O que Julia não disse
Escrito por Maraíza Santos | Revisado por Mariana (Até Capítulo 11) & Lelen
I. Do cabelo
Inglaterra, outubro de 1851.
Julia Lewis não disse às irmãs que cortou o cabelo. Ela sentira-se muito melhor quando, em um ato impulsivo, deixara-o na altura do ombro. Imaginara como seria o choque das irmãs com novo corte: Lilian arregalaria os olhos e Millie perguntaria “você cortou o cabelo?” e ela responderia “sim, cortei”.
Não foi o que acontecera. Ninguém comentou do cabelo curto de Julia; na verdade, elas não perceberam que o penteado simples tinha ficado menor. Era um tanto patético a sensação de ser ignorada; o desinteresse das irmãs, no entanto, era a nova realidade da primogênita dos Lewis.
Olhando o reflexo do espelho, Srta. Lewis arrumou o penteado simples na cabeça. Havia dispensado a dama de companhia mais uma vez, pois odiava que tocassem em seu cabelo. Claro, isso a fazia demorar mais do que o aceitável para arrumar-se, mas ela sempre dava conta. Caprichou bastante no pó branco no rosto, disfarçando as olheiras de quem dormira apenas duas horas na última noite. O vestido cinza era um dos que Millie comprara quando ainda estavam em Berkshire Hall.
Suspirou como quem não respirava normalmente nos últimos minutos. Viu o reflexo de si mesma subir e descer devagar. A imagem era quem todos conheciam; e que novas pessoas conheceriam. Era o grande dia. Iria para o teatro como pianista pela primeira vez. Mal podia esperar.
Estava nas nuvens quando saiu do quarto. Se não fosse tão cedo, gritaria pelos corredores de animação. Rodopiaria sem medo de cair nos degraus, abraçaria o mordomo e elogiaria a cozinheira em demasia.
Na sala de jantar estava apenas Lorde Byron, o cunhado dela, lendo o jornal enquanto bebia chá preto. Incapaz de encará-lo, os olhos da mulher fitaram a mesa posta.
― Bom dia, Logan.
O nome dele soou muito intimista. Sentia que desde o último incidente não tinha mais o direito de chamá-lo daquele jeito, ainda que voltar às formalidades era tão estranho quanto.
― Bom dia, Julia ― disse antes de levar a xícara até os lábios mais uma vez.
O silêncio que seguiu-se incomodou. Ela tentou sentar-se e comer, mas a quietude a desconcertou.
― Millie já acordou? O chá fez efeito? ― perguntou de repente.
― Sim, sim. O enjôo passou ― replicou ele enquanto passava as páginas. ― Hoje é o dia em que você irá para o teatro, não é? Seu primeiro dia?
Julia sorriu e assentiu com a cabeça.
― Boa sorte.
― Obrigada, Logan.
E voltaram a comer em silêncio.
Lorde Byron dobrou o jornal com cuidado. Buscou um pouco de pão pela mesa e analisou a cunhada. Estava pálida ou era exagero da maquiagem? Emagreceu ou era impressão dele?
― Quando irá dizer a ela?
Julia ficou tensa. Pela primeira vez depois de muito tempo ousou olhar para Byron.
― Do que está falando? Você não disse a Millie, disse?
― Eu prometi que não diria ― disse ele ―, mas não guardarei o segredo por muito tempo.
A Srta. Lewis deu um longo suspiro. A voz possuía um tom falsamente forte quando ela disse:
― O que aconteceu diz respeito só a mim.
― Claro que não é…
Sentindo que estava perto de vacilar, a mulher levantou-se em solavanco. Engoliu o seco imaginando se iria perder as estribeiras mais uma vez.
― Preciso ir.
O teatro da Companhia Selene era um prédio de esquina na Shelton Street. De arquitetura singela e simples, o lugar possuía paredes brancas e quarenta e cinco pequenas janelas. O formato de trapézio da estrutura pré anunciava o que se esperava no salão principal; por outro lado, também escondia a sofisticação para apenas os que pagavam o ingresso. Destacava-se pelas sete portas de vidro que nunca estavam igualmente abertas e arrancavam uma pequena olhadela de quem passeava pela esquina de West End. Não era, de qualquer maneira, a primeira escolha dos mais nobres ― o que não diminuía na qualidade de suas apresentações.
A Selene não foi o primeiro grupo a quem Julia buscou a oportunidade de emprego; ouviu muitos nãos e risos de deboche de outras companhias na semana em que fugiu de casa. Mas, então, havia naquela construção alguém que deu-lhe uma chance e escutou-a tocar.
Julia deu um longo suspiro antes de entrar pela porta escondida de lado da entrada principal. Quando indagada pelo bilheteiro para onde estava indo, explicou que era a nova musicista da casa. Com desconfiança, o homem permitiu-a entrar.
O frio na barriga aumentou conforme andou pelo pequeno corredor que entrara a um mês atrás. Ainda lembrava da sorte de encontrar o maestro de frente ao teatro enquanto ele fumava. Entrou à caminho da sala de ensaio, o mesmo lugar que antes fizera seu teste para o trabalho.
Os corredores estavam bastante movimentados. Os músicos andavam em passos ligeiros e gritavam uns aos outros que o maestro havia chegado. Eram em grande maioria homens e estavam tão eufóricos que a presença da nova pianista era só mais um elemento ignorado pelo cenário.
De ponta de pés, a Srta. Lewis ergueu-se para encontrar o maestro Michael Howells; na multidão de rostos, ela procurava um homem de cabelos cinza e olhar severo. Ainda lembrava do tom grave e rígido da voz dele ao dizer “mostre-me o que sabe, então”.
Era tudo que Julia precisava ouvir.
A orquestra parecia ter comparecido em peso ― havia desde instrumentos de cordas à de percussão. Os músicos entravam em uma porta onde havia um jovem baixinho que segurava as cópias das partituras; ele, por sua vez, recebia pequenos sacolejos de cada um deles; às vezes pareciam amigáveis, às vezes maldosos. Ele, porém, sorria com submissão e simpatia.
Juntou-se ao grupo de músicos sem ser percebida e caminhou até o salão de ensaio do teatro. Ele era menor que o palco, mas não o suficiente para ser sufocante ― o papel de parede de tom pastel estava repleto dos retratos de antigos e respeitados donos da companhia, também dispunha de espelhos cobertos por lençóis e uma grande janela no sentido poente. As cadeiras estavam acomodadas em um meio-círculo onde os diferentes artistas sentavam; os tímpanos e os bongos, a harpa e os outros instrumentos de corda seguravam as duas pontas. No canto direito estava um piano vertical de cor escura, aquele que Julia tocou As Quatro Estações de Vivaldi como prova de que poderia somar à orquestra. Os olhos ambiciosos, porém, pousaram no bonito piano de cauda que ficava no centro da meia-lua.
A Srta. Lewis, sendo uma mulher interiorana e impressionável, ficou deveras animada ao observar as pessoas encaixando-se em suas posições como de quem fazia aquilo rotineiramente. Imaginou que em breve também faria os mesmo movimentos com naturalidade.
― Ei, senhorita ― chamou um violinista cutucando-a. ― Está perdida?
― Estou procurando o Sr. Howells ― replicou.
O músico tinha uma barba mal cuidada e olhos de quem não queria ter levantado da cama. Respondeu a mulher com um sorriso amarelado e malicioso, o tipo errado de sorriso.
― Ah, sei… Não acha melhor esperar acabar o ensaio? Aqui não é o…
― Raphael, vamos! ― exclamou outro homem, empurrando-o para a frente.
Julia cruzou os braços e afastou-se sem despedir-se daquele homem grosseiro. Com o olhar buscou mais uma vez o maestro. Deveria ter chegado mais cedo do que imaginara? A data estava correta? Será que deveria atravessar o pequeno caos e sentar-se perto do piano?
O barulho das conversas misturavam-se com os sons de diferentes pessoas afinando seus instrumentos. Caótico, era verdade, mas capaz de dar um conforto que Julia não sentia há bastante tempo.
Quando viu o maestro Howells suspirou aliviada. Ensaiou ir em direção a ele, quando observou-o bater a batuta contra uma cadeira.
― Que barulho é esse?! Estão no Borough Market por acaso?
O silêncio foi quase instantâneo: os músicos calaram-se e largaram as mãos de seus instrumentos como se eles pegassem fogo. Julia engoliu o seco, ficando presa no lugar que estava em pé.
― Espero que tenham aproveitado os dias de folga ― disse o maestro, embora seu rosto dissesse justamente o contrário. ― Nossa próxima ópera será um clássico como podem ver: Dido e Aeneas. Já performamos algumas vezes, então não acredito que será um problema...
Um murmúrio de insatisfação correu pelo salão, mas ninguém foi corajoso o suficiente para dizer alguma coisa em voz alta. Julia fitou-os curiosa; não conhecia a peça. Na verdade, nunca tinha visto ópera ao vivo.
― Também quero apresentá-los a pessoa que ficará no lugar do antigo pianista.
A Stra. Lewis tremeu dos pés até a cabeça: êxtase e pânico misturavam-se como um veneno fatal para seus nervos. Não imaginava que em meio a tantos rostos o Sr. Howells havia a visto; agora, estava ele muito perto de apresentá-la para aquelas pessoas desconhecidas e talentosas sem que ela tivesse qualquer preparo.
Aquele era o grande momento, o ápice do dia. Seria reconhecida como uma pianista ― não a mulher que tocava de vez em quando em casas de senhoras ricas, não uma simples professora de piano ― nem mesmo a cunhada fujona de um lorde ou a única filha do Sr. Lewis que foi para escola.
Ela seria uma pianista de ópera. Uma pianista de verdade. Falaria com o público através da música, embora poucos conhecessem seu rosto. Teria o nome listado em um pequeno folheto esquecido, mas ainda assim seria o nome dela.
Julia Lewis, a pianista.
― Recebam Liam Woodhouse, o pianista.
Tudo ficou muito frio de repente. Um zunido sobrepôs a salva de palmas que varreu o ambiente, os pequenos cochichos sufocando a garganta.
Um grande dia, realmente.
II. Do choro
Julia Lewis não disse às irmãs que, desde a morte do pai, não havia um dia em que não afundara-se em lágrimas. Existiam dias melhores que os outros, é claro, e às vezes o pranto era fruto apenas de uma tristeza que a perseguia desde que deixou a tenra idade; a Srta. Lewis era uma mulher esperta, sabia diferenciar o que era choro de alegria, alívio, tristeza e autopiedade. Também conhecia o que era choro de nada, de quem se sentia oca como uma bonita caixa vazia e inútil.
Naquele dia, o grande dia, ela chorou de muitas coisas.
Por sorte, Julia alcançou a carruagem alugada quando os primeiros pingos de chuva começaram a romper o céu. Disse o endereço ao cocheiro com a voz estranhamente grave e fechou-se na caixa. Quase soltou um grito; a mão esquerda, porém, subiu até a altura da boca e ela mordeu o espaço entre o dedão e o fim da mão. Tremeu como de quem tivera um calafrio repentino, embora as lágrimas descessem quentes na face.
A imagem do que aconteceu após a apresentação de Liam Woodhouse como pianista mostrava-se fresca em sua mente como uma tela recém pintada. Os diálogos eram uma maldição inevitável que repetia-se nos ouvidos até que nunca saísse da memória.
― Senhor… ― ela ousara dizer. ― O que…? Pensei que eu?
Sr. Michael Howells era um homem que apenas prestava atenção naquilo que interessava-lhe. Como até ali a mulher era apenas uma peça confusa da sala de ensaio, não era surpresa ele ter apenas a notado quando Julia abriu a boca na frente da orquestra.
― Oh, Srta. Lewis, não a vi ― dissera sem afetação. ― Essa é a Srta. Lewis, senhores. É assistente do Sr. Woodhouse, estará ajudando aos cantores com os ensaios.
― Assistente? ― a palavra soara como um insulto para a mulher. ― Assistente?
― Vamos conversar lá fora, Julia.
A voz de Liam despertara o que havia de mais animalesco nela. Era possível até ver a face pálida transformar-se num tom rosado quando respondera-lhe:
― O que você está fazendo aqui?! Você não tinha desistido de tocar, não era?! ― o tom afiara-se ― Por que você sempre estraga tudo, hein? Me diz! Me diz!
A cena deixara o pianista muito constrangido. A pequena plateia cochichava sem discrição, os gritos de Julia fizeram-na soar como uma desequilibrada. Segurara-lhe o braço com precisão e dissera em sussurro.
― Vamos conversar lá fora.
― Não encosta em mim! ― a mulher puxara o braço, negando-se a ser levada como uma criança.
O corredor onde Liam a levou estava mal iluminado e vazio. Conhecia muito bem aquele prédio; fora ali que começou a receber o reconhecimento como o excelente músico que era. Ali recebera os primeiros louros, os primeiros convites…
A Srta. Lewis respirava e inspirava. Os braços cruzados e o rosto sério retirou o Sr. Woodhouse do devaneio.
― Parece que só assim para você me receber.
Julia olhou para cima com um riso desviado no rosto.
― O que faz aqui, Liam?
― Não faça uma pergunta estúpida dessas.
― Você desistiu da sua carreira! Por que roubou o meu lugar?
Woodhouse, quem tentava ser o mais maduro e paciente da conversa, não evitou dar uma pequena risadinha.
― Seu lugar? Não seja ingênua, você nunca conseguiria um emprego em uma ópera assim, Julia. Você é muito iniciante ainda.
Era de se esperar que passadas tantas semanas desde que a mulher decidira que o seu antigo instrutor não era alguém digno de sua atenção, as palavras dele não atingiriam de maneira nenhuma.
Ele era um homem orgulhoso, insensível e repugnante.
E honesto. Sr. Woodhouse era sempre honesto. Suas palavras a mataram, assim como antes.
Os passos do homem encurtaram a distância. Tão perto assim, a Srta. Lewis poderia encarar os lábios que carregava um doce veneno que ela conhecia muito bem o gosto. Dele vinha o céu e o inferno.
― Já havia falado a um tempo com o Sr. Howells para aceitar a mim junto com minha noiva, a Srta. Lewis. Ele sabia quem era você quando veio aqui. ― a mão dele acariciou-lhe o cabelo. ― Não seja ciumenta, deixarei você tocar algumas músicas no ensaio. Será um bom momento para que nós…
Julia empurrou a mão de Liam de sua cabeça como se ela pegasse fogo. O coração batia de forma anormal no peito; encarou aquele homem que achava amar e odiar na mesma medida. Naquela manhã, porém, descobriu que havia um peso maior em um dos lados da balança.
― Sr. Woodhouse! ― gritou o jovem que antes entregava às partituras aos músicos. ― O maestro o chama.
O pianista arrumou o casaco escuro nos ombros. Deu a conversa por encerrada.
― Vamos, Julia.
― Como soube? ― indagou ela, a voz quebrada pelo choro contido na garganta. ― Como soube que eu viria para aqui?
Liam deu um sorriso de um adulto que sabia muito mais do que a criança que conversava.
― Eu a conheço, Julia. Conheço-a com a palma da minha mão.
Apenas duas pessoas viram Julia chegar na casa londrina do Lorde Byron. Ela esgueirou-se pela entrada de funcionários em silêncio, encarando o chão como de quem não queria ser incomodada. Aqueles pequenos comportamentos introspectivos da Srta. Lewis eram as fofocas menos excitantes entre os criados, porém a que nunca era deixada de lado. Diziam entre sussurros que a fuga de casa era só uma dos sintomas de histeria. Em breve, Julia gritaria pela casa como uma desequilibrada.
As irmãs Lewis, porém, nunca presenciaram momentos como aquele. Julia era muito cautelosa ao demonstrar suas emoções e poucas vezes sentiu a liberdade de estar triste. O antigo lar era dinâmico e sadio ― poucas vezes ouviu algo que não gargalhadas de crianças e broncas cheias de amor e sabedoria. Até mesmo a sua madrasta taciturna, que Deus a tivesse, esboçava alguns sorrisos de vez em quando. A tristeza era uma peça errada do quebra-cabeça dos Lewis.
Julia trancou-se no quarto e tentou recompor-se. Quando desceu para jantar estava plácida como sempre: os olhos carregados de uma emoção misteriosa e os sorrisos pequenos e que demoravam-se para espalhar pelo rosto.
― Como foi seu primeiro dia?
A pergunta veio, é claro. Suas irmãs não eram negligentes ― não totalmente. Escutaram-na quando Julia comentou que era o dia, o grande dia.
Demorou mais segundos do que o esperado para falar. Millicent, quem havia feito a pergunta, indagou de novo:
― July, você me ouviu?
― Sim, sim ― replicou com um sorriso apologético. ― Foi tudo muito introdutório. Ainda não estou familiarizada com o lugar.
― Qual será a primeira peça apresentada? ― perguntou Byron.
― Dido e Aeneas.
― Da Eneida? ― disse Lilian entrando na conversa.
― O que é isso? ― falou Polly.
O jantar tornou-se, então, um pequeno resumo de história clássica para uma criança de seis anos. Polliana era uma menina muito curiosa; conforme perguntava, os olhos dela ficavam maiores e a língua escorregava com mais uma indagação. Toda vez que as mais novas dos Lewis comia na mesa dos adultos era aquela animação; uma conversa cheia de calor e barulho. Byron adorava. Não via a hora de ter aquela mesa repleta de filhos seus e da esposa para compor os diálogos.
Julia também gostava dessas conversas. Elas tinham resquícios de quem ela foi um dia. Estava fugindo para o quarto após comer quando Millicent pediu para que ela tocasse um pouco de piano. “Está cedo”, disse ela, “sinto falta de ouvi-la tocar”.
Era muito fácil criar uma desculpa, afinal, era uma pianista profissional agora. Tinha que acordar cedo no outro dia. Tinha que decidir se ia voltar para o teatro. Era a primogênita das Lewis e podia reivindicar o lugar naquele momento. Não precisava atender o pedido da irmã.
Mas ela sentia falta de tocar, também. O piano de Lorde Byron parecia empoeirado, embora fosse limpo todos os dias pelos criados. O instrumento era quase de Julia oficialmente ― só ela tocava, só ela cuidava, só ela lembrava dele.
Sentou-se com a demora de quem não era digna de fazê-lo. Arriscou algumas notas, tentou lembrar-se de alguma música. Olhou para trás: Millicent a encarava com expectativa. Ainda não era capaz de ver a pequena protuberância da barriga, mas Lilian podia jurar que sim. Aquela criança, ainda não nascida, pouco menos era uma pessoa completa, era o ser mais amado da casa.
As notas agudas preencheram a sala; eram gritos pequenos de felicidade. O espaço de um som do outro era grande. A aparente calmaria transformou a música em algo violento. Julia tremia os lábios.
Então, como se fosse uma ilusão, o som tornou-se o primeiro movimento da Moonlight Sonata de Beethoven. Lilian sussurrava para a irmã mais nova que deveria estar dormindo; Byron, enamorado com a esposa, nem mesmo reparou na rigidez da postura da pianista.
Foi dormir após ouvir os aplausos da família e dar beijos de boa noite nas irmãs.
III. Do sono
Julia não disse que tinha insônia. Em dias normais ela não dormia bem ― era uma vitória quando chegava a cinco horas seguidas de sono ininterrupto. Bastava ter um dia desagradável e toda a noite era perdida, não importava o quão cansada se sentia.
Não importava o quanto dissesse que não dormira, todos esperavam que ela agisse como se estivesse. Mesmo que a cabeça dela estivesse pesada demais para carregar, mesmo que os olhos vermelhos e inchados revelassem o seu estado de espírito, as pessoas esperavam que ela sorrisse e ficasse animada. Então, ela não dizia.
Se alguém perguntasse a Julia Lewis porque ela voltou ao teatro no dia seguinte, a mulher seria inepta de responder. Pensou em diversas justificativas, mas todas elas soavam falsas e infundadas.
Chovia e fazia muito frio, daqueles que doía nos ossos. Enrolou-se com a capa e tentou parar o ranger dos dentes. Dentro do teatro estaria mais aconchegante com toda certeza, mas ela era incapaz de mexer-se. O prédio que era sua salvação tornou-se assustadoramente alto e opressor.
― Ei, senhorita! Não vai entrar?
A voz do jovem ajudante do teatro ergueu-se sobre o barulho da chuva. O olhar desconcertado de Julia foi para ele uma resposta positiva; o homem baixinho segurou-lhe o braço com gentileza para tirá-la da chuva.
― Você tem que tomar cuidado ― aconselhou ele. ― Se pegar um resfriado, o Sr. Wells irá fazê-la vir mesmo se estiver morrendo.
Ela assentiu.
― Qual é o seu nome?
― Ah! ― disse o jovem retirando o gorro da cabeça e fazendo uma breve reverência. ― Sir James, ao seu dispor.
Julia riu da pequena graça.
― Eu sou…
― Srta. Lewis, noiva de Woodhouse ― disse ele. ― Eu sei.
A mulher lambeu os lábios, irritada.
― Não sou noiva de Woodhouse.
Ele levantou as sobrancelhas.
― Vocês brigaram?
― Não, nós nunca…
― James!
O grito feminino soou como um susto para Sir James. Deu um pequeno salto com os olhos esbugalhados e correu para fora, deixando a Srta. Lewis confusa. A falta de educação do jovem foi justificada quando a dona da voz apareceu bastante irritada com as roupas ensopadas.
― Por que diabos essa cidade chove tanto? ― ralhou a mulher retirando a capa de aparência burguesa. Vestia-se incrivelmente bem: de longe era capaz de perceber a qualidade das roupas que trajava. Era, também, muito bonita, de olhos verdes e o cabelo de um castanho avermelhado. Poderia muito bem ser confundida como uma dama, se não fosse o palavreado deselegante e elegância forjada, não natural.
― Se não gosta da cidade é só sair… ― resmungou James segurando a roupa dela como um bom serviçal.
― Seu… ― a mulher fechou o punho e ensaiou um cascudo, no entanto, o tom brando revelava que não estava realmente ultrajada.
A desconhecida, porém, voltou a postura antiga quando viu Julia ali, na porta do teatro.
― Quem é você?
Era só dizer o nome. Apresentar-se. Porém, Julia não tinha mais certeza de como responder a pergunta. No dia anterior, poderia apresentar-se como pianista. Tinha agora que apresentar-se com segunda, assistente, invisível.
― Lewis ― respondeu enfim. ― Srta. Lewis.
― Ela é a noiva de Woodhouse ― complementou James.
― Noiva?! ― disse a mulher com a voz levemente desafinada. ― Aquele estúpido enganou-lhe com o quê?
― Não somos noivos ― afirmou Julia. ― E gostaria de não ser apresentada dessa maneira.
― E como quer se apresentada, Srta. Lewis? ― desafiou a mulher.
A pianista encarou a porta do corredor para dentro do teatro. Quando saíra de casa disse a si mesma que seria a última vez que pisaria naquele lugar e olharia para Liam Woodhouse.
A ideia, porém, lhe deprimia. Lembrou-se da promessa antiga que fez nos dias que fugira de casa. Era sua última tentativa.
― Como assistente do pianista ― respondeu-lhe.
― Ótimo ― disse a mulher com um sorriso misterioso. ― E eu sou a Sra. Daigle e sou a atriz principal da ópera.
Não demorou muito para que Julia fosse convidada a se retirar da sala de ensaios. Sua presença descontextualizada e a aparência miserável incomodava ao Sr. Wells, que tinha coisas muito mais urgentes para resolver do que uma mulher pingando água. Foi de muita conveniência para o maestro que Sr. Martin, diretor da ópera, estivesse interessado em um acompanhamento para os ensaios iniciais de Dido e Aeneas.
O grupo de atores eram exatamente como Julia imaginava: magros como de quem não se alimentava direito e talentosos ao ponto de despertarem inveja e admiração em mesma medida. Estavam em aquecimento vocal quando a mulher foi apresentada como “assistente de Woodhouse”.
A frase passaria despercebida, se não fosse o olhar atrevido da Sra. Daigle.
A Srta. Lewis fora orientada a usar um piano vertical um tanto surrado, de teclas diferentes e uma fina poeira entre elas. Deveria sentir a euforia pela chance de tocar; era a oportunidade de ser útil, mesmo que os louros não fossem direcionados para ela.
Então, a primeira música da peça de Henry Purcell estava aberta diante dela.
Não era difícil, nem absurdamente sofisticada. Ela havia escutado no dia anterior a orquestra tocar ― o piano pouco tinha destaque, aliás. No entanto, lembrou-se de que nunca havia assistido uma ópera na vida; que era uma pianista de jantares particulares, de músicas bobas do interior. Era uma musicista de igreja que, cercada de pessoas simplórias e sem conhecimento musical, nunca era cobrada a fazer mais do que podia.
― Srta. Lewis?! Está me escutando?
Os olhos de todos do palco estavam fitos nela. Até mesmo aqueles que esperavam sua vez sentados nas poltronas vermelhas da plateia encaravam-na como de quem ria de algo muito engraçado.
― Estou sim, senhor.
― Comece a primeira música.
Julia mirou mais uma vez a partitura. Qual era a escala harmônica?
Ela ergueu a mão e apoiou nas teclas. Soltou um longo suspiro.
― É Sol menor.
A pianista voltou o olhar para quem lhe sussurrou. Sra. Daigle estava ao seu lado em uma pose aleatória, como de quem não queria nada. Julia sorriu-lhe.
― Obrigada ― agradeceu antes de começar a tocar.
Era um prelúdio do Dido’s Lament, quando a personagem estava perto da morte. A voz da Sra. Daigle preencheu o teatro como de quem içava-se em direção ao céu. De um soprano impecável, a cantora pouco mudou as expressões do rosto. No entanto, o que saia de sua boca era capaz de emocionar até as mais insensíveis almas. Daigle pôs a mão no peito e deitou a cabeça para trás conforme a música atingia seu clímax. O toque do piano parecia distante comparado a poderosa e trágica afirmação de sua voz que a morte era um convidado bem-vindo.
Julia já havia se sentido como Dido; quis ser Belinda e agarra-lhe a mão.
Teve que enxugar as lágrimas quando a música acabou. Sr. Martin não estava tão impressionado quanto ela, mas não deixou de tecer elogios a sua grande estrela. Explicou para o elenco que tinham apenas um mês para a apresentação de abertura e que não esperava nada além da perfeição.
Sra. Daigle nem mesmo dignou-se a encarar o seu diretor; sentou-se em uma cadeira com a elegância de quem pisava no chão porque era impossível voar. Sorriu, então, para a pianista, antes de gritar para James que precisava beber água.
Julia Lewis, que não conhecia a Sra. Daigle e não fazia ideia de quem ela era ou mesmo qual era o seu primeiro nome, a aceitou como aliada.
…
Era quase fim da tarde e boa parte do elenco do Guiscardo estava soltando pequenas indiretas para ir embora. O diretor, porém, estava muito longe de terminar ― era tão ou mais perfeccionista que Sr. Wells, exigindo que os atores vivessem tão bem os personagens da tragédia que chegassem a esquecer de sua verdadeira origem.
― Srta. Lewis? ― chamou o diretor. ― Do começo!
Se não estivesse concentrado em disparar impropérios da postura do ator que fazia o personagem Marinheiro, talvez o Sr. Martin teria reparado que a assistente de pianista errava com muita frequência o tempo da música. Embora iniciava de maneira simplória, a canção era complexificava a cada folhear dos papéis.
Julia disfarçava a mortificação quando isso acontecia; no entanto, todos estavam absortos demais em suas atividades para digna-lhe alguma crítica. No fundo, eles sabiam que não seria ela, em sua infinita insegurança e falta de habilidade, que os guiaria pela apresentação.
Julia passou boa parte do tempo encarando o vazio salão principal do teatro. Nunca esteve no lado da plateia, muito menos estaria no lado do palco. Observar a pequena dinâmica dos bastidores a fez sentisse minúscula e muito ingênua; como pode imaginar que chegaria ali como pianista? Ela, sem nenhuma experiência anterior? Ela, que apenas tocou uma balada genérica para o maestro?
Ela vestia a capa e preparava-se para ir embora quando escutou:
― Está confundindo o tempo da música.
Liam Woodhouse nunca a cumprimentava, nem mesmo quando estava cega demais para enxergar os defeitos dele. Era um homem alto, cujo rosto comum demorava-se um pouco para ser lembrado. Ainda não entendia como envolveu-se tão profundamente com ele.
― Estava me escutando tocar?
― Reconheço seu estilo de longe ― replicou ele, dando um passo em sua direção.
As mãos do pianista foram em direção as fitas da capa dela, amarrando-as firmemente.
― Não pude conversar com você hoje.
O corpo de Julia ficou rígido com o breve roçar dos dedos dele em sua pele. Não sabia se era de repulsa ou de lembrança; há muito tempo não conseguia separar o homem que conheceu em Berkshire Hall com o professor carrasco de Londres. Os dois possuíam os mesmos olhos castanhos, o mesmo talento e o tom murmurante. Ambos também despertavam uma gostosa e apavorante ansiedade.
― Não faço questão ― replicou Julia. ― Não acredito que tenhamos algo para conversar.
Deu-lhe um leve tapa ― não forte, era apenas um aviso para afastar-se. Para Liam, no entanto, foi como uma pressão violenta em seu peito.
― Precisamos conversar.
― Não somos nada, Woodhouse ― afirmou a mulher. ― Foi uma aventura, um momento de loucura e coisa da juventude.
― Você não é uma criança. ― argumentou Liam ― Não tem idade para colocar a culpa na inexperiência.
Srta. Lewis inclinou o queixo para cima; o movimento era um dejavu para o pianista, que recebera tal resposta toda vez que a contrariava.
― Minha reputação está na lama. Preferi perdê-la ao casar-me com você. Preciso de mais alguma coisa para mostrar-lhe que não o quero?
Woodhouse passou a mão pelo cabelo em frustração. Para ele, Julia não fazia o menor sentido: em uma noite ela estava pronta para entregar-se a ele e antes do raiar da manhã fugira de casa. A mais velha dos Lewis prefiria acabar com o futuro das irmãs mais novas em nome de uma negativa sem propósito.
― Eu agradeço por ter ajudado-me a entrar na Selene, mas não receberá mais do que minhas palavras como forma de gratidão. ― explicitou ela, os olhos faiscando com uma raiva de origem desconhecida. ― Deixe-me ir agora.
Precisou apenas de um pequeno espaço para que Julia fugisse em direção à porta. Fez uma pequena prece quando chegou na calçada do teatro ― pediu para que os céus mandassem uma carruagem alugada o mais rápido possível.
O transporte que apareceu estava ocupado. Ironicamente parou na frente do prédio e carregava um cavaleiro de roupas finas e postura aristocrática. Era uma sombra bem desconexa com a movimentação da rua, levando em consideração que o horário de abertura dos teatros ainda eram mais tardes.
― Senhor, irá esperar o cavalheiro sair? Preciso ir para Main Street ― indagou Srta. Lewis ao cocheiro.
O cavalheiro ergueu o chapéu com a ponta da bengala ― a voz conhecida fez-o hesitar antes de andar pela porta.
― Ora, veja se não é a grande Srta. Lewis!
Julia franziu o cenho ao encarar o homem; era muito familiar, mas não o suficiente para que se lembrasse de imediato. Seria ele um dos amigos de Byron que o visitou na época que não eram totais párias sociais?
― Atenda a senhorita e leve-na para o seu destino ― orientou o cavalheiro.
Julia agradeceu sem mostrar a educada resistência propícia para momentos como esse. O desejo de voltar para casa era maior do que as boas maneiras.
Quando entrou na carruagem viu o cavalheiro esbarra-se na Sra. Daigle. Houve uma pequena troca de olhares hostis até que os dois caminhassem para dentro do Teatro.
― Senhor, posso perguntar de quem se tratava? ― indagou Julia ao cocheiro.
― Ah ― disse o homem antes de chicotear os cavalos. ― Esse é o Lorde Stanton.
IV. Da paixão
Julia não disse a ninguém que estava apaixonada por Liam Woodhouse. Na verdade, até a ida para Londres, ela poderia jurar que não passava de um flerte passageiro de duas pessoas entediadas.
Conheceram-se em um jantar de Berkshire Hall. Na época, os problemas reais e palpáveis eram a crescente antipatia da família Berkshire pela esposa de Lorde Byron e a dificuldade dela e das irmãs de encaixar-se em um ambiente tão requintado. As pequenas doses de hostilidade direcionadas a Millicent matava também a Julia: como irmã mais velha deveria protegê-la. Sua incapacidade de fazê-lhe tornou-a negligente e frustrada.
A visita de Liam Woodhouse, filho do administrador do milorde, fora um sopro frio depois de longos dias quentes. No início, eles encontravam-se por coincidência e conversavam com a discrição que esperava-se de pessoas de tal posição. A cada diálogo sentiam que levavam pedaços pequenos da alma um do outro, segurando a peça do quebra-cabeça como de quem possuía um presente. O amor e a desilusão pelo piano uniu-os de vez: estavam, então, enamorados.
Quando pensava no que aconteceu, Julia Lewis achava que era tudo um sonho difícil de distinguir com a realidade. Bastou que instalar-se em Londres com a irmã para conhecer a verdadeira faceta do pianista. Não conhecia o motivo que culminou a inicial aposentadoria do homem como músico, mas ela não deixava de imaginar que a personalidade altiva lhe fora a origem do problema.
No terceiro dia de trabalho no teatro, Julia resolveu entrar em casa pela porta da frente. O vestíbulo e as escadas estavam vazias como de costume, mas a porta da sala de visitas indicava que Millicent ainda estava tomando chá da tarde. Encontrou-a junto com uma Lilian pendurada em uma leitura, como de costume.
― Olá, querida, venha aqui beber chá comigo ― chamou Millie ao vê-la na entrada.
Julia sentiu-se estranhamente tímida ao aproximar-se da irmã. Ela estava com os pés suspenso por um banquinho, as mãos depositadas na barriga que ainda não dava muitos sinais da gravidez.
Poucas pessoas conseguiam reconhecer que eram irmãs; os traços indianos de Millicent destacavam-se com mais facilidade do que o nariz típico dos Lewis.
Como uma boa anfitriã, Millie pediu para que um dos criados fizesse um pouco mais de chá; a atitude comum deixou a irmã mais velha com a sensação de que era uma visita, uma caridade ― a sensação que a dominava desde que voltara para casa.
― Como foi o seu dia?
― Cansativo ― replicou Julia. ― Mas e o seu? Ainda está com náuseas?
― Elas vêm e voltam ― murmurou Millicent, frágil. ― Ever disse que passa com alguns meses, espero que seja verdade.
A pianista anuiu e voltou-se para servir a si mesma um pouco de chá. Não gostava muito de pensar na gravidez da irmã; magra e muito pequena, a chance de ter complicações no parto eram gigantes.
― Quando Dido e Aeneias irá entrar em cartaz? ― indagou a lady. ― Quero pegar os melhores assentos.
Os olhos da mais velha dos Lewis fitaram o pequeno flutuar do cubo de açúcar em sua xícara.
― Em breve. Estamos nos primeiros ensaios.
― Que ótimo! ― exclamou animada. ― Passado todo aquele problema, sinto me muito feliz em vê-la realizando um sonho.
Julia sorriu, mas nada disse. Desejou falar que não queria que tivesse acontecido daquela maneira; o remorso, no entanto, não era um sentimento que gostava de expor.
― Estava pensando, Millie… ― disse ela. ― Lembra da época que éramos crianças? Quando você se apaixonou pelo Sr. Standon?
Millicent arrumou as costas com cuidado.
― Tenho certeza que éramos um pouco mais velhas…
― É claro! Mas quando eu penso na nossa idade hoje sei que éramos muito mais imaturas do que admitimos na época ― ela balançou a cabeça expulsando o devaneio. ― De qualquer maneira, acho que o pai dele bateu as botas. Finalmente virou Lorde Standon.
― Por que está me contando isso?
A pianista piscou espantada.
― Eu o vi no teatro mais cedo. É um problema para você falar dele? ― perguntou com o cenho franzido. ― Digo, sei que ele foi um completo imbecil com você, mas já faz tanto tempo… Lembro que você até se apaixonou de novo depois que descobrimos o que ele fazia! Não achei que fosse um tema sensível ainda, desculpe.
Lady Byron deu um leve tapinha na mão da irmã.
― Tudo bem, July. Não é que eu seja sensível a ele ― explicou. ― Apenas não gosto de reviver antigos sofrimentos.
― Tudo bem ― replicou Julia voltando-se para sua xícara.
― Como conseguiu entrar no teatro?
As duas irmãs voltaram-se para Lilian, quem havia feito a pergunta. Ela, que sempre escolhia uma postura alheia ao seu derredor, costumava passar despercebida até abrir a boca para perguntar de súbito.
― Do que está falando? ― Julia deu um sorriso nervoso.
― Digo, você nunca tocou nem mesmo em um sarau ― apontou a menina. ― Como conseguiu entrar no teatro?
Lilian Lewis era uma menina muito inteligente. Mesmo se ela não soubesse ler uma só palavra no inglês, seu raciocínio ia sempre para os aspectos antes não questionados. Em dias normais, a pianista ficaria muito feliz em ver sua mente em ação.
Aquele não era um dia normal.
― Eu toquei para o maestro, ele gostou e me chamou ― resumiu Julia.
― Assim? Tão fácil?
A implicância cortou o fio de paciência que Julia segurava.
― Se não acredita pode procurar alguma informação na minha correspondência. Claro, se você não já fez isso…
O cutucar da ferida produziu a reação esperada: Lily apertou os lábios magoada e levantou-se em supetão.
― Imagino que não saiba o que é perdoar, July, já que fez questão de trazer à tona esse tópico.
― Perdoar não é esquecer. ― o tom ficou agudo no final.
― Mas também não te dar o direito de jogar na minha cara quando te dar oportunidade! ― os olhos da garota marejaram. ― Você é a pior irmã mais velha possível! Pior! Eu te detesto!
Com os passos fazendo barulho como de um grupo de soldados, Lilian sumiu do salão carregando tempestade. A comum resposta exagerada de uma das mais jovens Lewis deixou Julia com uma pequena sensação de remorso ― a consciência, lá no fundo, murmurou que o que ela fez foi errado e ela devia pedir desculpas. Essa fala, no entanto, foi abafada pelo som do profundo orgulho.
― Hum ― soltou Lady Byron enquanto balançava a xícara vazia na mão.
― O que foi?
Millicent mexeu a cabeça com ansiedade.
― Nada ― prometera a si mesma que não entraria em discussões que não diziam-lhe respeito. Já era difícil esquecer as atitudes egoístas do passado de sua irmã, não deveria reforçá-las.
― Diga ― pressionou Julia. ― Sei que quer dizer alguma coisa.
Os olhos escuros de Millie fitaram os da pianista com pouco cuidado. Não refreou a língua quando disse:
― Impressiona-me que você um dia tenha sido a mais doce e simpática das irmãs Lewis ― apertou os lábios, o mesmo movimento de Lilian. ― Agora suas atitudes são todas grosseiras e de quem tem pavio curto. Por onde ficou a mulher paciente e compreensiva que você era? Não a reconheço mais.
A mulher de quem ela falava com certeza iria dar uma resposta rude e orgulhosa. Provavelmente bateria o pé e não admitiria que estava errada. Julia quase podia sentir as brasas de estresse consumirem sua cabeça.
― Sou a mesma de sempre.
― Não é! ― exclamou Millicent impaciente. Colocou a xícara na mesa com rudeza. ― Quer saber? Deixe. Irei subir e descansar um pouco antes do jantar.
Os passos da outra irmã foram mais lentos, porém não menos barulhentos. Deixaram, então, a primogênita dos Lewis fazendo companhia com o orgulho e a impaciência.
Tão rápido quando inflamou-se, o orgulho de Julia murchou-se como uma flor que não via o sol há muito tempo. Deu espaço para a tristeza, uma velha e incomoda amiga.
E remorso. Sempre ele.
V. Da escola para garotas
Julia não disse o que achava de verdade da escola das garotas.
Sr. Lewis era médico e ganhava razoavelmente bem para quem vivia num vilarejo como Southwark ― no entanto, pagar uma escola para garotas como St Trinian’s era um tipo de despesa que apenas poucos conseguiam. Ele sempre andava com a primogênita do lado todo orgulhoso e os vizinhos costumavam pensar alto no quanto ela seria bem sucedida, “quem sabe se torne uma governanta na casa de um nobre? Uma preceptora de crianças de sangue azul?”.
Millicent vivia perguntando como era na escola e o que ela aprendera de novo. Julia fantasiava, criava histórias de manhãs de estudo e tardes repletas de doces e felicidade. A irmã mais nova era muito criança e mentir tornou-se um hábito depois que cresceram.
Para a Srta. Lewis era muito mais fácil esconder as pequenas cicatrizes dos castigos nos braços e pernas do que contar-lhes a verdade: ela odiava St Trinian's e tudo que envolvia-o. Detestava as janelas altas e difíceis de lavar, os constantes beliscões e tapas que recebia dos professores, as alunas que faziam de sua vida um inferno e o pão seco que comia nas manhãs de domingo.
Em St. Trinian’s os dias eram intermináveis. Eles davam para alunas um sonho ― piano ou pintura ― e retirava de suas mãos na mesma proporção, lembrando-as quem elas eram e para onde iam. Julia não pensava muito no céu ou no inferno, mas quando este era citado nos sermões dominicais, a mulher não podia deixar de imaginar que deveria parecer um pouco com a escola para garotas.
Na manhã de sábado, diante do piano e a partitura, lembrou-se das vezes em que teve os dedos esmagados pela portinhola do instrumento em St. Trinian’s. Era sua punição por não prestar atenção nas primeira notas e tentar fazer firulas no meio da aula.
Julia riu sentindo-se miserável. Ter professores abusivos era sua sina ― de Sra. Bennet ao Sr. Woodhouse, todos achavam que a melhor didática era a humilhação. Tentou, então, focar no que era devido: tocar sem hesitação a música que apelidou como “canção das bruxas”. Era a parte mais divertida da ópera e marcava o início do Ato 2. As irmãs Wayward premeditaram a tragédia e eram responsáveis pela tempestade que levavam ao Enéias até Cartago. O grupo de mulheres que iriam representá-la no teatro eram divertidas e as que menos tinham dificuldade de performar.
Bateu nas teclas com força, frustrada. Por que estava constantemente perdendo o tempo da música? Não era uma canção tão difícil.
Um riso infantil ouviu-se pelo cômodo. Julia olhou para os lados à procura da origem do som, mas não encontrou.
― Tem alguém aí?
Então, a pianista viu um pezinho descalço escondido atrás do sofá de visitas. Levantou-se devagar e disse em voz alta:
― Hm, o que será que é isso? Será um fantasma?
Encontrou Polliana encolhida no esconderijo. Usava camisola ainda e tinha os cabelos completamente desgrenhados; o grito de alegria, porém, era de quem estava muito desperta.
― Te achei! ― exclamou Julia antes de encher a caçula de cócegas.
― Para, para! ― gritava a menina entre risos.
― Onde está sua babá? ― indagou a mulher após soltá-la. ― Você não deveria estar dormindo?
― Quero ficar com você hoje ― pediu e abraçou a irmã com força.
Pollyana era uma criancinha de seis anos completamente alheia a qualquer problema ou tristeza externa. Filha da terceira mulher que o Sr. Lewis tivera, o mais próximo de uma mãe que Julia e Millicent tiveram. A mulher não era-lhes uma má madrasta, tão pouco se comportava como mãe. Criou-lhes com amabilidade e distância, reservando amor e carinho apenas para as filhas Lilian e Pollyana.
Srta. Lewis segurou a menina no colo até o banco do piano. Polly estava muito mais pesada e era resultado de uma alimentação rica e sadia que não tinha antes. Sentou-se ao lado da pianista com os pés balançando no ar e escutou bem quando foi orientada a tocar uma tecla específica no tempo oportuno.
Então, começaram a cantar:
London Bridge is falling down,
Falling down, falling down.
London Bridge is falling down,
My fair lady
A menina balançava a cabeça para os lados e os pés suspensos no ar seguiam o ritmo da música. London Bridge is falling down era sua cantiga favorita ― da curta música nascia todas as que ela produzia quando brincava. Julia se arrependera uma vez de ensiná-la a cantá-la, mas já se acostumara com a canção. Era a forma discreta de fazer Polly interessar-se por música.
My big apple is falling down,
Falling down, falling down.
My big apple is falling down,
My sweet sister
A pianista soltou uma gargalhada com a mudança da cantiga da irmã. Quando a repreendia, Julia costumava cantar “my patience is falling down” com uma cara brava. Não era de se admirar que a criança nunca a obedecia.
Depois de minutos de sorrisos e música, Polly teve que acompanhar a babá para lavar-se e comer o desjejum. A criança esperneou, mas foi ainda assim. Julia sentiu-se uma paz que não sentia há muito tempo ― a irmã caçula era a coisa mais estável de sua vida. Mesmo quando estava sentindo-se miserável, Polliana deixava o presente menos sofrível.
Quando a menina passava pela saída da sala do piano, Julia escutou ela perguntar para a babá:
― Senhora, eu posso cortar meu cabelo como a July?
Era tarde. Boa parte dos músicos e do elenco havia ido embora, sobrando apenas os responsáveis pelo cenário e manutenção do teatro. Naquela segunda-feira, Julia decidiu esperar o prédio esvaziar antes de ir. Não queria ter encarar os diferentes artistas e trocar palavras inúteis como se fosse igual a eles ― era apenas a assistente do pianista, afinal de contas. Quando os ensaios terminavam, a sensação de vazio retornava. Por que continuava indo para o teatro? Por que não disse ao Sr. Wells que ali não era seu lugar? Por que continuava se torturando daquela forma?
Vestia sua capa quando o conhecido som do violoncelo atravessou as paredes da sala de ensaio. Não era nenhuma das músicas que costumavam soar no recinto; era algo novo, desconhecido e de uma rudeza que mexia por dentro. Viu o músico assim que pôs a cabeça na porta: era ele, o Sr. Wells, sozinho, tocando o instrumento na frente de um pupilo. Parecia estar apresentando para ninguém ― balançava com a emoção de quem sentia cada nota tocada. Era muito velho e ainda assim parecia jovem aos olhos da Srta. Lewis.
A alma transbordou-se com a gravidade do som; os olhos, os primeiros traidores, marejaram.
― Ele é incrível, não é?
Julia passou a mão no rosto rapidamente; não dignou-se olhar para o dono da voz. Antigamente a presença de Woodhouse preenchia o que estava vazio; agora sufocava o que já existia.
― Não me admira ser o maestro da Companhia. ― ela virou de costas e começou a dirigir-se para a saída.
― Espere ― pediu Liam segurando-lhe o braço. ― Por que continua me evitando? Sabe que essa será a última semana de ensaios separados e que logo estaremos todos juntos.
Julia coçou os olhos, exausta. Ela não queria pensar nas próximas semanas quando sua função seria passar as folhas da partitura. Devia estar com mesmo sentimento de um animal indefeso e sozinho na floresta; cedo ou tarde seria devorado vivo.
― Não é óbvio? ― disse ela. ― Eu não quero estar com você, Woodhouse.
De todas as negativas, aquela atingiu pontualmente aos sentimentos de Liam. Diante dele, Julia parecia cansada; não raivosa, incomodada ou provocativa. Cansada como de quem sentia cada palavra que dizia.
Deixou-a ir sem insistência. Srta Lewis, que não estava acostumada com a facilidade de sair da presença de Liam, saiu do teatro com os passos de quem fugia. Não serviu de muita coisa ― ao chegar na calçada, lembrou-se que não dispunha de nenhum tostão para pagar uma carruagem alugada e não sentia disposta a pedir dinheiro emprestado para o cunhado. Era uma caminhada longa até a casa, mas era a única opção que seu orgulho aguentava no momento.
Esperava as carruagens passarem para atravessar a rua quando uma delas parou bem perto. Não tinha um brasão específico, mas era de uma fineza típica das classes altas.
― Srta. Julia Lewis ― chamou o homem pela janela. ― Quer uma carona para casa?
Lorde Stanton, dono da voz que oferecia o veículo, tinha um sorriso exageradamente simpático. Julia não sentia-se movida a odiá-lo, mas tão pouco estava disposta a simpatizar-se com ele. Era um canalha mentiroso, afinal de contas.
― Não, obrigada. Tenho um lugar para ir antes de chegar em casa.
O andar da mulher não impediu para que o homem perguntasse:
― Posso levá-la até lá, também. Queria conversar uma ou duas coisinhas com a senhorita.
A primogênita dos Lewis deu um suspiro resignado. Por que era tão difícil para os homens receber um não? Estava sendo difícil segurar todo estresse que eles despertavam nela.
― Milorde, estou tentando ser educada. Não é viável eu, uma mulher solteira, estar sozinha com outro homem em uma carruagem.
― Agora está se fazendo de pudica?
Ela quase pode ouvir os ouvidos vibrarem de raiva. O coração ficou bem pequeno no peito. Aproximou-se da janela da carruagem sorrateiramente ― a atitude, para Lorde Stanton, era positiva.
Julia era uma mulher muito alta. Embora a carruagem fosse muito maior, era possível ficar de ponta de pé na janela para encarar o homem bem de perto.
O aristocrata esperou o que ela iria dizer; observou o pequeno mexer das bochechas e os lábios apertarem-se um no outro. No final, Julia não disse nada. De sua boca saiu apenas saliva que atingiu diretamente o rosto de Lorde Stanton.
VI. Da mãe
Julia não disse o quanto sentia falta de ter uma mãe. Nelly era uma mulher muito jovem quando casou-se com Sr. Lewis e os vizinhos comentavam quão radiante ela estava quando engravidou pela primeira vez. Era o casal mais feliz de toda Southwark Village; a morte prematura de Nelly durante o parto chocou toda a comunidade. Que tragédia, murmuravam os moradores pelas esquinas.
Os meses de luto não eram suficientes para que o Sr. Lewis esquecesse a mulher ― mesmo que tivesse uma criança para criar e dinheiro curto, logo que enterrou a esposa decidiu ir para Índia para visitar um amigo. Que amigo? Ninguém nunca soube.
A pianista não tinha nenhuma memória dos dois anos que se passaram depois disso. Não lembrava de correr pelo quintal da Sra. Hedge, a mulher que o pai pagara para cuidar dela, e ter “água” como a primeira palavra dita. Ainda assim, Julia tinha as cartas que Sr. Lewis enviara falando de comidas exóticas e cheiro de tempero comum pelas ruas do país. Os escritos eram de uma fantasia do que se contava para as crianças ― a Sra. Hedge costumava lê-las para ela antes de dormir. Embora fosse carinhosa com a menina, Ridge nunca deixou Julia tratá-la como mãe.
Que grande comoção foi a volta do Sr. Lewis! Não se parecia em nada com o homem que fugiu do vilarejo. A pele tinha ficado mais vermelha, as pernas mais grossas e o rosto mais gordo. Carregava consigo uma criança de traços indianos, a segunda filha, Millicent Lewis. Ele disse que se casara de novo… E ficara viúvo também. Disse que a mulher teve varíola.
A fama de marido amaldiçoado correu por um tempo, mas ela logo foi substituída pelos comentários sobre os flertes indiscretos que trocava com Virgínia Crouch, uma jovem de passado tortuoso. Casaram-se antes do inverno. 13 anos e dois abortos depois, a nova Sra. Lewis deu a luz a Lilian; oito anos depois veio Pollyana, e faleceu.
Virgínia nunca tentou ser mãe das filhas do seu marido e muitos até afirmariam que ela ficou aliviada quando a criança mais velha foi estudar em um internato. Queria e sonhava em ter os próprios e era um tema recorrente das brigas com o Sr. Lewis. Sua maior frustração foi nunca ter conseguido dar-lhe um menino, embora nunca tenha sido uma exigência do médico.
Na escola para garotas, Julia nunca pode confiar em nenhum dos adultos. Os mais velhos eram maliciosos, autoritários e não a deixava esquecer qual era seu lugar na sociedade. Em casa, Millicent precisava de uma amiga confidente e o pai passava boa parte do tempo trabalhando. Porém, os poucos momentos que estava junto com o Sr. Lewis, a primogênita dos Lewis sentia-se a pessoa mais amada do mundo. Era por isso que o último luto havia a devastado. Desde então, não sentia-se mais como ela mesma.
Julia queria muito ter um colo de mãe para chorar depois das horas de trabalho. Os meses se passaram e agora estavam perto das festas de fim de ano. Além disso, voltar a ser ativamente a assistente do pianista tornou-se um pesadelo: era agora a assistente de todo mundo. A semana antes da estreia foi a mais turbulenta e ela não aguentava mais escutar seu sobrenome.
Srta. Lewis, pode pegar um pouco de água para mim?
Srta. Lewis, traga esse banquinho até aqui. Iremos improvisar um caldeirão.
Srta. Lewis, eu deixei a paleta na sala de ensaio. Pode pegar para mim?
Srta. Lewis, a partitura está pela metade. Arranje uma completa com James.
Srta. Lewis, faça...
Srta. Lewis...
Srta. Lewis.
Não dava para julgá-la por ter fugido para sentar-se um pouco nos corredores vazios dos bastidores. De longe ouvia a voz do tenor que fazia Eneias cantar junto com a orquestra no palco. Estava perfeito ― tão detalhadamente executado que Julia duvidava que estivessem ensaiando em tão pouco tempo. Era apenas a terceira semana de ensaio geral e, para a pianista, estavam prontos para apresentarem-se ao público.
Escutou passos pelo corredor e amedrontou-se; escondeu-se por trás das cortinas verdes.
― Eu te avisei para não vir mais falar comigo! ― exclamou uma voz feminina; percebeu logo que era a Sra. Daigle. ― Não quero você aparecendo no teatro em horários como esse! Sr. Bonner vai descobrir que está se encontrando com a amante dele e não vai ficar feliz.
― Juan precisa de você ― sussurrou um homem. Julia identificou com dificuldade Lorde Stanton.
Ainda lembrava da bela escarrada que dera nele na semana anterior. Seus professores com certeza ficariam horrorizados se soubessem que Julia havia destratado um nobre daquela maneira.
Não arrependia-se. Ele havia merecido.
Nela havia muita coisa: tristeza, desânimo e desesperança. Raiva e desconforto também. Não existia espaço para ressentir-se por um ser abjeto como Lorde Stanton.
― Eu não quero saber. Eu nunca o quis. Por que insiste nisso?
Julia arregalou os olhos chocada. Era o que ela achava que era?
― Se você continuar vindo serei obrigada a pedir a James para expulsá-lo.
O homem soltou um riso zombeteiro.
― Aquela criança? Não é capaz de bater em um cachorro.
― Eu preciso trabalhar, milorde. Sei que você não conhece o verbo, mas algumas pessoas dependem disso para sobreviver!
― Eu irei embora ― afirmou Lorde Stanton. ― Mas espero que você tenha em mente que enquanto fode com aquele gordo maldito, seu filho chora pedindo pela mãe que o abandonou.
A pianista esperou escutar o som estalado de um tapa; fosse ela no lugar da Sra. Daigle, o movimento seria quase automático. Ao invés disso, o silêncio seguiu-se tornando todo recinto gelado.
― Vá embora ― disse a Sra. Daigle por fim. O nobre obedeceu.
Atrizes não eram santas. Atrizes de ópera piores ainda. Julia sabia disso, mas deixou os pré-julgamentos em suspenso. Não havia porque esperar algo positivo; nem mesmo julgar.
Saiu do esconderijo quando imaginou que o milorde havia ido embora. Sra. Daigle estava de braços cruzados e em uma posição tão impassível que poucos poderiam manter.
― Daigle…
― Não fale ― replicou. ― Você não sabe e não ouviu. Não se meta no que não te diz respeito.
A pianista ficou calada. Ela realmente não sabia, mas ouvira.
No dia da estreia ainda haviam ingressos à venda. Estava tudo em tão mais perfeita ordem que Julia perguntou-se se tinha um motivo real de estar indo ao teatro ― a única coisa que podia fazer era ficar em pé ao lado de Woodhouse, esperando o momento em que ele iria demandar alguma ordem.
A mulher às vezes sentava muito perto dele, cobiçando com nenhuma descrição seu lugar. Quem estivesse de fora talvez entende-se equivocadamente que era desejo por ele; era, no entanto, desejo pelo que ele era.
Liam sabia. Não queria saber, mas isso não estava no seu controle. Talvez essa consciência tenha sido o principal motivo para ter se afastado, apesar de ainda demonstrar que estava machucado por ser rejeitado pela Srta. Lewis.
Se o teatro da Companhia Selene era incrível em dias pós-faxina, naquela noite parecia até mesmo o teatro real londrino. Duas horas antes da apresentação já se era difícil conseguir os melhores lugares e muito se comentava da mudança de companhia da Sra. Daigle. Estavam, em grande parte, ansiosos para vê-la em uma nova casa.
Os bastidores estavam em pólvora. Dias de estreia são aqueles mais propensos a imprevistos. Julia, sempre muito solicita, estava ocupada. Recebia pedidos e agradecimentos, apenas para encontrar outro problema na qual precisavam de mais um par de mãos. Porém ela não podia evitar lançar olhadelas para onde estava a sala de ensaio, o som dos diferentes instrumentos sendo aperfeiçoados deprimindo-a. No palco, os músicos ficavam quase invisíveis e dificilmente eram lembrados pela grande performance.
Ela, ainda assim, queria estar entre esses desconhecidos.
O barulho diminuiu e transformou-se em passos e cadeiras rangendo. Os músicos trajavam preto e carregavam seus instrumentos como soldados num batalhão. Julia pediu licença aos figurinistas que pediram sua ajuda e seguiu-os. Entrou no alçapão do palco e andou com o coração miúdo até o fosso, lugar dos músicos.
― O que está fazendo aqui?
Srta. Lewis gelou. A pergunta adveio do maestro, que já estava muito bem posicionado no banquinho.
― Estou aqui para acompanhar Woodhouse, senhor ― replicou ela com um tom incerto.
Sr. Wells suspirou cansado.
― Não precisamos de você aqui. Todos nós sabemos que Woodhouse conhece as músicas de cor e salteado ― disse balançando a mão para que ela fosse. ― Hoje não temos paciência para bobagens românticas.
Julia sentiu como se estivesse na escola, quando voltou do castigo por ter deixado comida no prato. Estava enjoada porque as suas regras tinham chegado, mas a justificativa não a impediu de receber punição. Quando fora para o jantar não recebeu nenhuma comida. Ela devia intervir e responder, mas ficara calada encarando as outras alunas comerem o ensopado.
Agora ela encarava não jovens alunas, mas músicos que assistiam sua humilhação. A face tornou-se vermelha de raiva, vergonha e ressentimento. A saliva desceu rasgando quando engoliu o seco, mas foi capaz de replicar:
― Não há nenhuma bobagem romântica, senhor, eu só… ― observou-o revirar os olhos e perdeu a fala. Liam assistia tudo em silêncio como se fosse um músico como os outros; como se tudo aquilo não lhe fosse respeito. ― Está certo. Irei me retirar.
Saiu com o choro entalado na garganta. Sentia-se tão constrangida que nem era capaz de chorar. O pouco que tinha nas mãos foi arrancado.
Deveria ter ido embora. Para o inferno com o piano, a ópera e todos aqueles seres mesquinhos que achavam-se reis inabaláveis. Voltaria a ser a irmã mais velha da Lady Byron que não conseguiu casar-se. Tentaria encaixar-se naquela sociedade que a desprezava mesmo antes de ver seu rosto.
Mas ela tinha de ficar, é claro. Como explicaria para as irmãs o que aconteceu? Como diria para elas que mais uma vez tinha errado em suas escolhas?
Ficou e assistiu tudo pelas janelas do teatro. Ouviu as belíssimas vozes e as intensas interpretações. Acompanhou quando os protagonistas se apaixonaram, ignoraram suas funções e receberam a notícia de que teriam que se separa. Arrepiou-se quando Enéias se despediu de Dido.
Julia também chorou junto com a rainha de Cartago antes de vê-la tirar sua vida.
Ninguém soube porque srta. Lewis voltou aos bastidores depois da esplêndida apresentação de Dido e Aeneas. Ela ainda assim apareceu com um sorriso gentil, parabenizando aos que fizeram a ópera acontecer. Viu, também, diversos músicos organizando-se para ir a uma taverna, mulheres e homens desconhecidos vindo congratular seus pares pelo trabalho feito. Viu também Sr. Wells ser muito elogiado, assim como o Sr. Martin, diretor da peça. Os elogios, no entanto, eram de maioria direcionados a Sra. Daigle.
Que mulher linda e talentosa ela era! Naquela noite, a mulher fez os corações mais duros derretessem perante o choro de Dido. Sentiram empatia por ela, embora muitos estivessem saturados daquela história.
― Julia, querida! ― exclamou Millicent ao encontrar sua irmã naquela cacofonia. ― Finalmente a encontrei!
A pianista ficou pálida quando viu a irmã grávida desbravar a multidão junto com seu marido, Lorde Byron. Eram um casal conhecido, é claro ― quem não havia ouvido falar do nobre que casara com uma mulher indiana sem ascendência de destaque? Quem não conhecia o homem que carregava o título do maior poeta de todos os tempos?
― Estou tão feliz de vê-la finalmente! ― disse a Lady Byron entregando-lhe um buquê. ― Não consegui avistá-la de longe, mas posso dizer com a maior certeza que a apresentação foi incrível. Irei procurar um assento mais próximo para ver-te…
― Não era eu ― sussurrou Julia, os olhos marejados. ― Não era eu...
― Querida… ― murmurou Byron, olhando a esposa de relance. ― Acho que não é uma boa hora.
Srta. Lewis não esperou; correu por entre o grupo que assistiu a segunda parte da sua humilhação com o olhar de pena ― alguns, com indiferença.
― Julia ― gritou Liam. ― Por favor, espere!
Definitivamente não era um bom momento para encará-lo. Ela apressou o passo pelos corredores e praguejou quando viu que tinha mais gente na saída do que ela calculara.
― Opa, opa, se não é a Srta. Lewis… ― disse Stanton agarrando-a pelo braço.
Julia quis desaparecer. Por que todos resolveram ir ao teatro naquela noite? Não havia outros prazeres e divertimentos? Estariam todos ali para encarar-lhe agindo como uma boba?
― A senhorita me deve um pedido de desculpas ― reclamou Stanton.
― Por favor, deixe-me ir ― pediu com a voz esganiçada. ― Eu só quero ir para casa. Amanhã pedirei todos os perdões possíveis, só me deixe ir.
Algo no que ela disse atingiu em cheio a alma podre de Lorde Stanton. Para quem se compadecia para um grupo seleto de pessoas no mundo, o milorde franziu o cenho quando viu um homem gritar o nome “Julia, Julia” entre a multidão.
― Eu posso tirá-la daqui, mas você tem que confiar em mim. Tem que vir comigo.
Havia escolhas mais sensata do que essa; ainda assim Julia foi com Stanton.
VII. Do Lorde Stanton
Julia não disse a Millicent o que achava de Lorde Stanton na época que ele era apenas herdeiro do título. As duas eram muito jovens: enquanto a filha mais velha tinha a impulsividade do pai, a segunda mais velha herdara dele a facilidade de encantar-se por alguém ― e seguir em frente na mesma medida.
Na época que Lorde Stanton estava a passeio pelo Southwark Village, o homem se apresentava como Sr. Richard Litt e logo passou a responder a Millicent por “Richie”. Julia achou a aproximação muito rápida e perigosa, mas estava na última semana de folga e não queria entrar em uma provável discussão com a irmã. Planejou, então, enviar-lhe uma carta explicando o que achava assim que voltasse à escola; só não contava com sua boca grande e um castigo: não podia se comunicar com a família por dois meses.
Dois meses eram muitos dias e por entre eles Julia esqueceu-se de Millie. Estava muito ocupada tentando sobreviver aquela selva de paredes altas e poucas janelas.
Foi quando voltou para casa durante as festas natalinas que percebeu que a personalidade sóbria da irmã tornou-se amuada e sem brilho. A falta de réplica das diversas cartas enviadas para Stanton foi o motivo e Millicent indagava-se constantemente o que fizera de errado.
As mensagens eram todas secretas, o que exigiu todo cuidado do mundo para investigar se elas estavam chegando para Stanton. Não demorou muito, porém, para que Julia descobrisse que o endereço passado pelo nobre não era residencial e sim de um prédio público.
Millie ficou devastada e muito constrangida. Sentia-se uma boba por achar que o sentimento era recíproco ou que poderia ter uma proposta real no futuro. Ela era, para todos os efeitos, filha de um médico e não tinha sequer um pingo de sangue azul correndo nas veias. Além disso, embora nunca tenha falado em voz alta, ela era diferente ― os traços indianos nunca poderiam ser minimizados ou esquecidos.
A primeira decepção da segunda srta. Lewis despertou uma pequena ira em Julia. Ela, que sempre incomodava-se com o fato de que as pessoas não viam a irmã antes de ver sua origem, começou a domesticar uma resposta raivosa para todas as justiças. Naquele tempo era possível dominar ― hoje, a raiva crescera de modo que ela não se enxergava mais sem.
― Irá me pedir desculpas por ter cuspido em mim?
Julia quis rosnar como um cachorro. Tinha acalmado-se após alguns minutos na carruagem, mas aquela pergunta insolente apenas revelava que era uma tranquilidade frágil.
― Não ― replicou. ― Você mereceu.
Richard Stanton riu meio incrédulo, meio achando engraçado de verdade.
― Todas as mulheres da sua família são propensas a violência?
― Você não merece nada além disso.
O nobre ficou sério.
― Se for para ficar ofendendo-me pode sair da carruagem.
A pianista segurou a língua. Era tarde; sair pelas ruas de Londres àquela hora era o tipo de arrependimento que ela não queria sentir.
― Obrigada ― agradeceu em contra-gosto. ― Eu realmente precisava sair de lá.
Stanton deu um leve aceno que pode ser visto pela penumbra. Era um homem loiro de aparente inocência; alto e de postura impecável, não era de se admirar que um dia a Lady Byron estivesse apaixonada por ele.
Como se finalmente desse conta de si, Julia observou seu estado: fugira de forma escandalosa do teatro com um nobre de reputação duvidosa. Teria muito o que explicar quando voltasse para casa.
― Estamos indo para minha casa? ― indagou Lewis olhando para a janela.
― Pelo caminho mais longo, sim ― replicou Stanton.
Ela deu um longo suspiro.
― Permita-me perguntar, ― iniciou o milorde ― por que quis ir embora tão repentinamente?
― Não tenho uma resposta racional ― replicou Julia. ― Acho que não quero encarar a realidade.
O nobre não respondeu nada ― ouviu-se por um longo tempo apenas o barulho dos cascos dos cavalos batendo no chão. A carruagem balançava em um ritmo devagar, como de uma mãe que embalava um bebê.
Julia estava tão cansada que podia encostar a cabeça e dormir ali mesmo ― não o fez, é claro, porque Stanton não era confiável o suficiente para tanto.
― Por que queria que eu fosse com você ontem? ― perguntou a pianista. ― O que queria conversar comigo?
O homem passou tanto tempo em silêncio que ela imaginou que não foi ouvida. Preparou-se para reformular a pergunta quando ele disse:
― Millie me odeia? De verdade?
Srta. Lewis ficou muda. De todas as perguntas, aquela era a mais surpreendente.
― Antes eu poderia dizer que não ― respondeu com cuidado. ― Hoje eu já não sei.
Ele suspirou decepcionado.
― Por que não pergunta a ela?
― Nossa última conversa não foi muito amigável.
A pianista ficou curiosa, mas reprimiu-se para não dizer mais nada. Então Millie havia o encontrado antes? Por isso agira daquela forma estranha quando ela o tocou no assunto?
― Você acha… ― ele coçou a garganta. ― Acha que Byron realmente ama a sua irmã?
― Fique longe da minha família.
A ameaça saiu tão defensiva que nem mesmo Julia reconheceu-se. Ainda assim, a mulher continuou:
― Millie é uma mulher casada e feliz. Não cause mais tristezas. Fique longe dela.
Com toda certeza o Lorde Stanton tinha várias frases de efeito para responder a Julia, no entanto calou-se. Para a mulher, a conversa tinha acabado ali. Esperava que nunca mais tivesse que encarar Lorde Stanton mais uma vez.
Enfim chegaram na casa de Lorde Byron. Julia agradeceu mais por força do hábito do que por gratitude e saiu da carruagem sem ser ajudada. A noite estava fria e ventosa; já dava para sentir os primeiros pingos de chuva.
― Espere ― pediu o lorde.
Ele pôs o rosto na janelinha.
― Essa viagem não foi de graça. Ainda me deve um pedido de desculpas pelo seu comportamento de ontem.
Srta. Lewis revirou os olhos.
― O que quer?
― Levarei-a sexta-feira para um sarau de uma amiga. Precisam de uma pianista e soube que você sabe tocar alguma coisa ― comentou. ― Arrume uma máscara. É um sarau de máscaras.
Ela franziu o cenho, mas não contestou nada. O fim de noite tornou-se uma bagunça que ela era incapaz de compreender ― se a pianista tivesse sorte, seria apenas um pesadelo.
Millie e Logan não tinham chegado em casa, o que facilitou para que Julia fingisse dormir. Sentiu as velas serem acesas e o burburinho de conversa entre o casal. “Ela deve estar cansada. Acordá-la só vai deixá-la de mau humor” sussurrara Byron. “Mas ela precisa explicar o que aconteceu!” intervira Millicent. No final deixaram-na dormindo com a promessa que conversariam de manhã.
Chovia muito. De vez em quando, raios atravessavam o céu e iluminavam o quarto da Srta. Lewis. Os trovões davam a sensação de que o mundo lá fora estava acabando ― eram tão barulhentos que ela quase não escutou os passos de ganso da irmã mais nova.
Lilian enfiou-se na cama de Julia sem pedir autorização. Entrou por baixo dos lençóis como de quem fazia isso com muita frequência; abraçou o corpo quente da irmã, achando que ela estava dormindo.
Com a perna balançando, a menina dava pequenos espasmos de medo. Não gritava ou gemia: o medo dela era sempre contido daquele jeito. Lilian podia ser a irmã que gritava, esperneava e exagerava; mas quando sentia medo, daquele que não tinha fonte real e era irremovível, ela continha-se.
Julia segurou as mãos da irmã para que ela a agarrasse com mais força.
― Que estranho ― comentou. ― Você nunca vem pra minha cama.
― Millie está com Logan ― justificou ela. ― Não vou deitar entre os dois, não tenho essa falta de noção.
A irmã mais velha deu um pequeno sorriso.
― Devo ficar feliz por ser a segunda opção, então. ― aconchegou-se com ela, acariciando os cabelos escuros iguais aos seus. Lily estava gelada.
Demorou um pouco para a menina finalmente acalmasse. Os braços da irmã mais velha era muito mais quentes do que se lembrava.
― July…
― Sim?
― Eu não detesto você.
Os olhos da primogênita dos Lewis encheram-se de lágrimas.
― Eu também não detesto você, Lily.
VIII. Dos planos secretos
Julia não disse quais eram os seus planos secretos. Ela colecionou um monte durante a vida. Antes eram planos ingênuos como comer escondido a torta de maçã que a vizinha fazia; depois tornaram-se um pouco mais danosos como o de queimar a escola de garotas abaixo. Eles nunca se concretizaram ― alguns por falta de tentativa, outros pela intervenção de outrem.
Quando Sr. Lewis morreu e a família toda caiu na ruína, perdendo a casa e a comida na mesa, Julia tinha um plano. Não suportava ficar sem fazer nada enquanto dormia debaixo da igreja de Southwark e recebia olhares de pena. Afastar-se das irmãs era horrível, mas parecia a única alternativa viável. Estava disposta a ir trabalhar em uma casa de gente rica e mandar todo o dinheiro para o sustento delas; não importava o quanto Millicent insistisse que deveriam ficar juntas. Esse era o caminho mais racional.
Em uma manhã, a Srta. Lewis acordou já com o pedido para fazer a esposa do reverendo, Sra. Bridgestone. Eles conheciam muitas pessoas influentes e poderiam ajudá-la.
Então, chegou a carta de Lorde Byron. A irmã estava noiva de um homem que nunca vira; alguém que talvez fosse uma fraude, um canalha ou uma pessoa monstruosa. Quem em sã consciência iria propor um casamento por procuração? Alguém que nunca viu? Por meio de cartas?
Mas ele era o último fiapo de esperança que Millie poderia agarrasse.
Ela não podia ir sozinha. Julia foi junto.
As portas do salão estavam fechadas. A pianista tocava o piano com delicadeza, como se ninguém fosse a escutar se tratasse o instrumento com graça. Era uma pequena sequência de notas e carregavam a melancolia de inundar corações. Sua última música.
Essa foi uma das composições mais fáceis ― saiu como se estivesse ali o tempo inteiro esperando ser colocado para fora. Nem precisou anotar, pois estavam gravadas em seus dedos. Pensou que nunca teria a oportunidade de tocá-la; a canção veio quando estava prestes a realizar o seu último plano secreto. A arte pediu-a para reconsiderar; ela disse não.
― July?
As mãos pararam no ar. Sabia que a conversa viria mais cedo ou mais tarde. Não sentia-se preparada. Nunca estaria.
― Você já comeu? ― perguntou ela sem virar-se para Millicent.
― Não. Acompanha-me?
As duas irmãs passaram um bom tempo quietas na mesa de jantar. Uma esperava que a outra começasse ― perguntas demais, sensibilidade de menos. Lady Byron fingia que não estava com o estômago embrulhado; Julia, que não precisava tomar café ao invés de chá.
― O que aconteceu ontem?
Millicent mordeu a parte interna da bochecha como de quem falara algo que não devia. A Lewis mais velha, porém, manteve o mexer da colher na xícara. Ela não sentia-se capaz de explicar suas atitudes há anos; quando tentava fazê-lo soava ilógico e até irracional.
― Não sou pianista ― começou ela. ― Sou assistente. Assistente de Sr. Woodhouse.
Lady Byron levantou as sobrancelhas.
― Pensei que não quisesse vê-lo.
Julia soltou um suspiro. Nem mesmo havia começado e já estava farta de explicações.
― É complicado.
Um empregado entrou na cozinha segurando um bolo recém do forno. Não importava o quanto estivesse ali, as jovens Lewis nunca conseguiriam ignorar as passadas dos criados, por mais discretos que fossem. Julia ainda lembrava dos primeiros dias em Berkshire Hall e do constrangimento que passou por tentar ajudar um funcionário da casa a organizar a mesa.
Era a sua verdadeira natureza aparecendo. Ela havia sido feita para servir.
― Disseram que você voltou para casa com Lorde Stanton ― perguntou Millie sem encarar a irmã. ― As fofocas...
― Não faz diferença ― respondeu na defensiva. ― Eles falariam de qualquer jeito.
― Você voltou com ele? Por quê?
Mais uma explicação que não podia dar. A pianista levou a xícara até os lábios para ganhar tempo.
― Precisava sair dali rápido…
― Mas por que ele?
Julia passou a mão no rosto.
― Não sei, Millicent. Aconteceu que ele era minha melhor opção.
A irmã ficou consternada, mas não disse nada. Voltou a fingir que comia.
― Virou rotina ter conversas tensas no café da manhã ― Julia murmurou para si.
― Às vezes ― disse Lady Byron em voz alta. ― queria que você se abrisse mais.
Julia reorganizou os pensamentos. Não era uma manhã para brigas e sim explicações. Não podia e nem devia provocar os nervos da irmã grávida.
― Desculpe ― disse baixinho. ― Pensei que seria a pianista titular e fiquei com vergonha de dizer quando descobri que não era. Ontem entrei em pânico ao vê-los nos bastidores.
Lady Byron largou os talheres e buscou um muffin de banana e aveia. Nunca mostrou-se tanto como uma nobre como naquele movimento corriqueiro; ela, que sempre inclinava-se sob a mesa, usava roupas de seda e discretas joias. Quando ela casou-se houve muitos burbúrios de que era Julia quem deveria ter casado com o milorde, já que era a irmã mais velha. Ainda bem que não fora isso que acontecera ― se as pessoas olhassem Millie além da pele marrom perceberiam que não havia mulher mais perfeita para aquela posição. Sem contar que a simples ideia de ser esposa de Logan a desagradava. Na verdade, a simples ideia de ser uma esposa dava -lhe arrepios.
― Estava pensando… Faz tanto tempo que nós saímos para fazer compras, não é? ― comentou Millie. ― E, então, podemos passar pelo teatro para que você faça o pedido formal de demissão por lá.
A pianista apertou os lábios; não disse nada. Ela não sentia que havia qualquer evidência de desistência em sua fala, mas talvez Millicent tinha razão. Por que manter-se em um ambiente que fazia tão mal? O ambiente onde era constantemente oprimida?
A resposta estava naquela casa mesmo: nas janelas medianas e de cortinas bonitas, nos sofás confortáveis e nos chás da tarde. Tudo aquilo não a pertencia ― era parte da boa e gloriosa vida que a irmã tinha e compartilhava com ela. Julia precisava fazer seu próprio caminho, ter suas próprias conquistas. E a Companhia Selene era a única esperança.
Apesar de fazer frio, o sol iluminava-se como numa tarde de verão. As ruas estavam agitadas ― era um clima perfeito para um piquenique, caminhadas ao ar livre e compras. De braços dados, as duas irmãs trocavam comentários superficiais e um tanto leigos sobre as roupas que estavam na moda.
Entraram em uma bonita loja de chapéus e foram ignoradas por bons dez minutos. Se aquilo atingia Julia indiretamente, as consequências em Millicent eram devastadoras.
― Senhorita ― chamou a Lewis mais velha. ― Você poderia nos atender, por favor?
A jovem parecia um tanto desconfortável, mas esforçou-se para dar um sorriso.
― Claro. A senhora que você acompanha é estrangeira?
Não era um equívoco visualizar a pianista como uma criada: usava ainda os vestidos cinzas que comprou em Berkshire Hall ― desde a ida a Londres tudo que fez foi tocar piano ao lado do seu antigo instrutor. Porém, era um alívio que Millicent não fora totalmente má interpretada; talvez as joias e a roupa de seda denunciavam sua atual posição social. Embora Julia buscasse ser o mais discreta possível, sempre era escolhida como o modelo que a irmã deveria ser. Não importava quão limitava fosse sua educação, todos comentavam que era ela a melhor Lewis. A ascendência materna de Millie nunca pode ser esquecida ou ignorada.
Talvez houvesse um nome para isso.
Millicent pescou em sua bolsa o cartão de visitas e mostrou para a atendente.
― Essa é minha irmã, srta. Lewis.
O rosto da moça tornou-se muito pálido quando o nome Lady Byron tornou-se nítido. Gaguejou e pediu desculpas pela demora; a lady, que nunca foi de alimentar sentimentos de vingança, deu um sorriso satisfeito. Com ares de maldade, as duas irmãs reviraram toda a loja à procura de um chapéu inexistente e no final levaram apenas uma fita de cor vermelha.
― Sinto-me muito revitalizada agora ― comentou a milady. ― Mas acho que está na hora de comprarmos alguns vestidos de cores diferentes para você. Claro, se for de seu desejo…
― Talvez não seja ruim tentar ― replicou July com timidez. Segurou o braço da irmã. ― Tenho um problema.
Millie arregalou os olhos.
― Agora? O que é?
A Lewis mais velha olhou para os lados com desconfiança. Havia muitos ouvidos intrometidos nas ruas londrinas.
― Em troca da carona, Lorde Stanton fez-me prometer ir com ele para um sarau para tocar.
― Sarau de quem? ― indagou cuidadosa.
Julia deu os ombros; era melhor evitar falar muito do tema, já que a ideia não soava tão absurda depois de algumas horas de sono.
― E vou precisar de uma máscara. ― acrescentou.
Foram a outra loja, uma conhecida e que sempre possuía um atendimento cheio de amabilidade. Em pé, com uma fita métrica enrolada em seu corpo, enfim Julia era o centro das atenções. A paleta de cores era um arco-íris bonito e ela poderia escolher o tecido que quisesse. Apesar de carregar um olhar desconfiado, Millicent estava muito feliz em poder fazer aquele tipo de atividade com a irmã.
No espelho, Julia perguntou porque descuidara-se tanto. Nunca foi exageradamente humilde e mantinha uma vaidade pessoal, mesmo quando era limitada pela escola. Não julgava mais a atendente que a tratou como uma criada, afinal, ela realmente parecia uma.
― Temos um modelo que pode encaixar em você, senhorita. Preciso apenas de alguns alfinetes ― disse a costureira forçando o sotaque londrino. ― Veja, é um Spencer original!
Julia não sabia o que era um Spencer, mas acreditou que significava luxuoso.
O vestido foi coberto pelo cinza de luto que usava; era branco e tinha uma gola alta com um pequeno lenço azul escuro. Adornado por uma renda fina, tinha muito mais babados do que todos os vestidos dela juntos.
― É lindo ― murmurou com os olhos encantados. Mas olhou para o espelho outra vez.
Quando abandonasse os vestidos sem graça diria adeus, enfim, ao pai.
― Mas preciso de algo escuro ― continuou ela. ― Tem azul marinho?
IX. Das cicatrizes
Julia nunca contou a real origem das cicatrizes que tinha nos braços e pernas. Quando uma das irmãs perguntava, ou mesmo o pai estranhava as marcas novas, ela inventava uma desculpa. Passou a ser conhecida como atrapalhada, embora todos poderiam jurar que viram ela tropeçar apenas uma ou duas vezes na vida.
Os castigos na escola para garotas não eram sempre físicos; as cordas e a palmatória eram destinadas apenas para as meninas muito rebeldes.
Ninguém chamaria a Srta. Lewis de indisciplinada. Era, inclusive, uma mulher de tão agradável companhia que muitas mulheres de Southwark Village comentavam “que bem educada é a filha do Sr. Lewis! É quase uma lady”.
O defeito era que a moça, desde muito pequena, tinha criado um senso de justiça que poucas vezes lhe fora benéfico. Ela continuava mesmo assim; os anos se passavam e sua língua continuava arredia. Era tão comum estar de castigo que às vezes, antes mesmo de escutar os gritos dos professores, ela se levantava e ia para a salinha escura e úmida onde as crianças más ficavam.
As cicatrizes eram tão discretas que os pelos cobriam. Antes, a mulher sabia cada história delas e não contava para ninguém. Depois de adulta, no entanto, encarava-as com um olhar cético sobre sua ingenuidade; achava que era uma pessoa melhor por defender aquelas garotas que, no fundo, não sentiam nada além de desprezo por ela.
― Seu cabelo está mais curto.
A mão de Julia tremeu levemente antes de guardar a máscara na bolsa que carregava. Millicent a observava com aqueles olhos escuros que não diziam nada.
― Estava pesando na cabeça.
― Ficou mais bonito assim.
Ela sorriu constrangida, as mãos enxugando o suor frio na saia do vestido. Sentia-se atuando vestida daquele jeito, como se fosse uma lady de verdade. Como se seu pai não fosse um médico e que ela tivesse a pele das palmas rígidas. Um disfarce.
― Sra. Hunter já está pronta ― avisou Lady Byron. ― Confesso que me sinto mais aliviada em saber que não estará sozinha.
Sra. Hunter era a preceptora de Lilian, uma viúva já de avançada idade que tinha dois filhos adultos e casados. Julia nunca trocou mais do que três palavras com a mulher, mas não desgostava dela. Era melhor do que estar sozinha com Lorde Stanton.
― Ainda irá? Sabe que, se eu falar com Logan…
― Eu irei ― afirmou Julia. ― Não há porque quebrar uma promessa.
A Lewis mais velha não classificaria aquela conversa como um juramento, mas era mais confortável pensar assim do que admitir que queria ir. Nunca estivera num sarau ― nunca tivera a oportunidade de participar, de fato, da Alta Sociedade britânica e perdeu a chance quando fugiu de casa. Lá seria apenas uma musicista e isso a acalentava.
― Boa sorte então, pianista.
Algo em seu âmago tremeu de forma emocionada.
Foi a primeira vez que foi chamada assim.
…
Era estranho pensar que Lorde Stanton tivesse amigas com boas reputações. Sr. e Sra. Robertson não eram de sangue nobre, mas tinham amizades preciosas. Os filhos eram de grande maioria políticos e professores universitários ― intelectuais de fama invejáveis; a única nebulosidade que carregavam eram a verdadeira origem da herança familiar.
O nobre não disse muita coisa desde que Julia e a acompanhante subiram na carruagem alugada. Deveria estar de mau humor, ansioso, ou ambos, levando em conta que balançava a perna para os lados durante toda a viagem. Por vezes a pianista imaginava que as pernas longas iriam sair sozinhas para o lugar que tanto almejavam ir.
Como era esperado, Julia não entrou pela porta da frente como uma convidada. Era uma musicista e foi tratada como uma. A máscara apenas acentuou a sensação de ser outra pessoa.
― Que lugar agitado, srta. Lewis ― comentou Sra. Hunter quando elas entraram na ante-sala. ― Nunca imaginei que aqui atrás fosse assim. Parece uma cozinha.
Julia deu um sorriso, mas não disse nada. Era a mesma sensação que ela tinha nos bastidores do teatro. Esticou os dedos para tirar a sensação de dormência nas mãos; hesitou, lembrando dos avisos de Woodhouse que dizia o perigo de ficar estalando os dedos.
― A senhora não vai querer ver a apresentação? Acho meio injusto ficar por aqui…
A preceptora balançou a mão em desdém.
― Já vi várias dessas, senhorita. Nada me impressiona mais ― replicou. ― Só irei quando for sua vez.
A pianista deu um longo suspiro.
― De repente me sinto nervosa.
Do lado de fora, em um grito, pode ser ouvido anunciar a primeira apresentação da noite. Um silêncio repentino e a voz de um homem cruzou as finas paredes da casa; um poema.
When we two parted
In silence and tears,
Half broken-hearted
To sever for years,
Pale grew thy cheek and cold,
Colder thy kiss;
Truly that hour foretold
Sorrow to this.
(Quando nos separamos
No silêncio e nas lágrimas,
Corações ao meio estraçalhados
Para uma longa ausência.
Tua face pálida e fria se fez,
Mais gélido teu beijo;
Prenunciava aquele momento
Tristeza igual a esta.)
O nervosismo foi esquecido. Os ouvidos tiveram que ficar muito atentos para entender o poema que tinha ar de conhecido. Julia praguejou seu passado como uma péssima leitora de poesia. Era uma das poucas decepções que o pai nutria por ela.
In secret we met –
In silence I grieve,
That thy heart could forget,
Thy spirit deceive.
If I should meet thee
After long years,
How should I greet thee? –
With silence and tears.
(Às ocultas, nos encontramos
Em silêncio, me aflijo
Por ter teu coração me esquecido
E teu espírito me enganado.
Fosse eu ao teu encontro
Após tardos anos,
Como falar-te deveria? –
Com silêncio e lágrimas.)
[Tradução de Cunha e Silva Filho]
O poeta falava de uma frieza do corpo como a da separação dos dois amantes. Srta. Lewis arrepiou-se. Era como se a mulher estivesse morta para ele.
― When We Two Parted de Lord Byron ― finalizou o homem antes de receber uma série de aplausos.
Julia lembrou de algo engraçado. Constantemente esquecia que o título de Byron, seu cunhado, era conhecido pela devassidão e talento de um lorde muito anterior a ele. Lorde Byron, o poeta, levava o título de libertino até às últimas consequências ― seu atual herdeiro não poderia ser mais diferente. Logan sempre agiu como um cavalheiro para com ela e às irmãs, mesmo no começo do casamento, quando os recém-casados se bicavam mais do que tudo.
Sem perceber, a Srta. Lewis passou a imitar a atitude do Lorde Stanton. Com dificuldade de cruzar as pernas por conta da roupa que vestia, passou a balança-las em um ritmo desenfreado. Logo, pegou um leque e balançou-o na mesma proporção. A noite estava ficando quente e a constante correria de dentro da antessala não tornava o lugar menos abafado. Os músicos que se preparavam eram, em geral, moças e rapazes não profissionais que buscavam apenas impressionar os potenciais candidatos a casamento e suas famílias. Imaginava como seria escandaloso se eles descobrissem que a musicista sentada no canto da sala era uma fujona. Será que o nome “Srta. Lewis” lhes era familiar? Será que lembravam-se do nome de solteira da Lady Byron?
― Você será a próxima ― avisou uma mulher que fazia o papel de mestre de cerimônia.
O estômago de Julia embrulhou. Recebeu um sorriso discreto da Sra. Hunter e um “boa sorte” antes dela sumir pelo corredor. Passou as mãos suadas no vestido mais uma vez e caiu-lhe a ficha: ainda não tinha escolhido a música que tocaria. Preparava-se durante os dias ― tinha cinco a quatro em mente, decoradas e que performaria até mesmo de olhos fechados. Por que hesitava tanto em escolhê-las?
Sentiu-se uma mentirosa quando subiu ao palco. Fora apresentada como a pianista, amiga de Lorde Stanton e instrumentista da Companhia Selene.
Das três coisas, era apenas uma.
Encarou as luvas azuis que iam até acima do cotovelo. Odiava usar aquele acessório para tocar ― sobretudo essas que eram exageradamente grandes. A máscara cobria metade do rosto e sombreava a parte exposta. Os olhos da plateia estavam entre a curiosidade e julgamento; uma mulher pianista de teatro! Que absurdo era aquele? Seria ela também uma compositora?
Pensou nas primeiras notas de As 4 estações de Vivaldi, mas elas pareceram, pela primeira vez, insuficientes. Iniciou, então, sua música favorita de Chopin. Nocturne soava extremamente dramática em seus dedos e as notas se perderam por entre os acordes.
Parou. O salão estava silencioso. O corpo rígido diante do brilhoso piano tornou-se frio. Talvez não fosse uma pianista, afinal. Talvez fosse só uma aspirante, uma mulher que sonhava mais do que poderia alcançar. Deveria ter aceitado o destino inicial e tocar apenas no fim das noites antes de suas irmãs dormirem.
A imagem de Polliana e Lilian crianças mostrou-se muito nítida em sua mente. Lembrou-se das vezes em que as colocavam para dormir e cantarolava até que o sono as visitasse. Eram um dos poucos momentos felizes da vida antiga e desconhecida. Já não a pertencia.
A música iniciou-se como se fosse autônoma. Não havia hesitação entre notas; nenhum suspiro errôneo ou força externa. Havia a pianista e a canção dos dias antigos; os sorrisos e tristezas que antes a pertencia e não mais eram dela; eram, agora, do mundo que as agarravam em forma de melodia.
A primeira música composta por Julia Lewis, filha de Pierre E. Lewis, um médico.
Não há como medir a força das palmas antes e depois da apresentação da Srta. Lewis, mas ela sentiu-as vibrar por dentro quando fez uma pequena reverência de agradecimento. Era como estar viajando entre nuvens, livre e com muito medo de cair. Ainda assim, flutuando e gritando “mais alto, mais alto”.
Então, Julia viu que Sr. Wells estava na plateia, entre uma mulher desconhecida e a Sra. Richardson. Eles batiam palmas.
X. Do peso
Julia não disse nada sobre o peso que ela carregava nas costas todos os dias.
Era um fardo invisível cheio de variados produtos; fracassos, inseguranças, medos e “e se”s. Havia dias normais onde carregá-lo pelos cantos era tão corriqueiro que nem mesmo a perturbava; outros dias, porém, o peso ficava sufocante. Impregnava-se na pele de forma nojenta e era incapaz de ser retirado: saia quando bem entendia.
Uma semana havia se passado. A última vez que Julia tinha pisado no teatro foi na estreia de Dido & Aeneas. Ela não fez muita falta; não recebeu nenhuma mensagem pedindo explicações ou qualquer exigência para voltar ao seu posto. Como suspeitava, o trabalho de assistente do pianista era tão necessário quanto remédio para homens saudáveis.
Mesmo assim, ela foi para o teatro naquela manhã. Estava sendo negligente mais uma vez e ela não suportava que a carga em seus ombros tornassem-se mais pesada por conta de uma irresponsabilidade. Daria um adeus apropriado.
James a cumprimentou como se o sumiço não tivesse de fato acontecido. O teatro a acolheu com muito menos barulho e agitação ― não havia muitos imprevistos desde a estreia, fazendo com que a mão de obra nos bastidores se reduzisse consideravelmente.
Encontrou poucos músicos na sala de ensaio. Eram todos homens novos e de aparência franzina; dividiam-se entre clarinetes e violinos usados. Sr. Wells os mandava repetir partes de uma música da ópera que a pianista demorou um pouco para reconhecer. Era o prelúdio de Come away, fellow sailors.
O maestro tinha uma aura cinza. Percebeu a moça na porta alguns segundos depois e a encarou; quase o coração de Julia saiu do peito.
― Vejam vocês ― iniciou o maestro por cima do barulho. ― A mulher que se apresenta como pianista do teatro mesmo não sendo uma.
Ela engoliu o seco.
― Sr. Wells, não entenda-me mal...
― Não, eu te entendo ― disse o maestro após mandar os outros músicos parassem de tocar. ― Entendo tanto que gostaria que você substituísse o seu noivo. Ex-noivo. Nem tenho mais certeza… ― ele deu um suspiro dramático. ― É claro, preciso de um teste. ― apontou para um jovem que segurava o clarinete com a tinta desgastada ― Você! Busque o pianista e o Sr. Wilson. Preciso das opiniões deles antes de mais nada, não é?
Os dois homens que foram chamados chegaram com expressões bem diferentes; Woodhouse carregava um sinal de interrogação no rosto e Sr. Wilson, uma genuína irritação.
As mãos de Julia tremeram por baixo das curtas luvas brancas. Debaixo do olhar daquela figura maliciosa, a primogênita dos Lewis sentia-se pequena e intrusa. E, acima de tudo, estava encurralada.
Sentou-se no banquinho do piano vertical com a rapidez de uma lesma. Folheou a partitura antes de perguntar:
― Onde quer que eu comece?
A folha da música foi arrancada de sua visão com violência.
― Do começo.
A pianista sabia a ópera de cor. Se alguém pedisse para ela fazer o soprano 2 de qualquer um dos grupos de cantores poderia muito bem dar-lhes suporte, embora não tivesse uma voz exatamente agradável. Nos poucos dias de sol de Londres, a jovem cantarolava pelo cantos as notas como exercício de memorização.
Porém, junto com a partitura, Sr. Wells levou embora sua memória. Os olhares para ela queimavam a nuca. Estava em uma posição vulnerável; nos ouvidos escutava o ex-instrutor, Woodhouse, dizer-lhe que perdia o tempo da música.
Foi um desastre.
As músicas eram, com toda certeza, pertencentes à ópera de Henry Purcell, no entanto, tocadas pelas mãos de Julia Lewis tornaram-se uma confusão de tempo e som. A pianista quis chorar várias vezes; quase podia sentir o bafo do maestro em sua orelha, bufando como um touro raivoso e pronto para dar o bote.
― Saia daqui ― ordenou Sr. Wells.
Humilhada, as palavras na boca de Julia tornaram-se inúteis. Não pertencia aquele lugar e aquele ofício. Era uma pianista limitada e não podia ir além do que era.
Até aqui, não mais adiante.
Correu para fora do teatro arrasada. A mão voou para a boca com violência, desesperada a segurar o choro. Não viu em quem bateu e demorou mais alguns segundos para reconhecer de onde vinha os braços que a acalentaram e o cheiro de pinha. Woodhouse usou os dedos valiosos para acariciar o cabelo da Srta. Lewis.
Liam encarou feio para quem deixava um olhar interessado demais no choro da mulher. Estavam, então, na fase do assoprar e cuidar. Ele, que sempre fora muito cuidadoso com as palavras, tomara a humilhação pública dela com a própria.
― Não chore, July ― murmurou ao enxugar-lhe as lágrimas com as mãos. ― Terá sua chance de tocar, está bem?
― Você estava certo ― disse ela afastando-se com bruscridez. ― O tempo todo estava certo.
― Espere! ― Ele agarrou-lhe o braço. ― Eu tenho um plano. Não estarei sentindo-me muito bem essa noite e o Sr. Wells terá que encontrar um substituto. Você é a escolha mais lógica.
A segunda escolha mais lógica, corrigiu Julia. Não seria por mérito ou por necessidade artística; era por desespero. Mais uma vez Liam Woodhouse agia como agente principal de sua vida, manipulando sua posição de destaque para abrir-lhe um espaço digno de pena. O apadrinhamento poderia ser positivo se ele não a empurrasse para baixo na mesma medida que dava esperanças.
― Eu não posso ― sussurrou a pianista antes de partir para longe do prédio Selene.
Naquele dia, a primogênita dos Lewis não entrou pela porta dos fundos, não simulou passos de gato e não trancou-se no quarto. Foi direto para o escritório de Lorde Byron, o único lugar onde ela imaginava que o cunhado e a irmã estariam àquela hora.
Os dois ficaram muito surpresos com a falta de educação de Julia; e a reação só aumentou quando ela disse:
― Eu preciso falar.
XI. Do piano
Julia nunca disse o verdadeiro motivo pelo qual tornara o piano uma obsessão depois da morte do pai. Havia entre as irmãs muitas teorias; nenhuma das meninas, porém, eram capazes de perguntar sem sentir que avançavam por um campo íntimo demais até para elas.
A primogênita dos Lewis adorava tocar piano. A música, no geral, sempre foi a parte mais interessante dos cultos de domingo, dos fim dos jantares nas casas dos vizinhos e dos dias ruins na escola para garotas. Quando a mente avançava com as ideias perigosas, envolver-se em um som cheio de significado era um alívio.
Dizer que Julia não queria ser pianista profissional antes da vida dela virar de cabeça para baixo seria uma mentira descarada. Porém, ela nunca levara aquilo a sério; era uma mulher interiorana, sem influência, filha de um médico, e com dinheiro nenhum do bolso. Além disso, era mulher. O que um sexo tão limitado de talentos poderia fazer dentro do antro das artes?
Mas houve a última semana de vida de seu pai. Por ironia do destino, um médico tão conhecido por ser cuidadoso com os pacientes foi descuidado com a própria saúde; quando chegou em casa após semanas de trabalho nas cidades circunvizinhas, Sr. Lewis já estava num estágio avançado da doença.
As irmãs sabiam que a morte estava perto; ainda assim ficavam pelos cantos da casa, fingindo que viviam suas rotinas normais. Seus ouvidos estavam à procura do fim dos ruídos de vida; o silêncio que só o fim da jornada possuía.
Julia enxugava a testa do pai febril. Às vezes ele soltava um gemido baixo pelos lábios ressecados mesmo estando inconsciente.
― Filha…
As mãos frias do Sr. Lewis agarraram as da primogênita.
― Por favor…
― Água? ― indagou ela solicita.
― Não, não… ― murmurou. ― Toque uma música para mim.
― Como, papai? Não temos piano aqui.
― É… ― replicou ele confuso. ― Tudo bem… Tudo bem…
― Quer um pouco de água?
Ele negou com um leve balançar da cabeça.
― Querida… Ano que vem irei comprar um para você.
Era uma promessa antiga, adiada tantas vezes que, para a mulher, não significava mais nada.
― Certo, papai.
Srta. Lewis acariciou os cabelos do homem; estavam ralos, cinzas e molhados de suor. Arrumou-lhe o travesseiro e o lençol quando o viu bater os olhos de cansaço.
― Depois… ― continuou ele. ― Depois irei contratar um instrutor para você… Quero vê-la nos palcos de Londres… Você ficaria ótima, querida… Vestida de gala, tocando para os nobres…
Julia engoliu o choro com aquelas palavras frutos de um delírio. Com os olhos desfocados, os braços fraquinhos demais para abraçá-la, Sr. Lewis a encarou usando o pouco de lucidez que lhe restava.
― Prometa-me que não irá deixar de tocar piano.
Ela lambeu os lábios, respirou fundo.
― Sim, eu prometo.
O sonho de Julia partiu-a em pedacinhos.
Era a única certeza que Millie tinha quando a viu chorar com o rosto afundado em suas pernas. Os dedos agarravam os babados como se eles fossem responsáveis por alguma esperança.
Se Lorde Byron fosse um homem mais insensível teria comentado que a Srta. Lewis tinha sintomas de histeria, mas ele sabia que não era uma fala sem quaisquer consequências para serem ditas por impulso. Byron nunca esteve em uma situação tão emocionalmente desgastante, tão dura a ponto de desejar a morte.
E era isso que Julia desejava. Sua irmã não era capaz de admitir que nos relatos da pianista havia uma necessidade absurda de propósito de vida. Ela estava escutando o tempo todo que não era capaz, que não era suficiente; então, para onde deveria ir? Qual era o lugar da primogênita do Sr. Lewis?
Millicent não disse nada. Mesmo quando todo o desabafo tornou-se apenas suspiros de quem tentava segurar a torrente de choro, a Lady Byron continuou quieta; acariciava os cabelos presos da irmã, mas nada dizia. Recebeu todo derramamento da alma pesada da pianista.
― Nós iremos consertar isso ― aconselhou Byron, a personalidade metódica falando mais alto.
― Mas não hoje ― complementou Millie. ― Hoje vamos tomar sorvete.
As irmãs Lewis nunca haviam experimentado aquela sobremesa; vê-las reunidas em torno da iguaria gelada foi uma cena divertida para Lorde Byron. Conversavam amenidades e mais uma vez o nobre admirou a capacidade de fingir que nada as atingia. As jovens ignoravam as olhadelas dos clientes para Millicent, os cochichos nada discretos e as risadinhas mal intencionadas; também não comentavam o rosto inchado de July, a aparência pôs-choro e a forma extremamente desconfortável que a pianista deixava a conversa morrer.
Ele ainda sentia-se intrigado com a mais velha dos Lewis. Conheceu-a em um momento constrangedor e pagou-lhe algumas moedas para conseguir informações da esposa; sua cunhada tornou-se um problema quando rendeu-se aos beijos do instrutor e no dia seguinte fugiu de casa. Todos de Londres já sabiam: a irmã mais velha da Lady Byron desonrou a família. Ninguém, porém, sabia o real motivo.
Logan não acreditava nas justificativas que ela deixou na carta escrita às pressas. “Não quero casar” soava como uma desculpa pronta, afinal, Millicent nunca deixaria sua irmã contrair matrimônio à força; nem mesmo ele seria um monstro a ponto de fazer isso. Embora chamara a mulher de criança em vários momentos de estresse, enxergava a ferida de gente adulta incapaz de ser curada que ela carregava.
Mas talvez tomar sorvete ajudasse a curar.
Julia gravou o rosto de cada irmã na mente com muito cuidado. Fez questão de prestar atenção nas sardas nas bochechas de Pollyana, na face muito pálida de Lilian e nos cílios espessos de Millicent. Queria pensar naquelas mulheres importantes para ela ― aquelas pelas quais ela mataria e morreria; não podia viver por elas.
O barulho do sino a fez sair do estupor de creme e gelo. Lorde Stanton entrou sem cumprimentar ninguém. Estava com ares de quem se atrasou e estava impaciente. Uma criança, pequena como um boneco, correu atrás dele. A pianista esperou ver o nobre ignorando o menino e envergonhou-se pelo pensamento tão negativo quando Stanton apenas pediu, com a voz estranhamente calma, que ele esperasse lá fora com a babá.
Juan, chamou-lhe assim. Deveria ser esse o motivo da briga com a Sra. Daigle. Seria aquela o filho dos dois? Um bastardo?
As duas filhas mais velhas do Sr. Lewis trocaram um rápido olhar. Lorde Byron desviou a atenção para o lado de fora.
Sim, era essa a resposta.
O sino balançou mais uma vez. Lorde Stanton havia ido embora junto com o filho. Acompanhar a vida de Stanton era um passatempo sem propósito, que a própria existência apenas adiava o inevitável.
Logan levantou as sobrancelhas, mas nada disse. Millicent deu um sorriso constrangido e voltou a levar a colher cheia de sorvete para a boca. Enquanto isso, Lilian tentava evitar que Pollyana sujasse todo o vestido novo de creme congelado.
Então, Julia soube; não era a única a guardar segredos.
XII. Dos segredos
Julia não disse os reais segredos que guardava em seu coração. Ela nunca disse onde esteve durante a semana da fuga. Não que isso importasse; a partir do momento que estava fora da guarnição do cunhado e a irmã, tornou-se uma mulher sem honra.
Ela se arrependia amargamente por ter feito daquele jeito. Se não tivesse escrito a carta e saído no meio da noite talvez o plano teria dado certo. Se não tivesse sido tão impulsiva e desesperada, poderia ter feito escolhas melhores. Talvez não teria sido encontrada no porto e dado um fim ao sofrimento constante. As irmãs esqueceriam eventualmente dela e o rancor por ter estragado as suas vidas tornar-se-ia uma lembrança recorrente até que qualquer amor fosse suprimido pela dor. Então, não doeria mais.
A raiz do sofrimento parecia tão antiga que por muitas vezes Julia esquecia de que não nascera assim, que a tristeza não lhe era um traço de personalidade. Com dificuldade, ela lembrava quando seus sentimentos pararam de importar; foi no dia em que o Sr. Lewis morreu.
Todos da vizinhança ficaram muito admirados com a resiliência da Lewis mais velha, afinal, era a filha que se mostrava mais próxima do velho médico. Era ela que escutava Millicent contar lembranças que tinha do pai, oferecia lenços para Lilian quando a menina começava a chorar em momentos inoportunos e brincava com Polly de madrugada, quando a caçula não conseguia dormir. Foi a Srta. Lewis que convenceu as irmãs a saírem de casa sem fazer alarde e tentar seguir em frente, mesmo que a carta de despejo lhe fosse uma facada no peito.
Era uma hipócrita, a Srta. Julia Lewis. Nunca conseguiu seguir em frente; nem mesmo deixou de usar as roupas escuras que sinalizavam o luto. As pessoas chamavam de resiliência o que era, na verdade, desistência. Não lutou tanto quanto Millicent para manter as irmãs juntas, pouco fez quando a nova realidade oprimia a nova Lady Byron e nem se importou em deixar a família com a reputação manchada para sempre.
Então, foi difícil para qualquer pessoa da casa de Lorde Byron entender por que ela aceitou a visita do Sr. Woodhouse. Não estava sozinha, é claro: ao seu lado estava Millicent e Lilian, as duas parecendo tão nobres quanto qualquer outra mulher de Mayfair. Nem tentaram disfarçar a hostilidade e repulsa que sentiam para com o homem ― até mesmo o barulho das xícaras batendo no pires exalava a irritação das irmãs.
― Obrigada por me receber ― disse o Sr. Woodhouse, encarando Julia sem discrição. ― O que vim falar é importante.
Julia encarou a xícara de chá de folha de amora intocada. Odiava aquele sabor de chá, tinha gosto de água suja.
― Pois, então, diga.
― Estou fora da Selene ― afirmou ele. ― Estarei em busca de uma nova companhia e gostaria que você me acompanhasse. Fiz do jeito errado na primeira vez, deveria ter conversado antes. Dessa vez estarei à procura de alguém realmente disposto a dar-lhe uma chance.
A Srta. Lewis levou o chá até a boca.
― Eu…― o pianista engoliu a saliva. ― Eu agi de forma reprovável, Julia. Quero consertar as coisas. Consertar tudo.
A mulher continuou calada bebendo o chá intragável.
― Tudo, tudo o quê? ― indagou Millie impaciente.
― Tudo ― repetiu o homem. ― Ela conhece meus sentimentos, milady. Estou apaixonado por ela desde antes do nosso… incidente. Se desejar, hoje mesmo posso falar com o milorde e pedir a mão dela em casamento.
A dona do tópico da conversa, no entanto, cuspiu de forma mal-educada o chá de volta para a xícara. Os pares de olhos da sala de visitas a encararam entre a surpresa e a repulsa.
― Prefiro perder a perna ao ter você na minha família ― replicou Lilian irritada. ― Seu nojento!
― Lily! ― exclamou Millicent em choque. ― Se continuar agindo dessa maneira, irei mandá-la de volta para a sua preceptora!
― Eu não quero me casar com você, Woodhouse. ― Afirmou mais uma vez Julia.
― Mas, July…
Ela suspirou cansada.
― Quando você irá entender? Aquele dia eu estava fora de mim… ― calou-se, incapaz de admitir que estava envolvida na névoa de autodestruição como nunca antes. Que ensaiava ser aquilo o último ato de rebeldia. ― Obrigada por vir e me explicar… Seja lá o que for, mas não quero acompanhá-lo em sua carreira. Aliás, talvez seja a hora de parar de vez em algum lugar, não é? Seu pai estava mais satisfeito com as suas escolhas na época que era administrador de Byron…
― Por que não quer vir comigo?
Julia encarou o seu antigo amor; era-lhe alguém tão confortável, tão bom, tão impressionante… Agora, porém, não o via daquele jeito. Se dissesse que continuaria sendo sua assistente, embora odiasse aquela posição, seria como alimentar um animal morto. E estar ao lado de Woodhouse por mais de cinco minutos era-lhe uma atividade cansativa e dolorosa. Como pode, em algum dia, dizer que o amava? Alguém que sempre duvidava dela e de seus objetivos não merecia nada além do desprezo.
Olhando para o pianista cheio de ego, percebeu que ele não era tão diferente quanto tentava transparecer. Era um homem medíocre como todos os outros.
― Porque o caminho que você me mostrou é cheio de pedras e ruas íngremes. Quero um lugar em que eu possa andar descalça.
Ninguém entendeu as palavras de Julia. Ela, que nunca foi de metáforas, agiu como se a conversa tivesse acabado: levantou-se e se despediu, voltando para o quarto.
…
A casa da Sra. Daigle era tão extravagante quanto era de se imaginar. O padrão de cores era irregular, sendo cada canto ornado por artigos luxuosos, muitos deles tão inúteis que apenas acumulavam poeira. Havia um cheiro forte de incenso cobrindo um odor maior, como um perfume francês borrifado em um cavalo sujo. A artista por muitas vezes disse a si mesma que contrataria servos novos, mas desde os problemas que o último amante lhe deu, preferiu manter o pouco de privacidade que restara-lhe.
Julia não deveria estar ali. Certo que não era a mulher da reputação mais imaculada de Londres, mas havia certos limites que não deveria sobrepor: visitar a casa de uma atriz era uma dessas.
Mas parecia tão mesquinho não agradecer o apoio da mulher no seu primeiro dia na Companhia Selene. Ainda lembrava do murmúrio da primeira nota, um aviso para que ela se acalmasse.
Sentou-se no divã junto ao da Sra. Daigle, do jeito que foi orientada. A atriz não carregava nada na face além do costumeiro pó branco, que não era suficiente para esconder as rugas dos olhos; o rosto estava inchado como de quem acordara há poucos minutos. Ironicamente, a falta de cuidado com a própria imagem deixava-a mais jovem. Não deveria ter mais de trinta e cinco anos.
― Minha criada está preparando chá, em breve será atendida ― explicou a Sra. Daigle dando-lhe um sorriso simpático.
― Tudo bem ― replicou Julia de praxe.
― Como está, minha querida? Soube que sua saída do teatro foi um tanto dramática…
Srta. Lewis encarou o chão calculando como rechaçar aquela conversa sem ser mal-educada. Com um timing exemplar, a criada apareceu pondo na mesa um chá preto recém-saído do fogo. Predispôs-se a servir a anfitriã que, tendo poucas habilidades com a louça nova, aceitou a amabilidade com um sorriso.
― O seu noivo.... Digo, ex-noivo, também saiu da Selene ― retomou o assunto. ― Ouvi a pequena briga entre ele e o maestro. Não foi muito bom assistir.
Julia ensaiou um sorriso, mas ele não chegou aos olhos.
― O que Woodhouse faz ou deixa de fazer tornou-se irrelevante para mim assim que nossos laços foram cortados.
A atriz ergueu a bonita sobrancelha, mas não disse nada. A pianista arrependeu-se de vir ― talvez não estivesse tão grata assim.
― Sabe como eu conheci Woodhouse?
Ela negou com a cabeça, embora não quisesse realmente escutar aquela história. Sra. Daigle suspirou e Julia percebeu como os movimentos dela pareciam um reflexo, uma sombra; parte de algo real, mas não a coisa em si.
― Ele ainda era muito novo e mais idealista ― iniciou. ― Tocava esplendorosamente bem, mas sonhava em ser maestro.
Julia conhecia essa história, mas assentiu como se fosse leiga no assunto. Buscou com os olhos algum sinal de que o tempo passara ― a casa, no entanto, não lhe deu nada satisfatório.
― Sempre estava em vários saraus e bailes, era muito requisitado. Woodhouse se gabava muito por isso ― Daigle deu uma risadinha. ― Era ridículo, você deveria ver.
A atriz não continuou no tópico enfadonho; a conversa tinha se tornado um monólogo sódico. Ela mesma não gostava de falar daquilo; quem era Woodhouse em sua vida? Só mais um arrogante que caíra do cavalo pela própria incompetência.
― Somos amigas, Srta. Lewis?
A pergunta pegou Julia desprevenida. Quando pensava em amigas não vinha nomes além da irmã mais nova. Talvez pudesse considerar Byron um amigo? A Srta. Bridgestone era próxima da família e sabia que poderia contar com ela… Havia também as amigas de Millie, mas apenas algumas tardes de chá não eram suficientes para considerar uma amizade.
Sra. Daigle era sua amiga?
― Sim, claro.
Não, pensou ela. Nunca confiaria de verdade na artista.
Desconhecendo os pensamentos da pianista, a Sra. Daigle esticou-se para guardar a mão direita de Julia entre as suas. Em seus dedos carregavam discretos anéis.
― Afaste-se de Stanton.
A resposta certa deveria ser “nunca fomos próximos”. Ela, porém, disse:
― O que está dizendo?
Com a voz aveludada, continuou:
― Sei que esteve com ele na noite de estreia. Se está trabalhando no teatro é porque não tem grande reputação, mas ele é uma cobra enganadora. Digo mais: ele é pior que Woodhouse.
― Eu conheci Juan.
A artista afastou-se como se a pele de Julia queimasse. Conhecer era um exagero ― a pianista viu uma vez e nem deveria trazer aquele tópico à tona. Ainda assim, o jeito amável que o milorde tratara o garoto e a briga que ouvira no teatro eram um quebra-cabeça que faltava uma peça.
― E? ― disse Sra. Daigle na defensiva.
― Ele é seu filho? ― perguntou, apesar de ter soado muito mais como uma afirmação.
― Nunca o quis ― justificou a artista.
― É um bonito menino.
Com os olhos semicerrados, a anfitriã deixou de lado a posição de alguém cheia de amabilidade; vestiu, então, a camisa da hostilidade.
― Está querendo tornar-se mãe dele, Srta. Lewis?
A pianista riu com aquele absurdo. Antes de responder-lhe, a Sra. Daigle continuou:
― Você gosta dele? Acha que ele vai amar-te para sempre? ― deu uma gargalhada ensaiada. ― Stanton nunca será um libertino regenerado como nos livros, Srta. Lewis. Ele pode ter bons lábios, mas, quando você não quiser fazer o que ele deseja, te perseguirá para sempre.
Julia não escutou muita coisa. Tentava encontrar uma resposta satisfatória para a pergunta.
Você gosta dele?
― Ele prometeu-me que se eu tivesse o bebê iria sumir com o menino e não me pertubaria ― prosseguiu, a voz tornando rancorosa. ― Você sabe o que aconteceu.
A pianista repetiu a frase.
Você gosta dele?
Você está apaixonada pelo Lorde Stanton?
Você ama a Lorde Stanton?
Sra. Daigle ficou bastante ofendida quando, diante de seu relato tão doloroso, Julia deixou que uma alta e sonora gargalhada invadisse a garganta. Ela chorou, mal conseguia respirar.
Você gosta dele?
Julia beijou o rosto de Sra. Daigle antes de ir embora. Pediu desculpas, disse que não poderiam mais se encontrar. Que tivesse muito sucesso e que coisa triste essa confusão com Lorde Stanton. Qual é o seu primeiro nome mesmo? Não importa, disse antes de ir embora.
A artista achou-a louca e agradeceu por não vê-la mais uma vez. Stanton merecia uma amante assim.
A pianista chegou em casa com um humor nas alturas; ninguém entendeu até que ela contou a história para Millie. Lady Byron não entendeu muita coisa, mas ficou feliz que a irmã não iria encontrar-se com a Sra. Daigle mais. Não confiava nela.
A Srta. Lewis brincou até dormir no berçário junto com Polly. Acordou apenas para comer o jantar requentado e passou o resto da noite encarando a lua pela janela.
De vez em quando ela lembrava da pergunta. E ela ria e ria.
XIII. Do sonho
Julia não disse que estava começando a achar que o sonho não era seu; era, então, do seu pai. Observava aquele instrumento luxuoso, sempre muito bem cuidado pelos criados do Lorde Byron, mas que antes não tinha ninguém que o tocasse. O piano era só mais uma pequena parte da decoração sofisticada da sala ― revelava sem falar muito que o milorde poderia vir de uma complicada árvore genealógica, mas ainda assim era mais rico do que muitos de puro sangue azul. Nem mesmo os casamentos entre primos seriam páreos ao poder do dinheiro.
Srta. Lewis deixou os dedos atravessarem as teclas do piano sem pretensão alguma. Não a pertencia ― aquele brilhante e pesado instrumento tinha dono real. Ela apenas pegara emprestado; o sonho também era de outra pessoa? Era ilusão apegar-se a algo que nem mesmo era fruto dos próprios desejos?
Nos dias que se seguiram, ela voltou à rotina de irmã mais velha pré-Londres. Cuidava e estragava a educação da caçula dos Lewis ― não conseguia controlar Polly na mesma proporção que a adorava demais para ser dura com ela. Das irmãs que viu crescer, aquela era quem mais a ludibriava com as bochechas rosadas e o sorriso honesto.
De vez em quando, porém, olhava para o piano de rabo de olho. Sentia às vezes uma sensação de falta, outras vezes nem se lembrava que tinha um talento. Se bem que nem mesmo lembrava que estava existindo.
― Srta. Lewis?
A mulher disfarçou o susto ao ser chamada pelo mordomo. Estava sozinha na biblioteca, fingindo ler o livro que Lilian havia lhe indicado.
― Sim?
― Há uma visita para a senhora. Deseja recebê-la?
Ela franziu o cenho.
― Visita para mim? Nesse horário?
― Aqui está o cartão de visita, senhorita.
O retângulo era pequeno e tinha uma caligrafia caprichada. O nome era familiar, mas a pianista demorou alguns segundos para reconhecê-lo.
― Mande-a entrar. Irei encontrá-la na sala de visitas.
Sra. Robertson conseguia ser mais inglesa do que qualquer outra em toda a nação; os modos afetados, a cintura apertada pelo espartilho, as frases ensaiadas como a de uma peça de teatro. Estava junto com a acompanhante de rugas nos cantos da boca. Veio acompanhada com uma mulher de postura austera e de corpo robusto; era também familiar, embora não o suficiente para que Julia tivesse sua nítida imagem na cabeça;
― Um horário estranho para uma visita, Sra. Robertson ― comentou Julia apontando para o sofá. ― Minha irmã não está em casa, acredito que…
― Viemos falar com a senhorita, não com sua irmã ― iniciou a acompanhante.
― Hm, estava muito a fim de tomar um chá com a senhorita ― atropelou a Sra. Robertson. Embora estivesse muito desconcertada com o comportamento da mulher que a acompanhava, não demonstrou qualquer sentimento.
― Fomos formalmente apresentadas no sarau, lembra-se?
Julia apertou os lábios. Não lembrava de ter citado seu parentesco; aliás, dissera apenas que advinha do interior. Era, porém, de se esperar que uma hora ela descobriria que a pianista era uma mulher de reputação manchada.
― Imagino que haja algo muito importante para dizer-me levando em consideração que as complicações sociais não a impediram de vir aqui.
Ela deu uma risadinha; não havia graça nenhuma.
― Não seja boba, srta. Lewis. Por que acha que viemos nesse horário?
― Por que veio aqui exatamente, senhora?
A acompanhante tomou a frente.
― Fomos ao teatro semana passada e não a encontramos. Disseram que você morava aqui.
Os olhos de Julia desceram para o chão em uma fração de segundo; um pouco de paz, um suspiro.
― Certo, me encontraram. O que deseja?
― Quero que trabalhe comigo.
A pianista encarou a acompanhante como se finalmente a enxergarsse. Reconheceu-a, então, como a mulher que estava entre a Sra. Richardson e o Sr. Wells. Uma das pessoas que batia palmas.
― Sei que aquela música foi composta por você. Nunca ouvi nada igual. Quero compositoras como você em meu teatro.
― Quem é você?
Com certeza Julia Lewis soou muito mal-educada com aquela pergunta; não pôde evitar. Não se vestia de forma luxuosa, nem tinha aparência de atriz; era também mulher e dificilmente o sexo carregava em seu patrimônio um teatro. Tinha a voz grave, um sotaque polido e cabelos brancos, apesar do rosto manter um brilho vivaz de juventude.
― Alguém que teve sua reputação manchada por fazer música. Alguém que pode realmente levá-la para onde você quer ir.
A pianista encarou as mãos nuas. Estavam tremendo.
De quem era aquele sonho? Pertencia ao Sr. Lewis ou era dela?
De quem era a vontade de tocar música para um público que não fosse sua família?
Seu coração encheu-se de calor. Não deveria confiar tão fácil, cometera esse erro uma vez. No entanto, pareceu-lhe que estava mais uma vez acordando de uma longa noite cheia de pesadelos. Era hora de encarar o sol.
De quem era o sonho?
Ela sabia a resposta.
― O que eu devo fazer?
XIV. Da ansiedade
Julia não disse o porquê de às vezes ficar muito nervosa antes de tocar. Ora, ela estava acostumada a apresentar-se na igreja, era sempre chamada para o piano no fim dos jantares e lia partituras com mais facilidade do que a maioria dos músicos de Southwark Village. Por que, de repente, ela tinha tanta dificuldade em se concentrar?
Ela não tinha resposta para essa pergunta; mas havia teorias, é claro.
Londres não era Southwark Village; não tinha pessoas calorosas, tão igualmente pobres e cheio de dificuldades que ela nunca se sentiu acima ou abaixo deles. Eram uns fofoqueiros também; mas ela não seria hipócrita. Admitia que em um lugar onde pouca coisa acontece, falar da vida alheia é um tópico bastante tentador.
Em Londres, porém, tudo era diferente. Ela sentira desde o momento que entrou em Berkshire Hall e via os constantes desafios que sua irmã mais nova enfrentava; houve dias, quando o Lorde Byron estava longe e os Klines tornavam o simples sentar na sala um ato insuportável, Julia desejou não ter encorajado Millie a progredir com aquela loucura. Ela sabia que não adiantaria ― se Millicent achava que suas atitudes eram para o bem maior, não havia quem pudesse impedi-la de buscar seu objetivo. Era a sua maior qualidade; também o seu maior defeito.
A capital cinza, imponente e suja foi também onde encontrou um caminho antes inimaginável. Ainda não conseguia crer que tivera uma conversa com uma pianista ― que carregava aquele título com tanta pompa quanto um marquês ou um duque. Não era assistente de alguém, uma mão dos bastidores manipulando uma marionete; era ela a artista. Era ela que sentava e guiava os dedos pelas teclas.
Dorothy. Ela não usava um sobrenome, não pertencia mais a nenhuma família. Se Julia falasse que já havia ouvido falar da mulher, seria mentira ― era só mais um nome entre tantos outros até a última tarde. Até desacreditaria do currículo extenso, mas as letras miúdas nos folhetos tinham a curvatura do nome dela.
De noite, a sua provável nova chefe os visitaria. Não havia qualquer confirmação de sua vinda, mas seria muita falta de educação recusar um pedido de uma milady. Millicent estava desconfiada daquela proposta incrível e mirabolante para ser aprendiz de alguém que conhecia o mundo dos musicais.
― Julia, posso entrar?
― Entra! ― a pianista deu uma réplica antes mesmo de Lilian terminar a frase.
Naquela idade, a menina parecia mudar muito mais rápido. Tinha dias que o rosto ainda carregava as marcas infantis; outros dias, elas mesmas possuíam tanta segurança que desafiavam a chamá-la de qualquer outra coisa senão mulher.
A jovem sentou-se na beirada da cama sem dizer muita coisa. Srta. Lewis sorriu-lhe, incentivando que ela dissesse.
― Eu tenho uma pergunta.
Julia sorriu mais ainda. Era como se Lily voltasse a ser uma criança indagando sobre tudo e todos.
― Eu respondo até duas.
― Por que você nunca agiu como irmã mais velha?
O sorriso vacilou no rosto; Lily, porém, não.
― Não é uma acusação ― reiterou a menina. ― Eu só quero entender. Quando perdemos a nossa casa, quem resolveu tudo foi Millicent. Ela que se pôs em risco, apesar de que todo mundo esperava que fosse você a fazer isso.
Srta. Lewis deu um suspiro para controlar as emoções; embora avisasse que não era uma acusação, as palavras de Lilian soaram como tal. Tremia os nervos ver quão pouco as irmãs pensavam sobre ela.
― Eu estava planejando uma coisa na época, na verdade ― afirmou com cuidado ―, mas Millie foi sempre mais rápida.
― Certo ― ela concordou com a cabeça. ― Então, por que fugiu quando foi pega fazendo coisas com Woodhouse?
Julia ficou vermelha até as pontas dos cabelos. Não sabia o tanto que sua irmã sabia ― mas aquele detalhe não deveria chegar-lhe aos ouvidos. Explicar a noite de sua partida era difícil, porque nem mesmo ela entendia certo o que pensava. Faria diferente se pudesse; no entanto, duvidava muito que as irmãs não sofreriam do mesmo jeito.
A pianista sentou-se ao lado da irmã em silêncio. Já estava ficando escuro; em breve seria hora do jantar.
― Eu estava me sentindo muito sozinha ― começou ela. Em sua cabeça ainda se sentia daquele modo, mas continuou: ― Tentei conversar com Millie, mas não consegui me expressar bem e ela não conseguia me compreender. Woodhouse era horrível. Uma hora me achava boa e outra achava que eu não era suficiente. Sentia-me sendo levada para um lado e para o outro sem destino.
Lily segurou a mão desnuda da irmã; pôde sentir que era um pouco mais áspera do que a dela, que só era usada para escrever e passar folhas de livros.
― Eu cansei de resistir naquela noite ― confessou. ― Só queria parar de sentir-me sozinha. Queria não ter que pensar que continuar aprendendo piano era uma perda de tempo. E Millie estava tão ansiosa para que eu casasse! O que aconteceu com ela e Logan é lindo, mas não é comum. Não fui destinada a ter uma história de amor como a dela, Lily. Nunca fui.
― Por que não, July? Você é linda e talentosa! ― argumentou a menina.
― Todas as mulheres da minha família morreram no parto, Lilian.
― Mas…
― Todas. Uma deve morrer para que uma nasça. É sempre isso. Sei de cinco gerações.
Lilian fechou a boca, incapaz de argumentar. Sabia que a mãe da mais velha havia morrido ao dar à luz, mas nunca a tinha visto comentar sobre. Julia nunca falava da mãe morta que nunca conhecera, então nunca pensou muito no assunto.
― Eu quero pedir perdão a você ― disse a pianista. ― O que eu fiz naquela noite reverberará negativamente por toda a sua vida...
― Só quero entender ― disse Lilian, desesperada por uma resposta que não sabia ao certo. ― Por que foi embora? Por que não pensou um pouco e ficou conosco? Por que não agiu sensatamente como Millie sempre faz?
As comparações eram as que mais a matavam. Todos os dias ouvia o quanto era mais educada que a irmã, quando no fundo não era verdade; também ouvia que era ela que deveria ser a Lady Byron, quando a simples ideia de sorrir para a sociedade de sangue azul lhe dava nos nervos. Existiam, por outro lado, as comparações que a depreciavam: Millie era mais madura, mais paciente, mais responsável. Ela era uma adulta ingênua que estava atrás do sonho inalcançável.
Desejou despejar ali toda a carga que carregava. Dizer tudo o que engoliu nos últimos anos. Mas, apesar de ter ouvidos e voz de adulta, Lilian ainda era uma criança e não seria capaz de compreender tudo; Julia costumava se esquecer disso.
― Nem sempre vamos fazer a melhor escolha na vida. ― Deu tapinhas na perna. ― Agora vá se arrumar para o jantar. Depois conversamos mais.
A jovem recusou no começo, mas logo foi dissuadida a sair. Julia empurrava entre risos os ombros da mais nova quando percebeu que a porta ainda estava aberta; nela estava Millicent segurando um vestido ― a desculpa para conversar com a irmã mais velha.
Nas mãos, os dedos estavam pálidos.
― Millie? ― perguntou Lily, preocupada. ― Está tudo bem?
― July… ― Piscou confusa. Deu um sorriso artificial, até meio assustador. ― Eu estou bem, Lily. Apenas me distraí com…
― A conversa ― completou Julia. ― Estava escutando nossa conversa, não foi?
Millicent sentiu-se muito constrangida, mas não o suficiente para perder a compostura. Era a mais baixa das três, no entanto parecia maior quando levantou o queixo.
― Estava sim. Não quis atrapalhar.
As irmãs Lewis se encararam; ninguém disse nada. A língua de Julia coçava ― que momento bom para ela desejar dizer alguma coisa! Não havia, porém, qualquer palavra que não soasse excessivamente fabricada e sem contexto. Em sua garganta havia palavras vivas, mas incapazes de sobreviver longe do lugar de origem.
Lilian foi a primeira a voltar ao seu caminho. Não precisava muito para entender que sua presença era o que mantinha as filhas mais velhas de Sr. Lewis em pé no corredor, como se não tivessem nada melhor para fazer além de encarar uma a outra.
Quando finalmente estavam sozinhas, Millicent não demorou muito para dizer:
― Você não respondeu a Lilian.
Julia fez um pequeno barulho com a língua, sem acreditar naquilo.
― Espere! ― suplicou a milady, segurando o braço da irmã como se lhe fosse a última esperança.
Para a Lady Byron, era quase possível ver o balão de palavras não ditas tirando sua irmã do chão, deixando-a flutuar por onde passava. Estavam sendo engolidas por elas; cada som tornando-se um arranhar infinito na língua.
Era a chance Julia Lewis; finalmente poderia falar. Desejava tanto dizer-lhe, porém não imaginou a repentina tristeza que a atingiu.
― Você nunca me deixou ser a irmã mais velha, Millie. Mesmo quando eu era criança e tentava cuidar de você, mesmo quando eu oferecia minha mão… Era você que me guiava.
A voz da pianista soou mórbida; sem brilho e sem cor. Millie preferia que ela tivesse gritado e, então, ela não sentir-se-ia tão pequena.
― Eu nunca me achei necessária ― sussurrou. ― Você que viu as contas do papai pela primeira vez, você que falou com a Sr. Bridgestone para que ficássemos na igreja, você que se casou com um completo estranho para nos salvar da ruína… Você nem mesmo me perguntou o que achava antes de dar uma resposta positiva a Byron. Quando eu fui embora… Não me sentia mais necessária. Eu não iria voltar, porque nunca deixei Lilian e Polliana sozinhas ― as mãos da mulher foram para os curtos ombros da milady. ― Não me entenda mal. Sou grata por te ter ao meu lado. Deus sabe que eu não aguentaria… Mas eu não sou você, Millie. Eu tentei ser tantas vezes. Sentia que estava decepcionando a cada momento. Então, decidi que seria a última decisão. Desculpe-me por não ser a irmã mais velha que você merece, querida.
Os lábios de Millicent faziam um pequeno bico, mas os olhos não conseguiam conter o choro. Sua irmã ― tão insolente, tão ingênua, tão talentosa, tão melhor, carregava um peso indivisível. Abraçou-a. Para Julia, que desabou em lágrimas assim que o cheiro característico da irmã entrou nas suas narinas, era uma nova experiência sentir a redonda casa de seu sobrinho dividindo-lhe o espaço.
Os pedidos de perdão, que aconteciam com frequência, ocorreram em atrapalhos, honestos demais para serem ensaiados. Então, Julia Lewis entendeu que amor nenhum superaria o que sentia pela irmã.
― Vamos lavar o rosto e descer ― disse Millie limpando a face com um lenço. ― Temos uma visita importante para você, pianista.
July sorriu. Muitos a chamariam desse modo nos próximos meses; uns com honrarias, outros por desconhecer seu nome e outros tantos com zombaria. Era, porém, quando Millicent a chamava assim que ela se sentia uma verdadeira pianista.
XV. Do adeus
Julia Lewis não disse que gostava de dar adeus. Não adeus súbitos, adeus maliciosos, adeus capazes de atingir-lhe. Adeus como os da morte. Ela, na verdade, gostava do adeus controlável ― do fim, do ponto final, da última cena, da conclusão da trajetória. Era só no fim de uma boa ópera que se entendia a magnitude dela; antes, enquanto ela acontece, há sempre a probabilidade dela perder o fôlego e tornar-se menos atrativa do que intentou ser no começo. Apenas depois do adeus que poderia refletir a obra assistida.
Julia gostava de finais. Principalmente aqueles em que era ela quem ditava. Encontrou Woodhouse em um baile público, um dia antes de uma tempestade de neve, longe de Londres e cheio de pessoas bêbadas. Trocaram apenas dois cumprimentos com sons de partida; e a mulher sentiu-se tão indiferente que se surpreendeu. Decidiu, então, que aquele era o adeus definitivo.
Para o Lorde Richard Stanton, porém, trocou mais algumas palavras. Encontrou-o em um corredor de um sarau, parecendo entediado com as diversões chiques.
Estava indo em direção ao toalete quando topou-o encarando a janela para o lado iluminado do jardim. A expressão tão séria deixou-o uns dez anos mais velho; era possível encontrar as olheiras roxas e as rugas de um rosto esticado. Não parecia tão bonito.
― Ora, se não é a famosa nova aprendiz da Dorothy!
Julia não conseguiu segurar o sorriso. Gostava de ser lembrada como pupila daquela mulher cheia de para-quê-isso e talentosa.
― Boa noite, milorde.
Richard levantou a sobrancelha em zombaria.
― Agora sou milorde?
Duas mulheres passaram por ele em risadinhas. Julia manteve-se distante.
― Sei ser educada. Eu passei uns bons anos na escola, você sabe.
― Ah! ― exclamou Stanton. ― Pensei que era a Dorothy que havia lhe ensinado a ser menos bruta como uma égua.
A Srta. Lewis revirou os olhos, mas não disse nada sobre isso. Naquela noite estava de bom humor. Tinham recebido a visita dos amigos de Byron, o Conde e a Condessa de Dudley. Eles eram figuras confortantes e estavam muito perto de ter o primeiro filho. Foi uma tarde divertida.
― Como está seu filho?
O nobre fitou-a desconfiado. Como ela conhecia Juan? Então, lembrou-se da sorverteria.
― Está bem ― replicou por fim.
― Quero agradecer-lhe, Stanton. ― Iniciou Julia. ― Se não tivesse me levado àquele sarau, Dorothy nunca teria me conhecido.
― Nunca é uma palavra muito forte ― disse o milorde. ― Mas, você tem razão. Facilitei muito as coisas para você. Por nada.
Julia encarou-o, como se não tivesse o feito há muito tempo.
― Você fez de propósito, não é? Quis que ela me conhecesse?
Ele deu de ombros e não respondeu.
― Se você não fosse um crápula, um monstro de caráter nefasto, talvez eu me afeiçoasse a você ― disse Julia.
As ofensas não atingiram Stanton. Na verdade, ele deu uma risada e inclinou-se roubando-lhe um beijo. Julia foi tão rápida quanto: ergueu a mão e deu-lhe um tapa. Semanas mais tarde, todos ficaram meio chocados ao descobrir que ele fugira com uma jovem herdeira americana e casou-se com ela. A Srta. Lewis pensou, então, no dia em que a Sra. Daigle indagou se ela gostava de Stanton.
E ela riu mais uma vez.
Ser aprendiz de Dorothy era uma grande e árdua aventura. Mesmo que não tivesse a oportunidade de tocar em todos os eventos que mestre a levava, aprendia com os pequenos comentários da mulher. Sentia-se cada vez mais familiarizada com a rotina de um músico e já não era mais uma estrangeira naquela terra de arrogantes. A mulher nunca estava em um lugar específico, não tinha horários certos e dificilmente iniciava uma nova coisa sem terminar o trabalho corrente. Não demorou muito para que a nova pianista do Eden Amphitheater descobrisse que havia uma diferença gigantesca entre ter um professor exigente e um abusivo.
Com toda certeza, Dorothy era a primeira opção. Embora continuasse com o sono desregulado, Julia tinha muito mais facilidade de dormir do que antes. Passava tanto tempo com a mente em turbilhão que a chance de parar de pensar um pouco era sempre um alívio.
Os meses passaram-se ― o Natal chegou, o ano de 1852 também. A barriga de Millicent crescia e o inverno se tornava um aliado para Lilian, que sempre gostou de ler perto da lareira; Polliana, por outro lado, era uma criança que odiava frio, mas se divertia em brincar na neve.
Julia passou a ser conhecida como a sombra de Dorothy, algo que ela não via como um desmerecimento de jeito nenhum. Quando apresentada pelos diferentes círculos sociais, a dona do Eden Amphitheater costumava receber perguntas como “que Lewis?”, ao que ela respondia “Lewis, oras!” como se estivesse dando uma informação nova e ajudado a desvendar quem era a pianista. Ninguém ousava perguntar de novo.
Estavam no porto da capital londrina. Em alguns minutos, a mais nova pianista viajaria junto com Dorothy para a Itália. Foi um longo caminho convencer a mulher que era necessário adiantar a viagem, já que a mais velha das Lewis queria estar perto da irmã na hora do parto.
Se despediu das irmãs em casa, pois Millie não estava bem o suficiente para andar em um lugar cheio de gente e com um cheiro de procedência duvidosa. Lilian chorou, mesmo que Julia repetisse que em breve estaria de volta; Polliana a fez prometer que compraria alguma coisa para ela e Millicent apenas beijou-lhe a bochecha e desejou que ela conquistasse o mundo.
No porto, porém, Lorde Byron a acompanhou. O homem que assumiu a liderança das Lewis não era de falar muito ― nem mesmo quando voltou para casa após fugir na surdina, ele trocou muitas palavras com Julia. Ele também parecia sempre viver na balança entre a nobreza e o serviço; ajudou a tirar o baú da carruagem, mesmo que ninguém tenha pedido. Ainda assim, dava ordens como alguém que naturalmente o fazia todo dia.
O cheiro do rio Tâmisa era insuportável; era podre e ardia as narinas. Julia cruzou os braços quando uma rajada de vento lhe tocou o rosto.
― Onde está a Sra. Dorothy? ― indagou o milorde.
― Estará aqui em breve ― replicou Julia.
Mais uma ventania. Lorde Byron fechou um botão do casaco. A cunhada lambeu os lábios secos e percebeu o leve aproximar de Logan, como um guarda-costas de roupas caras.
O barulho de homens trabalhando estava muito longe dos ouvidos da pianista. O som do mar deixava o estômago dela revirando de medo. Foi há um século, mas ela ainda lembrava de estar muito perto da água suja, acreditando que ali encontraria algum tipo de redenção.
― Acho que sei por que você fez questão de vir.
Logan não disse nada; não havia tentado esconder aquilo.
― Você se sente bem?
Uma pergunta simples, uma resposta complicada. Julia ainda não dormia a noite inteira, ainda se sentia mais triste do que feliz e carregava pesos compartilháveis. Ainda assim, não era mais a moça que fugira dizendo que não iria casar com o seu instrutor, embora tivesse planos de morrer no Tâmisa. Havia ganhado a chance da vida na Companhia Selene, mesmo assim voltara para o porto e tentara dar fim à dor. Ainda lembrava de ser perseguida pelo Detetive Bane, de ouvir os berros quando se jogou do navio aleatório que subira.
Julia encarou o cunhado.
― Obrigada por ter guardado meu segredo, Byron.
― Se você fizer alguma coisa…
― Você contará. ― Interrompeu a pianista. ― Eu sei.
Ele ergueu a mão e a pôs no ombro da mulher. Considerava também sua irmã, sua família.
― Prometa-me que irá voltar bem. O piano ainda é seu, Julia. Ele estará te esperando.
Dorothy apareceu na esquina de uma grande caixa de madeira. Ela xingava com sua voz alta e mal-educada. A pianista sorriu mais uma vez.
Epílogo
O anfiteatro tinha bastante gente. Fazia muito calor, não era alta temporada ― mas ninguém diria não para a estreia da pupila de Dorothy. Falavam as más línguas de como era absurdo duas mulheres quererem aparecer com a música, porém nem elas poderiam evitar segurar a curiosidade. Eram aquelas mulheres boas musicistas?
Julia não esqueceu da música naquela noite. Tremeu de nervosa, mas não deixou as dores de estômago a dominar. Não viu o rosto de ninguém, absorta no som que os dedos faziam contra as teclas. Imaginava os seus pais no além, no céu, no lugar de descanso, sentados ouvindo-a tocar, enquanto ela usava aquele bonito vestido azul-marinho. Compôs a canção para eles.
Na cartilha do espetáculo, o poema composto por ela:
Para os jovens apaixonados
sonhos de mais, tempo de menos.
Para os primeiros amantes,
à espera do frutificar.
Para aqueles que perderam,
para aqueles que ganharam,
para aqueles que se foram,
para aqueles que nunca disseram,
dou-lhes a paz.
Fim
A cristã em mim não pode esquecer de agradecer a Deus por não ter me deixado sozinha, mesmo quando eu achei que estava.
Quero agradecer aos meus amigos e leitores-beta. Ingrid Aline, Janyelle e Dênis. Obrigada por cada toque vocês me deram. Também agradeço a minha antiga beta, Mariana e Lelen. Obrigada pela dedicação e cuidado com minha fic, meninas <3
'O que Julia não disse' foi um desafio para mim. Nunca escrevi uma trajetória de uma mulher sem envolver romance e não sabia se eu era capaz de escrever algo assim. A recepção foi muito boa e não posso deixar de agradecer a cada uma que comentou, acompanhou e gostou dela. Não citarei nomes para não ser injusta. Julia não é uma personagem fácil, muito menos perfeita. Obrigada por entenderem isso.
Dedico essa história para todos aqueles que sentem demais e falam de menos. Talvez seja a hora de vocês dizerem alguma coisa.