O Mundo Lá Fora

Escrito por Annelise Stengel | Revisado por Ponci

Tamanho da fonte: |


Capítulo Único

  O mundo pode ser escuro. Sombrio. Há tristezas e desesperança em todo canto que se olha. Não tem mais amor. Não tem mais nada além de escuridão. E não é só lá fora que há escuridão. Dentro do coração das pessoas também. Notícias, cenas do dia-a-dia, tudo é desesperador. Tudo te faz pensar por que você está aqui num momento tão sombrio? Por que você tem que presenciar tais horrores?
  E aí você enxerga uma fresta. E essa fresta é o que faz tudo valer a pena.

  Ela já estava ali quando entrei no elevador. Encostada num canto da parede, o botão do térreo brilhando indicando que já tinha sido apertado. Eu ia para lá também, então não fiz nada além de cumprimenta-la com um aceno da cabeça e encostar-me no canto oposto. Ela nem me olhou, baixando os olhos e comprimindo-se ainda mais. Considerando que, ao contrário de mim, ela não trazia nenhuma sacola de compras, devia estar vindo do consultório médico que havia no último andar da galeria em que estávamos. Tínhamos apenas alguns andares juntos, mas ela estava claramente nervosa e, como bom paranoico que sou, já imaginei que a culpa era minha.
  Ponderei se eu estaria fedido. Dei uma cheirada discreta, não pareceu nada suspeito. Eu podia ver a lateral de seu rosto, que estava parecendo suada. Subitamente me ocorreu que ela estava voltando do médico, será que estaria bem? Aproximei-me um pouco dela, com a intenção de tocar seu ombro para chamar sua atenção, ao mesmo tempo em que começava a dizer:
  — Moça, ta tud-- — mal pude terminar, as portas do elevador se abriram no térreo e ela desapareceu, pulando para fora daquela caixa metálica e correndo para longe de mim.
  Fiquei estático, sem saber como reagir, a mão que ia tocá-la ainda no ar. Por que ela havia fugido com tal pressa? Eu nem estava fedendo. Foi algo que eu fiz? Eu nem tinha dito nada ainda então minha incrível habilidade de arruinar tudo quando abria a boca podia ser desconsiderada. Aquela garota podia ser louca, tudo bem. Talvez a culpa não fosse minha. Talvez fosse.
  Se eu já era paranoico antes, ficar com essa dúvida pendente não fez nada bem à minha mentalidade.
  Com as sacolas de compras do que minha mãe havia pedido, voltei por todo o caminho atento às pessoas que eu passava na rua. Normalmente eu apenas colocava música alta em meus fones e seguia ignorando tudo e todos, mas se eu tinha a chance (mesmo que mínima) de esbarrar naquela menina de novo, eu gostaria de parar e perguntar o que diabos havia de errado com ela. Ninguém trata outro ser humano desse jeito. Parecia que ela preferia morrer a dividir o elevador comigo, de tão nervosa que estava. Isso me ofendia um pouco. Eu não era tão feio, era? Será que eu tinha cara de maníaco? Parei em frente a uma vitrine, olhando meu reflexo.
  Não, acho que não.
  Bufei, desistindo de pensar nela. Era só uma louca aleatória. Eu sabia que não tinha feito nada, então o problema era dela mesmo.
  Pena que ela parecia ser bonita, e que o plano de desistir de pensar nela não deu tão certo assim.

  — Você demora mais que uma donzela para se arrumar. — ouvi da porta do meu quarto minha mãe reclamando e arqueei as sobrancelhas para ela.
  — Não era você que sempre queria ter uma filha? — fiz uma pose que eu supunha ser meio afeminada, mas tudo que a minha mãe fez foi rolar os olhos com cara de “eu queria uma filha e é isso que eu ganho em troca?”. Decidi pigarrear e indicar o problema. — É culpa dessa gravata. Por que é que a gente tem que ir em jantar formal, mesmo?
  — Porque é importante e você tem que parecer bonito. Ou vai acabar espantando todas as garotas ao seu redor.
  Isso, muito obrigado mãe. Enquanto ela vinha até mim para ajeitar a gravata, mais uma vez a imagem da garota do elevador correndo voltou à minha mente. Fiz uma careta de desgosto, tentando me lembrar de suas feições e de suas atitudes. Já fazia uns três dias, então as minhas lembranças estavam se esvaindo. Eu pensara bastante nela, porque me preocupara, mas parece que quanto mais se pensa em algo, menos detalhes se retêm.
  Minha mãe terminou de fazer o ritual sagrado para conseguir amarrar aquele pedaço de pano em volta do meu pescoço e estávamos prontos para partir. Peguei o paletó e o coloquei, ajeitando meu cabelo mais uma vez mais por pirraça do que por necessidade.
  No caminho para o tal jantar, minha mãe listava algumas famílias que sabia estariam lá e que meu pai não podia deixar de cumprimentar, enquanto ele apenas concordava com a cabeça sem parecer ouvir. Não demoramos muito para chegar, deixando o carro na entrada para ser manobrado. O prédio onde seria o jantar era enorme, todo iluminado de branco, várias pessoas com vestidos brilhantes e maquiagens exageradas, ternos impecáveis e cabelos repletos de gel cercando a entrada. Suspirei, sabendo que seria uma longa e entediante noite.
  Demoramos cerca de meia hora só para entrar na construção, tendo que cumprimentar todo mundo que encontrávamos no caminho. Lá dentro, música clássica tocava, um som ambiente agradável poluído pelo tagarelar de inúmeras vozes. Não sei quanto tempo tínhamos de ficar ali, mas eu já queria ir embora. Eu odiava ser obrigado a ir nesses lugares por causa dos meus pais.
  — ! — ouvi alguém gritar meu apelido e olhei ao redor, deparando-me com , um colega que crescera comigo por causa da amizade dos nossos pais. Ele se aproximou sorridente, seu terno roxo escuro sendo um tanto chamativo no meio de tudo aquilo. — Você está com uma cara de dar medo. Vai espantar todo mundo assim.
  O que, agora era essa a minha sina? Vai ver que a menina fugiu por minha causa, realmente. Bufei, cansado de me lembrar dela toda hora.
  — Eu estou entediado. — foi o que respondi a ele, dando ombros. Fomos até onde bebidas estavam sendo servidas e pegamos uma taça para cada um, saindo da muvuca e indo para a varanda, onde vários casais se encontravam. Olhei de soslaio para , ponderando se seríamos considerados um casal ou não.
  Meu amigo, porém, parecia incrivelmente agitado, olhando ao redor a todo momento, espiando para dentro do prédio e nem tocando em sua bebida, o que era bem atípico dele. Normalmente estaria tagarelando infinitamente, cansando-me com seu papo sobre garotas. Hoje, porém, mal mantinha uma conversa comigo, respondendo-me apenas com “arrã” e “claro”, quando nenhuma das coisas que eu falei precisava de uma resposta. Estressado com meu monólogo, pensei em voltar para dentro da casa e deixa-lo ali, mas decidi perguntar antes:
  — Que bicho te mordeu hein? — meu tom saiu um pouco mais irritado do que o normal. não pareceu incomodado, porém, lançando-me um largo sorriso.
  — O do amor! — ele cantarolou, gargalhando depois. Afastei-me um pouco dele, checando minha bebida e ponderando se havia algo ali também. Ele finalmente pareceu irritado com minha atitude e puxou-me para perto, fazendo-me inclinar minhas costas por ser um pouco mais baixo que eu. Nossos olhos ficaram na mesma altura e ele apontou para onde um grupo de garotas havia se reunido.
  — Olha ali. — ele disse, e eu não vi nada demais. Todas elas pareciam extremamente maquiadas e com vestidos bonitos, no entanto nenhuma delas fez meu coração palpitar a ponto de me tornar um idiota como . — É uma raridade. — ele prosseguiu. — São garotas do colégio interno feminino, elas quase nunca saem ou são vistas. E são todas lindas! Que pecado... — ele resmungou o fim, fazendo-me rolar os olhos. Eu não estava enganado então. Meu amigo continuava sendo um mulherengo babaca.
  Espiei só mais uma vez as tais garotas cuja aparição era um milagre, subitamente sentindo meu coração dar um pulo. Agarrei-me na borda da grande janela onde estávamos nos escondendo para olhá-las e apertei meus olhos, como se isso fosse realmente adiantar alguma coisa. Talvez eu não a tivesse reconhecido se ela estivesse de frente ou de costas, mas por ironia do destino ela estava na exata posição que eu tinha visto quando ela estava no elevador.
  E eu tinha certeza que era ela.
  — ? — Tegoshi pareceu confuso com a minha atitude e eu o ignorei. Contornei-o e entrei de volta no prédio, decidido a falar com a garota dessa vez. No mínimo perguntar o que havia de errado com ela naquele dia, para limpar minha consciência. Meio egoísta, eu sei.
  Eu estava bem perto. Bem perto mesmo. Podia contar todas as garotas do grupinho e a maioria delas já havia me notado. Ela não foi a última a me notar, mas olhou ao redor confusa ao ver suas amigas me encarando. Ao depositar seus olhos em mim porém, soltou um gritinho do tipo “eeek!” e eu hesitei, confuso com aquele som. Ela escondeu o rosto atrás de uma amiga e eu parei de andar, percebendo que os olhares delas agora eram ofensivos. Talvez entrar numa jaula repleta de leoas não fosse uma boa ideia. A garota lançou-me um último olhar medroso, antes de sair correndo mais uma vez e desaparecer no meio da multidão.
  Mais uma vez, não soube como reagir, sentindo os olhares das garotas em mim. Dessa vez eu tinha certeza que tinha passado perfume, então não poderia ser minha culpa. Mas ela estava rodeada de garotas e com vários homens em volta, por que apenas a minha aproximação a espantava?
  Voltei para o lado de , que como o bom amigo que era ainda não havia parado de rir do meu desastre em falar com a garota, sem sequer saber o quanto aquilo me afetava. Eu estava sentindo aquela rejeição em um nível pessoal, e não deixaria passar barato.

  Como a aproximação direta não era possível, assim que cheguei em casa fui até meu computador, desafrouxando a gravata enquanto ele ligava. Ela não devia ser uma completa reclusa do mundo, certo?
  Abri o Facebook e fui no evento de hoje, postando no grupo de convidados algo como um spotted. Descrevi a garota – que hoje tive tempo de analisar um pouco melhor e chegar à conclusão de que ela era mesmo bonita, apesar dos seus incríveis modos – e a situação, falando que gostaria de me desculpar. É claro que eu não pretendia me desculpar, porque eu não fiz nada, mas esperava poder conversar com ela e entender a situação e então receber as desculpas que eu merecia.
  Já era bem tarde, aquele maldito jantar durando horas e horas torturantes, os adultos falando alto e bebendo e os mais jovens me encarando como se eu fosse uma lesma definhando em sal. Quando dizem que boatos correm mais rápido que a velocidade da luz, não estavam mentindo. E eu nem tinha feito nada. Nem queria saber o que as pessoas estavam comentando, porque provavelmente tinha algo muito inventado e pior do que era na realidade.
  Mesmo assim, a resposta não veio tão rápido quanto eu esperava. Por ela ser tão antissocial a ponto de fugir de mim toda vez que me via, achei que devia ficar pendurada nas redes sociais o tempo todo, mas não parecia ser o caso. Fui dormir, incomodado com toda a situação e mais uma vez mantendo sua imagem em minha mente, esforçando-me dessa vez para não perder nenhum detalhe.
  Ao acordar, havia uma resposta, porém não a que eu esperava. Alguma garota havia comentado “Nojento” em meu post, o que não era muito agradável. Bufei, abrindo seu perfil e começando a fuçar, ainda enrolado em minhas cobertas e com o cabelo bagunçado. Estava se tornando uma questão de honra para mim encontrar a tal garota e resolver a situação, porque eu estava obviamente sofrendo danos morais.
  Procurei nos amigos da garota que comentara em meu post, olhando atentamente um por um para ver se encontrava. Eu não me lembrava muito da garota cujos amigos eu estava procurando, mas ela devia ter estado na festa e talvez conhecesse a que adotara fugir de mim como hobby. No mínimo, para me chamar de nojento, ela devia saber o que estava acontecendo, a menos que fosse uma mal educada intrometida.
  Depois de passar quase todos os mil e tantos amigos da menina, uma notificação me chamou a atenção. Abri a aba de mensagens, um pouco esperançoso, mas era apenas perguntando se eu havia superado a situação da noite anterior. Bufei, irritado por ter sido enganado e ia sair daquele site estúpido quando uma outra nota me fez parar. Na aba das mensagens, havia uma solicitação de uma pessoa desconhecida. Cliquei.
  Voilá.
  Seu nome era . A foto de perfil deixava claro que era ela, mas eu ainda não tinha visto seu perfil enquanto stalkeava a outra menina.
  A mensagem que ela havia me mandado era:

Creio que sou eu que você está procurando. Você quer se desculpar pelo quê?

  Sentei rapidamente na cama, sentindo-me totalmente acordado agora. Quis soltar a verdade de cara, que eu não me desculparia por nada. Algo dentro de mim soou, dizendo que aquilo não era uma boa ideia, então decidi mostrar a ela o que era ser educado e respondi:

A verdade é que eu não sei o que te fiz de errado para você fugir de mim toda vez que me vê. E foram só duas vezes. E eu não fiz nada. E você fugiu e isso está me incomodando.

  Reli várias vezes antes de enviar, achando que estava bom o suficiente. Fui direto, mas delicado. Eu acho. Se ela me bloqueasse eu sabia que ela seria uma causa perdida. Felizmente, ela parecia estar online e me respondeu rapidamente.

Ah, então creio que sou eu que devo pedir desculpas. Não era minha intenção incomodar ninguém.

  Que bom que percebeu, querida. Parece que vamos conseguir nos dar bem. Nem comecei a digitar, outra mensagem chegou.

Eu estudei a minha vida inteira em uma escola só de garotas. E as coisas que ouvi sobre meninos... me assustam. Fiquei nervosa de estar no elevador sozinha com você, com medo que fosse fazer algo comigo. E quando te vi na festa, achei que estava me perseguindo.

  Então eu realmente tinha cara de maníaco. Muito bem. E a causa de ela fugir foi realmente eu. Agora minha autoestima não estava nada bem. Pensei no que poderia responder sem tentar parecer estar fazendo um mimimi desnecessário.

Tudo bem. Acho que eu entendo. O problema foi a atitude de todo mundo comigo depois disso, parecendo que eu era realmente alguém horrível. Você nem me conhece. Não devia sair julgando as pessoas e fugindo delas sem nem ao menos conhece-las.

  Rapidamente, decidi acrescentar.

Não que você deva confiar em todo cara que aparecer!! Você só... sei lá. Não fuja desse jeito.

  A resposta dela veio logo, talvez porque estivesse respondendo à minha primeira mensagem.

Você então está dizendo que eu deveria te conhecer?

  Para alguém tímida e com medo de homens ela conseguia ser bastante direta. Ponderei um pouco. Eu queria conhecer a garota? Ou só queria me livrar dessa sensação que se abatera sobre mim desde que ela fugira da primeira vez? Era realmente confuso, porque apesar de tudo eu também não a conhecia.

Apenas se você estiver disposta a isso.

  Foi o que escolhi dizer. Assim não a forçaria a nada e se ela não quisesse nosso assunto estaria resolvido e seguiríamos em frente. Pareceu bom, para mim. Talvez estivesse crescendo em mim uma vontade de fazê-la perceber como era o mundo lá fora da bolha dela, mostrar a ela coisas incríveis que ela estava perdendo por fugir de estranhos.

Eu tenho medo do mundo.

  Sua mensagem me surpreendeu, em parte porque eu estava pensando nisso, em parte porque ela fora sinceramente direta. É estranho admitir para um estranho suas fraquezas logo de cara. Sorri um pouco e digitei minha próxima mensagem.

I can show you the world, shining, shimmering, splendid~

Você está mesmo cantando Aladdin para mim?

Talvez eu esteja.

  E então marcamos de ir numa sorveteria no próximo fim de semana.

  Eu estava um pouco nervoso. Com certeza tinha a insegurança de que ela sairia correndo de novo, depois de me olhar na cara. Passei um perfume só pra garantir, depois do banho. E tentei controlar a minha perna tremendo embaixo da mesa em que eu sentara, o guarda-sol gigante dela cobrindo meu rosto e me protegendo do sol intenso. Vamos dizer que eu também não era lá o exemplo de socialização. Talvez fosse uma das primeiras vezes que eu estava saindo com uma garota desconhecida, só nós dois. Era um sábado bonito, a sorveteria que marcamos era num lugar bem movimentado dentro de um parque popular, para ela ficar segura de que eu não fosse sequestra-la ou assassina-la ou qualquer outra preocupação que as mulheres tenham hoje em dia em relação aos homens. Eu não tinha a intenção de fazer nada com ela além de conversar, mas confesso que meu coração palpitou um pouco ao vê-la aproximando-se em um vestido branco com estampa de girassóis, um chapéu cobrindo seus cabelos um pouco bagunçados e parte de seu rosto. Ela vinha direto em minha direção, apertando as alças da bolsa demonstrando seu nervosismo. Eu me levantei para recebe-la, sentindo que seria mais educado fazer isso.
  — Hey. — falei, assim que ela estava próxima o suficiente para me ouvir, e pude observar suas bochechas avermelharem-se e seus olhos escaparem para o chão. O lábio tremia um pouco quando ela respondeu meu cumprimento, a voz tentando soar forte. Aquilo de certa forma apertou meu peito. Ela não parecia ter só medo de homens, o medo parecia englobar toda sua existência e impedi-la de socializar. Perguntei-me o que diabos ela aprendia naquele colégio interno e como eram as relações lá dentro para ter se tornado assim.
  — Vamos escolher os sabores dos sorvetes? Do que você gosta? — perguntei, apontando para dentro, onde uma pequena fila já se formava. Os olhos dela encararam a fila, hesitantes. — Prefere esperar aqui e eu pego para você? — ofereci, tentando deixa-la mais confortável.
  Esqueci que ela tinha medo de que eu fosse fazer algo com ela, então não foi exatamente a melhor ideia.
  — N-não, eu vou com você. — sua voz tremeu mais uma vez, mas ela pareceu firme em sua resolução. Então fomos juntos até a fila, um silêncio um tanto constrangedor pairando entre nós. Talvez nos encontrarmos não tivesse sido uma boa ideia, afinal. Minha mente não parava de ser inundada de formas de fazê-la enxergar como a vida era magnífica e tudo mais, o problema sendo que mais da metade das ideias seriam inviáveis para alcançar tal resultado. Era melhor eu nem mencioná-las. — ...
  — Ah, pode me chamar de . — falei, automaticamente, sentindo uma sensação estranha no peito ao ouvi-la dizer meu nome. Percebi que suas bochechas estavam bastante vermelhas, talvez essa intimidade de apelidos fosse inapropriada. Tentei corrigir rapidamente. — Pode ser , se preferir. — dei ombros. Ela concordou com a cabeça. — Desculpe, eu te cortei. O que você ia dizer?
  — O sorvete... — ela disse, apontando para as bancadas com os congeladores em que logo chegaríamos. — Qual seu favorito?
  Surpreendi-me de vê-la iniciando o assunto, do jeito mais simples e efetivo. Sorri.
  — Pistache, é claro. Existe algum outro sabor melhor no mundo? — falei, animado. Ela sorriu um pouco.
  — Chocolate. — deu ombros. Fiz uma careta, fingindo ponderar as duas coisas.
  — Hmmm... tentador. Mas tão clichê... — balancei a cabeça, como em desaprovação. Seu olhar hesitou, fazendo-a parecer insegura, e percebi que eu não devia estar brincando desse jeito com uma garota com problemas de socialização. Já ia me apressar e pedir desculpas pela minha atitude, mas reparei melhor nela e percebi que ela analisava o balcão que nos aproximávamos cada vez mais.
  — Será que eu peço de pistache? — perguntou, bem baixo, como se falasse consigo mesma. Ela não olhava para mim, seu olhar distante perdido entre a lista de sabores exibida na parede, o chapéu ainda cobrindo parte de seu rosto. Senti meu rosto esquentar, achando-a infinitamente bonita naquele instante.
  — Peça o que você quiser. Pode pedir mais de um sabor também. É por minha conta, então aproveite. — disse, fazendo-a olhar para mim surpresa.
  — Não! Eu pago... — mas eu já negava com a cabeça antes de ela terminar sua frase.
  — Me deixe ser um pouco cavalheiro, sim? Afinal, fui eu que te chamei para sair.
   não pareceu saber como contestar aquilo, então apenas abaixou a cabeça e concordou, murmurando um agradecimento. Chegou nossa vez de pedirmos e, como eu estava na frente, pedi pistache, maracujá e coco, para mostrar a ela que estava tudo bem pedir mais de um sabor. A lógica deu certo, e ela pediu de chocolate, pistache e morango, o que já era um grande avanço. Paguei nossos pedidos e voltamos para nossa mesa, que milagrosamente ainda estava ocupada apesar da sorveteria estar bastante cheia.
  A conversa demorou a engatar, mas graças ao sorvete conseguimos um assunto base e passamos para outros gostos e preferências, timidamente respondendo às minhas perguntas e se soltando um pouco mais na minha frente. Acho que ela percebeu que apesar de tudo eu era bem inofensivo e um tanto idiota, e que não havia motivos para se preocupar. Ela me contou sobre a escola e como havia Pamela, uma garota que costumava sair escondida com frequência e contava histórias assustadoras sobre homens. Como era filha única, era tratada como se fosse de porcelana e os pais a mantinham afastada do mundo, por isso todo seu medo. Só conseguia se socializar bem com as meninas do instituto e com as professoras.
  Devia ser uma vida um tanto difícil. Ela me perguntava da minha, e eu hesitava em contar o quanto eu saía, conhecia pessoas o tempo todo e tinha amigos. Parecia muito distante do mundo em que ela estava enclausurada. mesma dissera que era uma das primeiras vezes que ela saía no fim de semana que não era para encontrar seus pais. Por isso, fiz questão de entretê-la e, como prometido, mostrar que o mundo lá fora não era tão ruim e assustador assim.
  Conversamos por umas duas horas, até que ela checou o relógio de pulso que trazia e levantou-se num impulso.
  — Ah, eu... tenho que ir. — seu rosto corara intensamente e eu fiquei um pouco triste de vê-la partir. Perguntei-me se teria feito um bom trabalho em deixa-la confortável. A resposta veio logo. Parecendo embaraçada, ela manteve os olhos baixos, dizendo: — Hoje foi muito divertido. Obrigada por ter me chamado.
  — Obrigado por não ter fugido de mim essa vez. — falei, rindo e me levantando. — Quer que eu te acompanhe até algum lugar?
  — Não precisa. O carro deve estar lá. — e apontou para algum lugar distante. Concordei com a cabeça, sem saber direito como me despedir, sem saber como pedir para ela ficar, sem saber como falar “quero te ver de novo”.
  Ela deu um aceno tímido e começou a se afastar, enquanto eu me mantive parado apenas observando-a. Subitamente, ela parou e voltou-se para mim, parecendo escolher cuidadosamente as palavras.
  — Eu... Eu realmente gostei de ter vindo. E de ter provado outros sorvetes além do de chocolate. E de ter conversado com você. — ela mordeu o lábio inferior, encarando-me nos olhos por mais tempo do que tinha feito todo o dia. — Você me deu coragem de fazer muitas coisas que eu não tinha feito antes e me mostrou um jeito de enxergar as coisas diferentes. Acho que agora... — ela então sorriu, o primeiro sorriso verdadeiro e sem timidez que ela dirigia a mim. Senti meu rosto esquentar, admirando o quão bonita ela era, e aguardei que ela terminasse sua frase. — ... agora não tenho tanto medo do mundo. Obrigada, .
  Chamar pelo meu apelido foi insanamente injusto. Engoli em seco, um pouco sem graça, sabendo estar um tanto perdido. Porque ela ia embora e eu já queria vê-la novamente. Mas ela ainda não fora embora, como se aguardasse que eu dissesse algo. Aproximei-me com passos largos, mas lentos, e parei em frente a ela, alcançando delicadamente sua mão e segurando-a entre as minhas. Sorri para , receoso de que ela fosse se afastar, mas ela não o fez.
  — Se você quiser sair algum outro dia, é só me avisar. Ainda tem muito do mundo que você precisa conhecer, e eu estou disposto a te mostrar. — falei. corou mais uma vez, talvez por eu estar abusando da proximidade.
  — O mundo ainda é um lugar muito escuro pra mim. — ela respondeu, baixando os olhos. — Aprecio o convite e vou pensar no caso. — completou, soltando sua mão da minha. Eu concordei com a cabeça.
  — Tudo bem. Mas pense com carinho. — ajeitei o chapéu em sua cabeça e ela mais uma vez olhou pra mim. — Afinal, eu posso ser o feixe de luz que vai iluminar esse mundo e fazer tudo valer a pena.

Fim!



Comentários da autora


Nota da autora: Essa fanfic foi escrita para o Amigo Secreto da equipe e eu tirei a Luba <3 Apesar de ser um enredo bem simples e ter um final bem aberto a conclusões, espero que tenha gostado! Foi feita com carinho hehe
Beijos!