Nuvens e Esquinas

Escrito por Yasmin Albuquerque | Revisado por Lelen

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  Algo gelado caiu na ponta de seu nariz.
  Estava começando a chover.
  Ela sairia de casa – muito a contragosto e sob o poder de convencimento da melhor amiga – e iria na antiga escola rever apenas duas pessoas e meia que eram especiais e faziam falta. Como já passara do horário de saída, ficaria apenas dez, quinze minutos lá na frente enquanto sua amiga esperava o ônibus. E depois voltaria pra casa com dois amigos apaixonados que não parariam de falar de futebol e de como as namoradas eram malucas. Ela não ouviria uma palavra, estaria com os fones nos ouvidos, mas valeria a “carona” pela companhia deles.
  E só.
  Não tinha chuva no meio do caminho, mesmo que fosse passageira ou só uns pinguinhos.
  Mas o fato é que a coisa começou a desandar bem antes de começar a chover.
  Uma rua antes de chegar à escola, um dos amigos apaixonados já estava voltando pra casa sem casaco, com cara de tédio e sozinho.
  “Você não discutiu com ela, discutiu?”
  Não, eles não discutiram. A verdade era que o romance clandestino fora oficializado e agora ambos tinham horário para chegar em casa, se quisessem continuar fazendo as coisas direito. Internamente ela tinha orgulho dele e inveja dela. Era o namorado que toda garota sonharia ter.
  “E Lucas, ainda tá lá?”
  “Lucas foi embora cedo porque Bruna não veio”.
  Ela daria um desconto pela falta de consideração. Afinal de contas, gente apaixonada é egoísta assim mesmo.
  Depois de descobrir e aceitar que voltaria pra casa sozinha, sem querer tocou em um assunto bastante chato e delicado que a incomoda mais do que deveria. E na rua lateral, andando sozinha e ouvindo Joe Brooks enquanto voltava pra casa, surgiu do além uma infestação de cupins que insistiam em voar perto de seu cabelo já não muito comportado.
  Como se tudo isso não fosse o suficiente pra transformar aquele fim de tarde num fiasco, começara a chover.
  E ainda faltavam três ruas e meia para que chegasse em casa.

  “Chuva não, por favor!”
  O moço com cara de pedófilo parado na concessionária olhou esquisito pra ela – quem não olharia esquisito para uma menina andando na chuva e falando sozinha? -, mas se ele fez algum outro comentário ela nunca chegara a saber  pois escutava Ayo Technology bem alto nos fones de ouvido.
  Ela concordava que 50 Cent (e Justin Timberlake e Timbaland) não era romântico, ou poético, ou ideal para se ouvir enquanto andava na chuva (se um dia houver uma playlist com músicas pra se ouvir enquanto anda na chuva, Ayo Technology com certeza não fará parte dela). Mas o Mp4 estava muito bem guardado em seu bolso direito e ela não queria o expor aos pingos ocasionais porque ele vai fazer cinco anos em dois meses e isso é mais do que qualquer aparelho eletrônico já durou em sua mão. Então continuou andando na chuva e ouvindo Ayo Tecknology, por mais sem noção que isso fosse.
  Queria ouvir Falling In Love, porque mais cedo nesse mesmo dia ela tuitara sobre como essa música era perfeita pra se ouvir andando na rua. Ela tinha dessas, fazer comentários inusitados sobre coisas inusitadas. Mas de jeito nenhum o Mp4 selecionava essa música para tocar, então ela só apertou o passo até chegar na esquina antes da esquina que daria em uma rua imensa que passava por sua casa.
  Como acontece em todas as esquinas, nessa ela tinha duas escolhas: virar e chegar mais rápido em casa, cortando caminho por entre ruas tortas e que possuem moradores peculiares; ou seguir reto e dobrar apenas na outra esquina, podendo se molhar mais, caso a chuva aumentasse e correndo o risco de repetir um encontro não premeditado como o que ela tivera na semana passada. Levando em conta a importância que esse “encontro não premeditado” teve para ela, sua escolha foi bem óbvia.
  “Merda! Não aumente chuva, por favor, não aumente!”
  Mais uma vez ela falava sozinha enquanto andava na chuva, prevendo as consequências de sua escolha insensata – dessa vez, sem nenhum moço com cara de pedófilo para censurá-la. E enquanto, em sua mente, tentava convencer a si mesma de que daria tempo, que daquela esquina até a sua casa eram só duas ruas e meia, ela olhou pra frente, uma gota de chuva caindo perto de seu olho, e congelou. O segundo componente do encontro não premeditado da semana passada estava parado na esquina onde ela viraria. Como ela queria que fosse. Como ela não esperava que fosse.
  Quando o abraçou, nem ao menos sabia o nome da música que tocava.

  “Seria clichê se eu dissesse que quero te beijar agora?”
  Saiu sem que ela percebesse e encontrasse um jeito de impedir a si mesma de dizer. Era sua vontade mais profunda, mais idiota e mais masoquista, mas de forma alguma ela queria que ele soubesse disso. Agora ele sabia. E naquela esquina, sob aquela chuva fina de fim de tarde, ela esperou uma reação.
  “Rapaz” – ele passou a mão direita (a que não estava na cintura dela) nos cabelos, bagunçando o que já estava bagunçado. Ela riu internamente da mania dele de dizer rapaz pra tudo –“, por que não beija, então?”
  “Duas pessoas se beijando em uma esquina... Não fica bem” – ele sorriu. Um sorriso de quem estava pensando ‘e desde quando você se importa?’ – “Além do mais eu ainda estou esperando uma ligação que não veio”.
  Ele parou de sorrir.
  “Sobre isso...” – e de novo ele passava a mão pelos cabelos bagunçados, como se isso fosse ajudar de alguma forma, como se isso afastasse as perguntas que ele não queria responder. Na verdade, tampouco ela queria saber as respostas. Mas agora já estava feito e não existem borrachas pra esse tipo de coisa. Pra apagar caneta, sim; verdades, não.
  “Tá tranquilo, , você não tem que me explicar nada” – ela tentou sorrir, mas mesmo sem olhar o resultado, pôde concluir que só entortou os lábios, como se de fato não concordasse com o que acabara de dizer; isso só pela cara que ele fez.
  “Eu ia te ligar! Mas...”.
  “Mas não ligou” – ela percebeu que o repreendeu e mordeu o lábio para reprimir a vontade que estava de xingar a si mesma. – “Tá tudo bem, de verdade” – na verdade, nada estava bem. Mas essa era aquela coisa sobre a qual ele não precisava tomar conhecimento.
  Ela esperou uma reação.
  As nuvens assistem a essa cena incomum numa esquina e estão doidas pra que haja um desfecho, para que assim elas possam se aliviar e não prejudicar os participantes. Mas entre os componentes da cena (as nuvens, ela e ele), um deles já está prejudicado. O coração dela. As nuvens também esperam uma reação.
  Ele, porém, não reage.
  Então as nuvens desistem de tentar não prejudicá-los. Soltam grossas gotas de água gelada que caem nos rostos deles, molham suas roupas, estragam suas coisas. O semáforo à esquerda da esquina abre pela segunda vez durante aquele pequeno diálogo e os carros aceleram mais do que deviam, querendo chegar em casa rápido naquele fim de tarde chuvoso. Os dois, e , porém, continuam parados na esquina. Um olhando para os olhos do outro, ambos se encharcando aos poucos.
  “O céu parece que vai cair! Eu vou indo” – ela nem mesmo olhara pras nuvens que assistiam ansiosas e aliviadas aquela pequena cena de filme. Ela sempre achou que sua vida era mesmo um filme bastante complicado, mas era injustiça de Deus (ou quem quer que olhe por nós) fazer com que todas as cenas importantes fossem com ele. Não era justo com ela. Não era justo com as nuvens dizer que elas iam despencar sobre suas cabeças.
   realmente queria ir embora. Já tinha falado demais, estragado todas as chances de ouvir mais um “Vou te ligar mais tarde!” – mesmo que a promessa não fosse cumprida – só pra ter a vaga sensação de que ele lembraria dela. Agora ela começava a ficar realmente molhada e seu fone de ouvido novo e caro começava a dar interferências. Mas de forma alguma ele tirou a mão de sua cintura. Então ela começou a achar que ele queria dizer alguma coisa.
  Mas como sabia que não queria ouvir a resposta, não fez nenhuma pergunta. Só foi se afastando, milímetros por segundo, procurando coragem pra ir embora. Não queria chegar em casa e chorar de frustração por ter sido uma idiota que falou demais e perdeu uma oportunidade como aquela. Mas ele não reagia de forma nenhuma, e ela cansou de esperar por respostas na chuva.
  Quando estava a quase um metro de distância dele, depois de obrigar a si mesma a se afastar e não olhar pra trás depois, murmurou um “tchau” sem sal e sem adição de açúcar e se virou, pretendendo seguir reto até chegar na esquina aonde viraria para chegar em casa.
   a impediu de prosseguir.
  As nuvens ronronaram em protesto.
  Sabiam o quanto o coração dela estava maltratado por culpa apenas de uma única ligação que ela nem mesmo chegou a receber. A ligação que ele não fez. Não achavam certo que só porque a situação era poética e romântica ele devia mentir pra ela de novo. Não era certo, mesmo se as nuvens achassem o contrário. E sabia, mesmo que não quisesse saber, que se ele dissesse coisas bonitas pra ela ali, naquela esquina sob aquela chuva, elas seriam a mais completa mentira. Infelizmente ela acreditaria em todas as palavras.
  Mas ele não respondeu às perguntas que não foram feitas.
  Ele a beijou.
  E as nuvens despejaram mais chuva naquela esquina sobre os dois. Chuva que significava as lágrimas que ela soltaria mais tarde quando ele prometesse que iria ligar, mas não ligasse.



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