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#010 Temporada

Your Heart
Damien Dawn




Número 1

Escrita por Khloe Petit

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  Manhattan, antigamente, era uma cidade superestimada por conta das drogas.
  O crime, naquela época, compensava e as ruas eram perigosas, repletas de pichações para todos os lados e gangues espalhadas, esperando o momento certo para encurralar a outra. O crack, principal droga comercializada (inclusive abertamente nas ruas), foi um dos precursores desse problema. E então chegou o prefeito Giuliani aderiu à lei da tolerância zero e, com o passar dos anos nesse mesmo tipo de gestão, a cidade se tornou um dos maiores (se não o maior) centro econômico do mundo.
  Com a economia em alta, as pessoas começaram a entrar na cidade, havendo a necessidade da criação de mais e mais prédios residenciais, cada vez mais próximos um do outro. Um deles é onde fica o apartamento onde moro com meu irmão e minha irmã, ambos mais velhos que eu.
  Meus pais faleceram quando eu tinha 13 anos. Um no começo do ano, de câncer, e outro cinco meses depois, de overdose. Existem muitas lembranças em mim, apesar de eu ser pequeno na época. Minha irmã mais velha tinha 23 e meu irmão, 18. Por alguns anos, fiquei no prédio do serviço social, esperando Jude completar uma idade adequada para cuidar de mim, e possuir um emprego para me sustentar (um que o serviço social achasse adequado). Até hoje acho legal que ela não desistiu de tentar manter a família junta, mesmo Rock se mudando para Atlanta depois de conseguir uma bolsa de estudos na faculdade de lá (alguém tinha que ser um profissional completo, disse Jude uma vez).
  Quando fiz 16 anos e voltei a morar com Jude – Rockie já havia saído de casa há 2 anos –, as coisas não foram da maneira como ela esperava. Eu já não era o garoto bonzinho que se esforçava quando era dito para, ou que gostava de béqueres e outras coisas científicas. Era problemático, rebelde, ignorante. Queria uma vida fácil como a da minha mãe. Ela se casou com um cara legal, que foi enganado pela herança familiar (foi mais a ver com o quanto minha família era divertida e o tratava muito bem, já que o lado da minha mãe sempre foi bem pobre), e depois da morte dele, a ideia de se tornar responsável pela casa e pelos filhos era pior do que a morte. Foram necessários só cinco meses para ela conseguir o que queria, como sempre.
  Se você se envolve, quando jovem, com pessoas desvirtuadas da realidade e não há ninguém para te dar uma chacoalhada, é bem comum que a tendência é que você acabe se tornando um desvirtuado arrogante.
  Foi assim que Jude me recebeu naquele dia chuvoso de julho. Eu já estava irritado por causa do calor e o fato de ter sido separado do meu grupo. Ter uma garota que agia como uma mãe era o fim da picada para mim.
  - Você nem tem peitos para mostrar que é adulta de verdade. – foi uma das coisas terríveis que disse a ela, quando tirou o cigarro de meus dedos.
  Mesmo com minhas frases ácidas e impiedosas, Jude não desistia. Parte de mim queria mudar por ela, já que em momentos de humanidade, é possível enxergar o bem da pessoa e ser inspirado a ser alguém melhor como ela. O problema para mim é que não durava muito. Eu sempre estava dopado por um baseado ou outro, e nenhum deles me deixava pensar muito mais do que qual seria minha próxima droga.
  - Você precisa de ajuda profissional. – Jude murmurou quando cheguei em casa em um estado deplorável. Lembro somente de ter pensando no quão legal ela era, já que a maioria dos pais daria um sermão e mandaria para um centro de reabilitação, deserdaria ou retiraria o nome da família. Ela cuidou de mim sozinha, porque tinha medo do serviço social vir me tirar de perto dela de novo. Chamou um amigo que cursava psicologia e que prometeu que não contaria a ninguém sobre meu vício. Ele foi bem legal com ela, mas não durou muito.
  - Ele só vai sair dessa se ele quiser, Jude. – o ouvi dizer ao fim do que seria a minha última consulta.
  Achei que ela fosse desistir e me levar num profissional mesmo, formado e tudo mais. Assim, o serviço social acabaria descobrindo e batendo na nossa porta.
  Só que não. Ela voltou a cuidar de mim do jeito que dava, o que não era muito, porque trabalhava o dia inteiro no Cheesecake Factory e preenchia grande parte do demais tempo fazendo hora extra.
  Aos 18 anos e meio, eu tive minha primeira experiência realmente ruim com as drogas, o que significa que fui obrigado a ir para a reabilitação, após ter passado um tempo internado no hospital. Foi após minha saída, quando eu tinha 19 e meio, que, ao voltar para casa, fui surpreendido com o retorno de Rock.
  Rock era o apelido do meu irmão mais velho porque fazia uso abusivo da expressão “rock” no sentido de “arrasar”. “You rock!”, “This rock!” e “Let’s rock!” eram as coisas que ele mais dizia quando mais novo, mesmo não tendo nada a ver com o contexto. O apelido ficou de tal maneira que até em sua formatura do colégio, lembro que ele foi anunciado como Rock Roberts.
  O problema de ter meu irmão mais velho de volta para casa, é que dois machos alfas não vivem em um mesmo grupo.
  Jude pediu a ajuda de Damien, o nome verdadeiro de Rock e que só nossa irmã o utilizava, e ele, consciente do quanto devia à nossa irmã por ela sustentar nós dois, pediu transferência de Atlanta para Nova Iorque, onde recebia menos, mas economizava com os gastos, por dividir com Jude, e conseguia fazer mais horas extras.
  - Se você não quer estudar, então arrume uma merda de trabalho. Para usar drogas, é preciso ter grana. – ele disse, após ouvirmos Jude bater a porta de seu quarto, depois de eu soltar algumas verdades mentirosas na cara dela. – Faça a Jude pelo menos o favor de não envolve-la com traficantes, seu viciado imbecil.
  A única certeza que eu tinha na minha vida, era que eu odiava ser chamado de viciado. De alguma maneira, me sentia ainda mais vulnerável às drogas ao ouvir o adjetivo, o que me fazia lembrar do quão fraco era. E quando se é um adolescente idiota, tudo o que você menos quer, é ser fraco. Não quando você é dono do seu próprio mundo, que gira exclusivamente em torno de si.
  Eu saí de casa três meses depois de ter voltado da reabilitação. Morei na rua por duas semanas, até um dos meus amigos arranjar ou canto em sua casa. Os pais haviam deixado para ele após se mudarem para outro Estado, e achavam que ele estava indo bem nos estudos, quando, na verdade, gastava a grana da mensalidade com drogas e álcool. Na época, eu achava que era divertido.
  Eu sabia da agenda do Rock, então entrava no apartamento quando tinha certeza que ele estava fazendo hora extra no turno da noite (trabalha com T.I). Esses, na minha opinião, eram os piores dias.
  Eu ia para casa porque queria saber que ainda tinha um lugar para onde voltar. Sempre colocava a chave com receio no buraco da fechadura, toda vez esperando que ela não encaixasse, significando que meus irmãos haviam me chutado de vez para fora de suas vidas.
  Mas a chave sempre encaixou. Ao entrar em casa, olhava ao redor em busca de alguma mudança que significasse uma boa vida, sem um garoto problemático para se preocupar, mas nada havia mudado. E então eu acabava no quarto de Jude, onde ela sempre dormia de exaustão, nunca pelo simples prazer de dormir. Em todas as vezes que a assisti dormindo, havia marcas de lágrimas secas em seu rosto. Aquilo era o que definia as visitas como as piores.
  Porque eu sabia que Jude merecia um irmão bom como Rock. E eu sabia o que podia fazer para melhorar. Ela era um anjo que nunca desistia de mim, e só eu sabia quão agradecido era e ainda sou. Mesmo naquela época, Jude era a pessoa que eu mais amava na vida. Me doía olhar para ela vulnerável como estava, e saber que era por causa de mim. Esses eram os dias em que renovava meus votos de ódio contra quem eu era. Uma pessoa com uma vida vergonhosa.
  Eu queria ser melhor. Esperava, sempre, que no dia seguinte eu acordasse com uma disposição para ser exatamente quem Jude queria que eu fosse.
  Mas o dia nunca chegou.

~*~

  - Ele está em um lugar melhor. – me disseram incontáveis vezes.
  - Talvez estivesse ansioso em reencontrar os pais. Que bom que ele tinha os dois para recebe-lo. – eu odiava ouvir as tentativas de consolação que as pessoas faziam. Como se elas soubessem da nossa história. Como se tivessem conhecido os meus pais. A história deles.
  Senti a mão de Damien apertar a minha em um gesto para que eu permanecesse forte. Desde seu retorno à Nova Iorque, ele tem sido meu maior apoio. Mesmo se desentendendo com Luke com frequência, era ele quem o seguia para saber aonde nosso irmãozinho estava, e ele quem garantia que, ao visitar nossa casa, Luke encontrasse a despensa cheia para se manter alimentado.
  - Meus sentimentos. – ouvi mais uma vez, querendo desesperadamente que fosse a última.
  Luke morreu de overdose, como a nossa mãe. Alguns religiosos disseram para mim que esse tipo de morte, por ser um suicídio, levava a alma para um lugar horrível. Eu honestamente espero que ele esteja com nosso pai.
  Meus lábios tremeram com a ideia de ter feito um péssimo trabalho como irmã mais velha de Luke. Sentir a decepção de papai sobre mim é uma dor que tem me consumido no último dia. Eu podia ter tentado mais. Podia ter me esforçado mais.
  - Vamos, Jude. – Damien passou o braço ao redor de minhas costas e segurou meu corpo, como se soubesse que um passo era o suficiente para eu desabar no chão. Nós éramos os últimos no cemitério, o funcionário do local esperava que nos retirássemos para finalizar seu serviço, jogando a terra em cima do caixão onde Luke se encontrava.
  Admito que olhava para aquela caixa, esperando que ele batesse irritado, gritando para pararmos com a brincadeira e que o tirássemos e lá. Mas a autópsia havia sido clara: ele foi a óbito no final do dia anterior.
  - Você quer ficar mais um pouco? – ouvi a voz doce de Damien.
  Apertei meus lábios, chateada por não conseguir ser mais forte. Por Damien, que permaneceu ao meu lado o tempo todo, ao invés de ser consolado por sua namorada. Por Luke, que odiava me ver chorando, a ponto de gritar pela casa como um louco.
  Respirei fundo três vezes e balancei a cabeça.
  - Vamos embora. – disse, prometendo em minha mente que voltaria no dia seguinte.
  Damien me levou para casa, onde garanti que ficaria bem. Eu tinha trabalho a fazer com a limpeza no quarto de Luke. Agradeci mentalmente por ele ter aceitado o pedido da namorada para verem naquele dia mesmo as opções de apartamentos onde iriam morar juntos. Foi uma decisão que haviam tomado, mas que não foi tomado forma por conta de Luke. Acredito que devido ao desespero da perda do nosso irmãozinho, Damien aceitou ontem mesmo a proposta de Kim. Me senti aliviada. Com a mudança, ele teria muito com o que ocupar a mente e superaria a morte de Luke de uma maneira melhor do que se ficasse aqui.
  - Volto para jantar. – ele disse antes de sair.
  - Não se preocupe com isso. – respondi, vendo-o parar de fechar a porta atrás de si. Voltou a abri-la pela metade e me mandou seu “olhar de irmão mais velho”, como Luke havia denominado.
  - Vou trazer comida chinesa dos Ling. – e fechou a porta, sem esperar por um protesto meu.
  Respirei fundo e olhei ao redor.
  Luke já não estava em casa fazia um tempo. Mesmo assim, sabia a agenda de trabalho de Damien, que o mantinha religiosamente por causa de Luke, e passava aqui algumas madrugadas. Ele preferia perambular pelo apartamento quando não havia ninguém parar brigar com ele ou exigir satisfação de onde ele estava, com quem estava e o que fazia. Porque nós já sabíamos dessas respostas. Ainda assim, era como se ele nunca tivesse saído. Pois, se antes ele fazia visitas escondidas, agora não haveriam mais delas.
  Olhei para a sacola que haviam dado a Damien no hospital, com os pertences que Luke carregava na hora da internação. Decidi deixar ele para depois. Era difícil pensar que, há 48 horas, ele mexia nessas coisas sem saber que não estaria mais entre nós agora.
  Caminhei até a porta de seu quarto, onde o pôster de uma banda de rock que fingia gostar estava pendurada. Retirei-a com cuidado e a dobrei, inaugurando a primeira sacola de lixo, antes usada somente para lixo.
  Passei meus olhos ao redor do quarto. A última vez que Luke havia passado por ali foi na semana anterior. Inclusive, ele havia dormido, já que Damien dormia na casa da namorada, mais próxima de seu trabalho, em dias de hora extra. Luke deve ter descoberto sem querer. O lençol e a colcha ainda estavam remexidos e amassados. Havia muitas roupas espalhadas ali e cinzeiros espalhados pelo local, que por conta do cigarro ainda cheirava a tabaco. Em sua escrivaninha, o único móvel organizado do cômodo, não havia nem um pó do cigarro. Havia um motivo. Papai quem havia feito aquela mesa para ele, quando aprendeu a escrever. Luke, antes de ser levado pelo serviço social após a morte da mamãe, pediu que eu não me livrasse da única coisa que o ligava ao papai. “Só eu ganhei a escrivaninha, então é uma coisa só minha com o papai.” Disse, os olhos implorando para que eu o ouvisse. Eu soube, naquele dia, que precisava me esforçar em uni-lo de novo àquele móvel. Se eu tivesse demorado menos, talvez ele não tivesse tão viciado após passar por duas ou três famílias que desistiram de ficarem com ele.
  Passei o dedo pela mesa, esperando lembrar de cenas entre ele e papai juntos, treinando caligrafia. No final, os dois sempre acabam em risadas e lendo revistas em quadrinho. Papai sempre voltava com uma revista em quadrinho no dia que recebia o salário. Foi um hábito que adquiriu com Damien, esperando criar uma conexão com ele, mas só foi conseguir o interesse de Luke.
  Abri as gavetas, decidindo começar por lá. As coisas ali eram as únicas que eu talvez quisesse manter, então o melhor seria guarda-las logo comigo, antes que Damien visse e achasse que eu enfrentava dificuldades em superar. Eu teria dificuldade em superar, mas não queria que ele soubesse e tivesse um motivo a mais para se preocupar comigo. Cinco anos de diferença não era tão diferente assim depois que se torna adulto.
  Na primeira gaveta havia estojos, blocos de papel em branco e uma pilha de folhas de revista em quadrinho rasgadas. Eu não imaginava que Luke fosse ser tão organizado. Ele era responsável por limpar sua própria escrivaninha (a pedido dele), então nunca soube que houvesse um momento em que ele realmente cuidasse de algo.
  Na segunda gaveta havia folhas com rabiscos. Desenhos que Luke curtia criar, talvez em momentos de saudades do papai, que explicava a lição de casa através deles, para não perderem o foco dos estudos; e textos que ele escrevia. Luke sempre gostou de escrever. Eu não esperava que ele ainda praticasse caligrafia, mas havia cadernos de caligrafia completos.
  Enquanto passava um bolo deles para o saco de lixo que eu não manteria comigo, um envelope branco caiu no chão em um baque quase surdo.
  Deixei o serviço de lado por um tempo e peguei o envelope. Percebi, no momento em que o ergui, que havia mais do que uma ou duas folhas de papel lá dentro.
  - Mas o que... – comecei a falar, abrindo o envelope, já meio amarelado.
  Dentro dele havia um cartão de banco, e três bolos de papeis cuidadosamente dobrados.
  O primeiro bolo de papel tinha ‘Rock’ escrito na frente.
  O segundo bolo vinha com o meu nome.

  Jude, oi Jude.

  Sei que você e Rock sabem que passo aqui nos ‘dias extras’ de Rock. Neste momento, você está dormindo no seu quarto. Eu sempre passo lá para vê-la, é o que sempre quero te dizer. Para ‘matar a saudade’, vamos dizer. Eu vejo, no seu rosto, que chorou antes de dormir. É por isso que decidi escrever para você. Por causa disso e porque estou sóbrio, então sei do que estou falando e não quero que você ache que foi da boca pra fora.

So many nights I watched you sleep
Tried to resist
But I got so deep

  Me desculpe, Jude. Me perdoe.
  Sei que a decepcionei. Sei disso desde a primeira vez que voltei da primeira família que havia me adotado. Nas suas visitas, você me dizia que não era ruim eu ser amparado por pais que estavam com os corações e braços abertos para me acolher. A verdade era que, naquela época, eu já acreditava que família é uma só. Eu jamais me encaixaria em qualquer uma que tentasse me adotar. Além disso, eu sabia que você estava se esforçando em mostrar para a Nancy que podia cuidar de mim. Tudo o que eu precisava fazer, era esperar por você lá no orfanato.
  Foi a última coisa boa que lembro ter feito. E me desculpe por isso.

And when you're next to me
You're still out in my reach
But I just long for you

  Eu ainda não entendo bem a razão de eu não conseguir sair das drogas. Talvez tenha sido eu aquele que herdou os defeitos da mamãe, ou talvez Rock esteja certo, sou um fraco.
  Queria poder dizer para você que, sempre que você cuidava de mim nos meus dias mais difíceis; sempre que optou me amparar ao invés de reclamar dos meus vícios; eram esses dias os que eu tentava me convencer de que o melhor era fazer o que você falava. Que a coisa certa a fazer era me tratar. Mas uma alma corrompida é difícil demais de curar.
  Por todas as vezes que você ignorou sua própria dor para cuidar da minha, obrigado. E me desculpe.

My soul is dark
I see the night
But you're the angel that show me the light
And I tried to be strong

  Descobri recentemente, ou melhor, me convenci recentemente, que minha expectativa de vida não é mais longa que a da mamãe. A ideia da morte que antes me apavorava, agora não me dá mais medo. Sua vida será melhor se eu não estiver aqui para preocupa-la. Sei que é horrível dizer isso e que você vai ficar irada, mas não podemos ignorar a verdade. Sou um garoto problema, Jude. Na maior parte do tempo, eu desejo não ser. Mesmo quando estou sob o efeito, na maior parte das vezes eu ainda assim desejo não ser como sou. Desejo ser como você gostaria que eu fosse. Dessa maneira, eu poderia viver em harmonia com você. Talvez até com o Rock, apesar de ainda achar que ele é um chato, rs.
  Da última vez que pensei sobre a morte, pensei que, se eu morrer, quero que você lembre de mim como o garoto de 13 anos que foi separado de você. Quero que guarde em suas lembranças e em seu coração aquele moleque lá. Não este cafajeste que sou agora. Aquele garotinho lá era quem fazia parte da sua vida. Se um dia tiver saudade, não me ligue e peça para eu voltar para casa. Pare um pouco e lembre do garotinho de 13 anos. Deve haver alguma foto minha por aí, daquela época. De preferencia, uma que eu esteja com cara de santo.

I look into your heart and discover myself
But I'll never be a part of your world
I need you, can't reach you, we're world's apart
If you need me, look into your heart

  Jude, me desculpe pelas maldades que gritei para você, a fim de machuca-la, quando, na verdade, eu era o maior machucado. Você enfrentou os meus medos e minhas inseguranças por mim, combateu todas as lutas sozinha, com sua coragem e o seu amor. Eu jamais conseguiria retribuir esse esforço. Tudo o que posso fazer, é dizer o quanto admiro sua força.
  Você merecia mais. Me desculpe, eu aceito toda a culpa de sua vida menos feliz do que você poderia ter. Nos momentos de fúria que eu lhe causar, pode me xingar. Quando me ver, não hesite em me bater o quanto quiser. A culpa é toda minha. Eu quem sou o fraco. Quem acreditou uma vez que as coisas iriam naturalmente se resolver, com você lutando as minhas lutas.
  Aquele dia que bateram em mim no ano passado, eu achei que iria morrer. Minha única esperança era que você estivesse em casa para cuidar de mim. Eu pensei até que suportar seu surto de mãe era fichinha, tamanha era a dor que estava sentindo. Naquele dia, você me amou mais do que brigou comigo. Apesar de ver a repreensão em seus olhos, você nunca verbalizou. Obrigado. Muito obrigado.

You tamed the beast
I bleed for you
You show me love
Something I never know
I'll take the blame, my life's shame
But I just long for you

  Meu desejo, Jude, é que você encontre um homem perfeito. Melhor que Rock e papai. Com certeza melhor que eu, mas que a ame tanto quanto nós três te amamos. E quando você encontrar esse cara, se eu ainda for um problema na sua vida, não espere mais por mim. Pela minha iniciativa. Pela minha força.
  Se for possível e melhor para você, me esqueça. Diga ao homem perfeito que você só tem um irmão. Eu prefiro ser oculto da sua vida, a estraga-la com minhas histórias vergonhosas. Já estraguei demais a sua vida, Jude. Por favor, não me deixe estraga-la mais. É o suficiente para mim saber que estarei para sempre com você, mesmo que só em seu coração.
  Seja feliz, Jude. Gostaria que você vivesse uma vida em que sorri mais do que chora. Em que descansa mais que trabalha. Em que se dedica mais a si mesmo do que aos outros. Desejo alguém que cuide de você por mim e por Rock. Até agora, você fez muito bem o papel de primogênita. Mas por mim, se for para você começar uma nova vida com alguém, que seja para ter um futuro feliz, mesmo não estando do seu lado. É o mínimo que eu posso querer para você, Jude.

Don't wait for me
I'll never be (a part of your world)
But I'm in your heart, forever

  Eu te amo, Jude. Saiba que, para mim, você é mais do que uma irmã mais velha e mãe. Você é um anjo. O anjo que me guarda e cuida de mim. Que eu amo e vou amar por várias eternidades.
  Se um dia eu vier a me separar de você (vai que eu me caso, rs), não se esqueça que você sempre será a minha número um.
  Obrigado por ter sido perfeita. Eu mudaria várias coisas em mim, mas nenhuma em você. Amo você da maneira que é. Me desculpe por não poder dizer diretamente.
  Eu te amo, irmãzona. Te amo muito.
  Luke R.

  No final do dia, depois de Damien chegar e me pegar ainda chorando no quarto de Luke.
  Depois de ele ter lido a carta que Luke também havia escrito para ele (houve mais risos, choro e palavrões do que eu imaginava como reação).
  Depois de nós dois permanecermos em um longo silêncio, tentando fazer cair a ficha de que Luke não estava mesmo mais entre nós.
  Nós olhamos o terceiro bolo de papel dobrado.

  E aí, pessoal.

  Sabe a parte de suas cartas que eu escrevi que esperar voltar para casa foi a última melhor coisa que me lembro ter feito? Eu menti.
  Essa é a última melhor coisa que fiz atualmente.
  O cartão é de uma conta. A minha. Sei que vocês fazem depósitos nele. Mas adivinhem só? Eu também!
  Não é dinheiro ilícito, mas não vou falar de onde veio. Não sou tão legal assim, mesmo sóbrio.
  O outro papel é uma procuração. Só por precaução. O irmão do Bruce é advogado e eu o ouvi dizendo pelo telefone que se houvesse procuração, nenhuma dor de cabeça aconteceria. Então eu fiz uma. Foi bem fácil, para ser sincero.

  Obrigado por cuidarem de mim. Não sei quando entregarei esse envelope a vocês, nem quanto dinheiro terá na época, mas espero que seja o suficiente para não me odiarem tanto quanto agora.
  Essa era para ser uma carta de agradecimento só. Então, bem, obrigado.
  E me desculpe. Por ter virado o que sou agora. Me desculpe mesmo.
  Obrigado. Vocês são muito mais do que um fraco como eu merece. Mesmo assim, obrigado.
  Obrigado por serem minha família, quando não mereço uma.
  Obrigado por não desistirem de mim, quando dei vários motivos para me deixarem.
  Obrigado por existirem. Por me amarem.

  Obrigado,
  Luke.

  Dois anos depois.

  - É aqui. – anunciei, parando em frente à lápide de Luke.
  - Você mentiu para mim, Jude. – Rock disse. – Disse que fazia um tempão que não vinha o visitar.
  Olhei para ele com um sorriso de culpa. Eu havia mesmo mentido. Rock, como me acostumei a chama-lo, sempre se preocupava com a frequência de minhas vistas a Luke desde sua morte. Ele ainda não havia entendido que as visitas não era de sofrimento, mas um momento que eu tinha com meu irmãozinho, onde eu me sentava e ficava horas lembrando do menino de 13 anos que ainda usava o caderno de caligrafia.
  - Deixa ela, amor. – Kim tocou no braço de Rock, que revirou os olhos e desviou logo sua atenção para a bebê no carrinho. Sue havia nascido havia três meses e tinha os mesmos olhos de Luke.
  - Posso depositar as flores aqui?
  Olhei para Harry, vestido um terno completo ao meu lado. Sorri de forma serena e assenti levemente com a cabeça, observando, feliz, ele depositar o buquê de lírios brancos em cima da grama que eu sempre aparava a cada duas semanas.
  Voltei o olhar para a lápide, onde meus olhos sempre caem no nome de Luke. Ele repetia meu nome com tanta frequência, que acabei criando o hábito de sempre cumprimentá-lo duas vezes, como havia feito em sua carta.
  “Luke, oi Luke.” Pensei. “Este é Harry, meu homem perfeito. Para o seu ponto de vista, tenho certeza de que ele é o partido ideal. É bonito e bem sucedido. E rico. E ficará mais rico quando herdar a construtora de seu pai. Além disso, ele é carinhoso e gentil. E tem um carro que você iria amar dirigir.”
  “Ele me pediu em casamento ontem. Mas eu disse que só aceitaria depois de ele visitar meu irmão mais novo. Contei para ele sobre você. A verdade. Do quão incrível você foi e do quanto me amou. Rock disse que se você aprovar, então para ele está tudo bem. Vimos o papai mais cedo. E a mamãe.”
  Olhei para Harry, que ainda olhava com atenção para a lápide que continua as informações de Luke. Ele estava concentrado e sua expressão era a mesma quando estava para fechar um grande negócio.
  “Eu o conheci no trabalho. Servi ele uma vez e, do nada, ele começou a aparecer para almoçar vários dias seguidos. Até que um dia, me esperou sair do expediente para me convidar para tomar um drink. Foi bem legal. Para alguém que nunca tinha tido uma experiência assim na vida, até que não paguei nenhum mico. Você teria achado tedioso ouvir minha experiência na época. Sei que procuraria momentos de mico para tirar uma com a minha cara. Enfim, acabou em pedido de noivado. Vou aceitar. Vim aqui porque quero que você saiba que, apesar de ter dito para eu não mencionar você a ele, quero que Harry saiba que tive o melhor irmão caçula do mundo. Você jamais colocou minha vida para baixo, Luke. Tenho certeza que já falei isso várias vezes antes. Mas só para ressaltar. Mesmo que estivesse vivo, você ainda assim faria parte da minha vida. Porque eu te amo. E vou te amar por várias eternidades. Você será para sempre minha família, o meu número um. Obrigada, Luke. Obrigada por estar cuidando de mim daí de cima. Por ser meu anjo. Eu te amo, irmãozinho. Te amo muito.”
  - Vamos? – Rock anunciou, tirando-me dos pensamentos. – Não se preocupe, ela estará aqui na semana que vem. – disse, quando Harry olhou para mim, sabendo que eu ainda estava perdida em devaneios.
  - Vamos, sim. – sorri, fazendo com que todos se movessem de volta ao carro. – Harry? – ele olhou para mim com um sorriso carinhoso estampado nos lábios. – Sim. – respondi, vendo seus olhos brilharem com a alegria.
  Segurou a minha mão durante o caminho de volta até o carro dele, e entrelaçou os nossos dedos, acariciando minha mão com seu polegar.
  - Pela maneira como você se dedica a Luke, parece que ele foi um bom irmão. – ele comentou.
  Abri um sorriso sem querer, apenas porque estava extremamente feliz, e encarei o céu claro e bonito, antes de responder:
  - Ele foi o melhor.

FIM