O Paradoxo de Murphy

Escrito por Sial | Editado por Lelen

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Prólogo

Sexta-feira
9 de setembro
Seogwipo, Ilha de Jeju

  Até o mais velho ser humano vivo da atualidade acharia aquela ideia uma porcaria.
  Os pedaços de papel cortados na palma da mão de Mingyu estavam dobrados de um jeito porco e desajeitado, mas ninguém estava animado para corrigi-lo. Dava pra ver os rabiscos e silhuetas de palavras escritas em caneta preta nas bordas da folha, mas não fazia diferença, já que não revelava nada além daquilo: rabiscos.
  — Eu não queria ter que perguntar, mas por que voltamos à 2º série mesmo? — Jungkook se manifestou, com as duas pernas erguidas para cima da cadeira antiga de madeira enquanto girava a taça de vinho – que tinha cerveja – nas mãos. Ele tinha sido o único dos outros amigos que tinha topado cortar os filetes de papel com uma régua quebrada que achou em alguma gaveta.
  Mingyu revirou os olhos.
  — Eu já disse, é um sorteio muito importante, pra ajudar na harmonia da casa nesse feriado. Nunca viu um sorteio assim?
  — Eu já! Aconteceu quando eu nasci. Minha mãe tava indecisa sobre o meu nome. — Yugyeom respondeu do outro lado da mesa retangular de carvalho, com os cotovelos apoiados no tampo enquanto segurava um vídeo game portátil.
  — E ele acabou saindo Yugyeom? Caramba, tomara que ela nunca jogue na loteria.
  Yugyeom olhou pra ele e disse:
  — Cala a boca.
  Mingyu estalou a língua e se colocou no centro da cozinha grande.
  — Tá legal, vem todo mundo pra cá pra gente começar de uma vez! Anda logo, vocês dois aí.
  A voz estourada e autoritária de Mingyu ecoou pela casa inteira, como se ele estivesse em mais uma de suas aulas de crossfit em Seodaemun enquanto gritava com seus colegas um “bora, gente! Isso é tudo que vocês conseguem? Que vergonha, bora bora BORAAA”. Colocava você em movimento na hora, mesmo que o verdadeiro professor quisesse expulsá-lo depois. Mas, curiosamente, o vozerio não funcionou com todos de primeira dessa vez.
  Eunwoo tinha os olhos tão grudados na janela que não saberia dizer o próprio nome caso perguntassem naquela hora. De vez em quando, até virava a cabeça e fingia estar interessado em alguma coisa que os amigos diziam, mas no geral, ele não estava no aqui e agora. Não desde que viu Dottie entrar no Toyota Camry branco e cantar pneus para longe da avenida.
  Isso já estava começando a irritar Mingyu.
  — Dongmin! — Ele gritou, fazendo o amigo quase pular do parapeito que estava tentando se manter sentado. Quando Mingyu dizia seu nome verdadeiro daquele jeito, significava que você sofreria punições: 10 flexões, 10 polichinelos e 30 segundos de prancha. Soava como se quisesse dizer: culpado! Criminoso! — Cara, sai um pouco daí, você tem que tirar o seu papel.
  Eunwoo já estava de volta à realidade, olhando para as mãos abertas do amigo como se tivesse desaparecido por mais de um mês em 60 segundos e não fizesse ideia do que ele estava falando. Só quando levantou o queixo para os outros e Yugyeom fez o favor de murmurar a palavra “sorteio” em leitura labial, foi que ele se viu inserido na proposta de novo.
  — Já disse que podem me dar qualquer quarto.
  — Você diz isso agora, mas se pegar o quartinho do lado da piscina, vai ficar reclamando até o dia de ir embora. — Jungkook murmurou, agora com os olhos grudados em alguma edição passada da Motor Trend Korea que ele achou dobrado embaixo do tapete de boas-vindas.
  — Eu não vou… — Eunwoo tentou, mas logo suspirou e desistiu. — Tá bom, tanto faz. — Ele pulou do peitoril da janela logo depois, pegando um dos papéis da mão de Mingyu sem nenhuma expectativa. — Número 7.
  O número não significou nada para ele ou para os outros, até Mingyu soltar um resmungo insatisfeito:
  — Não acredito! — Agarrou o papel de volta com certa pressa, sem deixar de aproveitar para vasculhá-lo antes de bater o martelo porque, como sempre, não dava pra confiar cegamente nos seus amigos. — Sortudo de merda, pegou uma das melhores suítes, meus parabéns!
  — A de frente para a praia? — Jungkook levantou a cabeça rápido do jornal. Mingyu assentiu, a contragosto. — Ô, sacanagem! Isso foi comprado!
  — Bem, de acordo com a conta bancária dele, ele poderia mesmo comprar todas as suítes da casa. — disse Yugyeom.
  — Dá um tempo, Viola Davis. Já não basta a família dele ter comprado aquela mega fazenda no mês passado? O dinheiro dessa gente não acaba nunca?
  — Na verdade, quem comprou foi minha irmã. Ela acabou de se casar, caso você não lembre, idiota. — Eunwoo estreitou os olhos para o amigo. Jungkook levantou um dedo.
  — A sua irmã já casou com um cara podre de rico. O que custava vocês deixarem a compra da casa com ele? É por que o carinha não ganha tanto quanto vocês? Os Lee estão buscando a origem do dinheiro de–
  — Tá legal, chega, ninguém quer saber onde a irmã do Eunwoo mora ou deixa de morar. O sorteio de papel é justo e sem margem de erro. Só nos resta aceitar. — disse Mingyu, tentando controlar o próprio rosto contorcido de quem não aceitava. — Vejam pelo lado bom, ninguém vai precisar aguentar aquele violão dele tarde da noite. Estamos livres dos covers do Bob Dylan. Agora você, Jaehyun. Um papel.
  — Ei, esse lance de tarde da noite vai existir nessa viagem? — Eunwoo resmungou com uma careta.
  — Em relação às suas músicas melosas de menininha? Sim! Jaehyun? — Mingyu chamou de novo, sem deixar de olhar para Eunwoo, que agora fazia uma careta desgostosa como a que sempre fazia quando o amigo alfinetava suas músicas. Elas não eram tão ruins assim!
  O silêncio da falta de resposta fez Mingyu finalmente virar a cabeça para a outra extremidade do cômodo, quase se abrindo na sala, na direção de uma poltrona verde escura de veludo, ocupada por um cara alto e com um rosto parecido com o que se via em comerciais de perfume caro, focado na tela de um laptop apoiado no colo em perfeito silêncio e concentração, fechado em seu próprio mundo. Uma atitude mais do que esperada vinda dele.
  — Jaehyun! — O grito de Mingyu rasgou a sala inteira, trazendo reclamações dos outros. O rapaz quase pulou da poltrona com o susto. — Acelera! Tira esse negócio logo pra gente começar a arrumar as coisas. As meninas já vão chegar.
  Jaehyun demorou 1 segundo a mais para se tocar do que deveria fazer e limpou a garganta, fechando a tela do laptop depressa.
  — Foi mal, eu me distraí. — respondeu, já se levantando.
  Jungkook soltou um pffff de desdém com a boca.
  — Se distraiu trabalhando de novo. A gente não tinha combinado que você não ia trazer essa porcaria pra cá?
  — Não me diga que você tá escrevendo aquela música? — Os olhos de Yugyeom brilharam de expectativa quando o amigo se aproximou, e Jungkook desferiu um tapa no seu ombro. — Ai! O quê? Eu só quero uma pista.
  — Se liga, idiota, não faz ele querer trabalhar. Você não tava ouvindo o novo lançamento dele agora mesmo? — Jungkook estreitou os olhos.
  — Não é meu lançamento. — Jaehyun olhou para os papeis com cuidado, como se pudesse adivinhar o conteúdo de cada um deles caso encarasse por muito tempo.
  — Lançamento do NCT 127 também é um lançamento seu, acorda. — Eunwoo já tinha voltado para o parapeito da janela, agora fazendo o máximo para prestar um pouco de atenção também no que diziam os outros, só para o caso de ser interrompido e obrigado a sair de sua vigília cedo demais.
  Jaehyun olhou para ele de soslaio e ignorou. Estendeu os dedos para o centro da mão de Mingyu e puxou um dos papéis, entregando-o para ele. A expressão que o amigo fez dessa vez parecia um pouco mais amena do que na vez de Eunwoo.
  — Número 3, final do segundo corredor. É o suficiente também para ouvir aqueles seus discos chatos o quanto quiser. — sorriu, embaralhando o restante dos números em suas mãos e oferecendo à Yugyeom.
  Jaehyun revirou os olhos, mas riu pelo nariz. Não era de hoje que seus amigos o chamavam de cerimonialista de enterro. Fora da aura de ídolo k-pop, suas músicas eram um gatilho perfeito para dormir ou para chorar, sem meio termo, e isso não combinava nada com o sol radiante lá fora e os planos de festança que tinha se enfiado para aquele feriado.
  Na janela, Eunwoo não perdeu tempo para verificar suas mensagens de novo, mesmo que já estivesse fazendo isso há um intervalo de tempo cada vez mais curto. Nem percebeu quando o rodízio de distribuição de quartos terminou e as orientações de Mingyu também. Sentiu um cutucão no ombro de Jungkook, que apontou para as malas jogadas desordenadamente no hall de entrada, dando um típico aviso para que ele desse um jeito de se mexer e começar a se acomodar.
  Jaehyun, por outro lado, já começava a empilhar as suas malas e, de quebra, alguma outra de Yugyeom, que foi o feliz sorteado a pegar o quarto da piscina. Ele não reclamou ou invocou alguma lei da constituição sobre ser colocado contra à vontade em um cubículo quase sem janelas, como era de se esperar, mas pensando bem, seria muito melhor estar longe dele caso resolvesse fazer tudo que pretendia fazer naquela viagem.
  Jaehyun observou Eunwoo juntar a mochila preguiçosamente, junto ao violão nos ombros, com olhares nada disfarçados, porém rápidos, para a janela.
  — Quer ajuda? — Jaehyun perguntou, caminhando até o rapaz.
  — Não precisa, eu consigo. — ele respondeu, puxando a única mala de mão que trazia e indo em direção à escada larga.
  — Aposto que trouxe sua coleção inteira de jaquetas puffer para 3 dias do contrato. — Jaehyun soltou uma risada enquanto seguia o amigo escada acima.
  Eunwoo semicerrou os olhos.
  — E por que isso seria tão errado assim?
  Jaehyun balançou a cabeça. Ao alcançarem o topo, arrastou suas malas até o final do longo corredor, passando por Eunwoo e sua rápida entrada no quarto de número 7. Pelo tamanho da casa, era de se esperar que todo aquele espaço fosse tomado de portas de cada lado, mas a residência parecia deixar claro o quanto essa estética de hotel lhe era desagradável. Eles descobriram o lugar através de um recorte de jornal amarelado dentro de uma caixa de metal enferrujada no escritório do pai de Yugyeom, porque preferiam correr o risco de alugar um lugar desconhecido a serem colocados sob a influência social — e financeira — de Lee Dongmin de novo. Naquele corredor em questão, as outras três portas restantes eram um banheiro compartilhado e dois quartos. Um deles já estava reservado, sem ser incluído no sorteio. Reservado para ela.
  Mesmo a casa sendo provavelmente do ano em que seu pai havia nascido, Jaehyun não odiou o quarto. Ele era grande e todo revestido em madeira clara, uma condolência pelo fato de ser o lugar com maior déficit de luz natural do que todos os outros. Parecia tão isolado quanto o que aguardava Yugyeom na parte de fora. As janelas eram direcionadas para o quintal de trás, direto para a piscina e a Avenida deserta de Seogwipo, cheio de árvores grossas e estufadas que formavam uma barreira impenetrável contra o Sol, e ainda carregava cortinas enormes em blackout. Olhando em volta, era como estar dentro da cripta do Drácula.
  — Nossa, que deprê! — Eunwoo falou da porta enquanto Jaehyun ainda despejava a bagagem em cima da cama. — Mingyu tava certo, pode estourar seu Cigarettes After Sex à vontade aqui que eu vou continuar dormindo como um bebê.
  — Como se você fosse dormir tão cedo assim.
  — É verdade. Insônia costuma deixar a pele feia, mas eu sou incapaz de ficar feio, então tudo bem. E é feriado. — ele riu, dando de ombros. — Mas você acabou tirando a sorte grande de qualquer jeito naquele sorteio do primário.
  — Não tirei, não. — Jaehyun arranhou uma risada. — Acha que eu sou fã das trevas que nem o Jungkook? Vou precisar ligar as luzes durante o dia.
  — Ah, você vai mesmo. Mas não é disso que eu tô falando. Eu vou ser vizinho de porta do Mingyu.
  — E o quê… — Jaehyun estava pronto pra perguntar, mas se tocou rápido do que o amigo estava falando. — Ahhh… Aquilo.
  — É. Aquilo. E ele ainda tem a audácia de reclamar do meu violão.
  — E dos meus discos.
  — Agora tenta falar dele e Dottie fazendo os “exercícios” de madrugada. Ele se esquiva igual lagartixa. Meu Deus, é nojento. — Eunwoo fez uma careta. Jaehyun riu enquanto abria o zíper da mala.
  — Só é nojento porque você não está fazendo.
  — Calma, o feriado ainda nem começou, meu caro padawan. Não sufoca o artista. — Eunwoo deu aquela piscadinha canônica de astro da TV que deve ter aprendido a fazer antes de saber falar. Jaehyun revirou os olhos e exibiu um singelo sorriso torto (que também poderia ser um estouro na TV, caso ele se importasse com esse tipo de coisa). — Enfim. Eu gosto da Dottie e acho incrível ela ser filha de astros do rock e ter todas aquelas tatuagens iradas, mas odeio os gritos dela. Não quando ela grita com a gente normalmente, mas aqueles gritos. Você entendeu.
  — É, entendi. — foi a vez de Jaehyun fazer a careta. Existia uma história por trás do alcance vocal admirável de Dottie Bennett: seus pais beberam muito, estavam no auge da carreira, ela acabou sendo uma prole acidental e, pra conseguirem ficar perto dela de alguma forma, colocaram a garota numa aula de canto e a viciaram em Eagles e AC/DC, suas bandas favoritas, pra deixarem ela fazer o próprio show no quintal da frente quando os velhos voltassem.
  A parte do canto foi um fiasco, mas ela tinha aprendido grandes coisas com Highway to Hell.
  Eunwoo ficou parado por mais alguns minutos, girando a cabeça por todo o entorno do cômodo, até finalmente soltar um suspiro forte e dizer:
  — Já sei, Jae. Vamos fazer o seguinte, vamos trocar.
  — O quê?
  — É sério, de que adianta ganhar uma suíte foda se vou ter que ser torturado auditivamente por um cara com a incapacidade de gozar em menos de 10 minutos como o resto de nós? Quer dizer, não nós. — ele se corrigiu na mesma hora em que Jaehyun arqueou as sobrancelhas, murmurando um “fale por você”. — Não foi isso que eu quis dizer, caramba. Mas voltando, eu garanto que lá é bem mais a sua cara, tem vista pro mar e tudo. E você bem que tá precisando pegar uma corzinha. Nem parece que mora em um lugar mais ensolarado do que esse.
  — Mas…
  — E aqui é praticamente uma toca de coelho, vamos concordar. Mingyu não vai ter motivos para reclamar do meu violão, talvez eu até possa cantar. E você tem aqueles headphones irados, vai escutar suas músicas e se proteger do Irmão Urso acasalando no quarto ao lado. — ele sorriu, dando de ombros. — Vamos, vai, tem certeza de que a ideia de claridade desnecessária e uma mega banheira não te atraem? Elas são muito instagramáveis, eu juro.
  Jaehyun balançou a cabeça, cruzando os braços.
  — E se ele descobrir? Sabe como o Mingyu é com essa coisa de organização. Vai ficar falando no nosso ouvido até o ano que vem.
  — Gritando, você quer dizer.
  — É, ele e a Dottie são uma disputa acirrada.
  Eunwoo riu, estremecendo ao mesmo tempo.
  — Isso não é uma preocupação, ele não vai entrar no quarto.
  — Como você sabe? Ele sai entrando em tudo.
  — Porque é o meu quarto. Ele nem vai chegar perto, ele sempre fala que eu sou desorganizado.
  — Você é desorganizado.
  — No caso, ele chama o meu apartamento de “um belo lixo ao estilo filhinho de papai”. Parece que ter empregadas virou crime agora.
  — Ah. — Jaehyun se lembrou do apartamento do amigo e que ali eles não teriam nenhuma empregada. — É, ele não vai entrar no seu quarto.
  — Não vai mesmo.
  — E aqui?
  Eunwoo fez “pffff” com os lábios.
  — Quem você quer enganar? Se disser pra ele não entrar, ele não entra. Você consegue fazer ele obedecer com essa voz de irmão mais velho.
  — Eu sou o mais velho.
  — Que seja. Vai aceitar a proposta ou não?
  Jaehyun mordeu o lábio inferior, examinando o quarto mais uma vez, pensando seriamente que não seria uma má ideia abandoná-lo. Não por causa da baboseira da luz, mas por outra coisa.
  — Ok, me convenceu. Vamos trocar.
  — Muito bem, Jae, tô indo buscar minhas malas! Não dá mais pra voltar atrás!
  O rapaz voltou saltitando para o quarto mais à frente, enquanto Jaehyun revirava os olhos e ria mais uma vez da situação.
  Antes de fechar a porta do agora ex-quarto, ele olhou mais uma vez para as horas. Em seguida, encarou a janela, mesmo que não tivesse qualquer visão da entrada da casa. Ainda assim, se viu tomado pela ansiedade de novo, como quem pressente um terremoto se aproximando.
  Ela estava vindo. E chegaria a qualquer momento.

CONTINUA...



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