Parte 1
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Yulha (Coreia do Sul) 2025
Parecia que nada havia mudado, tudo continuava quase suspenso no tempo. As lojinhas com suas placas pintadas à mão, suas vitrines cheias de velas artesanais, potes de geleia caseira, cartões postais com paisagens locais e panos de prato bordados com nomes de família.
O cheiro da cidade era o mesmo — uma mistura terrosa de floresta úmida, madeira fresca e café recém-passado vindo da cafeteria da esquina, que ainda tinha a mesma mesa redonda na calçada e o sininho pendurado na porta. Havia algo de eterno naquele lugar. As pessoas caminhavam devagar pelas ruas, com sacolas de mercado ou cães nos braços, como se o tempo fosse um velho amigo que não tivesse pressa de partir.
Os poucos carros que circulavam o faziam sem buzinas ou urgência, e até o som das bicicletas parecia mais suave ali. O vento soprava gentil, trazendo consigo a lembrança de verões passados, risadas ecoando pelas trilhas e o tilintar das pedras no riacho que cruzava o bosque.
Yulha era assim — um lugar onde as coisas não pareciam acontecer… até que aconteciam.
%Sunhee% sentiu os olhos marejarem brevemente quando o carro parou na casa da avó, olhou para a fachada com atenção quando desceu do mesmo, após desligar o motor. A brisa leve da tarde acariciou seu rosto, e ela respirou fundo antes de finalmente tirar as malas do bagageiro.
A casa era simples, de um andar só, com o telhado em formato triangular coberto por telhas escuras. A tinta amarelada nas paredes externas estava um pouco desbotada pelo tempo, e havia trepadeiras subindo pelas laterais, com pequenas flores roxas brotando entre as folhas — a avó sempre gostara de manter o jardim vivo. O portão de madeira clara rangia com facilidade, mas continuava firme, assim como a pequena varanda de tábuas envelhecidas, onde ainda repousavam duas cadeiras de balanço que pareciam esperar por alguém.
Um sino de vento pendurado na beirada do telhado tilintou suavemente, trazendo consigo a lembrança de verões antigos e tardes regadas a chá gelado e histórias contadas com paciência.
%Sunhee% caminhou até o porta-malas e retirou suas malas uma por uma, colocando-as com cuidado sobre a calçada. Havia algo simbólico naquele gesto — como se, ao abrir o compartimento, abrisse também uma parte de si que havia deixado para trás. Fechou o porta-malas e olhou mais uma vez para a casa, antes de subir os dois degraus da varanda e destrancar a porta com a chave que havia trazido pendurada no pescoço.
O interior da casa a acolheu com um silêncio morno. Um cheiro familiar de madeira antiga e chá de ervas pairava no ar, e a luz suave que atravessava as cortinas floridas deixava tudo com um tom dourado, como se o tempo ali passasse mais devagar. Os móveis estavam todos no lugar — a poltrona da avó no canto da sala, com a manta de crochê cuidadosamente dobrada sobre o encosto, e a estante cheia de livros e porta-retratos antigos.
%Sunhee% pousou as malas ao lado da porta e caminhou devagar até o centro da sala. Seu peito doía, mas não era exatamente tristeza. Era saudade misturada com alívio, medo com ternura. Um reencontro com partes dela mesma que havia esquecido.
— Oi,
halmeoni... — sussurrou, mesmo sabendo que não teria resposta. Ainda assim, sentiu uma presença cálida ali, como se a avó estivesse apenas no outro cômodo, preparando chá e esperando para lhe dar um abraço.
Caminhou pela sala em passos pesados e lentos, os olhos ainda passeando por cada detalhezinho, como se quisesse redecorar na mente todas as coisas que ela já conhecia.
Depois caminhou pelo corredor que dava acesso aos quartos e ao banheiro. O piso rangia levemente sob seus pés, como se sussurrasse
boas-vindas, e as paredes estreitas guardavam pequenos quadros com flores secas prensadas, todos feitos pela avó em molduras simples de madeira. O primeiro quarto à esquerda era o dela — ou, pelo menos, costumava ser. Ao empurrar a porta, sentiu o cheiro discreto de lavanda. A colcha bordada à mão ainda cobria a cama de solteiro, e o abajur de cerâmica azul permanecia firme no criado-mudo. Havia um ursinho de pelúcia em cima do travesseiro, velho e um pouco desbotado, mas ainda sorridente.
Ela não entrou — apenas observou, com uma pontada de emoção na garganta, antes de continuar.
O segundo quarto era o da avó. A porta estava entreaberta, como sempre ficava quando a velha senhora ia à cozinha e voltava com uma xícara de chá. %Sunhee% empurrou com delicadeza, quase com reverência. O ambiente era aconchegante, com tons quentes, uma colcha de retalhos cobrindo a cama e uma penteadeira repleta de pequenos frascos de perfume, pentes de madeira e uma caixinha de joias aberta, revelando alguns brincos simples e um colar de contas vermelhas que a avó sempre usava em dias especiais.
O banheiro, ao final do corredor, era pequeno, mas impecavelmente limpo. As toalhas estavam dobradas com perfeição sobre a prateleira, e a cortina floral do chuveiro tinha leves manchas de sol, resultado dos anos de uso. Até o sabonete em forma de flor continuava ali, como se tivesse sido colocado ontem.
%Sunhee% apoiou a mão na parede por um instante, fechando os olhos.
Tudo ali gritava a presença da avó — e ao mesmo tempo, a ausência dela. Era como caminhar por uma lembrança vívida, que pulsava em cada objeto, em cada aroma, em cada raio de luz filtrado pelas cortinas finas.
Ela respirou fundo, tentando conter as lágrimas que insistiam em vir.
Ali estava de volta. Em casa.
Ou, pelo menos… em tudo aquilo que um dia foi lar.
🫰🫰🫰
Se sentou no sofá um tanto quanto exaurida, sentindo o corpo começar a reagir à faxina intensa que havia dado na casa. Havia revirado a mesma quase de cabeça para baixo para tirar a sujeira acumulada depois daqueles meses todos sem nenhuma presença humana no local.
Os braços doíam, as pernas começavam a latejar e o peito dela subia e descia descompassado pelo esforço físico colocado na empreitada. O rabo de cavalo estava uma verdadeira bagunça, e %Sunhee% acabou por refazer o mesmo, com mais firmeza dessa vez.
Encarou a sala outra vez, agora limpa e arrumada e então se permitiu fechar os olhos, enquanto encostava a cabeça no encosto do sofá, se permitindo finalmente relaxar, os músculos e o coração. A respiração ainda estava acelerada, mas ia se acalmando aos poucos. Se permitiu esticar os braços e as pernas, num alongamento longo, e acaba soltando alguns gemidos de dor, com o corpo não totalmente acostumado àquele tipo de
“exercício”. Depois de alguns minutos largada no sofá, esperando autorização do próprio corpo para se levantar, ela resolveu que guardaria as roupas antes mesmo de sair para comer alguma coisa e abastecer a casa.
No quarto que um dia havia sido seu, ela retirou algumas roupas da mala, dobrando-as cuidadosamente, da mesma forma que havia aprendido a fazer com a avó quando ainda era criança.
Ela se lembrava perfeitamente de quando aprendeu a dobrar roupas ali mesmo, sentada no chão, com a avó ao lado, paciente, guiando suas mãos pequenas com voz doce e firmeza gentil.
“Dobra pelas costuras, não pelas pontas... Assim elas não amassam depois.” A voz ecoava na mente dela com uma nitidez quase dolorosa.
%Sunhee% sorriu de leve, um sorriso melancólico, enquanto dobrava uma blusa e a colocava com carinho na primeira gaveta do armário. Sentia que estava tentando, de algum modo, preservar o gesto — como se manter o método fosse manter também a avó um pouco mais viva naquele espaço vazio.
Cada dobra era uma lembrança, cada toque no tecido era uma tentativa silenciosa de se reconectar com algo que o tempo havia levado, mas que o coração se recusava a esquecer.
Ela parou por um instante, sentando-se na beirada da cama. Passou a mão devagar sobre a colcha e respirou fundo, sentindo o cheiro discreto de lavanda ainda impregnado no tecido. Fechou os olhos.
Era ali que ela voltava a ser neta.
Ali, o mundo desacelerava.
E mesmo que tudo estivesse diferente, mesmo que a presença da avó fosse agora apenas memória, havia um conforto silencioso naquele gesto cotidiano — quase como um abraço invisível, tecido entre as gavetas, os cheiros e o silêncio da casa.
Depois de todas as roupas guardadas, ela seguiu para seu banho com seus itens de higiene em mãos. Deixou a água quente aquecer seus músculos ainda doloridos da intensa faxina na casa, enquanto fechava os olhos. Na mente as lembranças da infância e adolescência na casa, vinham e voltavam.
Lembrou-se das manhãs preguiçosas de verão, quando acordava com o cheiro de mingau de arroz vindo da cozinha e ouvia o som do rádio antigo tocando baladas coreanas. A avó cantarolava baixinho enquanto cortava frutas para o café da manhã, e %Sunhee% aparecia na cozinha ainda de pijama, os cabelos bagunçados e os pés descalços no chão frio.
Lembrou-se também das noites em que a chuva batia no telhado de zinco, e ela corria para se enfiar na cama da avó, encolhendo-se sob as cobertas enquanto ouvia histórias de um tempo que já parecia lenda. A avó falava com tanto carinho, com tanto calor na voz, que tudo o que era assustador — o trovão, a escola nova, ou até o mundo lá fora — desaparecia por alguns instantes.
E havia também as tardes no quintal. Os pés sujos de terra, o som das cigarras, a água gelada do tanque onde lavavam roupa juntas, rindo, brigando com as formigas, correndo para pegar a roupa do varal antes da tempestade. Os verões de sua infância estavam todos ali — presos em fragmentos simples, mas eternos.
A espuma do sabonete escorria pelos braços enquanto %Sunhee% se apoiava na parede do chuveiro, sentindo as lágrimas se misturarem com a água quente. Talvez fosse o cansaço. Talvez fosse o reencontro com aquele passado que ela tinha deixado tão cuidadosamente guardado. Mas, pela primeira vez em muito tempo, ela se permitiu sentir tudo de uma vez só.
E no meio de tantas lembranças, entre a voz da avó e o cheiro da lavanda, uma imagem específica surgiu:
Um garoto de cabelos escuros, um sorriso tímido, e um
casaco vermelho que parecia grande demais para ele.
Ela abriu os olhos devagar, como se tivesse acordado de um sonho antigo.
Talvez nem tudo tivesse sido esquecido, afinal.
🫰🫰🫰