Our Worlds Collide

Maraíza Santos | Revisada por Angel

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Capítulo 1

  Eram cinco horas da manhã quando o som do saxofone de Donald Stak invadiu o meu quarto me fazendo acordar naquele dia. Estiquei a mão a fim de desligar o despertador e sentei na minha cama dando tapinhas no meu rosto tentando despertar. Rapidamente, lembrei-me da minha mãe e olho para o lado; há menos de meio metro está Letícia null encolhida na cama de casal quase caindo no chão e tremendo de frio. Arrumei seu lençol até a sua cabeça e observei o quão jovem ela parecia dormindo.
  Queria ser mais parecida com ela. Minha mãe tem os cabelos loiros acobreados e leves como uma pluma, ela também tem olhos azuis como águas cristalinas que a fizeram parecer tão jovem quanto eu, ainda que esteja no auge de seus 45 anos. Eu era mais parecida com meu pai; olhos e cabelos cor de madeira escura.
  Sabendo que minha mãe iria acordar três horas depois, levantei me arrastando até o pequeno banheiro para tomar banho e me vestir para o trabalho. Quando senti a água quente descer pelo meu corpo suspirei feliz por finalmente null ter concertado aquele chuveiro — ninguém merece acordar de madrugada e tomar banho com água fria.
  Me enrolei com a toalha e fui até o quarto vestir-me. Assim que abri o guarda-roupa me deparei com as camisas sociais que Ivana havia me presenteado mês passado. Sabendo que eu já tinha usado todas nos últimos meses, escolhi uma branca com os botões azuis marinho e uma calça com a mesma cor do botões. Olhei-me para o espelho satisfeita com o que vi; quase todo o meu guarda roupa foi costurado por Ivana e são tão bem feitos que poucas pessoas conseguem perceber que as roupas não foram compradas em lojas. Sou eternamente grata por ter conhecido aquela mulher mesmo que em uma situação difícil da sua vida; quase todo mês ela me faz um traje novo alegando que preciso me vesti bem até encontrar meu destinado.
  Peguei os poucos itens de maquiagem que tenho e me deixei o mais natural possível. Calcei os sapatos de salto alto pretos já com medo de me deixarem na mão porque os comprei por um preço camarada. Fui à cozinha, comi torradas com leite e em menos de meia hora desde que acordei estou pronta para o trabalho.
  Cutuquei minha carteira e deixei cinco dólares em cima da mesa para que Jean compre alguma coisa para minha mãe e saiu de casa às pressas para pegar o ônibus de 5h40.
  As casas da minha rua são pequenas e todos fazem parte da Ala O. Mesmo ainda o céu estando escuro as ruas estão movimentadas; acordar cedo aqui é o mais habitual do que parece. A maioria das pessoas trabalha em empregos simples como faxineiros e entregadores de jornal. O meu emprego como secretária é visto como um prêmio que poucos abaixo da ala M conseguem exercer.
  Assim que cheguei ao ponto, o ônibus apareceu no final da rua. Entrei já com meu vale transporte em mãos e sentei-me já pensando no outro ônibus que preciso pegar e o metrô. Antes das sete eu tinha que chegar.
  

...


  O centro da cidade onde fica o prédio em que trabalho é repleto de prédios espelhados com estruturas arquitetônicas e o edifício da Coral não era diferente. O letreiro da empresa de cadernos tinha um brilho colorido que parecia se mexer conforme você andava. Entrei no prédio, cumprimentei Mary e Dassy, as recepcionistas, “bati ponto” e tratei de ir ao sétimo andar começar meu trabalho.
  Meu chefe era a pior pessoa quando se refere à designer, por isso sua esposa se encarregou de fazer seu escritório com as paredes amadeiradas. No começo, tive a sensação estranha de estar em qualquer lugar menos em um escritório, mas com o tempo me acostumei. Sentei na cadeira giratória, liguei o notebook e arrumei minha mesa. O relógio do pc marcava exatamente 7h10, então, tratei de organizar os e-mails do sr. Carter e checar os recados.
  Fazia dois meses que estava trabalhando para Coral e por pouco eu perdia o emprego. O que sei de informática aprendi na escola e nem sei falar nenhuma outra língua; tudo que conhecia era de um cursinho gratuito oferecido pelo governo para jovens de baixa renda. O único motivo para está ali foi, ironicamente, um jogo de palavras-cruzadas.
  Logo quando eu aprendi a ler, meu pai me dava um desses do jornal. Ele sempre me cobrava como lição de casa alegando que era pro meu próprio bem e a pediatra que íamos toda semana concordava. Nunca entendi isso direito até anos atrás quando minha mãe me confessou que tinha 75% de chance de ter Mal de Alzheimer precoce e eu, como filha dela, tinha 100% de percentual; por isso meu pai se imprensava pra pagar aquele tratamento pra reduzir em 50% minha taxa, ao invés de cuidar da minha mãe.
  Quando testaram nossa rapidez mental na entrevista fui feliz em fazer aquelas palavras-cruzadas que faziam parte do meu dia-a-dia e o emprego ficou comigo! Porque, por mais que não fosse totalmente qualificada, afirmaram que eu era eficiente. Por mais que, claramente, acho que a escolha se veio mais por causa de Carol Carter que, sabe se lá o porquê, gostou de mim.
  Vinte minutos depois Albert Carter, meu chefe, entrou pelo corredor. Ele era um dos diretores executivos da empresa e não tinha menos de 32 anos; mesmo assim já tinha os cabelos pretos tingidos de branco e olhos azuis cansados.
  — Bom dia, null. — Falou educadamente abotoando seu terno.
  — Bom dia, senhor Carter. — Sorri simpaticamente.
  — Meus horários? — Perguntou.
  — Na pasta compartilhada, senhor. — Respondi prontamente.
  — Recados?
  — Nenhum, senhor. — Disse assendindo.
  — Tenho uma reunião daqui a duas horas... — Disse checando o relógio.
  — Uma hora. — O corrigi. Albert sorriu e balançou o dedo para mim.
  — Não sei o que faria sem você, null. — voltou a sua postura séria. — Se alguém ligar anote recados. Apenas passe a ligação para mim se for Carol.
  Concordei com a cabeça e ele se foi pela porta um pouco atrás de mim. Assim que a porta se fechou, senti meu celular vibrar. Eu o havia ganhado dois dias depois de entrar na empresa já que sr. Carter estava eufórico por ter que ligar para minha casa e sempre quem atendia era Jean e não eu. Olhei pra os lados me certificando que ninguém estava vendo e atendi em sussurros ao ver o número de casa e, como sempre, o aviso da chamada a cobrar começou a tocar. Desliguei e com o telefone da empresa retornei a ligação me sentindo um tanto nervosa. Jean apenas ligava quando era realmente necessário.
  — Oi, null. — cumprimentou. — Adolf chegou aqui e está furioso com você.
  Droga. Esqueci completamente do dinheiro do aluguel e a cada dia os juros aumentavam em um preço absurdo. Suspirei.
  — Diga a ele para vir daqui a 15 dias. — Avisei.
  — Espera, vou passar para ele. — e o telefone ficou mudo.
  Bati o pé temerosa e olhei para os lados à procura de alguém para me dedurar, mas, por sorte, os corredores do andar estavam vazios.
  — Ora, ora. — a voz nojenta de Adolf ecoou pelo telefone. — Parece que você está tentando me dá um calote igual ao seu pai, não é, garotinha?
  Senti meu sangue ferver e respirei fundo para não perder o controle.
  — Só tem três meses atrasados e vou pagar assim que poder. — Respondo firme. — Só tenha calma.
  — Calma? Eu quero meu dinheiro! — Ele ralhou.
  — Eu pago tudo com os juros daqui a 15 dias. Só tenha paciência. — Disse com frieza. — Agora, se me der licença, preciso trabalhar. Bom dia, Adolf.
  E desliguei.
  Como eu queria quebrar a cara daquele idiota! Se eu pudesse comprar aquela maldita casa tudo seria mais fácil! Assim que receber meu dinheiro vou pagar tudo antes que eu seja presa por matá-lo.
  Voltei ao trabalho tentando organizar as informações que chegaram da fábrica e enviar os e-mails para os investidores. Quando eu mexia nos arquivos que a equipe de marketing havia me mandado para a pasta compartilhada do Albert, Dassy chegou saltitante na minha mesa.
  Ela sempre usava roupas caras e exalava perfume importado por onde passava, era morena e muito baixinha, por isso sempre usava saltos exageradamente altos para compensar a falta de tamanho. Era sempre tinha uma energia contagiante que nunca vi em mais ninguém e facilmente ficamos amigas.
  — Lyyy, nem te conto! — Ela bateu palminhas e eu revirei os olhos.
  — Pode falar. — Virei-me para o notebook.
  — A vaca da Celine conseguiu 12 anos. — E ela soltou uma gargalhada alta e sonora. — 12 anos pra encontrar o destinado! Sabe o que é isso? Vingança do destino!
  — Você não existe, Dassy! — Falei balançando a cabeça reprovando seu comentário, mas com um sorriso cúmplice nos lábios.
  Qual é? A Celine era mesmo uma vaca!
  — Ai, estou quase subindo nas paredes. Faltam só 3 meses! — Ela apontou para o braço esquerdo que continha o relógio digital com o tempo anti-horário até o encontro do seu destinado.
  — Se eu fosse você nem me animava muito. — Falei. — Vai que seu destinado seja um velho de 40 anos?
  — Vira essa boca pra lá! As videntes nunca erram! — Ela resmungou.
  Dassy era uma das fiéis aquele sistema.
  Aos 21 anos todas as garotas recebiam um relógio com o tempo marcado até encontrarem seu destinado, o amor das suas vidas, enquanto os garotos, aos 20 anos. Antes disso, elas vivem livremente, se divertindo com vários garotos sabendo que seu amor é apenas passageiro. Quando esse tempo — que varia de um a vinte anos — acabava, o relógio vibra e ela olha para frente encontrando seu destinado. Era algo obrigatório, por mais que todo mundo achasse tudo muito romântico, eu ainda tinha um pé atrás com toda aquela história que estou cansada de ouvir desde criança. É bem verdade que aconteceu tudo perfeito com meus pais, mas não acho que isso aplique em todas as pessoas. Não acho que se aplique a mim. Principalmente porque já era difícil manter duas pessoas de barriga cheia em casa, imagina mais uma!
  — Você é muito incrédula, null. — Dassy falou com um careta. — As videntes vão acabar colocando um cara de 40 anos da Ala Z pra você.
  Revirei os olhos.
  — Você sabe que não pode casar com alguém que não seja seu destinado, ao menos se você quiser continuar morando nessa cidade. — Continuou seu discurso.
  — Tem trabalho pra fazer não? — Fiz uma careta debochada cortando seu discurso.
  — Foi bom falar com você, null. A Mary avisou que depois te manda as palavras-cruzadas do jornal. — Ela deu um beijo estalado em minha bochecha e saiu do meu campo de vista.
  Me acomodei na cadeira giratória pronta para voltar ao trabalho, mas Albert passou como um furacão pela minha mesa deixando uma pilha de papéis.
  — Organize tudo e grampei. Tudo deve está em ordem daqui a 15 minutos e nos devidos lugar da sala de reunião. — Disse checando o relógio. — Se apresse, por favor.
  — Sim, senhor. — Peguei o grampeador já pronta para começar quando o telefone começou a tocar. Estiquei minha mão e pus pendurado no meu ouvido e comecei a organizar os papéis.
  — CEO, Coral. Escritório do senhor Albert Carter, bom dia. — Falei fitando meu chefe de relance que continuava ali.
  — null, amada! — Nas primeiras palavras deduzir ser Carol Carter a dona da voz doce — Passe para o Albert, por favor! Estou tentando falar com ele há séculos.
  Albert decidiu atender sua esposa em seu escritório e eu corri para a sala de reuniões com os papéis nas mãos. Assim que cheguei à sala vazia, suspirei exausta. O dia estava apenas começando.

     

...

  

Assim que entrei no refeitório da empresa senti o cheiro bom de carne assada. Depois de me servir, fui direto a mesa onde Dassy estava sentada com outras garotas. A maioria delas já havia almoçado, mas por conta da reunião que se estendeu mais do que o esperado só consegui sair às duas. As meninas me conheciam e conversavam sem problema perto de mim mesmo sendo a mais nova do grupo.
  Quando dei a primeira garfada e senti a carne se despedaçar em minha boca quase choro de emoção. Virei-me pra trás e encontrei a jamaicana que é responsável pela comida olhando para mim com expectativa, mandei um sinal de positivo com meu polegar e beijei as pontas dos dedos indicando o quanto eu havia gostado.
  —... Logo depois nós nos acertamos. Mesmo sendo tímida, ele foi muito paciente comigo. — Comentava Mary com um sorriso besta nos lábios e as meninas acompanharam com um "ah" sonhador. Os olhos da recepcionista brilhavam só de falar de seu esposo e destinado. Ela olhou para mim e tirou os papéis de jornal recortados do bolso e me entregou.
  — Não sei por que você gosta dessas coisas. — Ela comenta mexendo nos cabelos loiros.
  — Amuletos da sorte. — Dou os ombros e como mais uma garfada.
  — Ei, quando você vai pegar seu prazo, null? — Fran pergunta enquanto arruma os seus óculos que escorregam pelo seu nariz.
  — Acredita que não lembro? Recebi a carta do governo, mas não olhei ainda por falta de tempo. — Comentei.
  Era verdade. Parecia que o universo conspirava para que eu não visse a carta, sempre tinha algo de mais urgência para fazer. Como naquele momento onde matar a minha fome era muito mais urgente.
— Ouvi uma história de uma mulher que não acreditava nos prazos e quando encontrou o destinado e ele foi cumprimentá-la, ele morreu atropelado. — Falou Franz.
  — Que trágico! — Dassy comentou chocada. — Se você não tomar cuidado, null, sua história vai ser assim.
  Um calafrio corre pela minha espinha. Só de pensar em matar alguém por causa da minha teimosia senti meu estômago revirar e comecei a comer mais rápido.
  — Ninguém vai morrer por minha causa, Dassy, deixa disso. — Disfarcei.
  Em dez minutos terminei minha comida e voltei a meu andar com a desculpa de que sr. Carter precisava de mim no escritório. Não era a primeira vez que alguém me contava histórias de quem não seguia sua vida com seu destinado ou de quem não acreditava nos prazos — apenas encontrei um casal que era feliz sem serem destinados um ao outro, mas era simplesmente porque antes de se casarem eram viúvos de seus destinados. Por mais que eu gostaria de insistir na minha teimosia, não queria prejudicar ninguém — não mesmo.
  Abri a carta às pressas torcendo para que fosse amanhã ou daqui há uma semana. Pulei a parte democrática da carta e fui logo para o quadrado amarelo com detalhes em vermelho indicando meu horário: 15 de setembro/15:15
  Merda! Era hoje!
  Eu tinha cerca de menos de uma hora para chegar ao Centro de Prazos Femininos. Peguei minha bolsa e joguei tudo que era meu sem cerimônia, bati na porta de Albert sem moderação, desesperada para que ele estivesse ali; por sorte, ele atendeu logo com cara de poucos amigos.
  — O que está acontecendo, null? — Indagou a me ver aflita.
  — Hoje é o dia de pegar meu prazo, senhor, e acabei esquecendo! — Apontei para a carta em minhas mãos e ele arregalou os olhos.
  — Ai meu Deus! — Ele exclamou. — Vá, pode ir! Não precisa voltar mais hoje. Está liberada. — Disse todo enrolado. — Boa sorte, senhorita null!
  Corri desesperada e por causa do meu atraso tudo parecia andar lento: o elevador demorou a subir, demorou a descer e ainda tive que pedi licença para dezenas de pessoas que se aglomeravam no salão principal da Coral. Assim que estava na rua olhei para os lados tentando projetar um atalho. O centro da cidade é enorme e se não tivesse cuidado até mesmo eu que moro aqui desde sempre posso me perder.
  Meus pensamentos foram interrompidos quando duas vozes gritaram "táxi" e seguraram a porta do mesmo veículo. O casal virou-se um para o outro prestes a dizer algo para conseguir o transporte, porém o barulho dos seus braços esquerdos vibrando e caindo no chão foi ouvido. Um sorriso automático nasceu em seus lábios e o homem concedeu para que a mulher entrasse e os dois dividiram o táxi.
  Aquela cena de filme me fez ficar extasiada com a ideia de me apaixonar assim tão fácil. Será que isso poderia acontecer comigo? Nunca tinha presenciado um fim de prazo antes e aquele cenário era um tanto fictício.
  Apressei o passo para a direita e fui correndo em meio aos carros que não paravam de buzinar até o prédio dos prazos femininos. Foi fácil encontrá-lo já que era o único de cor vermelha no mar de prédios espelhados. Assim que subi os três primeiros degraus pisei em falso e quase caí. Trinquei os dentes e massageei meu tornozelo, entretanto, o pior aconteceu quando levantei o pé para voltar a andar; meu salto havia se quebrado.
  Retirei meus sapados e joguei na lixeira mais próxima. Descalça e com nenhum pingo de paciência, entrei no prédio. Meu cabelo colava em minhas costas e testa e eu podia senti o cheiro de suor por todos os lados. Os pais que aguardavam suas filhas me olharam de lado pela minha situação precária, porém corri até o elevador para subir ao décimo segundo andar.   Quando adentrei na sala onde as garotas esperavam para serem chamadas o grande relógio digital marcava exatas três horas e dez minutos. Suspirei exausta e me afundei em um dos bancos agradecendo aos céus por alguém ter inventado o ar-condicionado. Ponderei aqueles cinco minutos que me sobravam entre normalizar minha respiração e fitar as imagens de casais apaixonados e família felizes nas paredes. Tudo me parecia um mundo irreal e impossível, todavia não consegui pensar muito e corri de ponta de pés até a aba 15 quando meu horário foi anunciado no painel.
  Sentei-me na cadeira me deparando com uma placa escura e preta para proteger a identidade das videntes. Dizem que elas estão entre nós, só que não sabemos quem são elas. Ou algo assim.
  — Hm... — ouvi uma risada fraca e alterada e eu tentei arrumar meus cabelos e parecer desinteressada. — Uma puritana, mas por motivos diferentes. Parece que você é uma garota muito obediente a sua mãe.
  Enrijeci e um calafrio atravessou meu corpo.
  Ninguém sabia disso. Como ela poderia saber? Pra todo mundo que me perguntava eu dizia que já tivera um namorado "temporário". Eu apenas continuei puritana por causa de uma promessa que fiz a minha mãe quando ela ainda conseguia lembrar meu nome. Como a vidente descobriu?
  — Está na hora de virá a página de sua vida, criança. — Ela disse e eu franzi a testa sem entender. — Ou melhor, trocar de livro.
  Então, ela se calou. Comecei a balançar a perna de nervosismo — não estava entendendo nada e até agora não havia ganhado meu prazo.
  — Você pode... — cocei a garganta. — Dizer algo sobre o meu destinado?
  Precisava saber com quem eu iria lidar e um pouco de curiosidade me corroía. Fazer uma perguntinha não tinha mal, tinha?
  — Não. — Respondeu secamente. — Seu prazo é 43.800 horas. 5 anos. Pegue seu relógio.
  O barulho apitou e uma gaveta apareceu com um relógio digital preto com meu prazo.
  — Ah! — tentei soar animada, sem muito sucesso, e coloquei o no pulso esquerdo. — Obrigada.
  Me levantei e as garotas que esperavam sua vez me olharam esperando uma reação. Apenas mexi o relógio no pulso incomodada e saí andando em direção ao elevador.
  Assim que apertei o botão para o térreo constatei três coisas:
  1° Sim, as videntes sabem de tudo. São os olhos que tudo ver. Tudo mesmo.
  2° Eu tinha cinco anos para aproveitar minha vida até encontrar alguém que provavelmente vai colocá-la de cabeça pra baixo.
  3° Assim que eu saísse do Centro de Prazos Femininos era minha OBRIGAÇÃO comprar um bom sapato.

     

...

  

Pensei em ir pra casa depois que comprei uma sapatilha simples para mim, mas após está devidamente calçada, decidi ficar um pouco a sós com meus pensamentos. Me sentindo um pouco egoísta, fui andando devagar até a praça mais próxima. Os casais que antes não costumava reparar andavam de mãos dadas se divertindo com a companhia um do outro. Suspirei.
  Talvez aquilo pudesse se aplicar a mim. Se ele for da ala O nós poderíamos dividir as contas e talvez meu destinado tivesse uma casa própria. Mas e se ele também for provedor de sua família? E se ele tiver pessoas que dependesse cem por cento dele?   Pior seria se meu destinado fosse um vagabundo das alas inferiores e quisesse viver as minhas custas. Ou quem sabe alguém das alas maiores e fosse preconceituoso com a vida que tenho levado.
  Fiquei divagando em possibilidades até o fim da tarde quando voltei para casa. Por alguns minutos esqueço sobre o prazo ou o relógio do meu pulso e apenas me concentro nas palavras-cruzadas que Mary havia me dado. Infelizmente, antes de chegar em casa eles acabam e fico sem ter o que pensar por um bom tempo quando estava no último ônibus. Logo, minha barriga ronca e eu vibro para voltar para meu lar e preparar qualquer coisa que me sacie.
  A rua onde eu morava estava repleto de crianças brincando de corda, esperando cada uma pela sua vez. Vi que Jack, o menino carequinha que comandava o grupo, estava em sua vez de pular, então, corri e entrei na brincadeira sem que me chamasse. As risadas das crianças e um coro de vozes infantis gritando "null" foram como uma permissão para mim e, antes que prestasse atenção, eu estava brincando de corda como uma criança novamente.
  —... Senhoras e senhoras ponha mão no chão. — Quando elas cantavam uma das frases, Jack se enganchou e acabou errando.
  — Errou! — Gritei e ri animada.
  Eu adorava as crianças da ala O. A alegria e saúde que elas esmanjavam fazia toda aquela vida ser menos deprimente. Eram como os irmãos que nunca tive e sempre que eu podia dava uns trocados a elas.
  — Tia null, você pode comprar uma rifa? — Uma menininha me pediu. — É pra uma apresentação na escola.
  Queria muito, muito mesmo ajudar. Aquelas carinhas de anjo derretia meu coração, porém eu estava sem nenhum centavo.
  — Deixe para a próxima, está bem? — Baguncei seu cabelo.
  — Você vai sábado, né null, ver a gente? — Jack me perguntou assim que me viu voltar a andar em direção a minha casa.
  — Não perco isso por nada! — Respondi com um sorriso.
  Nossas casas são basicamente coladas e tinha uns pequenos degraus que se dividiam apenas por um muro baixo. Quando dou duas batidas na porta para avisar que cheguei, null aparece na casa ao lado quase me dando um susto.
  null era irmão da Jean e era o que chamamos de "faz tudo". Se alguma coisa quebrasse era só pedi para que ele concertasse por um preço bom e logo estaria resolvido. Ele colocou os cabelos pretos para trás e coçou seus olhos castanhos claros iguais ao da irmã.
  — Obrigada pelo chuveiro. — Agradeço já que não estava em casa quando ele havia feito o serviço. — Quanto você quer pelo trabalho?
  Ele levanta a sobrancelha e sei o que vai acontecer. Eu e null, desde crianças, fazíamos negociações. Ele era muito bom, mas, modéstia a parte, eu era melhor.
  — Cinquenta. — Ele disse.
  — Trinta e cinco. — Cruzo os braços.
  — Quarenta. — Ele responde.
  — Trinta e sete e não pago mais do quê isso. — Finalizo e abro a porta.
  — Você ainda vai me falir, null. — Ele resmungou.
  Entrei em casa e fui direto para a sala. Jean está sentada ao lado da minha mãe falando baixinho e ela tem um olhar vago nos olhos. Suspirei.
  — Oi Jean. Oi mãe. — Cumprimento. Jean responde com um sorriso no rosto e passa a mão em seu cabelo preto arrumando seu rabo de cavalo.
  — Olha que chegou, dona Letícia, sua filha. — Disse animadamente.
  Era isso que ela dizia toda vez que eu chegava em casa nos últimos quatro anos e pensar nisso fez meus olhos marejarem. Me controlei e esperei uma resposta da minha mãe.
  — O-oi. — Disse com dificuldade e sorriu.
  O sorriso da minha mãe é sincero e muito inocente. Porém, ela não foca muito em mim e volta o olhar para algum ponto invisível.
  — Está com fome? — Perguntei jogando a bolsa em algum canto. Ela balançou a cabeça concordando.
  Ajudei a se levantar segurando seu braço esquerdo e sussurrei para Jean.
  — Obrigada por me ajudar. Quando eu receber lhe pago.
  — Sem problemas, null. — Respondeu e então fitou meu pulso com o relógio digital.
  Ela agarrou meu braço livre e fez uma careta animada.
  — Você já ganhou seu prazo! — Ela disse controlando o tom de voz. — Quanto tempo?
  — 5 anos. — Respondi e minha mãe sentou na cadeira da mesa olhando para os lados sem saber exatamente o que fazia ali.
  — Vou cozinhar pra você, ok mãe? — Falei, mas não espero a resposta.
  Jean, que ainda tinha 19 anos e não tinha ganhado seu prazo, parecia extasiada com o relógio do meu pulso e ainda mais maravilhada ao ouvir minha resposta para sua pergunta.
  — null falta apenas 5 anos também! — Ela respondeu e seus olhos brilhavam como pedras preciosas. — Talvez ele seja seu destinado.
  Meu estômago se revirou e aquilo fez meu coração palpitar como uma britadeira. null? Meu destinado? Isso era ridículo!
  — Claro que não. — Respondo incerta. — A chance de ter um destinado que você conheceu antes do prazo é quase nula.
  — Eu sei. — Ela suspirou. — Mas eu queria tanto que você fosse minha cunhada. Tenho medo de null arranjar alguma nojentinha.
  Ri com aquilo e dei tapinhas nas costas dela.
  — Ele gosta de você. — Ela disse se encostando-se no balcão. — Ele ama você. E saber que seus prazos são parecidos vai fazê-lo saltitar de alegria.
  Passei a mão no rosto, cansada daquela história.
  Claro que eu sabia que null gostava mais de mim do que o normal; ele já havia me dito isso. O grande problema é que por mais que ele fosse bonito, gentil e um pouco engraçado, eu não conseguia me ver o fazendo feliz. Ele era uma pessoa muito boa e merecia uma mulher tão boa quanto ele. Eu nunca teria tempo pra me dedicar a alguém, muito menos sabendo que, provavelmente, o amor da vida dele apareceria uma hora ou outra. null era louco o bastante para ir morar nas fazendas perto das cidades por causa de um amor, mas eu não.
  E depois, ele não faz o meu tipo. Não que eu tenha um tipo padronizado, mas ele... Hm... Tá ai uma coisa que não confessaria em voz alta: ele era muito musculoso. E, meu Deus, eu tinha medo de homens assim! Tenho impressão que eles podem me quebrar em pedacinhos.
  — Se for pra ser, será. — Respondo quando coloco água para ferver.
  Contudo, se ele for meu destinado, eu teria vantagem. Talvez até me apaixonasse por ele. Ou se não desse certo, nós decidiríamos em ficar longe um do outro, ele iria encontrar alguém legal e fugir para fora da cidade, enquanto eu receberia indenização do governo. Aquilo era um bom plano.
  — Vou indo, null. Até amanhã. — Jean beija minha bochecha, se despede da minha mãe e vai em direção a sua casa.
  Peguei o frasco de remédio de minha mãe e suspirei ao ver que tinha apenas dois comprimidos. Cocei a têmpora já sentindo dor de cabeça e tudo o que deu errado naquele dia veio à tona. Uma tristeza invadiu meu coração e senti minhas costas ficarem mais pesadas.
  Quis chorar, mas segurei as lágrimas porque mamãe me olhava e altas demonstrações de emoções poderia afetar seu humor. Todavia, meu limite foi estourado quando ela, franzindo o cenho, me perguntou curiosa.
  — Quem é você?

    


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