Noiva-Cadáver
Escrito por Bruh Fernandes | Revisado por Mariana
These lyrics heard a thousand times, just plush
A baby boy you've held so tightly
- Olá, prazer, . – dei-lhe um beijo na bochecha, vendo a mulher sorrir simpática.
- . E o prazer é meu. – deu de ombros, bebericando o suco. – Antes de tudo, eu preciso dizer, eu não quero me casar. E nenhum homem, muito menos você, vai me fazer mudar.
Afaguei o tecido fofo do vestido que outrora fora branco. Pendurado no armário há meses, estava à roupa que usara a única vez que tivera coragem de se vestir de noiva. Em uma festa a fantasia, de noiva-cadáver.
Eu sorria ao lembrar-me o quanto ela se animou a estragar o vestido da irmã mais nova, rasgando-o e manchando-o com tinta spray prata e sangue falso. Ela comentara, como tantas vezes antes e depois, que somente vestida daquele jeito aceitaria ser chamada de noiva. E cada dia que ela soltava aquela maldita informação, tão convicta e confiante de si mesma, fazia-me cair mais apaixonado por ela.
- Juth deve ter batizado a minha bebida para eu aceitar um encontro às escuras. – ela gesticulava rápido, balançando a cabeça negativamente – Quer dizer, qual a probabilidade disso aqui – ela apontou para nós dois – dar certo? Segundo as estatísticas, é quase nulo!
- Você por acaso é economista? - inquiri, vendo-a fazer uma careta e logo depois proferir um não. – Então, , esqueça as estatísticas!
Ela sempre fora tão pessimista. Eu a motivava a ter um pouco de esperança, acreditar no destino, mesmo que ela o construísse. Quando eu propus que viajássemos, enquanto nos acostumávamos um ao outro, ela listou dezenas de desculpas sobre não poder sair do país. E, então, porque não ir para a cidade A ou B.
- Estará muito quente essa época do ano em Sidney, ... – ela reclamava, inflando o panfleto da agência de viagem.
- Que seja, nós passamos dia-e-noite na piscina se for preciso, amor. – ela sorriu, enquanto eu dei um peteleco em seu nariz - Você tem que descansar, eu tenho que descansar e, acredite, é muito mais saudável do que fumar.
Vício em nicotina. Um ruim hábito de fumar metade da cartela de fumo por dia. No começo, eu reclamava pela fumaça, discursava sobre um futuro câncer de pulmão e fingia não gostar do gosto de seu beijo depois de um cigarro.
De repente, a cartela dela acabava mais rapidamente. Esta não durava mais dois dias e sim um, já que eu usava a outra metade, parte por passar aqueles preciosos e nublados minutos em companhia da , parte porque, bem, é puramente viciante.
- Que droga , dezesseis horas sem fumar e você nos coloca longe da janela? - soltou ela, assim que percebeu que nossos assentos no avião eram no meio.
- Senhora , eu prometo manter você ocupada todo esse tempo... – eu apertei sua cintura, roubando-lhe um beijo.
I sit here and smile, dear
I smile because I think of you and blush
Nós não éramos casados. E mesmo que ainda estivéssemos juntos, nós nunca nos casaríamos. Ela havia deixado bem claro em nosso primeiro encontro que convenções não lhe caiam bem. Todavia, nós moramos juntos por doze anos, vivendo muito melhor que casais com juramentos religiosos ou civis.
Eu a chamava de senhora simplesmente porque adorava lembrar-me que ela era minha, só minha e para sempre (iludido) minha. Em resposta, ela me chamava por meu sobrenome. Na superficialidade, parecíamos dois estranhos repletos de pudores trocando um discurso. Ao fundo, trocávamos juras apaixonadas e pessoalidades que somente para o outro fomos capazes de contar.
- Você sabe que eu vou te abandonar assim que seus peitos caírem, não? - brinquei com ela, já que comemorávamos onze anos de namoro.
- E você acha que esses músculos nos seus braços vão ficar firmes até quando? - ela rebateu - Espere só para ver se eu não vou te abandonar primeiro!
Fatalmente, a frase de ecoou pelos anos e, inesperadamente, ressoou com todas as forças. Ela me abandonara. Sem qualquer aviso, qualquer preparo ao meu coração. Repentinamente, como quando eu a ganhei, eu a perdi.
- Me pergunto se continuarei usando coturnos quando tiver setenta. Ou essas blusas mamãe-sou-forte que você me obriga a usar. Talvez eu fique um coroa gato, não sei. – ela sorriu, recostando sua cabeça na curva de meu pescoço. – São muitas dúvidas sobre a época da minha velhice. Mas, sabe o que eu tenho certeza? Que eu ainda a amarei quando você deitar em cima de mim, se aconchegar em meus braços e me arrepiarei com sua boca gelada em meu pescoço. – ela fechou os olhos e despejou um beijo no local que eu amava. – Espero que você não fique uma velha chata porque a pipa aqui não vai mais subir. – deu um tapa em minha barriga, envergonhada. – Sexo é essencial, baby. É porque você tem todo dia, mas você vai sentir...
- ! Já peguei a questão, ok? Sexo, pipa, velhice. Podemos nos focar no agora? Estou feliz que ainda tenho como transar com meu namorado e feliz que você ainda possa usar essas camisetas que mostram seus músculos. Eu não sei se nós estaremos vivos amanhã, então para que se preocupar?
Eu sempre fora esperançoso, romântico. O espelho de meus pais, casados durante mais de cinquenta anos, velhinhos, ainda apaixonados, andando de mãos dadas, me fez querer seguir os passos deles. Claro, com algumas – ou muitas – diferenças, mas certamente com , o amor da minha vida, ao meu lado e eu tendo certeza de que era a pessoa mais feliz do mundo por isso.
, no entanto, gostava de pensar que sempre seria o seu último pôr do Sol. E, por isso, a cada nascer que ela ainda notasse seu coração batendo ela ia até o mirante da cidade para uma corrida e, principalmente, para observar o Sol ocupar progressivamente seu espaço mais um dia. Mais um hábito com o qual ela me enfeitiçou.
- Nunca me canso dessa vista. – exclamei, vislumbrando a luminosidade do astro maior ultrapassar as ilhotas distantes. – Para ser perfeito, você poderia parar de fumar. – ela suspirou, ignorando minhas palavras. – Ei, , estou falando com você. Você poderia deixar o cigarro apagado pelo menos aqui. Só aqui.
- Só aqui. E na cozinha porque você está cozinhando. E na sala porque o cheiro impregna nos móveis. E na casa dos seus pais porque eles não gostam do fato da mulher do filho deles ser uma viciada em nicotina. E quando saímos para beber em um barzinho, você nunca aceita ficar na área dos fumantes! E, o pior, você fuma! – ela brandeou, exalando toda a raiva por minhas frases anteriores – Agora dá pra calar a merda da boca?
One million years I will say your name
I love you more than I can ever scream
Ela costumava dizer que eu era a mulher da relação. O apaixonado, o cozinheiro, o falante. Eu tinha que concordar com ela. Eu sabia que o amor que eu sentia era recíproco, mas enquanto dificilmente soltava uma declaração, como se esta demonstrasse fraqueza, eu gritava aos quatro cantos do mundo que amava aquela mulher!
Ela odiava até mesmo fritar ovos e eu era chefe de cozinha em um restaurante italiano na esquina de nosso prédio. Eu falava muito, desde sempre, sobre absolutamente tudo. Minha , no entanto, era reservada e quando deixava sua timidez de lado para contar algo, ela contava com tanta paixão e entusiasmo! Era um dos motivos que me mantinham constantemente apaixonados por ela.
- Você é tão diferente das outras. – comentei, vendo inspirar o cheiro da chuva – Qualquer uma estaria bufando em irritação pela água estragar o cabelo, ou por provocar um resfriado no dia seguinte. Mas, você, Senhora , adora se molhar...
- É. – ela sorriu, porém não desviou os olhos do céu. As gotas da fina e fria chuva atingiam seu rosto, mas não esboçava qualquer reação. Simplesmente deixava que a água escorresse por sua pele e a purificassem. – Eu... Sinto a chuva. E tê-la em contato com minha pele quente é uma das melhores sensações do mundo.
Eu entendia a fascinação de minha amada pela chuva. Eu era igual com as estrelas, de colecionar telescópios e conhecer aos avessos as constelações. Ainda sou, na verdade. Agora, entretanto, a água caindo do céu, limpando a Terra, tem um significado especial para mim. Me lembra a própria .
A universal still, no rust
No dust will ever grow in this frame
A chuva dava boas vindas ao dia de hoje. E me alertava que era dia de visitá-la. Visitar o amor da minha vida, porque, como ela mesma dizia, dias de chuva são dias de festa. E não há de haver comemoração melhor do que estar ao lado de .
- Você gosta de cemitérios?
- Gosto! Você não? - ela olhou para mim enquanto caminhávamos de mão dadas, fazendo sua cara de séria, embora eu estivesse morrendo de vontade de rir. O que não era nem um pouco prudente, devido ao lugar. Eu me segurei para somente negar com a cabeça – Qual é! É silencioso, tranquilo e, ao mesmo tempo, talvez por causa dessas duas características, tão assustador! É uma inspiração tremenda.
- Cada dia você me surpreende mais! – revelei em seu ouvido. – No nosso aniversário de nove meses, eu desmarcarei o restaurante japonês e te encontrarei exatamente aqui: cruzando com a Avenida B e a Rua E, bem em frente ao tumulo do nosso amigo – aproximei-me para ler o nome moldado no granito – George Willison. Vai ser uma baita economia para meu bolso!
Este lugar tornou-se normal para mim, assim como sempre fora para ela. Adentrando, andando por seus labirintos até chegar ao meu ponto de encontro, eu me sentia bem. Simplesmente. Não dispunha de medo ou qualquer temor ou desconforto.
Suspirei quando meu olhar encontrou o granito preto preso ao chão. Presumi que sua mãe sentira tanta falta dela quanto eu, avistando lírios amarelos, os preferidos de , arranjados ali.
- Parabéns, Senhora – aproximei-me da cama em que estava deitada, plantando um beijo em sua boca – Trinta aninhos! – deixei a bandeja de café da manhã na cama, vendo-a suspirar com o cheiro e ajustasse para sentar na cama.
- Isso! Vamos comemorar minha velhice! – reclamou ela, transbordando ironia. Eu corri até o corredor, pegando o ramo de flores preferidos dela e voltei ao quarto. Entreguei-o, vendo-a arregalar os olhos e sorrir abobalhada. Ela amava flores, em especial aquela.
- Seja positiva, Senhora . Essas flores, que estão tão lindas quanto ti hoje, vão estar velhas daqui a três dias!
A fuss is made of miles and travels
When roadways are but stones and gravel
A bleeding heart and conquer every crutch
Saudades é uma palavra tão profunda que poucas culturas foram capazes de proferi-la em toda a sua magnitude. Dizer que eu sinto falta de minha amada é pouco. Repetir o nome dela durante um milhão de anos não é suficiente para diminuir a dor.
Eu me sinto tão mal por tê-la afastado de mim em seus últimos dias...
- Você vai viajar de novo? - questionei, abandonando a xicara de café na metade do caminho até minha boca. – Droga, , é nosso aniversário de namoro na sexta e você vai passar longe!
- É trabalho, . E se eu preciso viajar, irei. É, afinal, o que nos sustenta. – murmurou, irritada. - Sua pintura, sua linda arte, só nos faz gastar dinheiro. Dinheiro esse que eu ganho.
- Por que você sempre joga isso na minha cara? Você concordou em minha demissão para que eu pudesse pintar!
Meses atrás, eu saíra do escritório de publicidade em que trabalhava para me dedicar inteiramente ao meu dom. Junto às tintas, borrando minhas camisetas, me sentia feliz. Pouco tempo depois, entretanto, percebi que sem , nada daquilo adiantara. Mesmo pintando o arco-íris, eu me sentia incompleto.
- E pensar que você odiava viajar! Ou será que você não gosta é de minha companhia? - comentei, vendo-a deslizar a mala de rodinhas pelas estacas de madeira do chão da sala. Ela me encarou com uma cara de descrença.
- Não seja ridículo, por favor.
- Eu te amo – revelei em um suspiro. Ela, entretanto, não sorriu como das outras vezes.
- Eu também, , eu também te amo. Só não me faz não querer voltar para cá. – ela fechou a porta atrás de si, deixando-me no silêncio absoluto de meus pensamentos.
Mais do que qualquer coisa, eu queria fazê-la voltar para casa. Desejava, assim como ela falou, que a mesma quisesse ficar em meus braços depois de uma semana de viagem. Hoje, trocaria o resto da minha vida engravatado no escritório para ter um minuto com ela.
Meus arrependimentos são muitos. Ter implicado com ela por tão pouco, ter reagido como uma criança, não ter a levado para o aeroporto, principalmente, e lhe dado um beijo de adeus.
Eu não sabia no momento, mas seria uma viagem sem volta.
I will wait, dear
A patient of eternity, my crush
A universal still, no rus
- Blá, blá, blá. – uma implicante estava em cena – Por que você especula tanto sobre nossa velhice? - dei de ombros, sem saber o que exatamente responder.
- Gosto de pensar em nós dois juntos, de como ficaremos, se seremos felizes como agora. – deixei a frase no ar, dando-lhe asas para voar por entre meus sonhos.
- – ela bufou – Teremos sorte se chegarmos até lá juntos.
Foi uma tragédia o que ocorrera. A impressa oral e escrita noticiou com pesar a morte de 258 passageiros do voo 904 com destino a Londres. Entre tantos, , que nunca fora uma ao fim, era só mais um nome na lista.
O sofrimento, entretanto, que as bebidas amenizam momentaneamente, rouba todas as minhas energias de forma avassaladora. Não consigo mais entrar em nossa casa. Vivo em quartos de hotel.
Não consigo mais pintar, toda a inspiração afundara junto ao avião. Não me interesso por qualquer mulher, tão pouco quero ouvir alguma voz. Rolando na cama, às vezes me surpreendo com o fato de ainda poder respirar. Mas isto está prestes a acabar.
- , para que todos esses remédios? - ergueu a nécessaire repleta de medicamentos.
- São para diferentes sintomas: dor de cabeça, no corpo, de barriga, de garganta... – ela me interrompeu:
- Nós só vamos para casa da minha mãe passar à tarde lá! – ela exclamou – Você é mesmo um viciado...
Eu sou hipocondríaco. Ou somente gosto bastante de remédios. Não importa. O coquetel composto de cápsulas de diferentes medicamentos estava no bolso da minha jaqueta.
Olhei para o nome de exposto ali. Com minhas habilidades artísticas peguei o canivete que levava e um pequeno martelo e comecei a esculpir no granito meu sobrenome.
era sim uma , minha , e não era um contrato de casamento que asseguraria aquilo.
Alguns minutos depois, estava feito. Permiti-me, então, debulhar-me em lágrimas.
- Eu prometi que vou te ver, Senhora . Prometi a você. E, agora, vou para casa de novo. Ao seu lado é meu lar.
Os medicamentos desceram rasgando por minha garganta. A chuva aumentou, deixando-me molhado durante minha despedida deste mundo.
But I promised you, and now I'm home again, again, again, again, again, again, I'm home again.
FIM

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