ainda estavam meio amareladas. ー Ainda dói?
ー Um pouco ー replicou ele.
Uma brisa suave invadiu a varanda e ficamos em silêncio absoluto. Apenas uma adolescente passeava com o seu cachorro na rua e o sol dava as caras naquele dia. Depois de algum tempo, se sentiu confortável em falar.
ー Fried… Tobias… Seja lá como aquele desgraçado se chama, era meu chefe na Ala C, o que me contratou para ser jardineiro. ー relaxou os ombros e me encarou ー Você lembra disso? ー assenti ー Pois bem, ele dizia que era um vidente e que eu contei nossa coincidência. Eu falei que éramos destinados e ele confirmou. Eu realmente acreditava nisso. ー soltou um longo suspiro.
ー Hoje me parece bobeira ter acreditado tão avidamente ー comentei como quem não quer nada.
ー Também acho ー ele riu sem humor ー Percebi isso assim que vi Gia pela primeira vez. Nem mesmo lembrei-me de você, do que o falso vidente disse… Lembrei-me de nada. Só queria tê-la.
ー Foi tão avassalador para você como dizem? ー perguntei não sentindo nenhum remorso da nossa história passada.
Era passado, afinal. E passado fica para trás.
ー Sim, foi sim ー disse ele acomodando-se na cadeira. Ele deu um sorriso antes de dizer ー Você fala como ele.
ー Quem?
ー O seu destinado, , não é? Deve ser a convivência. ー respondeu ele ー Inclusive até hoje fico pensando em quão parecido ele é com Tobias e ao mesmo tempo tão diferente. Que coisa de doido.
ー Por que Tobias lhe sequestrou? ー indaguei a pergunta que mais me perturbou nos últimos dias.
Eu entendia o motivo de ter me levado, eu era a isca para liberar Daniel Fuller da prisão, mas quem era naquela equação?
ー Ele queria que eu a afastasse de . Me pagou até quinhentas verdinhas em troca. ー ele sorriu de lado ー Não obedeci, obviamente. Nem mesmo minha mãe me dá ordens, quanto mais um elitista de merda mimado? Só que foi uma escolha burra. Eu não queria ter sido tão babaca contigo, . Principalmente naquela vez no shopping. Gia passou dias sem falar comigo por causa disso também, mas aquele cara tava seguindo a gente! Ele tava lá, inclusive. Quis fazer você me odiar pra que ele percebesse que não ia obedecê-lo, mas o tiro saiu pela culatra. Aquela não foi a primeira vez que levei uma surra. Tentei fugir por um tempo, mas ele parecia a Interpol. Chegou até a ameaçar Gia, mas graças a Deus nada aconteceu com ela.
Pelo seu olhar desolado pude ver que falava a verdade.
ー Me desculpa, . Acho que podia ter evitado tudo isso se tivesse dito o que tava acontecendo logo antes ー murmurou parecendo pronto para chorar, mas Grey era orgulhoso. Dificilmente iria chorar na minha frente.
ー Tudo bem. ー dei uma tapinha sem força em seu ombro. ー O soco que lhe dei foi suficiente para perdoá-lo.
E nós rimos.
ー Como ele descobriu que eu era destinada de antes do praxo? ー indaguei depois de um momento.
ー Todo mundo tem um preço, . Até um vidente ー disse ele ー Eu tinha o meu, mas ele nunca me ofereceu.
Encarei-o por longos segundos até que anui com a cabeça. … Era final de maio quando Daisy conseguiu tirar-me de casa. Claire me acompanhava, porém ela estava vestida como uma pessoa normal, não como uma guarda-costas. Imagine minha surpresa ao chegar no restaurante que ela havia marcado e ter encontrado quase todos os meu amigos da Coral, sendo Mary uma das faltosas.
Gritei animada ao encontrar Franz, Stella e Andrew ー esse último estava muito em noivo e deixou bem claro ao mostrar o anel no dedo. A crise da Coral não havia atingido-os, mas Daisy já havia saído da empresa para dedicar-se 100% a saboaria. Já tínhamos alguns pedidos grandes vindos de primas e tias que conheci no ’s Christmas e que gostaram das amostras que eu enviei. O feedback foi muito bom e a venda dos produtos passou a acontecer gradativamente.
Foi uma das noites mais agradáveis e das mais divertidas também depois de bastante tempo. Claire estava bem reclusa no começo, mas logo se soltou e mostrou-se ser uma pessoa bem interessante. Voltei para casa bêbada pensando em contar todas as atrapalhadas para , porém a euforia se dissipou quando lembrei que ele não estaria em casa me esperando. Naquele horário era bem provável que ele já estivesse dormindo, mas mesmo assim enviei-lhe uma mensagem.
“Sinto sua falta, :(. Quando você vai voltar?”
Felizmente, tive minha resposta minutos depois:
“Sinto saudades também, liebe, mas não sei quando poderei voltar… Está tudo bem por aí?”
Enviei-lhe uma positiva e fui dormir chateada, odiando a injustiça da vida. Eu acreditava que estava bem o suficiente para voltar a estar perto dele, contudo, mais uma vez, tive outro pesadelo com Tobias e e duvidei se algum dia eu pudesse estar perto do amor da minha vida sem o machucar.
Logo minha rotina passou a voltar a normalidade e o projeto para a Saboaria Bardot começou a andar nos trilhos que eu tinha planejado. Tínhamos um site e vários pedidos, sem contar os clientes que estávamos chamando atenção. Tentei aprender a fazer um desses em casa, mas o resultado foi tão catastrófico que finalmente decidi que a produção iria ficar apenas com Daisy. O trabalho dela era complicado por ser braçal, enquanto o meu requeria total atenção na organização de lucros, dos pedidos e do projeto de marketing e propaganda que eu havia proposto. A empresa era formada apenas por mim e ela, então existia muito trabalho a ser feito. No entanto, havia muito tempo desde a última vez que eu fiz algo tão prazeroso. Querendo me aperfeiçoar mais ainda, comecei a titubear se não seria uma boa ideia procurar algum curso de administração de empresas para o próximo semestre.
Diante de tudo isso, as pequenas conquistas que eu conseguia tanto no ambiente profissional quanto emocional e psicológico, o medo ainda pairava sobre mim. Tobias estava lá fora ainda e duvidava que um dia sairia da minha cola. Por outro lado, meu coração diminuía no peito em manter contato com apenas por mensagem ou ligações ー isso quando o fuso horário batia. Só que no fundo eu sabia que meu destinado tramava alguma coisa e decidi confiar, embora sua falta deixava um vazio tão grande em meu peito que às vezes pensei que fosse enlouquecer.
Como era de costume, eu havia me acordado cedo por conta dos pesadelos. Enrolada no edredom, deitei-me no sofá e liguei a TV que havia comprado. Passava Full House e eu pude me deixar relaxar, imaginando como seria bom morar dentro de sitcoms onde tudo sempre acabava bem e que as famílias eram sempre unidas e superavam suas diferenças juntas.
Amanhecia, os raios solares já adentravam pelas portas de vidro da sacada, quando ouvi um coxixo no quarto de Jean. Na noite anterior, eu havia ido deitar mais cedo e não tinha a visto chegar da faculdade como de costume. Escutei risadas e um pedido de silêncio que pareceu vir da minha amiga. A sala era de frente ao corredor dos dois quartos do apartamento e aconteceu de que a porta de Jean estava bem no meu campo de visão, então não foi difícil vê-la sair de ponta de pés junto com um homem alto, cabelos cacheados, atraente e de pele escura. O acompanhante dela deveria estar na faixa dos trinta anos, mas ao ver que eu os peguei no flagra, seu embaraço foi igual a de um adolescente.
— Oi, . — Jean deu um sorriso amarelo e ela corou da cabeça até os pés.
— Eu não vi nada — repliquei voltando à televisão e contendo o sorriso.
O homem apareceu minutos depois com os cabelos úmidos murmurando uma desculpa e escapando do apartamento como se estivesse fugindo da polícia. Jean foi mais covarde e só apareceu mais tarde, quando eu já havia terminado de preparar panquecas para nós duas.
— Então… Quem era aquele cara? — perguntei assim que vi que ela não falaria sem pressão.
— Ah, o Matt? Ele é ninguém. — desconversou ao beber o copo de café que havia preparado.
— Ninguém, é? — levantei a sobrancelha nem um pouco convencida — Pois não deveria ter trazido ele para casa. Não é seguro trazer ninguéns para passar uma noite agarradinha, querida.
Mais uma vez Jean ficou vermelha até a raiz dos cabelos e fechou a cara diante do meu excesso de franqueza.
— Eu não estava agarradinha.
— Longe de mim julgá-la, Jean — murmurei achando divertida a sua atitude.
— Juro que pensei que você ainda estivesse dormindo — disse parecendo culpada. — Você sabe que eu nunca fiz isso, não é? É que está aqui dá uma sensação de liberdade…
— Jean, deixe de besteira. A casa também é sua. Se você quer ter encontros e trazê-los aqui, é só me dizer antes. Não é muito divertido dar de cara com gente desconhecida às quatro da matina no corredor da minha casa.
Ela assentiu ainda envergonhada e começou a cortar a sua comida.
— Então, onde se conheceram?
— No hospital.
Senti uma dor de cabeça de repente, temendo a resposta da pergunta que iria fazer:
— Ele é o médico que você tinha falado? — ela balançou a cabeça concordando — Jeane Helene Grey!
— Somos discretos, ok? — ela se defendeu — Ninguém do hospital sabe!
— Jean, seja sincera comigo. — sentei-me à sua frente e olhei o fundo de seus olhos amendoados — Isso é só uma aventura?
Ela mordeu o lábio, indecisa.
— Não sei. Eu gosto dele, sabe? Muito — sussurrou com um sorriso pequeno o rosto — E ele gosta de mim também.
— Diante da minha experiência pré-destinado, não recomendo nenhum envolvimento antes do fim do prazo — comentei sentindo uma leve impressão que aquilo não ia dar certo. — E se ele tiver uma destinada maluca que quer exterminar todas as exs dele?
Jean riu enquanto balançava a cabeça.
— Matt é viúvo da destinada dele, . Ela morreu há sete anos — respondeu ela — Não lembro de você ter se tornado a ativista do destino. Um dia desse se negava a ter um destinado.
— A questão é que conheço diversas histórias reais e apenas uma ou outra deram certo. Era por isso que eu odiava tanto o sistema, porque ele funcionava. — ao constatar isso, fiz uma careta — Pensando melhor, isso nem faz sentido. Eu só odiava a sensação de não ter controle sobre a minha vida.
— É o que eu sinto agora, ! — exclamou ela parecendo exausta — Eu não quero esperar tanto tempo.
Encarei-a por alguns segundos antes de perguntar:
— Qual é o seu prazo, Jean?
Com hesitação, minha amiga mostrou o relógio, mas eram tantos números que minha cabeça deu um nó. Eu era boa em matemática, porém havia um motivo para existência da calculadora.
Percebendo minha confusão, Jean me respondeu.
— São dezoito anos.
Meu olhar se encheu de compaixão e compreensão. Uma coisa era eu receber esse tempo, alguém que antes pouco se importava com o relógio, outra coisa era alguém cheia de sonhos como minha amiga.
— Eu vou ter trinta e nove, . Se eu quiser ter filhos, como vai ser? Uma gravidez de risco? Vou passar todos esses anos sozinha? — indagou mostrando-se perdida — Eu não quero esperar.
Assenti e levantei-me para abraçá-la, embora no fundo sentisse que era melhor esperar, por mais difícil que fosse. Desejei que o olhar de desolação de Jean sumisse.
— Sem contar que nós apenas estamos juntos, não é como se eu fosse me casar com ele — Grey dei uma risada nervosa após se justificar mais uma vez.
— Só você sabe o que é melhor pra você — respondi com um sorriso.
Apesar de ter sido uma manhã tensa, foi aquele assunto que impulsionou uma conversa de mais de dois minutos com . Apesar de estar na Alemanha para descansar, sua voz sempre soava rouca como de alguém que não dormia bem há muito tempo, algo que estava me deixando preocupada. Ao ouví-lo percebia cada vez mais que era completamente diferente da do seu irmão, embora o tom era igualmente barítono. não possuía maldade velada e inebriava-me, de forma que às vezes nem sabia do que ele falava, apenas desejava ouvi-lo falar qualquer coisa.
— Poxa, entendo a situação dela — comentou ele após meu monólogo — Não se aguentaria esperar por você durante quase duas décadas. É uma tortura.
— A espera valeria a pena, com certeza — respondi com desenvoltura e ri logo depois.
— Cada segundo ia valer a pena — ele disse seriamente. Senti um arrepio correr na minha espinha e, se ele estivesse na minha frente naquele momento, eu o beijaria.
— Amor, quando você volta? — indaguei da forma mais suave que consegui, evitando demonstrar a ansiedade que sentia.
demorou tanto tempo para me responder, que imaginei que a ligação tinha caído.
— …
— Sim? — repliquei ansiosa.
— Eu não vou voltar da Alemanha. 🌏🌍🌎 A sede da Saboaria Bardot era bem pequena, mas tinha um toque de sofisticação esperado de uma saboaria artesanal. Nossa linha de produtos já havia aumentado bastante e possuíamos uma gama de clientes fiéis.
Tínhamos já dois funcionários ajudando Daisy na produção e uma assistente que me ajudava a não perder a cabeça. O que era engraçado, levando em consideração que há pouco tempo atrás eu estava no lugar dela.
Era final do verão quando Philip de Lucca veio me procurar no meu escritório. Ele não tinha mais o olhar afável de antes, mas tão pouco foi hostil. Vê-lo mais uma vez me lembrou a constante ideia que eu tinha que ele era parecido com alguém que eu conhecia, então, percebi que ele tinha as mesmas características da minha mãe. Ainda lembro de ter me mexido inconformada no meu assento por ter pouquíssimos traços de Letícia em meu corpo, enquanto aquele homem era inegavelmente seu parente.
— Acredito que deve saber o motivo da minha vinda — começou ele assim que sentou-se a minha frente.
— Pois saiba que está equivocado. — encostei-me na cadeira giratória. — É algo em relação a Saboaria.
Ele negou com a cabeça.
— Na verdade, a ideia era conhecer sua mãe, . Como eu posso falar com ela? Tem algumas coisas que não deixei claro desde que te conheci — explicou Philip.
— Ela faleceu ano passado, Philip — repliquei com pesar — Do que se trata essa conversa?
— Sinto muito, . A verdade é que somos primos. Sua mãe era minha tia — disse ele e eu não esbocei nenhuma reação — Quando me aproximei de você foi para conhecê-la, você e sua mãe. Uma pena que o destino tenha sido tão maldoso com você.
Tentei entender o que ele queria dizer com o destino e fiquei em silêncio por um momento.
— Vovó está morrendo, . — adicionou ele — É questão de tempo para que o câncer a mate. Primeiro foi vovô e agora… — ele apertou os lábios como se engolisse o choro — Ela queria pedir desculpas a sua mãe e a seu pai. Se reconciliar.
— É muito tarde para isso — repliquei — Os dois morreram, Philip. Só sobrou eu.
— Então, acho que ela vai querer te conhecer mesmo assim — De Lucca deu um sorriso forçado — Afinal, você também está inclusa na herança.
— Eu não a quero — disse automaticamente.
— Oras, por que não? — indagou ele, cético pela minha atitude.
— Talvez porque em todos esses anos ninguém da sua família apareceu para ajudar-nos por causa desse preconceito idiota que vocês tem com a minha Ala? — argumentei — Mamãe morreu aos poucos, Philip, e ninguém me ajudou a comprar remédios ou cuidar dela. Nem mesmo se dignaram a procurar saber do bem estar da minha mãe durante os últimos anos e se não fosse o ataque de consciência da sua avó, talvez nunca iriam procurar saber da sua existência e incluir-me na herança. — fitei seus olhos azuis, aqueles que lembravam tanto Letícia — Eu irei visitá-la, mas não aceitarei seu dinheiro.
Minutos mais tarde, eu estava ainda sentada na cadeira, dessa vez sozinha, segurando o cartão com endereço da minha avó e pensando se eu deveria mesmo ir e se rejeitar a herança era apenas um ato de orgulho impensado.
O encontro que eu tive com Genevieve De Lucca não foi o do mais confortáveis, mas me permiti perdoá-la porque sei que era o que minha mãe desejaria que eu fizesse. Meses depois, quando a matriarca De Lucca faleceu, a briga novelesca pelo dinheiro deles foi tão exaustiva de olhar que fiquei feliz em não estar no meio e com prazer deixei para trás a parte De Lucca do meu sangue. 🌎🌍🌏 O celular tremeu na minha coxa e dei uma rápida olhada quando parei no semáforo. Bufei ao ver mais uma mensagem de e pedi para Clarie, que estava no banco passageiro, segurar.
Ela levantou a sobrancelha loira para mim, mas ficou calada, provavelmente vendo que meu mau humor daquela semana não havia passado. Meu outro guarda-costas estava no banco de trás também quieto. Graças a Deus ele tinha desistido de tentar me dissuadir a não ir pessoalmente pegar minhas coisas.
Desde a última conversa com , onde ele disse que não iria voltar, fiquei dividida entre a tristeza e a raiva. Eu respondia algumas mensagens dele, porém no momento não estava nem um pouco a fim de ouvi-lo agir como o fato dele ficar na Alemanha não fosse atingir nosso relacionamento. Na verdade, àquela altura eu imaginava se ainda existia um relacionamento.
Senti meus olhos marejarem, mas segurei as lágrimas para não fazer uma cena. Como para me desafiar, a rádio passou a tocar All I Want In This Moment do Donald Stark e desliguei com brusquidão. Não o suficiente, eu estava voltando para Ala A, na mansão de , pois a polícia havia enviado a segunda via de vários documentos meus para lá. Iria resolver de vez minhas pendências para mudar de ala.
Entrei na cozinha junto com meus guarda-costas e tentei não prestar atenção em como não tinha mudado em nada. Havia se passado quase seis meses, porém eu ainda poderia ver chegar com seu ar cansado, beijar meu rosto e perguntar como foi meu dia. Aquelas memórias me pertubaram o suficiente para que eu subisse as escadas até meu antigo quarto com pressa.
As coisas ainda estavam no lugar, apesar de parecer bem mais vazio que antes. Abri o closet e encontrei alguns dos meus casacos mais pesados que acabei deixando na mudança. Parei quando encontrei o agasalho que tinha me dado e segurei com força.
Eu sentia muito a sua falta. O casaco não tinha mais seu cheiro e sim o de amaciante e um odor típico de roupa guardada, porém, lá dentro da minha cabeça ainda tinha o cheiro típico oriental, as oscilações entre baunilha e amadeirado que ele sempre usava e me senti uma grande idiota quando comecei a chorar. Por que estávamos passando por aquilo? Por que éramos tão teimosos para lutar de verdade para estarmos juntos?
Desci decidida a comprar passagens e ir à Alemanha encontrá-lo ainda naquele dia, embora não tivesse certeza se meu orçamento cobriria. Eu tinha gastado bastante dinheiro nos últimos meses e a Saboaria ainda não era tão rentável para mim e Daisy. Também havia investido bastante na empresa, porém tinha ideia que esse dinheiro só iria retornar em dois ou cinco anos. Provavelmente eu teria que tirar do dinheiro que eu estava poupando para fazer alguns bons cursos de alguns meses na Universidade da Columbia, mas valeria a pena.
Eu me sentia menos ansiosa diante da ideia, de modo que não percebi a agitação que acontecia na cozinha. Estanquei na porta quando eu vi um homem de terno de costas, os cabelos loiros em um penteado mais jovial e os ombros mais relaxados. Abri a boca para chamar seu nome, surpresa, mas quando ele se virou, minha garganta fechou em pavor.
O homem que estava diante de mim não tinha as maçãs do rosto menos acentuadas, a magreza conhecida ou mesmo os olhos mais escuros. Ele não possuía a bondade velada no rosto ou o sorriso de quem iria fazer uma piada infame; ele não me olharia com veemência, como se eu fosse a única pessoa que importasse no cômodo.
Aquela foi a primeira vez que realmente encontrei as diferenças entre um irmão e outro na superfície da aparência, sem que minha mente me traísse. Engoli o seco quando Tobias veio em minha direção de braços abertos, agindo como se fosse meu destinado, uma falsa emoção em seu semblante.
— Querida? Meu Deus, quanto senti sua falta! — dei um passo para trás, nervosa, calculando o tanto que eu deveria correr para fugir dali.
Tobias perdeu o brilho, estranhando minha atitude, os ombros caídos.
— O que houve? Por que está me olhando assim?
Uma pequena parte lá no fundo do meu cérebro indagou se talvez não fosse mesmo e toda aquela sessões de terapia que passei foram em vão. Fiz uma careta confusa, mas mantive-me longe sem saber o que fazer diante daquela situação.
Então, ele segurou meus ombros. As mãos eram mais pesadas e o sorriso muito largo como o gato de Alice No País das Maravilhas. Tremi de medo quando ele beijou minha testa e me senti incapaz de fazer qualquer movimento de puro terror.
— Não esperava encontrá-la agora. Estava indo a seu apartamento para fazer uma surpresa. Quer sentar? Acho que minha cozinheira deixou alguma coisa comestível guardada. — tagarelou enquanto se afastava em direção ao armário.
Tobias arrumou o terno e pude ver uma arma de relance guardada na cintura.
O que eu ia fazer, meu Deus?
Capítulo 28
“Eu acho que eu estou perdido sem você. Eu sinto-me esmagado sem você. Eu tenho sido forte por tanto tempo que eu nunca imaginei o quanto eu precisava de você.” - Lost Without You, Freya Ridings. 一 Fique longe dela, Tobias.apareceu e um alívio momentâneo me fez soltar um suspiro. Quis correr em sua direção para me proteger, porém, logo percebi que foi cedo demais, tendo em vista que segurava uma arma apontada para seu irmão com as mãos um pouco trêmulas. Meu destinado não estava em seus melhores dias com toda certeza. Ele tinha olheiras acentuadas, uma barba já grande no rosto, os cabelos mais escuros e a pele bem mais pálida que o normal. Se eu não o conhecesse tão bem, talvez não teria reconhecido. Seus olhos pretos possuíam ódio e raiva, os sentimentos que poderiam despertar as ações mais primitivas do homem.
一 O que está fazendo aqui, ? Você não deveria estar na Alemanha? 一 indagou Tobias, confuso, mas não perturbado com a arma apontada para ele 一 Não acredito que vou ter que fazer isso, irmãozinho. 一 Tobias tirou do cós da calça sua pistola e apontou para ele 一 Sabe, vai até facilitar nossa troca de identidade. Sua destinada é bonitinha, também. O que acha de eu aparecer em um daqueles bailes filantrópicos com ela daqui a uma semana?
Segurei a respiração temendo por . Olhei para o bolso da minha calça jeans onde meu celular estava e comecei a calcular quanto tempo eu precisaria para ligar para a polícia. Meu coração martelava no peito e os pensamentos criavam mil e uma possibilidades de sair daquela enrascada.
一 Fique longe dela! 一 repetiu com os dentes trincados e apontando a arma com mais veemência para o irmão.
Tobias riu como se aquilo fosse uma grande piada. Para seu irmão, no entanto, não o era. Meu destinado só refletia extremos, mostrando-se a ponto de fazer uma loucura.
一 Acha mesmo que eu tenho medo de você, ? Todos esses anos você nunca foi capaz de bater nem mesmo em uma mosca 一 zombou ele 一 Mamãe insistia que eu deveria protegê-lo por ser seu irmão mais velho, mas, cara, você sempre foi um covarde 一 em meio ao seu monólogo, ele aproximava-se do meu destinado 一 Aprendeu a atirar há quanto tempo? Duas semanas? Já se acha um profissional?
一 Você não sabe do que está falando. 一 pude ver o suor descer pela sua têmpora e a arma tremer em sua mão. Incômodo, segurou a pistola com as duas palmas.
Queria gritar, porém minha garganta estava fechada de puro medo. Se eu perdesse … Meu Deus, eu não conseguiria seguir em frente. Eu não aguentaria esse golpe.
一 Oh, não sabia que queria impressionar a namoradinha… 一 continuou Tobias.
一 Psiu, .
Procurei com o olhar de onde vinha o som e vi Claire na fresta do corredor me chamando com urgência. Tobias não prestava atenção em mim, então, dei dois passos para trás até ficar na porta. Parei de repente quando o irmão de olhou para mim e meu corpo gelou. Tobias sorriu maliciosamente.
一 Olha só, a fujona… 一 ele voltou a caminhar em minha direção.
一 Não se aproxime dela! 一 gritou .
Tobias virou para meu destinado impaciente e revirando os olhos.
一 Que mania foda de ficar me dando ordens, Prince! Foi isso que vovó te ensinou?
pareceu congelar no chão e a menção da avó junto com o apelido carinhoso que ganhou dos primos, a ira perpassou como uma faca em seu rosto, porém ele suavizou sua expressão de repente.
一 Você tem razão, Tobias. Eu não tenho coragem de matar ninguém, muito menos você. 一 ele baixou a arma e eu olhei para Clarie que gesticulava em desespero para que eu corresse em sua direção, mas minhas pernas havia fincado no chão. 一 Mas ele tem.
Não sei de onde veio o barulho, só sei que no segundo seguinte, Claire pulou em cima de mim para que eu deitasse no chão e o barulho de tiros por todos os lados fez meu pulso acelerar. Encolhida no piso, eu fiz uma prece aflita pedindo para que nenhuma daquelas balas atingissem meu destinado. Vários grunhidos de dor e desespero atravessaram meus ouvidos, mas não demorou muito até que eles cessassem.
Então, a cozinha foi dominada pelo silêncio.
一 ! ! 一 A voz de dominou meus sentidos e me levantei atordoada.
Meus ouvidos apitavam diante do barulho que fui exposta e a violência que fui jogada ao chão, mal pude me equilibrar no meio da confusão.
Meu destinado agarrou meu corpo com violência, apertando com força, como se não acreditasse que eu estava ali diante dele. Tateei com desespero suas costas e tronco procurando algum ferimento, porém apenas sentia a maciez do moletom que ele usava. O calor de seu abraço e o cheiro conhecido me aliviou de maneira que meu pulso desacelerou até eu sentir-me eu mesma de novo. Meus olhos encheram de lágrimas e eu o prendi em meus braços.
一 Eu tive tanto medo, liebe 一 sussurrou ele beijando meus cabelos e apertando-me contra seu peito em demasia.
一 Vai sufocar a mulher desse jeito, .
Ergui a cabeça para ver quem falou aquelas palavras e encontrei um homem repleto de cicatrizes, careca e ameaçador segurando uma metralhadora; acompanhando ele havia mais cinco homens, incluindo meu guarda-costas, segurando armas menos chamativas. Tobias não tivera nem mesmo uma chance. Era uma armadilha.
O sorriso que aquele homem me deu não era nem um pouco convidativo e agarrei-me em instintivamente ao ver que sua língua era dividida em dois, como de uma cobra. Sinistro.
一 Obrigado 一 agradeceu com o tom de voz tão frio que mal pareceu um agradecimento.
O homem balançou a cabeça em assentimento.
一 Eu que agradeço.
Foi então que vi que a cozinha tinha se tornado um campo de guerra. Havia vidros quebrados por todos os lados e sangue. Muito sangue. Jogado no chão e sem vida estava o corpo de Tobias que tinha mais buracos do que eu podia contar, da cabeça aos pés. Ele estava irreconhecível, se não fosse o terno encharcado de sangue. Observar a carne dilacerada deu-me náuseas.
Quando olhei para longe do cadáver, observei Claire rígida no canto do cômodo e sorri para ela.
一 Obrigada por me proteger, Claire.
一 Não tem de quê, senhorita 一 disse formalmente.
一 Você vai limpar essa bagunça, Snake? 一 indagou de forma impessoal.
Os capangas do tal Snake tiraram um saco preto no bolso e cumpriram o corpo de Tobias com uma frieza de quem fazia aquilo periodicamente. Um deles se aproximou de mim enquanto guardava a arma no cinto.
一 Onde encontro água sanitária, desinfetante e tudo mais?
Pisquei, totalmente aturdida por receber aquela pergunta dele.
一 Ah… Eu acho que sei… Eu posso… 一 segurou meu braço com brusquidão quando entendeu que eu iria levá-lo até o local.
一 No corredor, segunda porta a esquerda 一 explicou .
Levantei a sobrancelha questionando sua atitude e ele imitou-me em resposta. Pude ler em seus olhos algo como “você quer mesmo seguir um assassino sozinha pela casa?”.
Logo depois foi até seu escritório junto com Snake e eu e entregou um pacote cheio de papéis para ele. Claro que o segui tentando fazer as mãos pararem de tremer.
一 Está aqui o combinado 一 explicou meu destinado. 一 Não há outra cópia, só esta.
Snake abriu o pacote e leu a papelada com muito cuidado, durante vários minutos, enquanto eu bebia um copo de água que havia trazido da cozinha. Minha mente estava repleta de perguntas não respondidas, mas guardaria-as para quando estivesse à sós com .
一 Foi um prazer negociar com você, .
apenas assentiu e acompanhou o homem até a garagem, lá embaixo. Embora o estrago ainda estivesse evidente, as cápsulas de bala, o vidro e o sangue sumiram após a limpa que os homens haviam feito. Eles eram realmente profissionais na àrea.
Havia carros esportivos e menos chamativos no caminho da garagem e vi Gregory, meu antigo guarda-costas, levar o corpo até a mala de um dos carros.
一 Nosso acordo está de pé, então 一 disse Snake antes de entrar no carro 一 A Shadow não o atinge e nós não fazemos trabalhos para você. Hunter garantirá isso.
Mais uma vez, meu destinado balançou a cabeça em pura frieza. Vi Clarie entrar em um dos carros, antes de piscar para mim, e logo ela foi embora junto com toda aquela gente desconhecida.
Assim que o portão fechou, observei a armadura de gelo que trajava derreter até que ele passou a mostrar seu lado mortal. Eu vi suas pernas fraquejarem e o rosto pronto para cair em prantos quando me disse:
一 Leve-me para longe daqui, liebe. Por favor.
Em concordância, após ele pegar o que precisava para passar uma noite, fomos até meu carro, a quietude nos dominando até finalmente sair da mansão na Ala A. Ainda sentia meus músculos tensos, as cenas que havia presenciado estavam tão claras como água na minha cabeça, mas dirigir com cuidado até meu apartamento.
Durante o trajeto, encostou a cabeça na janela e fechou os olhos. Chovia um pouco do lado de fora e escutei um choro baixo de repente.
一 Estou livre. Mein Gott, estou finalmente livre 一 murmurava ele com ardor.
Acariciei seu joelho compartilhando de seus sentimentos. Tobias, aquele que dominava meus pesadelos e era o fantasma que perseguia o amor da minha vida, estava morto. Nunca imaginei me sentir feliz diante da morte de alguém, mas Tobias merecia depois das maldades que ele fez contra e a mim.
Jean saia de casa quando entrei no apartamento com meu destinado. Ela olhou para nós interessada, mas apenas se despediu, dizendo que estava atrasada.
andou pisando em ovos no apartamento mobiliado, o olhos tentando captar as coisas novas que não tinha visto, antes de finalmente sentar no sofá.
一 Você deve ter muitas perguntas 一 comentou ele coçando o olho com a mão.
Concordei com a cabeça sentando ao seu lado.
一 Posso tomar banho primeiro?
一 Irei cozinhar para você. 一 complementei.
Apesar de estar entre felicidade, raiva, medo e confusão mental, um calor bom esquentou meu peito quando, minutos depois, encontrei-o trocando de roupa e logo sentando na minha cama e segurando um porta-retrato que sempre ficava no meu criado-mudo. Era como se fossemos nós mesmos outra vez, retomando exatamente de onde havíamos parado.
一 Quem te deu essa foto? 一 perguntou quando sentei ao seu lado.
Ele cheirava a sabonete Bardot de baunilha, o único que eu ainda não havia experimentado por não ter coragem. Queria dizer que entreguei aquele sabonete por coincidência a ele, mas a verdade é que não. O produto tinha sido feito para ele, embora eu não admitisse.
一 Sarah enviou pra mim por e-mail. 一 dei os ombros fitando a imagem de nós dois no Natal, beijando minha bochecha enquanto eu sorria como uma criança para a câmera.
estava tão magro quanto da primeira vez que eu o vi. Estiquei minha mão para tocar seu rosto, a barba que crescida e os cabelos um pouco mais escuros. Não eram mais um dourado ouro e sim algo mais parecido como bronze, puxando um pouco para o castanho claro.
一 Seu cabelo tá tão estranho 一 comentei de repente.
一 É a cor natural 一 disse ele.
Fitei-o chocada, a boca aberta em espanto.
— Você não é loiro de verdade?
— Sou sim — defendeu-se — Só que um tipo diferente de loiro. Eu pintava para parecer mais com meu irmão.
— Sério? — ele concordou com a cabeça.
— Uma coisa sem sentido total, não acha? Mas eu o fazia. Sentia que tinha que fazer para que ele não me importunasse — disse um pouco melancólico — Parte da minha família não sabe o que aconteceu com o outro , como eles sempre me chamavam. Alguns acham que nunca saí da Alemanha, mesmo depois que vovó veio para cá pra se tratar das diversas doenças que ela tinha. Eles acham que eu sou o Tobias e só troquei de nome por causa da minha vida pública. A outra sempre se confundiu com nós dois, então para eles pouco importa.
— Poxa — falei, sem ter certeza no que dizer diante daquilo — Isso é uma merda.
— É sim.
Demorei alguns segundos antes de fazer a pergunta que mais me perturbava. Levantei-me com os braços cruzados.
— Por que você não está na Alemanha?
— Talvez porque eu não fui para lá.
— Explique-se. — balancei a mão impaciente para que ele continuasse falando.
deu um sorriso achando tudo muito engraçado, mas teve uma acesso de sanidade quando voltou a seriedade e explicou o que estava acontecendo.
Desde o dia que eu voltei para casa, logo após o sequestro, estava disposto a se vingar do seu irmão. Tobias estava na berlinda para alguns líderes da Shadow, sua maldade estava crescendo de forma que nem mesmo eles conseguiam o controlar. Não era mais pelo dinheiro, como antes. O irmão de estava ficando insano, a ponto de ter estuprado a secretária de um senador para descobrir algumas informações e deixou-a viva, causando um grande problema para manter a Shadow secreta e longe dos holofotes. Além disso, houve uma sucessão de atitudes ruins que colocaram a Shadow em jogo. Porém, ele era muito influente dentro da irmandade para ser morto de qualquer forma. Nisso, ofereceu-se como isca para que a morte de Tobias fosse tão discreta a ponto de ser fonte de um problema pessoal dele, não algo que ocorresse durante o trabalho e Snake foi o responsável por isso. Snake o detestava, assim como Claire, minha guarda-costas, a irmã da destinada de Tobias e que trabalhou para ele durante dois anos. Para a Shadow, a morte de Tobias foi por invadir a casa do irmão e ter sido alvejado pelo pequeno exército por culpa da sua impulsividade, conhecida há muito tempo. Levando em consideração que Tobias estava sendo imprudente em diversos momentos, aquilo fazia muito sentido.
O plano de tomar o lugar de seu irmão era antigo e diversas vezes Tobias tentou negociar pacificamente com para que eles trocassem de lugar de vez em quando. Aparentemente a vida de anonimato não era para ele. Um dos seus homens de confiança havia traído-o em troca de dinheiro e status na Shadow, então, eles estavam esperando para dar o bote. No entanto, Tobias apareceu um dia antes. Não tinha certeza sobre o motivo, mas talvez a mensagem que eu tinha enviado de manhã para Daisy falando sobre o documento era a resposta. Pensar que Tobias estava ali para me machucar me deu um frio repentino, mas logo lembrei que era questão de tempo para que ele virasse apenas pó e cinzas.
— Lembra da vez em que você passou duas semanas sem falar comigo? Quando você o viu no México e pensou ser eu? — balanço a cabeça concordando — Ele começou a pedir coisas que colocariam em cheque minha imparcialidade no judiciário. Coisas como o habeas corpus de Daniel Fuller. — ele soltou um suspiro — Nos últimos anos cobri muita coisa que ele fez e não me sinto orgulhoso por isso. Eu não aguentava mais suas chantagens e o jeito que ele brincava com minha vida como se eu fosse uma marionete. Antes ele ameaçou Heather, depois May e agora você, mas pensei que pudesse lidar com ele dessa vez. Foi em vão. — me olhou com a expressão culpada — Me perdoe por não te proteger quando deveria.
Toquei seu ombro tentando confortá-lo.
— Você não pode me proteger o tempo todo, . Mesmo se não fosse agora, seria depois — argumentei — Tobias nunca iria parar e você viveria subjugado a ele para sempre.
— Deus me perdoe por estar feliz pela morte dele — murmurou ele — Não me sinto nem um pouco arrependido, mesmo tendo sido um dos minutos mais intermináveis da minha vida.
— Hm, ainda não entendi o porquê de ter mentido sobre a Alemanha — comentei como quem não quer nada.
— Seu celular está grampeado — ele respondeu como se tivesse falado que o sol havia se posto. — Para atrair Tobias, eu falei que estava fora, e até mesmo fui ao aeroporto, mas me escondi. — ele fez uma careta — Eu estava na Ala R em um motel barato. Não quero pisar naquele lugar nunca mais na minha vida.
Dei uma risada, embora fosse errado e totalmente inoportuno. Quer dizer, quem não acharia engraçado imaginar um engomadinho como em meio a pobreza?
— Não ria da minha desgraça — reclamou ele.
— Você vai ficar bem, querido. — dei tapinhas em seu ombro — Com certeza foi merecido diante do sofrimento que passei achando que estava me esquecendo.
Ele puxou-me para mais perto, encarando-me.
— Me perdoa por isso, mas foi necessário. Ele precisava acreditar piamente na minha saída. — começou a massagear minhas mãos — Tobias estava planejando isso há um século e foi sozinho acreditando que seu plano era perfeito. Ia se passar por mim até eu aparecer de novo e me matar, já que não conseguiu me localizar. Não tenho nenhuma propriedade na Alemanha com meu nome.
— Está em nome de quem, então?
— Da Courtney, minha antiga babá. Ela cuidava de mim quando vovó estava ocupada — respondeu com um sorriso, mas logo franziu o cenho — Eu não entendi o que você estava fazendo na mansão hoje. O objetivo dos guarda-costas era garantir que você ficasse o mais longe possível da Ala A. Hunter tinha me garantido isso. É bem verdade que estávamos esperando Tobias aparecer no dia seguinte, mas era perigoso de qualquer jeito.
— Fui pegar um documento e inclusive acabei esquecendo-o ele lá. Agora entendo porque eles não queriam que eu fosse — fiz uma careta. — Não quero voltar para buscar. — arregalei os olhos de repente lembrando que eu tinha vários compromissos naquela tarde — Meu Deus, esqueci completamente que tinha que encontrar Daisy hoje! — peguei o celular que estava no bolso apenas para comprovar minha afirmação — Ela deve tá me odiando agora.
— Primeiro terei que tirar o grampo dele — disse pegando o aparelho de minhas mãos.
Fiquei o olhando desmontar meu celular com cuidado, pensando que foi muita ingenuidade minha achar que o aparelho devolvido não estava adulterado.
— O que você fez pra gente comer? — perguntou ao devolver o smartphone.
Arregalei os olhos mais uma vez e corri até a cozinha com medo de ter queimado alguma coisa, mas felizmente tinha desligado o fogão antes de ir falar com meu destinado. Coloquei dois pratos de macarrão com queijo para nós e sentamos na mesa pequena para quatro cadeiras que eu e Jean compramos.
— Esqueci de dizer o quanto você tem bom gosto. — elogiou — Gostei muito da mobília.
— Jean teve participação também. Ela conhece os lugares mais baratos — respondi enquanto via fingir tocar na comida — Você ainda vai voltar para casa?
— Não, não seria capaz de morar naquele lugar nunca mais — murmurou ele parecendo distante — Amanhã irei pedir para empacotar tudo e vou começar a procurar uma nova casa. Provavelmente vou pra algum lugar menos isolado da Ala A.
Assenti mexendo no meu prato.
— Aquele cara, Snake, pegou um pacote estranho. O que tinha ali dentro?
— Evidências da existência da Shadow. — deu uma garfada para evitar meu olhar — Esse era meu plano B caso Tobias não aparecesse: criar um escândalo.
— Mas se você o fizesse eles te matariam, . — franzi o cenho, confusa. — A Shadow não deixaria barato.
— Exatamente.
Fiquei em silêncio digerindo a conotação das suas palavras. Senti-me um tanto chateada com o rumo que meus pensamentos chegaram.
一 Então, você estava disposto a entrar em uma missão suicida por vingança?
Ele assentiu desconfiado.
— Caraca, , você é tão egoísta — minha voz denunciava o desapontamento. — Em algum momento pensou em como eu ficaria se você morresse? Nem mesmo se deu o trabalho de expor seus planos a mim.
— Não pense tão pouco sobre si mesma, — retorquiu — Te conheço o suficiente pra saber que conseguiria sobreviver com isso.
— Babaca. — xinguei e me levantei deixando meu prato para trás — Um completo babaca.
me seguiu até a sala confuso com minha atitude, mas eu não podia suportar o fato dele pensar tão pouco sobre o que eu sentia por ele. Ele não percebia o quanto seria devastador para mim perdê-lo?
— O que eu fiz, meu Deus do céu? — indagou impaciente.
— Fica com esse papo de morte como se sua vida não valesse nada. — cocei as minhas têmporas, exausta — Se põe em perigo por nada e ainda acha que eu lido bem com isso! Mente pra mim pra andar direto pro matadouro!
— Não foi por nada, ! — exclamou ele inconformado — Foi pela sua proteção. Você mesmo sabe que nunca íamos conseguir viver normalmente sabendo que Tobias poderia aparecer a qualquer momento.
— Eu sei, cacete! — repliquei com os olhos marejados — O grande problema é que eu te amo, . E não quero te perder e quase isso aconteceu hoje. Eu nem sabia o que estava acontecendo. E se você morresse? Acha que eu teria ao menos a chance de ver seu corpo? Meu Deus, , eu quero estar perto de você, quero ter minha vida entrelaçada com a sua até meu último suspiro, será que não entende?
Ele segurou meu rosto para que eu fitasse seus olhos escuros. Suas mãos ainda tremiam, embora fosse de forma discreta.
— Eu não sabia que era assim que você se sentia. Me desculpe. — assenti sem saber o que dizer, mas sua fala foi o suficiente para que eu me acalmasse. — Por isso eu fiz o acordo com Snake e Hunter — acrescentou — A Shadow não vai nos importunar nunca mais — explicou ele — Nem eu, nem você, nem nossos filhos, nem nossos netos ou qualquer um que carregar meu sobrenome pelas próximas sete gerações. Nós estamos livres, . Livres.
Eu o abracei, o corpo tremendo com a pressão emocional que eu havia sofrido naquele dia finalmente voltando a superfície.
— Senti tanto medo, . Pensei que ia realmente te perder. — ele beijou minha testa, sua barba arranhava de uma forma boa a minha pele.
— Eu também senti, liebe. Por isso eu entrei antes de Snake dar o sinal. Tive medo do que Tobias poderia fazer com você.
— Meu Deus, como você é estúpido. — ele riu diante do meu xingamento — Você poderia ter morrido, nunca mais faça isso.
— Eu não vou fazer. Prometo. — jurou com um sorriso e rodeou-me com seus braços. — Eu quero que você saiba que eu te amo. Nunca duvide do que eu sinto por você, liebe. É uma das poucas coisas verdadeiras que tive na minha vida e a última coisa que eu desejaria era perdê-la.
Segurei o rosto contente do meu destinado e observei as rugas atrás dos olhos e o rosto marcado pelo cansaço. Não havia mais a sombra de Tobias na minha mente enquanto eu estivesse ali com ele.
— Por favor, me beije — confessei e uma faísca de reconhecimento brilhou nos olhos de antes que ele se aproximasse e tomasse meus lábios.
beijou-me com a ternura de um amante e o ardor de quem sentia saudades por muito tempo. Saboreei seu gosto e o frescor de seus lábios que na realidade eram muito melhores do que meu cérebro recordava. Suas mãos desceram as minhas costas até minha cintura enquanto seus beijos trilhavam um caminho entre meu queixo e o ombro. O pequeno roçar de sua barba dava uma sensação nova de excitação e minhas pernas bambearam; abracei seus ombros para não cair e suspirei em resignação quando suas carícias se tornaram muito mais brandas.
— Preciso te perguntar uma coisa antes de mais nada — disse ele interrompendo seus beijos.
— O quê? — minha voz saiu sussurrada e um tanto mais rouca que o normal. Eu não queria que ele parasse. Há quanto tempo eu não sentia o calor de seus braços? Foram apenas meses, mas sentia que era toda uma vida.
— Posso terminar de comer? Faz meses que não como algo decente.
Soltei uma risada e lágrimas molharam meu rosto. Aquilo era tão .
一 Eu senti sua falta, querido. ... Horas mais tarde, às três da manhã, nós dois nos mantinhamos acordados. O meu cérebro estava muito desperto para dormir. Uma pequena parte da minha mente acreditava que estar deitada na cama com meu destinado era apenas um sonho bom demais para ser verdade e que de manhã eu acordaria desolada. fazia um carinho bom em meu cabelo, quando finalmente disse:
— O vidente que me deu o relógio disse que você ia precisar ser protegida, que eu iria encontrá-la em um momento de desolação. Eu não tinha entendido muito bem e acreditei que ele havia mentido, pois quando a encontrei você parecia muito bem. Hoje sei que não era bem assim. — ele beijou minha testa. — Eu vou protegê-la agora, . Ninguém irá nos alcançar.
— Mas e se a morte de Tobias voltar contra você, ? — inclinei-me um pouco para encará-lo — Não há como alguém ter escutado os tiros? A Shadow vai mesmo ficar longe de nós?
— Eles são homens de palavra, , por mais incrível que possa parecer. Já sobre uma denúncia, sempre há a possibilidade, mas ninguém se mete nas coisas dos outros na Ala A a não ser que não deseje confusão. — ele desceu seu carinho até meu braço — Porém as casas daquele bairro são projetadas tão isoladas por um motivo. Dificilmente você pode saber o que acontece lá dentro. Coisas que aconteceram essa tarde são mais comuns do que você pensa. — demorou alguns segundos pensando e confessou: — Irei me aposentar como juiz-modelo. Ao menos, não serei tão produtivo como agora.
— O que? Por quê? — franzi o cenho — Do que você está falando?
— Não dá pra continuar assim, amor. — ele respirou fundo antes de falar — Sou só um homem. Não aguento mais toda aquela pressão. Irei solicitar mudança para um forúm do interior. Vai ser difícil, mas não é impossível. Casos menores, coisas mais fáceis de lidar. Tem uma que é duas horas daqui, habitada por famílias não-destinados. A renda deles é pequena, tanto que os mais ricos são da Ala C.
— A gente vai se mudar pra lá? — indaguei pensando em como seria morar tão longe e sair da agitação da cidade em que nasci.
— Gosto muito desse ´a gente´. — ele abraçou-me com mais força. — A gente vai morar aqui ainda, porque você tem seus projetos e não quero ser um empecilho na sua vida. Só irei demorar mais do que o normal para chegar em casa.
Puxei o cobertor para cobrir me até o pescoço antes de dizer:
— É um bom plano por hora — comentei fechando os olhos e acomodando-me em seu peito. — Aumenta a temperatura do ar, por favor? Tá muito frio aqui.
— O que eu ganho em troca?
Abri um dos olhos apenas para vê-lo esperar minha resposta. Revirei os olhos, mas dei-lhe um rápido beijo. fez o que eu pedi e desligou a luz do abajur próximo.
— Boa noite, amor.
Meu coração esquentou no peito com aquela frase simples, lembrando-me que eu ainda o tinha ao meu lado e que não havia o perdido.
— Boa noite, . … — Obrigada por ficar pra me ajudar, Rose — agradeci enquanto colocava o último pacote de sabão em pó no armário da lavanderia.
— O prazer é todo meu, querida. — ela suspirou ao enxugar o suor do rosto.
Chamei-a para cozinha e começamos a comer um pacote de biscoitos com suco que eu havia feito para o café da manhã. O nosso novo apartamento era enorme, mas não era páreo ao tamanho da antiga mansão de . Achar um lugar para colocar todas as tranqueiras de foi uma saga, mas no final apenas seus instrumentos musicais vieram em cem por cento. Até mesmo parte de seus ternos foram doados para abrir espaço para meus futuros sapatos e essa era a condição para possuir um piano no meio da sala. No final do expediente, eu chamei Rose — a quem continuava sendo nossa cozinheira — para irmos ao supermercado, pois estávamos precisando de produtos de limpeza. Não precisávamos mais de vários guardas-costas como antes, muito menos uma multidão de empregadas, porém, ainda havia pouquíssimo tempo para dedicar-se a essas tarefas.
— É tão bom ver vocês juntos de novo — comentou Rose — Confesso que fiquei preocupada quando você foi embora, . Nunca vi tão estranho como naqueles dias.
— Felizmente tudo se resolveu. — sorri para ela enquanto tomava cuidado para não dizer mais do que devia — Esse tempo foi o suficiente pra eu refletir que não quero me afastar de nunca mais. Não sei o que o futuro nos aguarda, mas quero passar ao seu lado.
— Se eu não soubesse que vocês foram feitos um para o outro, eu saberia só de ouvir isso. — afirmou ela e me senti meio tímida diante daquelas palavras.
— (...) claro que não, Carlos. — a voz de ressoou no corredor perto do cômodo que estávamos — Casamento é uma das coisas mais sem lógica que existe. Onde já se viu? “Eu amo tanto você que quero que o governo e a igreja saiba disso”?
Carlos deu uma risada e disse algo sobre como aquilo fazia sentido.
Apertei os lábios não gostando de ouvir aquela afirmação dele. Eu achava casamento algo importante, embora nunca tivesse pensado muito no assunto.
— Ah, olá, liebe. — cumprimentou sorrindo para mim.
Dei um sorriso amarelo e um selinho rápido quando ele se aproximou. Depois de uma rápida conversa entre nós quatro, Carlos e Rose se despediram e eu anotei no meu caderno para acrescentar as horas extras no pagamento daquele mês da cozinheira.
— Como foi seu dia? — indagou limpando seu novo óculos com um paninho.
Há algumas semanas, descobriu que precisava de óculos de descanso e para leitura. Ele costumava usar mais quando estava lendo em casa e eu reclamava, pois geralmente meu destinado só lia antes de dormir na cama. O óculos era mais de enfeite do que outra coisa.
— Foi bem e o seu?
— Você não vai acreditar. — falou ele colocando os óculos no rosto — Hoje o juiz de paz ficou doente e eu tive que fazer três casamentos no lugar dele.
— O quê? Mas você não é da área criminalista? — indaguei confusa.
— Eu posso trabalhar em qualquer área, . — explicou — Sou habilitado para fazer qualquer coisa dentro da lei.
— Interessante — comentei — E como foi a experiência?
— Diferente — respondeu apoiando-se na cadeira em que eu sentava — Nunca tinha percebido quão estranho era essa ideia de amar tanto uma pessoa a ponto de envolver o governo. Não faz o menor sentido.
Murmurei uma afirmação e comecei a mexer no celular para evitar não estressar-me com sua conversa. Não fazia sentido eu ficar irritada com isso, fazia? Era infantilidade.
— Vem cá, .
Levantei o olhar atordoada, mas segurei sua mão enquanto ele me levava até a sala de estar. Com o controle, ele abriu a cortina e a vista da cidade à noite quase me tirou o fôlego. Não era primeira vez que a via, porém era sempre muito mágico estar ali observando.
De lá dava para ver dois prédios onde entregavam os prazos iluminados, sendo um todo vermelho e outro todo azul. Deslumbrante.
— Realizar três casamentos me fez pensar em uma coisa que quero fazer há muito tempo — disse .
Virei-me para encará-lo e perguntar o que era, quando o vi ajoelhar-se no chão e automaticamente perdi a habilidade de falar. Do bolso de seu terno azul escuro, tirou uma caixinha pequena e abriu em minha direção.
Pus a mão na boca segurando o grito de felicidade. O sorriso que me deu era maior que sua face, uma alegria tão genuína quanto a minha e as lágrimas vieram sem cerimônia.
— Taya , eu amo tanto você, mas amo tanto, que quero envolver o governo e a igreja com isso. Liebe, quer casar comigo?
— SIM!
Gritei em alto e bom som e pulei em cima dele, fazendo que caíssemos no chão como duas batatas. Entre risos, beijei-o tirando seu fôlego e entregando mais do que recebia. Cada célula do meu ser o amava e queria que ele soubesse disso. Pouco me importei com o anel ou mesmo em parecer sã naquele momento. Eu só queria que ele soubesse que eu o amava e iria amá-lo para sempre.
Epílogo
10 ANOS DEPOIS "Talvez você nem esteja na busca incessante por alguém, e eu não estava perdida para ser encontrada, mas essa é a graça da coisa: se surpreender quando menos se espera." Melissa Akemi, Eu não sou aquilo que você procura. Eu folheava a álbum de casamento com um sorriso mal contido. As imagens de mim e de trajados de noivos levavam-me a uma miríade de memórias que enchia meu coração de amor. Planejar aquele casamento foi um desafio, um processo que foi um grande estresse para mim, mas que valeu muito a pena. Donald Stark foi o grande convidado da festa e fiquei tão animada que nem mesmo a presença dos pais de pode estragar o evento. Foi uma das noites mais felizes da minha vida.Eu tive uma sucessão de melhores noites da minha vida ao longo dos anos. É claro que houve brigas, discussões além da conta e momentos que eu gostaria que sumisse só um pouquinho, mas eu o amava demais para desejar que esse sumiço fosse duradouro. Só bastava ele sorri para mim para que eu desarmar. Infelizmente, nossos filhos possuíam essa mesma artimanha.
O barulho da babá eletrônica me despertou dos meus pensamentos e guardei o álbum na estante do escritório que eu dividia com . Andei com passos rápidos para o quarto do meu caçula, a quem ainda não havia nem mesmo completado um ano. Casey não foi planejado, mas não era menos amado por causa disso. Ainda era um desafio criá-lo, diante da deficiência com que ele havia nascido. Quando descobrimos sua situação, leu tantos artigos científicos e livros sobre autismo de maneira que ele aparentava ser expert no assunto.
Assim que coloquei Casey nos braços e comecei a niná-lo, escutei um grito feminino e C.J., de seis anos, cruzou o quarto do irmão sendo perseguida por Caleb segurando um sabre de luz.
— Nunca mais mexa nas minhas coisas, Chaia! — gritou Caleb, a quem sempre foi muito ciumento com os gibis que tinha.
— Mamãe, o Caleb me bateu! — disse ela choramingando.
— Ela tem que ficar longe do meu quarto, mamãe! — reclamou meu primogênito batendo o pé no chão. — Ela rasgou minha revista da Capitã Marvel. O papai comprou pra mim semana passada!
— Foi culpa sua! Você que puxou da minha mão — gritou ela já chorando — Eu não fiz nada, mamãe. Ele que puxou!
Como se a confusão não fosse suficiente, Casey começou a chorar mais uma vez e eu voltei a balançá-lo no meu colo.
— C.J., você não pode pegar as coisas do seu irmão sem permissão! É feio e errado — a repreendi seriamente.
Caleb, que tinha oito anos, olhou para sua irmã se sentindo vingado quando ela voltou a chorar desconsolada.
— A senhora é uma chata! Por isso eu prefiro o papai.
Bufei, já conhecendo aquele discurso que ela tentava burlar há um tempo. Caleb riu e mostrou a língua para sua irmã, o que me fez virar para ele com cara de poucos amigos.
— E você não pode sair batendo na sua irmã, Caleb. Você tem que protegê-la, não o contrário. Aprenda a dividir suas coisas também. Qual é o problema dela ler seus gibis?
Ele cruzou os braços e fez uma carranca. Seus cabelos escuros caíram em seus olhos azuis, lembrando-me que deveria levá-lo para cortá-los o mais rápido possível. Em meus braços, Casey tinha parado de chorar. Com a cabeleira loira encostada no meu ombro e o dedão na boca, ele parecia um anjinho assistindo a briga de seus irmãos mais velhos.
— Eu não vou dividir minhas coisas, *blöd. — reclamou.
— Blöd é você! — ela respondeu — Mamãe, olha o que ele disse!
— **Pass auf was du sagst! — recriminei — Vocês não conseguem passar um minuto sem brigar? — indaguei cansada.
As férias eram sempre assim e duvidava que seria diferente nos próximos anos. Será que algum dia eles irião parar de brigar?
— A culpa é dele!
— A culpa é dela! — disseram em uníssono.
— Que barulheira é essa? — perguntou , aparecendo dentro do quarto do Casey para alívio de todos nós. Principalmente do meu.
— Papai! — as duas crianças gritaram correndo para os braços do pai, esquecendo que segundos atrás estavam ocupados demais se odiando.
abraçou Caleb, mas pegou C.J. no colo por ser mais miúda. Chaia Jonhson, a filha do meio, tinha os cabelos cor bronze como o pai, os olhos escuros e a manha que eu atribuía ao lado da família. Já Caleb sempre foi mais introspectivo, mas carinhoso conosco. Era muito inteligente também, porém, vindo de uma mãe muito orgulhosa, obrigada, talvez fosse difícil acreditar naquele elogio.
Então, olhou para mim e veio em minha direção. A idade não não tinha alterado sua beleza e cada vez mais eu me via apaixonada por ele.
— Oi, liebe — cumprimentou ele beijando-me rapidamente.
— Eca — disseram nossos filhos em uníssono e Chaia escapuliu dos braços do meu marido.
Eu ri enquanto veio por trás de mim para cumprimentar o mais novo da família.
— Onde está meu caçula favorito, hein? — falou ele quando um Casey sorridente estendeu seus braços no ar para ser abraçado pelo pai.
— Como é que ele é seu caçula favorito se você só tem um caçula, papai? — perguntou Caleb de repente.
— Jesus, e eu achando que "de onde vem os bebês?" seria a pergunta mais difícil de responder — comentou bagunçando o cabelo do filho mais velho com a mão livre.
— De onde vêm os bebês? — Chaia repetiu a frase, curiosa.
— Eu não fiquei de levar vocês pra piscina hoje, não foi? — desconversou — Por que não vão lá pedir pra Steph trocar vocês de roupa?
Com a perspectiva de cair na piscina em um dia ensolarado, minhas duas preciosidades saíram apostando corrida, ao tempo que eu ria da saída de mestre de .
— Não esqueçam o protetor — gritei e ouviu-os responder "ok, mamãe" ao longe.
Sentei no sofá do quarto ao passo que fez o mesmo enquanto brincava com um Casey risonho.
— Pensei que você fosse ficar no trabalho hoje à tarde — comentei lembrando da nossa conversa no café da manhã.
— Ah, eles não precisam de mim lá — disse com despreocupação — Prefiro ficar aqui com vocês impedindo nossos filhos de se matarem.
Sorri sentindo um comichão bom no peito antes de replicar. Já fazia alguns anos que tínhamos mudado para a cidade Allendale onde ele trabalhava, nosso objetivo era criar as crianças longe da correria da cidade grande. A inauguração da fábrica Bardot foi seguida por nossa mudança e aquela cidadela era muito mais confortável de se viver. As Alas não eram segmentadas tão rigorosamente e eu me sentia segura vivendo nos subúrbios. Era uma boa vida.
— Então, eu vou pra Bardot hoje. Vai ser rapidinho. Preciso ver como estão coisas.
acomodou Casey no colo. Ele já possuía os olhos escuros como do pai desde o nascimento e duvidava que fosse mudar algum dia.
— Acho melhor não, . — olhou-o sério — Você tem que relaxar, liebe. A Bardot não vai desabar porque você está há cinco meses longe. Não é como se você tivesse parado de trabalhar. Daisy pode se virar por um tempo.
Baixei a cabeça pensando que a culpa estaria estampada no meu rosto, denunciando-me de ter trabalhado quando deveria estar repousando desde a cirurgia.
O nascimento de Casey foi bem sucedido, mas foi complicado o suficiente para que estivesse com a atenção redobrada em mim e nosso filho mais novo. Mesmo assim, eu não havia parado de trabalhar por um ano, como tinha sido nosso acordo.
— Talvez eu seja uma viciada no trabalho mesmo, mas é que eu sinto falta, sabe? — assentiu com a cabeça, compreendendo e inclinou-se para beijar minha testa.
Casey choramingou mais uma vez e deduzir que sentia fome. Peguei-o nos braços e o posicionei no colo para dar de mamar.
me observou em silêncio enquanto alimentava Casey. Cantarolei uma canção que cantava quando o colocava pra dormir e o vi semicerrar os olhinhos, sentindo-se sonolento.
— O que acha de sairmos essa noite, só eu e você? — disse meu esposo se levantando — Eu pago hora extra pra Steph e ela fica com os meninos hoje à noite.
Sorri para ele antes de concordar.
— Acho que seria bom.
— Ótimo. Então vou ficar com os nossos pirralhos na piscina — avisou assim que chegou a porta.
Observei aquela versão mais velha de , comparando-o com o da foto. Eu amava o que eu me casei e amava mais ainda o homem mais maduro que ele tinha se tornado. Em todos os momentos, ele esteve ao meu lado e compartilhou sua felicidade comigo. Ainda iríamos ter muitos problemas para enfrentar ao longo da vida, mas não iríamos estar sozinhos.
E esse, para mim, era o verdadeiro felizes para sempre.
— Ei. — chamei-o.
pôs a cabeça em uma pequena brecha da porta, atento. Com trinta e nove anos, meu destinado ainda era o homem perfeito para mim.
— Eu amo você.
Ele me olhou por longos segundos antes de responder. O sorriso que ele me deu era enorme, cheio de felicidade.
— Também te amo, liebe. *Idiota.
**Cuidado com o que você diz.
Capítulo extra
Narrado por . "Tudo estava bem do jeito que era: Normal e comum. Então lá estava você... E agora você está me encarando. Ninguém pode escolher por quem se apaixonar ou quando se apaixonar, ou como se apaixonar, ou o porquê. Eu, bem, eu me apaixonei por você e devo esperar. É só uma questão de tempo." - I Will Wait For You by Us the Duo. Aquela era a segunda vez que acordava pela manhã naquele dia. A primeira foi quando o alarme tocou às sete horas e me xinguei por ter esquecido de desligá-lo em meu dia de folga; a segunda foi no momento em que o sol batia no meu rosto, me impedindo de continuar dormindo até meio-dia. Estiquei os dedos procurando meu celular perdido entre os lençóis e conferi a hora: dez horas da manhã.Segundos depois o aparelho começou a tocar. O som conhecido do saxofone de Donald Stark e o nome Ms. Snyder me alertando que não importava se eu estava de férias ou aquele era um dia realmente especial para mim: o dever sempre me chamava.
De saco cheio de ser incomodado quando deveria está focando em outras coisas, não atendi e joguei o celular na cama. Levantei-me preguiçosamente e me arrastei até o banheiro, desvencilhando da bagunça largada no meu carpete.
Demorei trinta minutos ignorando o barulho que meu telefone fixo fazia junto com o celular enquanto fazia minhas necessidades no banheiro – diminuir ainda mais a velocidade quando comecei a me barbear.
Aliás, pequena observação: eu odeio me barbear. É uma das coisas mais chatas e extremamente irritantes de se fazer. Se eu pudesse usaria aquelas barbas gigantescas onde salgadinhos costumam sumir e passar semanas sem serem encontrados.
Enfim.
Apertei os lábios enquanto decidia se vestir formalmente hoje era uma boa escolha, mas não conseguia pensar em nada com o barulho simultâneo que os aparelhos telefônicos fazia em minha casa. Irritado, peguei meu celular entre os lençóis e fiz uma careta ao ver o nome Seth Connor brilhar na tela.
Se Seth estava ligando algo de muito errado aconteceu.
– . – Atendi na minha voz mais calma e neutra possível enquanto olhava para o espelho do closet, me arrependendo de ter colocado tanto gel no cabelo.
– Onde diabos você estava que não podia atender a po... porcaria do telefone? – Seth ralhou irritado querendo soltar uma palavrão, mas provavelmente estava em um lugar que requeria formalidade.
– Não tenho certeza. – respondi, ainda no tom de voz calmo – Talvez curtindo meu dia de folga?
– Daniel foi descoberto! – Falou em um tom urgente. – As gravações dele estão em todos os jornais e só se fala disso em todo o canto. O Fórum está uma zona e todo mundo está esperando por você.
Meu corpo congelou assim que processei o que Connor tinha dito.
– Scheisse! Daniel? O Vereador Daniel? – Perguntei debilmente.
– Não, , meu pai, o fazendeiro que passou a maior parte da vida no Texas. – falou sarcasticamente. – Venha logo!
Peguei um dos meus ternos cinza e me vestir rápido com uma animação que senti falta nos últimos meses. Ás vezes me arrependia de ter aceitado aquele trabalho e deixado de lado a vida agitada de advogado, entretanto, ter aquela instabilidade e desacostumar-se com as regalias incontáveis da Ala A me parece um retrogresso e, como dizem, é para frente que se anda.
Carlos, meu motorista e segurança, já estava pronto quando o contatei. Andei pela casa às pressas cumprimentando os cinco funcionários da limpeza que estavam quase terminando seu trabalho. Desejei ver suas caras ao ver o chiqueiro que deixei em meu quarto, mesmo sabendo que era muita maldade de minha parte.
Desci até o estacionamento e entrei na Mercedes preta que eu costumava usar durante os dias de semana. Carlos me cumprimentou rapidamente e me perguntou o porquê da mudança de planos para aquele dia, então, expliquei que havia acontecido um problema no trabalho. Liguei a pequena TV do banco de trás e, ao ver as imagens da Daniel sendo escoltado da prefeitura da cidade, tentei não esboçar um sorriso de satisfação.
Daniel Fuller era um dos homens mais corruptos que eu conhecia. Desde seu primeiro mandato, as contas que chegavam para serem pagas pelo governo sempre carregavam algo suspeito, mesmo que mínimo e difícil de ser identificado, estavam sempre lá. Entretanto ninguém nunca fora bom o bastante para o encurralar, já que a Ala A era repleta de pessoas cobertas de sujeiras que se prejudicariam com isso – fora assim que fomos criados e morreríamos desse jeito.
Contudo, a situação de Fuller era repugnante. Sentia que ele cagava e esfregava na cara do povo com fotos e mais fotos de suas férias extravagantes embolsadas pelo dinheiro dos impostos.
Nunca entendi como alguém votara nele na última eleição; aquilo era no mínimo vergonhoso. Se eu tivesse o feito nem saía de casa.
Em meu celular pesquisei as últimas notícias e assistir o vídeo da câmera escondida de Daniel negociando com um dos seus assessores; eu já havia visto de tudo– mais do que gostaria – entretanto, não consegui evitar sentir aquela dorzinha estranha no peito e o sangue ferver quando percebi que uma das fontes de seu dinheiro sujo vinha da Clínica São Tomáz, uma das coisas que meu pai mais se orgulhava de ter feito em sua vida.
– Senhor? – Dei um pequeno pulo quando percebi que Carlos batia freneticamente no vidro do carro tentando chamar minha atenção.
– Estou indo. – Respondi abrindo a porta rapidamente.
Quando saí pela garagem do Forúm, pude ver Seth correr em minha direção com Ms. Snyder, minha secretária, em seu encalço. Depois de uma rápida troca de cumprimentos, meu amigo expôs tudo aquilo que a impressa não sabia e Deus me livre que soubesse.
– Estão todos em reunião agora. – Connor explicou – Começou há dez minutos, mas continuam esperando você. Ninguém quer se meter nessa merda, , dessa vez é realmente sério. Ele vai acabar abrindo a boca demais e já viu, né?
– O prefeito quer ter uma conversa com o senhor ainda hoje. – Avisou Snyder.
– Acho que todos já decidiram que eu julgarei esse caso, não é, verdade? – Comentei enquanto entrava no elevador vazio.
– Todos esperam que você julgue o caso, na verdade. – Replicou Seth.
– Marque um encontro para mais tarde com o prefeito, depois do almoço. – Falei para Snyder sem direcionar o olhar para ela. – Acredito que essa reunião demore um pouco.
Olhei rapidamente pelo espelho do elevador para consertar minha gravata torta e, ao ver as portas abertas no andar da sala de reunião, andei calmamente até o cômodo sentindo uma excitação boa pelo meu corpo.
Daniel Fuller, você não perde por esperar.
. Eu podia escutar o barulho das cadeiras sendo arrastadas e os burburinhos pós-reunião pela sala, mas todos aqueles sons pareciam longe a sensação de cansaço que toda aquela conversação me deu. O negócio era que o buraco era muito mais embaixo e a reunião que demoraria, no mínimo, duas horas se prolongou para quatro.
Sentia barriga roncar alto e olhei para os lados tentando ver se alguém percebera, mas estava bastante interessante a conversa sobre como vamos lidar com o caso que fora encaminhado diretamente para a Segunda Instância e caído no meu colo, porque ninguém além do pequeno era burro o suficiente para se meter com aquele tipo de gente.
Infelizmente para eles, juventude não significava burrice, principalmente quando o que acontecera fora esperado por mim por anos.
– Já têm dois canais de TV pedindo uma entrevista com o senhor para essa semana. – Alertou Snyder assim que caminhei para meu escritório – Posso encaixar...
– Obrigado, mas não. Só vai tumultuar a situação, tudo está recente demais. – Respondi e peguei meu celular para rever minha detalhada agenda. – Você sabe o que fazer.
Quando vejo em letras em negrito bem destacadas no topo da lista do que fazer e, meu horroroso dia de folga sinto uma tontura e xingo até a minha quarta geração por ter me esquecido justamente disso; esperava que ao menos naquela situação o destino me ajudaria a lembrar, mas era claro que isso não aconteceria.
– Senhor ? Você está bem? – Perguntou Snyder.
– Sim. Sim. – Disse mecanicamente. - Cancele tudo que tem para hoje. Adie o encontro com o prefeito.
Passei anos imaginando aquele dia – pensei até em viajar para uma das cidades românticas que meus pais visitavam todo ano no mês do aniversário de casamento deles. Planejei o momento em que o meu trabalho não seria mais minha prioridade e que eu entenderia Heather e talvez conseguisse conversar com ela sem sentir um arrependimento terrível por não ter lutado mais, tentado mais.
Aquela era a minha chance de recomeçar e dá uma nova perspectiva para a minha vida; o que diabos eu estava fazendo no Forúm naquele dia? Se minha destinada fosse advogada ou trabalhasse naquele lugar eu provavelmente entraria em um daqueles grupos de rebeldes que queria acabar com o sistema de destinados, prezando pela liberdade de escolha e total escuridão sobre o amor de sua vida.
Por favor, oficial de justiça não. Tudo menos isso.
Olhei para o relógio em meu pulso esquerdo marcando menos de trinta minutos antes do fim do Prazo. Felizmente, Carlos estava em minha cola daquele jeito quase invisível e logo estávamos à caminho de um dos parques mais movimentados da cidade.
Naquela manhã, a minha meta era ir a uma praia há duas horas daqui, mas...
Respirei fundo tentando imaginar se isso influenciaria minha destinada de algum jeito. Minha barriga roncou, avisando que eu não comi nada o dia todo, assim que o carro parou no semáforo, contudo, os minutos pareceram se alongar demais para um simples sinal de parada.
– Estamos em um engarrafamento. – Explicou Carlos em seu sotaque mexicano –Talvez isso demore um pouco.
Meu estômago fez um barulho mais uma vez e me permitir olhar para uma lanchonete ao meu lado da avenida que estávamos, esquecendo por um momento o relógio em meu pulso.
– Será que dá tempo comprar alguma coisa antes que liberem o trânsito? – Perguntei esticando o pescoço para ver o máximo que podia pela película preta do vidro do meu carro.
– Acredito que sim, senhor. – Disse Carlos tirando o cinto pronto para sair.
– Eu vou também. – falei saindo do carro rapidamente.
Antes que eu saísse do carro, entretanto, o braço de Carlos impediu que continuasse.
– Não é seguro. – Disse meu motorista como se explicasse para uma criança.
– Por não ser seguro que eu o contratei. – Respondi em um mesmo tom e apressei os passos em direção a uma lanchonete lotada antes que ele me impedisse mais uma vez.
Meu segurança estava em meu encalço segundos depois, olhando para os lados como se a qualquer momento acontecesse um ataque terrorista, me fazendo revirar os olhos. Desviando dos carros parados, ignorando as buzinas e os xingamentos de motoristas raivosos, cheguei na calçada a salvo como havia previsto. Rapidamente tirei meu terno ao sentir a temperatura mais quente do que o normal naquela tarde.
– Está vendo? Nada aconteceu. – Mostrei para Carlos e abri a porta do estabelecimento.
Uma vibração estranha passou pelo meu pulso esquerdo, mas antes que eu pudesse olhá-lo sou encharcado por um suco vermelho em minha camisa.
Aquilo era perfeito. Além de chegar com a maior cara de workholic, a minha camisa estaria estragada.
Todos os tipos de xingamentos que cruzaram minha mente por alguns segundos sumiram assim que olhei para frente, diretamente para os olhos da mulher que fizera aquela confusão.
Perdia voz em algum lugar desconhecido no instante em que o castanho escuro de suas íris fitou-me. Desviei o olhar para o desenho de seus lábios e senti minha boca secar. Uma força magnética me puxou para seus olhos mais uma vez e meu coração parecia sapatear no peito.
Apenas percebi a queda do relógio quando ouvi o barulho do objeto caindo no chão; acompanhei o olhar daquela mulher e a vi arregalar seus olhos totalmente assustada com o que acabara de acontecer.
Os relógios posicionados de lado, magicamente organizados, só me fazia deduzir que ela era a minha destinada. Não que eu precisasse daquelas coisas para saber; o relógio, a vibração, as dicas do meu pai em relação ao que eu sentiria no momento ou qualquer coisa que envolvesse destino me fizeram ver aquilo. Mesmo se o relógio não vibrasse ou se eu estivesse no carro, assim que eu colocasse meus olhos nela – uma das mulheres mais lindas que eu já vi – eu saberia.
Então, quando ela mirou minha camisa, totalmente esquecida por mim, minha destinada pegou um punhado de guardanapos e tentou em vão limpar sua sujeira.
– Mil perdões, senhor, não foi minha intenção. – sua voz exalava culpa e por algum motivo achei fofa sua atitude.
Eu sorri sentindo minhas mãos suarem de nervosismo.
– Tudo bem. – consigo dizer sem que voz tremesse – Sério, está tudo bem.
Me afastei um pouco indicando que não precisava esfregar mais a minha camisa, afinal, isso provavelmente ia pro lixo; no momento, entretanto, eu não me importava.
– Eu apenas não esperava encontrar minha destinada de um jeito tão... – hesitei – Peculiar.
O que eu sentia era tão bom e tinha vontade enorme de ir até a vidente que me deu o relógio e beijar seus pés; porém, antes, eu queria conhecer minha destinada, saber de onde ela vinha, sobre sua família, sua personalidade. Já conseguia imaginar nossos futuros encontros e meu coração explodia de expectativa e ansiedade; tinha certeza que um sorriso abobalhado estampava minha face.
– Eu tenho namorado. – ela disse encolhendo os ombros como se doesse dizer aquilo.
Eu estava no topo de um prédio fitando o pôr do sol em um dia não muito quente e, de repente, alguém chuta minhas costas e eu caio dentro de um vale escuro e tudo que penso é se verá a luz do sol outra vez. Aquela fora a sensação que tive quando ouvir suas palavras.
O problema é que a dor que sentir parecia pior.
– Preciso ir. – Ela falou e rapidamente correu em direção à porta.
– Você está bem, senhor ? – Carlos perguntou inspecionando-me com o olhar.
Ignorei-o e corri para fora, não entendendo o porquê daquela dor no peito ou a quentura atrás dos olhos, as lágrimas ameaçando aparecer. De longe eu a vi correr em um formal vestido azul marinho em direção à esquina.
– Mas eu nem sei seu nome. – Gritei e tentei sorri.
Ela virou-se, os cabelos batendo em seu rosto por causa do vento e quis mandar o destino para o inferno. Como ele tem coragem de me fazer isso? Logo eu que sempre tento ser uma pessoa melhor a cada dia e prezar pela justiça? Por que eu não tinha chance de apenas uma vez ter um pouco de felicidade? Qual é o problema dessa merda?
– .– Ela respondeu e virou-se com pressa.
Quando desapareceu na esquina, mergulhei meu rosto nas mãos sentindo uma tontura novamente. Não reclamo quando Carlos me empurra em direção ao carro e me joga no banco traseiro. Demora mais cinco minutos até que o trânsito libere e tento não pensar no que tinha acabado de acontecer enquanto olhava para o teto do automóvel.
Não sei em que exato momento comecei a chorar, contudo tenho certeza que aconteceu com o carro ainda em movimento.
Aquilo era uma punição por ter sido mimado em toda a minha vida – só podia ser. O que fazer depois que sua destinada claramente lhe dá um chute na bunda antes mesmo de conhecê-lo? Por que eu estava me sentindo tão miserável? Nem mesmo sabia seu sobrenome ou em que trabalhava – não poderia está sofrendo daquele jeito.
Apenas quando cheguei em casa e Carlos estacionou o carro na garagem, percebi que ele não dissera nada desde do ocorrido. Eu tinha consciência que ele era um homem de experiência e sempre carregava os melhores conselhos, então, fiz minha pergunta.
– O que eu faço?
Meu motorista demorara para responder-me e assumi que ele me ignoraria, fazendo seu trabalho sendo o mais discreto possível. No entanto, quando mencionei abrir a porta, ouvi-o dizer.
– Vai atrás dela. – Falou em tom paternal e de forma calorosa – Você não é o tipo de cara que desiste fácil, , sejamos francos, e desistir de um destinado tão rápido não é uma boa escolha. Sou um exemplo disso, agradeço todos os dias por ter ido atrás da Rose mesmo sabendo que seus pais nunca nos apoiariam sendo destinados ou não.
Balancei a cabeça, assentindo, confiante de que ele me olhava pelo retrovisor, e sair em direção ao meu quarto tentando digerir seu discurso.
Joguei minha camisa suja no chão e seguir até o banheiro, parando em frente da porta ao perceber que não fazia 24 horas e eu já tinha começado a desorganizar o meu quarto. Ás vezes me pergunto como ninguém do exército me expulsou no primeiro mês por ser tão desleixado.
Depois de tomar um rápido banho e comer uma daquelas comidas prontas que esquentei no micro-ondas, fiquei sentado no balcão da minha cozinha encarando as paredes. A ideia de ter um lugar enorme e silencioso onde só meus pensamentos dominavam foi o meu critério para escolher uma casa e não um apartamento, entretanto, naquele momento, a falta de barulho me incomodava. Queria alguém para conversar; alguém que não fosse um dos meus empregados e que não quisesse falar de trabalho o tempo todo.
Fiz o gesto de arma na mão esquerda e fingir atirar na cabeça assim que veio em minha mente como resposta ao meu anseio. Pus as mãos no rosto mais uma vez não entendendo aquela fixação que eu criara em tão pouco tempo.
Respirei fundo e tentando organizar meus pensamentos, chegando a conclusão que:
1ª Espero que a minha vidente queime no inferno por ter me dito aquelas palavras sobre minha destinada. não é nada do que ela disse e não preciso de cinco minutos de conversa para discernir isso.
2ª Como é possível alguém ser tão linda? Scheisse! E aqueles lábios? Como ela conseguiu me fazer sentir todas essas coisas estranhas em um momento tão vergonhoso?
3ª Aquela não seria a última vez que eu a veria e me sentir nervoso apenas em pensar. Eu queria tanto ao menos ser seu amigo. Só espero que não a encontre junto com o namorado. Nem quero imaginar a cena.
Meu dever seria procurar mais informações sobre o caso de Daniel, mas me sentia indisposto demais para fazer qualquer coisa importante. Me estiquei para pegar as contas que chegaram do correio, mas parei de procurar algo para me deixar distraído assim que vi um catálogo da Coral, empresa do meu tio, estampado com os destaques e as novas tendências escolares para o começo das aulas. Boa parte do meu dinheiro era investido na Coral, mas eu não fazia a mínima ideia para onde aquilo ia – meu contador falou que era sim um bom investimento e que 25% do que tinha vinha da empresa e eu confiei porque tentar aprender sobre o mundo dos negócios sempre foi sinônimo de suicídio para mim.
De repente, a ideia de visitar meu tio não era algo ruim. Carter era um dos homens mais interessantes e inteligentes que eu conhecera – desde pequeno, quando seu Prazo acabou e ele conheceu minha tia, o considero como parte da família.
Então, enviei uma mensagem para meu tio para confirmar um encontro e passei o resto do dia no meu sofá assistindo telejornais e fazendo anotações sobre as coisas que lia e via sobre Daniel.
Não sabia o motivo de não sentir mais desconfortável com o evento daquela tarde. Deduzi que fora apenas um sentimento passageiro e que logo me esqueceria da minha destinada e do nosso momento embaraçoso. E eu esperava piamente que estivesse certo.
FIM!
N/a: Comecei a escrever Our Worlds Collide quando eu tinha 15 anos e não conseguia parar de pensar na história 12 ANTES DE VOCÊ da Natashia Kitamura. Embora hoje não seja a minha favorita dela, essa história tem um lugarzinho no meu coração. Depois de pedir sua autorização para usar o universo dos destinados, comecei o processo de idealização de OWC. Houve muita coisa envolvida, mas a que mais quero destacar é a criação do protagonista.
Eu queria criar um relacionamento real, do tipo que as brigas fossem além de ciumes que eu lia nas ficções. Queria um amor mais palpável, daqueles que iam muito além da atração sexual. Queria uma personagem forte e um mocinho que eu pudesse encontrar algum dia. E foi pensando nisso que criei Thomas Hoyer, nosso pp.
Ele foi uma surpresa para mim. Não imaginei que um personagem pudesse se tornar tão independente a ponto de ficar lamentando o fato dele não existir. No início ele era uma das minhas facetas, mas logo pp adquiriu sua própria identidade e gostos peculiares.
Ele, junto com a pp, são a alma de OWC. Talvez você tenha ficado frustrado por não saber muito do que aconteceu aos outros personagens da história, mas a verdade que achei que seria melhor assim. Jean, Bonnie, Daisy e tantos outros têm suas próprias histórias e problemas, e aqui é sobre como uma mulher encontrou a felicidade onde menos procurava.
Peço desculpas se deixei algum furo, pelo tempo que fiquei sem postar, se ofendi alguém de alguma forma. Eu gostei do resultado, apesar de reconhecer que preciso fazer uma (várias) revisões.
Eu agradeço primeiramente a Deus, pois sem ele eu seria apenas uma folha flutuando no ar, sem rumo e sem dono. Um 'obrigada' especial a Natashia Kitamura, a quem me inspirou diretamente a escrever.
Agradeço aos meus "leitores cobaias": Gabriela Dias, Adrielly Almeida e Weslley Pimentel, que leram os trechos e me davam feedback quando eu precisava. Agradeço a Weslley também por ter me cedido um de seus poemas para a história. Agradeço a Annelise Stengel pelas capas e por ter revisado alguns de meus capítulos.
E por último, porém um dos mais importantes: agradeço a você, leitor (a), que acompanhou minha história, que leu toda ela, que se interessou antes ou depois de terminada... Obrigada pelos comentários que me impulsionaram a continuar escrevendo. Agradeço especialmente a Melissa Akila e Ingrid Aline, minhas amigas que apoiaram quando eu quis desistir da história. Vocês são demais.
Octavio Paz uma vez escreveu que "sem o leitor, a obra só existe pela metade". E a verdade é que sem vocês, OWC seria uma metade solitária, inexistente. Muito obrigada por serem essa cara metade da minha história.
Então, tenho uma surpresa para vocês: criei um tumblr repleto de microcontos de Lydia e Thomas. Lá há um epílogo extra e várias outras coisas. O link é segredosdeowc.tumblr.com e a senha para entrar é Berlim. Infelizmente há apenas a versão não-interativa, mas caso alguém desejar ler, será bem-vindo!
Bem, eu não tenho certeza se terá a próxima tão cedo, mas espero que sim. Prometo que avisarei no grupo do Facebook quando eu voltar.
Até mais!