(Not) Sober

Escrito por Juliana | Revisado por Mariana

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  Ela sentia os seis anos de sua sobriedade se esvaindo pelos dedos, junto da fumaça do cigarro que tragava. Cada puxada de ar era um ano a menos que ela tinha, mas era um segundo a mais de vida. Como aquilo podia soar tão irônico e tão sincero ao mesmo tempo? Deveria ser, no mínimo, absurdo que alguém comparasse uma tragada de cigarro a um segundo a mais de vida. Mas, para ela, tudo era irônico e ácido de uma forma desconhecida.
  Apagou o cigarro, ainda pela metade, no parapeito da janela e juntou seus restos ao dos outros cigarros abandonados pela metade no cinzeiro. Ela tinha essa mania, nunca os fumava inteiros, mas, ainda assim, sempre acendia um novo. Era como um passatempo favorito, tipo colecionar adesivos que vêm nos cadernos infantis das papelarias. Ou aquele kit cheio de papéis de carta, todos meio amarelados, mas que seguem guardados.
  Ela voltou para cama, acompanhada da fiel dose de uísque, para seguir rascunhando aquela que seria, dentre todas as já lançadas, sua canção mais verdadeira. Por mais que já tivesse falado sobre como os vícios a afetavam, não havia assumido ainda que eles já não eram mais parte do passado. Os vícios haviam voltado, talvez até mais fortes do que antes, mais perigosos e com um maior poder de destruição. E ela sabia, lá no fundo do peito, que era questão de tempo até que algo maior e pior acontecesse. Mas ela não era forte o suficiente para pará-los. Ou será que o motivo era o oposto? Foi forte tanto tempo, que não haveria mal algum em ser fraca? Não naquele instante?
  Bebericou o líquido dourado do copo enquanto rascunhava mais uma parte daquela música, um grito quase que cansado de quem não aguenta mais se esconder. Ela havia caído, falhado, e era hora do mundo saber que ela era humana, afinal.
  O celular tocou em cima da bancada, ao lado do saquinho com o pó branco que ela evitava ao máximo. Por mais que o mantivesse na gaveta do criado mudo, não queria se entregar a ele, não ainda. Ela era mais forte do que o conteúdo daquele saquinho transparente, mas não era mais forte que o nome que piscava na tela do celular.
  O contato de caveira deveria significar alguma mensagem importante, mas ele estava ali servido apenas de alento. Um contato proibido, mas que ela fazia questão de manter, já que todos os outros já não existiam mais. Não naquele celular, dedicado apenas aquilo, a sua autodestruição.

“eu tenho o que você precisa, vou levar na sua casa agora mesmo”

  Quem lesse aquela mensagem, digitada às pressas e cheias de meias palavras, não entenderia muito bem do que se tratava, mas ela sabia. Sabia, porque aquelas meias palavras traziam uma paz conturbada e pintada de cinza chumbo para dentro do seu coração. Aquelas meias palavras poderiam amarrar seu fim.
  A campainha soou assim que ela terminou de colocar a última palavra, no último verso da música. Correu até a porta, apenas para encontrar o rosto conhecido.
  Não se tratavam por amigos, por apelidos, ou gestos carinhosos. Ele vendia, ela comprava, eles usavam juntos, ele ia embora, enquanto ela estivesse respirando. O que viesse depois disso, era lucro.
  Pediu cinco minutos para ajeitar as coisas no estúdio que tinha dentro da própria casa e, enquanto ele separava o pedido, ela acertava as notas, que embalariam a canção recém formulada.
  As notas saíram de primeira, junto da primeira aspirada. Ela era boa naquilo que fazia, tanto para um lado, quanto para o outro. O próximo passo foi colocar em voz as letras escritas às pressas no papel dobrado de qualquer jeito. E a voz saía, magicamente doce, ainda que sofrida. Afinal de contas, era sua vida ali, enrolada entre as letras da canção e o que realmente acontecia dentro daquele estúdio. Puxou o ar e o pedido, uma vez mais, antes de ver o arquivo ficar pronto, e ela só esperou que aquele fosse o fim.
  Ela pedia perdão a todos aqueles que ela havia machucado, mas a verdade é que ela ainda estava machucando aquelas pessoas que nem tiveram tempo de pensar em aceitar suas desculpas. Porque tudo o que restou, foi amargo e vazio. Tudo o que restou foram as sirenes no meio da madrugada, quando ela foi encontrada, meio viva, meio morta, em cima do piano de cauda que cuidava como se fosse um filho, as marcas da noite anterior ainda presentes em seu rosto, seu corpo e no espaço em que estava. Tudo o que restou foi o pedido de socorro silenciado, o pedido que as pessoas fingiram não ouvir. Tudo o que restou foi o eco silencioso de quem ela deveria ser, porém nunca havia sido.
  Tudo o que ela queria era viver, mas havia desgraçado sua vida há muito tempo quando deixou que os outros se enfiassem em sua mente de forma a lhe fazer perder o chão, o controle, a saúde e, por que não, a vida.
  Mas a vida lhe fora poupada, em um último suspiro, uma última tentativa. Se, depois dessa tempestade, ela não aceitasse a calmaria, provavelmente não veria mais nuvem alguma, porque não existiria mais céu. Não para ela, não para os outros perto dela.
  Alguém que, desde muito jovem, viveu a dor de ser observada pelo mundo inteiro. Alguém que, desde muito jovem, não pode cair e errar, como todos os outros. Agora que, desde muito jovem, viu as tristezas cruas que a vida é capaz de causar. Alguém que, desde muito jovem, luta para se aceitar.
  Mas alguém que acreditava em chances e que as abraçaria com toda sua alma e sua força de vontade, que era infinita.
  Afinal, assumir que não estava mais sóbria era o primeiro passo para caminhar em direção a sobriedade.

“I'm not sober anymore
I'm sorry that I'm here again
I promise I'll get help
It wasn't my intention
I'm sorry to myself”



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