Namorado "Inventado"
Escrito por Luh Marino | Revisada por Luh
“… Era só um sentimento adormecido, que despertou outra vez, e causou formigamento na alma.”
Sean Wilhelm
Prólogo
Desci as escadas coçando o olho com o dedo e bocejando. Meu cabelo estava completamente armado e, meu pijama, estrondosamente amassado. Eu ouvia vozes no andar de baixo, mas nem liguei – deveria ser apenas minha mãe e meu padrasto.
Quando meus pés descalços tocaram o chão frio da cozinha, eu estremeci. Mas, ao levantar a cabeça, eu fiquei mais gelada que o piso. As cinco pessoas que estavam no cômodo pararam de conversar e passaram a me olhar. Mamãe, George, um homem e uma mulher estranhos e... Um cara muito gato! Ainda com a cara de susto, notei que minha mãe bateu na própria testa e George tentava segurar o riso.
- Uh... Oi? – Tentei falar algo, e minha voz saiu tremendamente rouca pelo fato de eu ter acordado há pouquíssimos minutos.
- Ai, Jesus. – Minha mãe murmurou. – Querida, esses são Walter e Allison Cooper, eles são sócios do seu padrasto na empresa. E esse é Edmund, o filho deles.
Eita nome lindo.
- Prazer. – Respondi, tentando um sorriso sem que precisasse mostrar os dentes. Eu ainda não tinha os escovado.
- O prazer é nosso, querida. – A mulher respondeu, sorrindo tão amarelo que me doeu os olhos.
Peguei uma caneca no armário e coloquei café na mesma, em seguida pegando queijo e leite na geladeira e alguns biscoitos no outro armário. Fiz tudo isso sendo minuciosamente observada e não pude impedir a mim mesma de corar. Eu odiava ser observada por muito tempo. Fazia cócegas.
Já comendo tudo que eu tinha direito – inclusive peguei umas panquecas que minha mãe tinha feito mais cedo –, eu ouvia os outros cinco voltarem a conversar. Não fazia a mínima questão de prestar atenção no que eles falaram, só o faria se meu nome fosse mencionado. Pois então, meu nome foi mencionado. E quando foi, eu quase engasguei.
- Mas então, filha. Pode ser um choque para você, mas a família Cooper está aqui por você. – Minha mãe disse, virando o corpo em minha direção. O resto do pessoal voltou a me encarar e eu me segurei para não sair correndo.
- É mesmo? Que interessante. – Cortei um pedaço de queijo e o enfiei quase inteiro na boca para não ter que falar nada. Minha mãe rolou os olhos com a minha falta de educação.
- Sim. Eles quiseram nos propor um modo de nos tornarmos, digamos, mais sócios. – Ela falava no plural, mas ela sequer trabalhava na empresa de George. Balancei a cabeça como se dissesse pra ela continuar e ela o fez. – Como você sabe, há muitas pessoas querendo chegar ao topo na nossa empresa e roubá-la de nós. Seu padrasto é um dos donos, juntamente com Walter e outros quatro homens. Eles confiam plenamente um no outro, não é mesmo, amor?
- Claro que sim. – George respondeu, sequer prestando atenção no que mamãe falava, já que completava suas rotineiras palavras-cruzadas no jornal.
- Pois então, Edmund quer seguir os passos do pai, é apaixonado por administração assim como Walter. – O tal Edmund iria falar algo, mas minha mãe não deixou. – Para que a empresa continue sempre com os mesmos donos por mais algumas gerações, todos os donos estão casando seus filhos...
Todos ficaram em silêncio esperando que eu demonstrasse alguma reação, mas eu não havia entendido...
Espera ai!
- E como você já tem quase vinte e dois anos e não tem namorado e ainda mora com os pais – não que eu esteja reclamando, não ligo muito para isso, mas deve ser meio constrangedor pra você –, pensamos em casar você... Com Edmund!
O QUE?
- O QUE? – Gritei, levantando da cadeira e batendo na mesa. Todos se assustaram. – Quero dizer... Mamãe, não seja estúpida, não estamos mais no século dezenove! Esse tipo de coisa já passou!
- Mas querida, você e Edmund têm tanto em comum, vão se dar bem! Daremos quanto tempo quiserem para que se conheçam, não precisa ser agora! – Allison se manifestou, e um pouco atrás dela, Edmund fazia careta como se gostasse da ideia tanto quanto eu.
- Não, não, não! Eu nunca vou conseguir me apaixonar por uma pessoa se estiver sendo forçada a isso! Não vou me casar com alguém só por negócios, gente!
- Nos desculpe, querida. Também não gostei muito da decisão, mas não há nada que você possa fazer. – George tirou a atenção do jornal, se manifestando pela primeira vez no dia e eu quis arrastar a cara dele no asfalto. – A não ser que você já tenha alguém na sua vida – o que eu não acho provável, pois você nos contaria –, você irá se casar com o Cooper.
Fiquei certo tempo em silêncio, com expressão de pânico no rosto. Eu tentava absorver o que eles estavam falando enquanto sentia olhar compreensivo e solidário do meu padrasto. Ele disse que a não ser que eu tivesse alguém na vida...
É isso!
- Pois eu tenho alguém na vida! – Quase gritei novamente, e minha mãe fez uma cara confusa. Tentei disfarçar ao fazer uma careta e procurei na mente alguém que eu pudesse falar que estava namorando.
- Por que nunca nos disse que estava comprometida, filha? – Minha mãe perguntou, tentando esconder a raiva que eu sabia que ela estava sentindo.
- Porque queríamos manter segredo. Desculpe, mamãe. – Menti na cara dura, ainda tentando lembrar de alguém da faculdade de quem eu nunca falei pra minha mãe. Eu a contava tudo, então estava um pouco difícil.
- E quem é? – George perguntou, me olhando com uma feição divertida. Ele sabia que eu não estava falando sério. Era a pessoa que mais me conhecia no mundo, só perdendo pro...
- ! Eu estou namorando o ! – Berrei com convicção, fazendo todos me olharem estranho, até George parou com a feição irônica e ficou surpreso, e só então percebi a burrada que eu havia cometido.
Eu acabara de falar que estava namorando meu melhor amigo que, por acaso, é filho de um dos sócios da empresa.
Fodeu?
Capítulo um
Meu nome é e eu sou a pessoa mais insociável da face da Terra. Tenho vinte e um anos e dez meses, beijei três caras na vida e só não sou virgem porque estava bêbada. Odeio me socializar com os outros, faço faculdade à noite porque é o período mais vazio e praticamente não tenho amigos. Moro com meus pais até hoje, não tenho nenhum tipo de válvula de escape para a vida miserável que eu vivo e a única pessoa com quem mantenho frequente contato é meu melhor (e único) amigo, .
Meu pai morreu quando eu tinha oito anos. Ele era meu herói. E vai ser para sempre, na verdade. Mas depois de sua morte, eu me fechei completamente para o mundo. Entrei em uma depressão nada saudável para uma criança de oito anos. Minha mãe não sabia o que fazer. Ninguém sabia o que fazer. Eu não comia, não saía do meu quarto, não falava com ninguém, não tomava banho, não ia à escola. Mas minha professora de primeira ou segunda série forçou um aluno a me entregar todas as tarefas e o conteúdo, para que, quando eu me sentisse boa novamente, eu pudesse acompanhar o que a professora ensinava. O tal aluno vinha todos os dias à minha casa, deixava as tarefas na minha escrivaninha e me forçava a comer um ou dois biscoitos. Ficava comigo das duas às seis da tarde.
Era a única pessoa com quem eu falava. Eu não abria a boca nem com a minha própria mãe. Ele me fez enxergar que eu não poderia ficar daquele jeito para sempre, me fez ver que o que eu estava passando era, sim, um período absurdamente difícil, mas que eu tinha que continuar minha vida. Ele me fez perceber que meu pai sempre estaria comigo, de um modo que eu não podia enxergar, mas podia sentir. Ele me fez acreditar em anjos. Ele praticamente me trouxe de volta à vida. E tudo isso com apenas oito anos.
Esse garoto se chama e é a melhor pessoa do mundo.
- ! – Ele exclamou ao me ver parada na frente da sua porta. – O que você tá fazendo aqui, garota?
- Oi, . Preciso falar urgentemente com você. Tipo... Sério mesmo. E tem que ser agora. – Eu disse, e podia ouvir alguns gritos vindos de dentro da república em que ele morava. Era mista. Eu podia ouvir gritos dos garotos jogando videogame, das garotas tentando cozinhar, dos casais fazendo sexo. Típica república universitária.
Ele olhou para o lado de dentro e me disse para esperar por um só minuto. Fiquei ali, olhando as outras casas da rua. Eu poderia morar em uma delas, se fosse uma garota sociável. Mas eu não era uma garota sociável. voltou em poucos instantes, vestido com um casaco amassado por cima da roupa que já estava usando e me perguntou aonde iríamos. Ele sabia que, quando a conversa era urgente, eu não podia ficar parada. Tinha que sair de casa, andar; ou não conseguiria dizer as coisas com clareza.
Fomos em completo silêncio à praça mais próxima. Ele andava normalmente, com as mãos nos bolsos da calça, acenando com a cabeça para as pessoas que conhecia – quase todas. era extremamente popular. Sempre foi. No ensino fundamental, no ensino médio, na faculdade, na empresa do pai...
Ai meu Deus, a empresa do pai!
Chegamos à pracinha e nos sentamos em um banco qualquer. Algumas pessoas olhavam torto. Todos se perguntavam por que o cara mais popular, bonito, engraçado e simpático era melhor amigo da excluída social.
Nossa, como isso é clichê.
Ele sentou-se virado para frente, eu me sentei meio de lado, com uma das pernas sobre o banco. Fiquei encarando seu perfil até ter coragem de falar.
- Você ficou sabendo do que nossos pais querem fazer para continuarem donos da empresa? – Perguntei, e ele finalmente se virou pra mim. Seu olhar confuso demonstrava que não, ele não sabia de nada. – Querem casar os filhos uns com os outros.
era muito lerdo. Demorou eras pra entender. E quando o fez, entendeu errado.
- Querem nos casar? – Ele quase gritou, se levantando do banco. Eu ri de seu desespero e o puxei para sentar de novo. Ele o fez, mas eu continuei com minha mão no seu braço. Estava tão frio e era sempre tão quente...
- Querem me casar com um tal de Edmund Collins.
- Edmund Cooper? – Ele perguntou divertido.
- É, tanto faz. Querem me casar com ele. E eu não quero me casar com ele! A gente tá no século vinte e um, sabe? É ridícula essa ideia toda. – Eu exclamei e ele voltou a ficar sério. Ficamos em silêncio por pouco tempo enquanto pensava em algo que não sei e eu respirava fundo para continuar. – George disse que não há nada a se fazer, eu tenho que me casar com Edward...
- Edmund. – Ele corrigiu, rindo novamente.
- Tanto faz, ! – Eu briguei, não querendo ser interrompida, e ele riu mais ainda. – George disse que eu só posso me livrar do casamento com o cara se eu já estiver namorando alguém. E aí...
- E aí o que? – Ele me incentivou, já que eu fiquei meio sem ar e não consegui continuar.
- Eu acabei inventando que já tinha namorado no desespero do momento. – Eu disse e ele soltou um grunhido como se entendesse. Mas como eu já disse, era lerdo demais. Rolei os olhos e bufei. – , eu disse que namorava você!
- O QUE?
-x-x-x-
- , volta aqui! – Eu gritava, tentando acompanhar seu ritmo. Mas como ele praticava duzentos e não sei quantos esportes e eu só saía de casa para ir à faculdade, era óbvio que eu não acompanharia sequer uma lesma.
- Meu Deus, como você tem merda na cabeça, ! – Ele gritou de volta, andando mais devagar.
Sim, ele estava andando esse tempo todo.
Não me julgue, ele anda rápido!
- Me desculpa, !
Ele finalmente parou de andar, “estacionando” no meio da rua. Respirou fundo antes de virar-se em minha direção. Ele me olhava nervoso, e eu me segurava para não rir – nervoso é hilário! Cheguei mais perto, para que não precisasse gritar no meio da rua o plano que havia bolado em casa depois de deixar minha boca grande falar por mim.
- Pensa bem, ! Pode ser bom pra nós dois! – Eu afirmei, mas ele continuou com a mesma cara de bosta. Rolei os olhos discretamente e cheguei ainda mais perto, apoiando as mãos em seus ombros. – Olha só, você quer se casar com Kimberly? Ou com Brigitte?
Na mesma hora em que perguntei isso, ele fez uma careta, negando fervorosamente com a cabeça. Não era difícil entender o porquê. Kimberly e Brigitte não eram exatamente sinônimos de simpatia...
- Então! Além de serem absurdamente insuportáveis, coitadas, ainda são completas desconhecidas. Se fingirmos que estamos namorando, poderemos “nos casar” num futuro bem distante, porque seu pai já tem certeza que você vai pegar o lugar dele na empresa, porque você é apaixonado por administração, diferente de todos os outros filhos de donos.
Ele ficou em silêncio por certo tempo. Eu estava aflita, queria que ele respondesse logo. Ele tinha que aceitar a proposta, ou eu estaria frita! E ele também, e ele sabia disso. Então por que ele estava demorando tanto para responder?
Aproximei-me só mais um pouquinho, o suficiente para encostar meu peito ao dele. Abracei-o pela cintura, apertando-o contra mim com força, como se para fundir nossos corpos. Fechei os olhos e fiz a cara mais convincente que podia.
- Vamos lá, ... Aceita a proposta. Você sabe que é uma boa ideia, eu sempre tenho boas ideias. Você mesmo fala isso o tempo todo.
Apertava meus olhos com força, torcendo para que desse certo. era um cara molengão, se derretia com qualquer demonstração de afeto, contanto que fosse verdadeira. Ele sabia que a minha, apesar de ter uma intenção aproveitadora, era verdadeira. Eu tinha quase certeza de que aquele plano daria certo, porque eu nunca demonstrava carinho por ele, e quando o fazia, ele ficava todo mole e geralmente fazia tudo que eu pedia.
- Tá certo. Mas saiba que não é só porque você me abraçou! Eu estava pensando na situação. – Ele disse, e eu comemorei com um gritinho, pulando em cima dele. Ele riu e me abraçou de volta. – Isso vai dar tanta confusão em algum momento, . Você tá fazendo a coisa errada e sabe disso.
- Diga isso para os meus pais, que querem me casar com um completo desconhecido! Eu preferia me casar de verdade até com você! – Eu respondi, e ele fez uma falsa cara ofendida. – Ok, depois que sair da faculdade, me liga. A gente vai pra algum lugar planejar a nossa história de amor. – Rolei os olhos com a ideia, mas continuei sorrindo como uma pateta. Pelo menos não iria me casar com Edvald...
É esse o nome dele?
- O que? Ah, sim... – Ele deu um sorrisinho, percebendo que realmente teríamos que inventar algo bem convincente. Parou por alguns segundos e, então, deu um sorriso que eu consideraria maligno em outra pessoa. Mas era tudo, menos maligno, então não podia ser nada demais. – Bom, então é isso. Até amanhã, .
Ele me abraçou mais uma vez, me deu um beijo na testa e saiu andando em direção à própria república com o mesmo sorriso estranho no rosto. Ignorei o fato, apesar de ter achado um pouco bizarro, e apenas fui em direção ao ponto de ônibus mais próximo.
Capítulo dois
Acordei com meu celular tocando. Tateei o criado mudo ao lado da cama a procura dele e, quando o achei, atendi ainda parecendo um zumbi.
- ? Meu Deus, você ainda tava dormindo?! Enfim, vem aqui pra república quando puder.
- Quem é? – Perguntei sem nem tentar processar a voz da pessoa que falava.
- Não creio! É o , animal! – Ele riu alto. – Vem logo, tenho um trabalho enorme pra começar.
- Tá, já to indo. – Respondi, já me levantando da cama.
- Até logo.
- Tchau. – Desliguei e taquei o celular na cama, indo pro banheiro.
-x-x-x-
- O tá aí? – Perguntei, e a garota fez uma careta como se estivesse vendo algo extremamente nojento. Será que tinha alguma coisa na minha cara?
- Tá no quarto dele. Entra, vai. – Ela respondeu, e eu o fiz de cabeça baixa.
Eu tinha entrado uma vez na república de , mas foi uma coisa rápida, apenas para dar a ele um recado que um colega dele havia me pedido para passar. Ele estava dormindo na hora em que eu havia passado para avisá-lo, e esse foi o único motivo pelo qual eu entrei na república, senão teria ficado do lado de fora.
Levantei a cabeça, passei pelo hall e subi as escadas de cabeça para cima, embora quisesse olhar para o chão fixamente. Eu sabia que os colegas de tinham uma visão não muito boa de mim, e queria mudar isso se tivesse que fingir ser a namorada dele. Afinal, não adiantaria nada fingirmos ser namorados para nossos pais e continuarmos apenas como amigos na frente de várias pessoas que poderiam contar a verdade. Eu teria que fingir ser namorada dele em tempo integral, e só de pensar nisso, já sentia certo enjoo na barriga.
Entrei no quarto dele sem nem bater e o encontrei jogado na cama, mexendo no notebook com algumas folhas ao lado. Fui para perto dele e me joguei na cama também, e ele riu ao ver minha “animação”. Fechou o notebook e, junto com as anotações, deixou em cima da escrivaninha perto da porta. Sentei direito nesse tempo e, depois de ele ter trancado a porta para que ninguém nos interrompesse, sentou-se ao meu lado. Ficamos nos encarando por alguns minutos e depois começamos a rir como retardados.
As coisas entre e eu eram assim. Não precisávamos de palavras. Nos entendíamos apenas por olhares. Era tudo idiota, tudo simples, tudo fácil, tudo .
- E aí, qual vai ser nossa história romântica? – Ele perguntou quando finalmente conseguiu parar de rir. Eu me mexi desconfortável na cama e sentei com perninhas de índio. Ele me olhou feio e então eu estiquei as pernas para fora da cama, tirei os tênis e voltei à posição.
- Bom, eu pensei em seguir uma lógica. Nos conhecemos desde que somos pequenos e somos melhores amigos desde então. Ficamos um tempo sem muito contato por causa do final do colégio e o começo de faculdade, e quando voltamos com a antiga aproximação, percebemos que fomos feitos um para o outro. – Ao terminar, juntei as mãos em frente ao corpo e pisquei os olhos várias vezes, bem rápido. riu da minha tentativa de parecer romântica/fofa/meiga/foda-se e deitou-se na cama.
- É uma boa ideia. Temos que inventar nosso primeiro encontro, o pedido de namoro, como decidimos deixar em segredo e essas coisas... – Ele deixou a frase no ar, para deixar claro que não seria ele quem inventaria tudo aquilo. Rolei os olhos e peguei o travesseiro de baixo de sua cabeça para bater nele com o mesmo. Ele resmungou algo, mas não fez nada para me parar.
Depois de eu parar de bater no garoto, ficamos certo tempo em silêncio, pensando em algumas histórias mirabolantes e convincentes para que nossos pais acreditassem que estávamos verdadeira e profundamente apaixonados.
- Há quanto tempo estamos namorando? – Ele perguntou, e eu parei de pensar no primeiro beijo.
- Uns cinco meses? – Respondi em dúvida e ele deu de ombros, concordando.
-x-x-x-
Passamos a tarde toda discutindo nosso falso namoro. Inventamos a maioria das partes – encontros, ocasiões especiais, supostos presentes e o motivo do segredo –, mas outras nós “roubamos” de livros, filmes ou relatos de garotas em blogs na internet. Algumas das coisas inventadas por eram tão estúpidas que era impossível ficar sem rir. Descobri que o sorriso maligno do dia anterior era porque ele bolava realmente um plano maligno. Me fez prometer que, toda vez que eu tivesse que contar uma das “nossas” histórias, eu teria que vangloriá-lo como se fosse um deus. Um preço a pagar por metê-lo numa furada daquelas, como ele disse. Além disso, ele me fez prometer que nenhum beijo seria técnico.
Filho da puta.
- Eu desço com você. – Ele disse logo após eu informar que já estava voltando para casa. Levantamos da cama, onde estávamos deitados, e fomos para o andar de baixo.
- Foi divertido inventar um namoro com você, senhor . – Eu falei assim que ele abriu a porta da república. Sentia os olhos dos colegas de casa dele sobre mim, mas tentei ao máximo não ficar constrangida.
- Igualmente, senhora . – Ele respondeu e eu soltei um tipo de grito antes de começar a gargalhar como retardada. Ele riu da minha cara e me deu um beijo na testa. – Tchau, .
- Tchau, .
Levantei a bicicleta, que estava jogada na grama, e sai pedalando sem olhar para trás.
O caminho de volta para casa não era tão longo e demorado se eu fosse de bicicleta. Mas eu tinha preguiça, até porque minhas pernas ficam doendo depois.
Em menos de vinte minutos eu já estava de volta em casa. Coloquei a bicicleta no seu lugar dentro da garagem e entrei em casa pela porta dos fundos, que dava na cozinha. Eu ia passar reto, apenas com um “oi”, mas uma voz irritantemente fina me chamou de volta e eu tive que voltar a olhar para as pessoas que estavam no cômodo. Mãe, George e... Abigail.
Abigail Huston era simplesmente o maior pesadelo da minha vida.
Filha única de George, de seu outro casamento. A garota era a coisa mais insuportável que eu poderia ter conhecido – e que, infelizmente, conheci. Sabe aquela pessoa que você vê pela primeira vez, não vai com a cara dela e, por mais que converse com ela e se aproxime dela, você ainda não vai com a cara dela? Abigail era isso pra mim. Quando mamãe e George se casaram, eu tinha catorze anos, assim como Abigail. Ela é exatamente um mês mais nova que eu. E o completo oposto de mim.
- ! Há quanto tempo não te vejo, irmã! – Ela praticamente berrou antes de se jogar em cima de mim. Ri do seu entusiasmo e a abracei de volta.
Eca.
- Bom te ver de novo, Abby. Enfim, tenho que subir e tomar um banho; que logo, logo, tenho que ir pra faculdade. – Respondi e sai correndo. Espero que minha mãe não tenha contado sobre meu “namoro”, ou aí sim a coisa vai ficar feia.
Ela sempre foi extremamente apaixonada por . Desde que o conheceu. Na maior parte do tempo eu queria ter uma máquina do tempo só pra voltar e não apresentar aqueles dois. Sério. O olhar dela para o meu melhor amigo assim que eu disse seu nome foi uma coisa que ficou gravada na minha mente e acho que nunca mais vai sair. Ela olhou pra ele como se ele fosse o próprio Jesus Cristo, ali na frente dela.
Foi um pouco bizarro.
E admito que eu morro de ciúmes até hoje.
Tomei o banho mais rápido da história dos banhos e logo já estava com uma roupa qualquer para ir à faculdade. Passei um perfume leve, só pra não ficar com cheiro de sabonete, e sai do quarto, querendo chegar adiantada ao curso. No andar de baixo, eu podia ouvir as vozes da minha mãe e da minha “meia-irmã”. Elas conversavam entusiasmadas sobre o curso de moda que Gail cursava a mais de – ouvi um amém? – duzentos quilômetros de nós. Não sei por que ela preferiu ir para Londres ao invés de ficar em Wolverhampton.
Peguei a chave do carro de mamãe o mais discretamente possível e saí pela porta sem fazer barulho algum depois de acenar para George, que tentava conter um sorriso. As duas conversavam tão entretidas que nem notaram minha saída.
Logo eu estava dirigindo para longe daquela casa e, se possível, queria que elas já estivessem dormindo quando eu voltasse. Abigail já era insuportável normalmente, quando for o assunto, vai ser pior ainda. E eu temo que ocorrerá a terceira guerra mundial se o assunto for namorando. O pior? namorando comigo.
Capítulo três
A casa estava silenciosa quando eu voltei da faculdade. Como eu não morava exatamente na cidade universitária, eu demorava certo tempo pra voltar do campus – até porque tinha que ir e voltar de ônibus. E olha que, dessa vez, eu tinha ido de carro.
Abri a porta normalmente; se elas estivessem dormindo, melhor, mas se estivessem acordadas, eu também não veria problemas. Biologia me relaxava. Por isso eu sabia que tinha escolhido o curso perfeito. Não havia nada mais certo pra mim do que estudar o que eu estudo. Essa sempre foi a minha área, e era nela que eu deveria ficar. Apesar de sempre ter sido meio CDF, eu odiava exatas. Humanas até me deixavam menos raivosa. Mas as biológicas são as que me fascinam.
Nossa, como eu enrolo!
Enfim, entrei em casa e estava subindo ao meu quarto quando passos me assustaram.
- Ah, é você! – Ouvi a voz de Abigail atrás de mim.
- Quem mais seria, Abby? – Tentei não soar tão grossa.
- Não sei, ué. Por isso vim ver correndo. Eu estava na sala, assistindo um filminho... Sozinha... – Ela disse e deixou a frase no ar. Arqueei uma sobrancelha em uma dúvida óbvia, mas deixei de lado. Não era algo que me interessasse, afinal.
Não disse mais nada e continuei subindo as escadas, em direção à minha doce e aconchegante cama, mas outro alguém me chamou.
- ? – Virei-me rapidamente ao ouvir a voz.
- O que você tá fazendo aqui? – Eu perguntei. – E por que tua camisa tá aberta, cara? – Perguntei quando notei os primeiros botões de sua camisa abertos, além do tecido estar levemente amassado. Olhei dele para Abby e algo se acendeu em minha mente, me fazendo ficar de queixo caído.
- ... , querida! Tudo bom com você? – tentou contornar a situação, ajeitando a camisa e chegando mais perto.
Eu ia agir normalmente, chamando ele de lerdo, rindo da cara dele e então iria, finalmente, pro meu quarto.
Mas lembrei que ele era meu namorado.
- Seu cafajeste! – Berrei e meti a mão na cara dele, num tapa que fez até minha própria palma arder. O rosto dele virou pro lado e ele ficou atônito, enquanto Abigail soltou um gritinho surpreso e veio até ele, abraçando-o.
- Não fala assim com ele, ! Ele não estava fazendo nada demais! – Enquanto ela dizia, eu ouvi portas se abrindo e passos no corredor. Minha mãe e George tinham acordado com meu berro.
- Nada demais? Ah, me engana que eu gosto! , você me enoja! – Eu estava tendo que me segurar pra não rir das feições de Gail e de , que estava tão confuso quanto ela.
Não falei mais nada e corri ao meu quarto. Pude ouvir certa discussão no andar de baixo, mas a única coisa que eu consegui fazer quando cheguei ao meu quarto foi fechar a porta e me tacar na cama, enfiando a cara no travesseiro.
Aí sim pude rir o quanto eu queria.
-x-x-x-
Ri por uns bons minutos. Ouvi passos, alguns gritinhos e outro estalo de tapa. Depois ouvi passos desesperados na escada e portas batendo. Então tudo ficou em silêncio, até alguém bater na minha porta.
Me levantei e destranquei o fecho. Quando abri a porta, me encarava com certa raiva no olhar. Puxei-o para dentro do quarto e voltei a fechar a porta. Ri mais um pouco e cheguei a me exaltar, o que fez com que cobrisse minha boca. Ele me puxou pela mão até estarmos sentados na minha cama, um de frente para o outro.
- Você tem muita merda na cabeça! – Ele disse, e eu só consegui rir mais.
- Olha quem fala! , a gente tá namorando, esqueceu? A gente passa a tarde toda fazendo planos, pra eu chegar em casa e me deparar com você e Abigail se agarrando? Pelo amor de Deus, querido! – Eu disse, com uma feição séria, fingindo estar brava. Não aguentei e voltei a gargalhar, e dessa vez me acompanhou.
Não demorou muito para que fosse embora. Mas, antes disso, ele me contou que minha mãe havia dito para Abby que estávamos namorando, e George chegou até a dar bronca nela. levou um tapa da minha “meia-irmã”, que, depois de bater nele, saiu correndo e se trancou no quarto. Se eu soubesse que fingir um namoro com seria tão divertido, eu teria começado a fingir antes.
Assim que ele foi embora, eu capotei na minha cama. Estava morrendo de cansaço, e nada como uma boa noite de sono pra recompor as energias...
Certo?
Capítulo quatro
Na madrugada daquela noite, me mandou um SMS pedindo para que eu passasse no campus dele no final de seu período. Confesso que temi o que ele poderia fazer.
Mas nada que eu pudesse pensar poderia ser pior do que o que realmente aconteceu.
As aulas do dia haviam sido canceladas por algum motivo que eu não ligo. Portanto, o dia era livre. Eu me vesti um pouco melhor que normalmente – como pedira. Coloquei um top com uma blusinha por cima, uma calça jeans normal e um tênis com desenhos, além do colar que meu pai havia me dado no meu último aniversário em que estava vivo. Meu cabelo estava um pouco armado, então o prendi em um rabo de cavalo. Tentei dar um jeito na franja com o secador da minha mãe, mas não resolveu muito.
Saí de casa pouco tempo antes do período de terminar. Avisei minha mãe, que estava na cozinha, e pedi seu carro emprestado. Eu tinha carteira de motorista e sabia dirigir. Só me faltava um carro. Minha mãe e George não queriam comprar um pra mim, diziam que eu teria que comprar um com meu próprio dinheiro. Claro que não foi o que falaram a Abby quando lhe deram seu New Beetle.
Enfim.
Fui dirigindo cuidadosamente até o campus de . Não demorei nem quinze minutos; assim que cheguei lá, o período terminou. Os portões se encheram de jovens e até algumas pessoas mais velhas, mas eu não via em lugar nenhum. Fiquei uns cinco minutos esperando o garoto – que não chegou. Resolvi mandar um SMS, que ele respondeu segundos depois.
“Cadê você? E o que você está aprontando, ?”
“nossa, vc é certinha até no sms. to no cimento, vem p cá. não to aprontando nd não... hehe ;)”
Revirei os olhos com a mensagem dele, mas não pude conter um sorriso. era tão idiota...
O ‘Cimento' era o nome de um pátio que tinha perto da faculdade. Assim, na frente da universidade tem uma igreja, a St. Peters. E, na frente da igreja, existe um pátio. Muitos alunos ficam ali, porque não atrapalha em absolutamente nada da igreja, então era permitido ficar lá. Era um ponto de encontro tão popular que até recebeu um nome. Cimento.
Fui andando calmamente e me esqueci que não tinha perguntando em que parte do Cimento estava. Algumas pessoas me olhavam com curiosidade, pois sabiam que eu não fazia faculdade naquele horário. Cheguei a ver uns conhecidos – um ou outro até acenou pra mim –, mas fingi que não vi.
Eu olhava para todos os cantos, tentando achar meu melhor amigo/namorado falso. Mas não estava em lugar nenhum! Até que ouvi sua voz.
- ! – Ele gritou. Pela voz, eu soube que ele estava atrás de mim. Me virei naquela direção, vendo ele correr até mim enquanto acenava freneticamente.
- Oi, . – Eu disse quando ele chegou perto. Àquela hora, várias pessoas prestavam atenção em nós. Eu odiava gente me olhando, e sabia disso.
Como eu queria matá-lo naquele momento!
- Senti sua falta, docinho.
Docinho? What the fuck?
Eu provavelmente estava com uma careta de confusão horrorosa. Mas não ligou pra isso. Aliás, o que ele fez a seguir deixou bem claro que ele estava pouco se fodendo para aquela situação toda – incluindo minha careta, as pessoas olhando e, principalmente, seus amigos e ex-namorada populares querendo me matar só com olhares.
simplesmente agarrou minha cintura e me beijou.
No meio daquela gente escrota, meu melhor amigo resolveu colocar nosso plano em prática.
E me beijou.
Não sei se vocês lembram do que eu disse, mas me fez aceitar que nenhum beijo nosso seria técnico. Então eu me assustei quando ele me puxou pela cintura e me beijou, porque eu não tive nem tempo de piscar e ele já estava querendo enfiar a língua na minha garganta. Eu provavelmente estava com os olhos arregalados, além do fato de eu estar em total paralisia, sem reação nenhuma.
Você pode imaginar o quanto nosso primeiro beijo foi romântico.
-x-x-x-
A paisagem lá fora corria em uma velocidade enorme. O vento no meu rosto balançava meus cabelos e eu apreciava aquela sensação de olhos fechados. O barulho do motor do carro não ofuscava o canto dos pássaros, que eu sabia que voavam livremente pelos céus, migrando para encontrar um novo lar. Ao abrir os olhos, pude ver as pequenas casas passando rapidamente pela janela. Todo aquele conjunto me deixava extasiada e...
- Vai ficar calada pra sempre? – interrompeu meu discurso mental.
- Não tenho esse direito? – Perguntei, virando meu rosto para encará-lo, vidrado na estrada à frente.
- Na verdade, não. Você ficou petrificada no campo! – Ele apertou o volante com um pouco mais de força.
- Claro, você me beijou do nada! Qual esperou que fosse minha reação?
- Sei lá, que agisse como uma namorada normal.
- , eu fiquei em choque, tá bom? Você pode respeitar o meu momento? – Ele soltou uma risada cínica e eu revirei os olhos, voltando a encarar a janela, já com a imagem real, feia e tediosa de Wolverhampton. O motivo de Abby ter saído da nossa cidade era óbvio.
Aquele lugar era um porre.
me deixou em casa e eu saí do carro praticamente sem me despedir. Entrei em casa morrendo por um banho quente e relaxante, mas é claro que as forças superiores não deixariam isso acontecer.
- Ei, . – Ouvi a irritante voz de Abigail vinda da cozinha. Ela saía do cômodo e vinha em minha direção.
- Que, Gail? – Perguntei, fechando os olhos e massageando as têmporas.
- Você bem que poderia ter me contado sobre estar namorando o cara que eu sempre gostei. – Ela acusou. Estava vermelha de raiva.
- Estávamos mantendo em segredo, eu contei pra minha mãe e pro seu pai só dois dias atrás, eles também não sabiam. Olha, você pode me deixar em paz? Eu tive um dia extremamente estressante e tudo que eu mais quero é um banho, minha cama e dormir.
Ela não respondeu. Ficou com a mesma cara de quem comeu e não gostou. Eu subi para o meu quarto, já pensando na deliciosa sensação de me deitar com um pijama de flanela e dormir; sonhar com o mais bonito e sincero nada; acordar disposta a enfrentar essa situação ridícula que eu mesma havia criado.
Só eu consigo me foder tanto.
Capítulo cinco
Como eu fui dormir cedo, realmente acordei disposta no dia seguinte. Apesar de bem descansada, estava com um pouco de mau-humor. Talvez porque queria matar meu melhor amigo, minha "irmã" e todas as pessoas que estavam no Cimento na hora que resolveu fazer merda.
Pouco tempo depois de acordar, recebi uma mensagem de , dizendo que tinha deixado o carro da minha mãe na frente da casa. Na noite anterior, eu fiquei tão brava com o beijo repentino que sequer consegui dirigir. Por isso, dirigiu e, depois de me levar pra casa, foi pra sua república e manteve o carro, devolvendo no dia seguinte.
Saindo do meu quarto após tomar um rápido banho, dei de cara com Abby também saindo de seus aposentos. Não dei bom dia, não acenei com a cabeça. Apenas lhe dirigi um olhar e desci as escadas. Ela também não parecia disposta a interagir comigo.
No andar de baixo, era possível sentir o cheiro delicioso de qualquer que fosse a comida que minha mãe estava preparando para o café da manhã. Era perto das oito e meia, e eu estava atrasada, então apenas comi uma fruta, voltei pro meu quarto para escovar rapidamente os dentes e logo estava saindo de casa. Tudo isso sem dizer um pio.
Eu trabalhava algumas vezes por semana como atendente em uma cafeteria no centro de Wolverhampton, chamada Tobby's Coffee House. Para chegar até lá, tinha que pegar um ônibus que dava mais voltas que uma montanha russa do Bush Gardens. Infelizmente, aquele era o único modo de chegar ao meu trabalho, e eu não gostava muito de dirigir. Além disso, eu podia aproveitar a viagem para relaxar, ouvir música, ler um livro... No final, era algo proveitoso.
Depois de um pouco menos de uma hora, eu me encontrava nos fundos da cafeteria, botando meu avental por cima da roupa. , uma colega, passou por mim para colocar sua bolsa no pequeno armário que todos que trabalhavam lá tinham.
- Fiquei sabendo que está namorando . – Ela disse e eu quis esmagar minha cabeça com a porta do armário.
Esse cara era realmente tão conhecido por aqui?
Wolverhampton nem era uma cidade pequena!
- É...
- Vocês são melhores amigos, não?
- Sim. Desde os oito anos. – Respondi, já fechando o pequeno compartimento e indo pra parte da frente da cafeteria.
- . – Ouvi meu nome e parei no lugar. Não olhei pra trás. Apenas ouvi. – Eu acho que você conhece meu primo. O nome dele é Edmund. Eu sei que você iria se casar com ele, e por isso inventou que está namorando .
Merda.
- , por favor, não diga a ninguém. Por favor! – Virei-me em direção a ela, juntando as mãos e quase ajoelhando para implorar. Ela soltou uma risada.
- Relaxa, não vou falar nada a ninguém. Sei o quanto pode ser chato ter que se casar com alguém que você não quer. – Ela me mostrou a mão, e eu vi que ali tinha um anel de noivado.
- Meu Deus... Mas você é mais nova que eu!
- Pois é. Nem sempre as coisas saem como queremos. Só queria dizer que, caso precise de ajuda ou um ombro amigo... Eu estou aqui.
- Muito obrigada, .
- Me chame de . – Ela sorriu.
-x-x-x-
Depois do encontro e conversa com , meu dia até ficou mais alegre. Eu nem parecia a mesma de manhã. Até estava sorrindo para os clientes (acredite, isso é raro).
Mas é claro que a Lei de Murphy tinha que agir sobre a minha felicidade repentina.
Eu estava tranquilamente perguntando se uma garotinha queria mais chocolate quente quando o sininho da porta tocou. Por reflexo, olhei na direção do som. Era .
- Ugh. – Grunhi, e vi que a garotinha me olhou com uma cara estranha. – Me desculpe, florzinha, só vi alguém que não queria ver. Vai querer o chocolate quente?
Logo depois de anotar o pedido da garota, corri para trás do balcão, esbarrando em no caminho.
- Príncipe encantado chegou e você está fugindo dele? – Ela ironizou. Quis bater nela, mas apenas rolei os olhos.
Comecei a preparar o chocolate quente da garotinha e pedi a outro atendente me trazer os bolinhos que ela também pedira. Fingi que não notei atrás do balcão, esperando pra falar comigo. Continuei fazendo o meu trabalho e, ao me virar para ir entregar o pedido da menina, sorriu e acenou pra mim. O ignorei mais uma vez e fiz tudo que precisava fazer – inclusive inventei coisas pra fazer.
Quando finalmente estava "livre", parei do outro lado do balcão, em frente a – que estava quase dormindo com os braços apoiados no mármore. Ficamos em silêncio por um tempo, e eu fingia que não estava esperando ele falar alguma c0isa, enquanto ele olhava fixamente pra minha cara.
- E aí? – Ele perguntou e eu rolei os olhos.
- O que você quer?
- Pedir desculpas. – Ele deixou de apoiar os braços no balcão e se endireitou no banquinho. – Me desculpe, . Mesmo. Devia ter, sei lá, te avisado ou pedido permissão. Você estava despreparada, eu entendo isso, e devia ter respeitado. – Ele continuou e eu só soltei um barulho com a boca em resposta. – Qual é? Não vai me desculpar?
Olhei pra ele por uns vinte segundos antes de responder:
- Não.
Tive que me segurar pra não rir da cara dele.
Foi difícil.
- Agora, se não for comprar nada, vá embora. – Completei.
- Me dá um expresso e dois bolinhos de baunilha pra viagem, por favor. – Ele respondeu de má vontade, rolando os olhos e voltando a se apoiar no balcão.
Depois de preparar seu pedido e o entregar, ele foi pagar e finalmente sumiu da minha frente. Antes de ele ir embora, porém, eu o chamei.
- . – Ele (e o resto da cafeteria) me olhou. – Me busca na faculdade hoje. – Ele sorriu e fez que sim com a cabeça.
No final de tudo, eu só tinha recuperado meu mal humor.
-x-x-x-
É claro que o resto do dia foi um porre. continuou fazendo piadinhas sobre meu "namoro" e tudo que eu queria era enfiá-la em um daqueles armários minúsculos ou fazer um cookie de . Ela tirou o pouco de paciência que eu ainda tinha. Nem mesmo ao ir para a faculdade à noite e aprender minha amada biologia me fez diminuir o estresse. Quando vi o carro de parado do lado de fora do campus, tudo que eu queria era me trancar num quarto com nada mais nada menos que quilos chocolate e uns dez ursinhos de pelúcia.
- Oi. – Foi a única coisa que eu disse ao entrar no carro.
- Oi. Tá mais tranquila? – Ele perguntou. Apenas neguei com a cabeça e ele soltou uma risadinha nasalada antes de dar partida. – Como foi seu dia?
- Uma merda. Ficou pior depois de você aparecer.
- Assim eu me sinto ofendido.
- Essa é a intenção.
Ficamos em silêncio no resto da viagem até minha casa. De vez em quando cantarolava partes das músicas que tocavam no rádio. Fora isso, ficamos quietos o tempo inteiro.
Quando ele estacionou o carro em frente à minha casa, achei estranho que ele tivesse desligado o carro e não apenas parado. Estava abrindo a boca pra falar tchau quando ele me interrompeu.
- Fica. – Ao ver minha cara confusa, ele continuou: – Você ainda tem que me perdoar. – E sorriu. Não consegui controlar um sorriso também.
- Só prometa que não vai fazer aquilo de novo. , você sabe que eu odeio gente me olhando!
- Não entendo por que, . Sempre vai ter alguém te olhando. Você não pode fugir de olhares. – Ele me olhou com uma sobrancelha arqueada.
- Eu sei, mas... Ok, eu não tenho uma explicação pra minha vergonha, mas... – Ele me interrompeu de novo.
- Insegurança. Você tem medo que as pessoas não gostem de você. Não entendo por que isso, por que você não gosta de falar com os outros. Não é como se todos fossem psicopatas, sabe? – Isso me deixou calada por alguns segundos. Ele tinha razão.
- Eu sei. Talvez eu só tenha medo de me machucar, o típico clichê.
- Mas se você não se machucar a vida não tem sentido.
Ele continuou me olhando e eu olhei para as minhas mãos, apoiadas em minha perna. Aquele era o último assunto do qual eu queria falar.
- Esse não era exatamente o assunto da conversa... – Tentei fugir (não só da conversa, como do carro).
- Não era, mas agora é. – Ele travou as portas do carro e eu rolei os olhos. – Talvez você devesse começar a conversar com outras pessoas. Sabe, não sei o que você quer fazer da vida, mas mesmo sendo uma bióloga, você vai ter que conviver com pessoas, sabe? Não só com animais.
- ...
- Não, , é sério! Olha, entenda que existem sete bilhões de seres humanos no mundo e seu contato com eles não pode se resumir à mim, sua família e seus professores. Aliás, aposto que nem com seus professores você conversa.
- Tudo bem, tudo bem. Vou tentar ser mais sociável. – Eu só concordei pra tentar fazê-lo calar a boca. Ele me olhou meio desconfiado.
- Vou deixar você ir embora. Mas me perdoa primeiro.
- Já tinha te perdoado, . – Eu sorri em resposta e finalmente saí do carro. Já na frente da porta, acenei para , dentro do carro, e entrei em casa. Ouvi o motor ligar e logo meu melhor amigo já estava longe.
O problema?
Eu meio que menti quanto a ser mais sociável. Isso porque eu não fazia ideia de como completar essa tarefa.
Mas finge que não.
Capítulo seis
Acordei com uns gritos na casa do vizinho. Um homem e uma mulher, recém-casados, tinham um gato e um cachorro. Pelo que entendi, um dos animais fez meleca em algum lugar e o cara não limpou, o que deixou a moça bem puta da vida. E me acordaram ao berrar um com o outro.
Era por volta das sete e pouco, e os desgraçados não podiam berrar enquanto eu estava saindo, trabalhando, ou na faculdade. Não esperaram nem que eu acordasse naturalmente. Ah, não. Eles têm que acordar a pobre vizinha com seus gritos absurdamente altos.
Como eles gritavam tão alto, por falar nisso?
Tomei uma ducha rápida e aproveitei que já estava acordada para fazer alguns trabalhos e pesquisas pra faculdade. Meu professor havia falado algumas coisas ontem que – como não prestei atenção por estar puta com – resolvi pesquisar quando chegasse em casa. Mas, quando cheguei em casa, estava tão psicologicamente exausta que me troquei e, assim que deitei na cama e fechei os olhos, dormi. Então resolvi pesquisar tais coisas depois de ser acordada pelos berros vizinhos – e eu ainda vou falar disso por muito tempo, porque fiquei realmente indignada com os berros dos vizinhos.
Fiz as tais pesquisas sem dar um passo sequer para fora do quarto. Nem destrancar a porta eu o fiz. Fiquei lá por cerca de duas horas, e nem vi o tempo passar. Apenas fui me dar conta quando minha mãe bateu na porta perguntando se eu não queria comer nada.
Assim, eu desliguei o computador e desci, encontrando mamãe, George e Abby lá embaixo. Fiz meu prato, me sentei ao lado de Gail e tudo estava correndo em perfeita harmonia...
Mas Abigail não sabe viver em perfeita harmonia.
- Acho que ele só quer te comer. – Ela disse, assim, do nada.
- Abigail... – George tentou fazê-la calar a boca.
- Não, pai, é sério! – Ela se virou pra mim, sentando-se meio de lado, e largou os talheres no prato. – Sabe por que eu gosto tanto dele? Não só porque ele é lindo, , mas porque eu o conheço. Você nos apresentou com uns catorze anos, eu acho? Então, eu fiquei com ele uma semana depois de o conhecer. E não paramos desde então. Ele é seu amigo desde que vocês se entendem por gente, e é assim que são os homens. Eles ficam curiosos depois de um tempo. Ele viu você crescendo, virando uma mocinha, até se tornar essa mulher que é hoje. – Eu podia afirmar com certeza que nunca havia visto Abby gesticular tanto. – É claro que ele só quer te comer.
- Abigail! – George falou mais alto dessa vez.
- Não, George, tudo bem. Tenho certeza que ela só está falando isso porque quer o meu bem. – Me virei pra ela com um sorriso cínico no rosto. – Não é, Abby?
- Claro que sim! Quero dizer, , você tem que sair dessa furada, sabe? Eu digo isso pra tentar te proteger, mesmo, porque eu pelo menos sei que o só me quer por diversão. Você não, tadinha, acha que ele realmente gosta de você... Fala sério, vocês estavam escondendo o namoro! Tenho certeza que ele que deu essa ideia, não?
- Entendi... Vem cá, Abby, tem certeza que isso é só pro meu bem? – Perguntei, também virando completamente o corpo em sua direção. À essa hora, nossos pais praticamente nem respiravam, apenas esperando o momento em que uma de nós duas atacaria a outra com o garfo. – Quero dizer, não tem nada a ver com o fato de você morrer de amores por ele, e estar se mordendo de inveja, ciúmes e raiva porque quem vai casar com ele sou eu. Certo? Não tem nada a ver com o fato de eu tê-lo conhecido antes, ou ao fato dele ter se dedicado desde os oito anos apenas a mim. Certo? Também não tem nada a ver com o outro fato de que ele só quer te comer, enquanto quer me namorar, se casar e formar uma família comigo.
Silêncio.
- Certo?
Acho que eu deixem bem claro por quem estava "apaixonado".
Aliás, nem sei por que tive essa necessidade impulsiva de jogar na cara dela que era eu quem ele estava namorando. Não planejei esse discurso todo. Ele simplesmente... Saiu.
Bom, pelo menos deu certo, porque Abby ficou quieta.
- Eu... Eu... Ah, vá se ferrar, ! Você é só uma depressivazinha de merda que usa como um apoio! Ele é um cara incrível e você, nem de longe, é a mulher certa pra ele. Ele está com você por dó! Disso eu tenho certeza. Ele é só um encosto pra você, não é? Você o usa, e apenas isso, desde seus oito anos de idade! Arranje um motivo pra viver e pare de atrasar a vida dele! – Foram suas palavras finais antes de voltar a comer e me ignorar.
E de todo o discurso dela, aquilo foi o que realmente me incomodou.
Por quê?
- Com licença, eu perdi a fome. – Me retirei.
Porque ela tinha razão.
-x-x-x-
Me tranquei no quarto pelo resto do dia. Só saí dele pra comer à tarde, e o fiz apenas quando soube que eu seria a única na sala de jantar.
Achei que minha janta seria tranquila, mas podia ouvir os gritos de Abigail e George no escritório dele. Com certeza ele estava brigando com ela por ter falado aquelas coisas por mim. Eu realmente não ligava, Abby era desse jeito irritante, mesmo. Mas o que ela falou dessa vez me incomodou apenas pelo fato de eu também achar aquilo. Eu achava que atrasava a vida de , que ele perdia boas oportunidades porque queria ficar comigo.
O escritório de George ficava na primeira porta do corredor ao lado das escadas. Por isso, quando descia as escadas em direção à cozinha, não pude deixar de ouvir mais claramente o que eles falavam. Até porque eles gritavam quase tão alto quanto os queridos vizinhos.
- Mas Abigail, dessa vez você foi longe demais! nunca se incomoda com o que você fala, e dessa vez ela até "perdeu o apetite"! – Eu podia sentir as aspas na voz do meu padrasto.
- Ah, papai, por favor! Eu achei que a sua filha aqui fosse eu. Pare de defender aquela... Aquela... Piranhazinha!
- Garota, você está se ouvindo? – Eu nunca havia ouvido George tão bravo. Aw, eu sou importante pra ele, que bonitinho.
Tão importante que ele quer me casar com um desconhecido.
Uau.
Obrigada, George.
- Você sequer considerou fazer se casar comigo! Ele irá se casar com quem, afinal? Com ninguém?
- Eu já falei sobre isso contigo, Abigail. Por favor, não me faça voltar a este assunto, você sabe que eu não gosto.
- Ugh, mas papai... – Gail foi interrompida antes de terminar de reclamar.
- Além do mais, você não é madura o suficiente para se casar.
- Ah, e é? Eu pelo menos não moro mais com os pais! Ela é praticamente sustentada por vocês dois. – Essa garota realmente quer me tirar do sério.
Eu iria continuar ouvindo a conversa, mas ouvi um barulho de porta e assumi que era minha mãe saindo de algum lugar. Portanto, voltei ao meu quarto, absurdamente irritada. Mas não fiquei lá. Apenas peguei um casaco, meu material da faculdade, e saí de casa disfarçadamente.
Eu precisava pensar direito.
-x-x-x-
Após dirigir até o Bratch Park, que ficava um pouco afastado da minha casa, e andar por grande parte de seu perímetro enquanto pensava sobre a situação, cheguei à conclusão de que Abby estava certa.
Isso é raro.
Vivo na sombra da minha mãe desde que me entendo por gente. Depois que George e Abby passaram a viver conosco, parece que só fiquei mais acomodada. Talvez tenha me acostumado à ideia de que tinha um pai novamente, além de ter ganhado uma irmã, e nossa família estava completa e feliz. Talvez, por medo de perder essa família, eu tenha resolvido viver em minha zona de conforto, aterrorizada demais para sequer pensar em sair dela.
Assim que se formou no colégio, Gail pediu uma ajuda básica para nossos pais para que saísse da cidade e fosse morar sozinha. Seu desejo e anseio por independência e uma vida estável eram algumas das pouquíssimas coisas que eu admirava nela. Abigail era altamente ambiciosa, e chegava a me dar inveja por saber o que queria da vida. Apesar de sempre ter ideia da minha paixão – biologia – e ter certeza que era aquilo que eu queria cursar na faculdade, eu não tinha ideia do que fazer depois de me formar.
Por isso cheguei à conclusão que eu precisava, de uma vez por todas, caminhar com os meus próprios pés.
Ao chegar na Tobby's, Tobby – o dono, óbvio – e outros atendentes me olharam estranho, por saber que aquele não era meu dia de trabalho.
- Posso falar com você super rápido? – Perguntei ao dono da cafeteria.
Fomos até seu escritório e eu expliquei rapidamente a situação, sem contar da parte emocional que me afetava.
- Por isso, decidi me mudar, e sei que mora sozinha. Você não teria, por acaso, o endereço ou o telefone dela, teria? – Tobby me compreendeu, me passou o celular de e disse que, caso eu precisasse de ajuda, poderia contar também com ele.
Sai do estabelecimento rumo à faculdade com a mente tranquila.
Estava tomando meu próprio rumo.
Estava orgulhosa de mim mesma.
Capítulo sete
- Meu Deus, mal posso ver a hora de você se mudar pra cá, ! Vai ser o máximo! – dizia pelo telefone. Eu ri.
- Bom, me espere! Pretendo empacotar tudo hoje, que não tenho nada pra fazer, e amanhã já vou estar aí!
- Vai trazer seus móveis?
- Não, eu tenho algumas economias no banco e vou comprar coisas novas. – Respondi enquanto virava a esquina da minha rua, já procurando as chaves de casa no bolso.
- E seus móveis velhos?
- Não sei. Vou vender ou doar, talvez. Ou falar pra minha mãe fazer o que quiser com eles. Ou botar fogo neles. – Respondi e ouvi a risada de do outro lado da linha. – Estou chegando em casa, vou desligar agora.
- Tudo bem. Me dê notícias! – Ela respondeu entusiasmada, e eu ri com isso.
- Pode deixar. Tchau, .
- Tchauzinho! – Desliguei
Um dia depois de ter me decidido sobre a mudança, falei com . Conversamos bastante, por telefone mesmo, e ela entendeu minha situação e aceitou que eu me mudasse pra seu apartamento. Tinha um quarto extra, e a intercambista com quem ela dividia antes havia acabado de se mudar, para voltar pro seu país – o qual eu não fiz questão de memorizar qual era. Acertamos os detalhes e eu me mudaria o mais rápido possível.
Apesar disso, não havia falado com ninguém sobre isso ainda. E era exatamente o que eu estava indo fazer.
- Família! Reunião na sala, tenho algo importante pra falar! – Gritei assim que entrei em casa e joguei as chaves na mesinha ao lado da porta.
Tirei a jaqueta enquanto ia em direção à sala de estar. Joguei a peça de couro sintético no sofá e, em seguida, me joguei também. Em pouco menos de cinco minutos, mamãe, George e Abigail já estavam sentados, apenas esperando meu "algo importante".
- Bom, dois dias atrás Abby teve um acesso de ciúmes por causa de meu namoro com e tivemos uma pequena discussão. – Não pude deixar de começar a conversa com esse comentário, e vi minha meia-irmã rolar os olhos. – Tenho que admitir que, depois da janta, pouco antes de ir para a faculdade, acabei ouvindo uma briga entre George e a filha. – Continuei e vi as feições dos dois mencionados mudarem.
- , isso é falta de educação. – Meu padrasto disse, mas seus lábios continham um mínimo sorriso.
- Bom, eu ouvi meu nome. Além disso, vocês estavam berrando. Eu precisaria ser surda para não ouvir.
- E aonde você quer chegar com tudo isso, querida? – Minha mãe perguntou.
- Bom, ouvir Abigail dizer que eu sou "praticamente sustentada por vocês dois" – Fiz aspas com as mãos. – me fez abrir os olhos para uma realidade que eu ainda não tinha notado. Pela primeira vez em alguns anos, séculos ou milênios, não sei, Gail está certa. Por isso, decidi me mudar.
O ambiente ficou em silêncio por alguns segundos antes de eu ouvir a risada de minha meia-irmã.
- Você não pode estar falando sério! Você sequer consegue cozinhar, não duvido que consiga queimar até água, e quer morar sozinha? – Ela tirou sarro de mim, mas eu não me importei.
- Não vou morar sozinha. Vou morar com uma amiga minha.
- E você tem alguma amiga? – Ela riu ainda mais.
- Abigail, faça um favor ao mundo e cale a boca. Estou ficando com dor de cabeça. – Falei amarga, e ela se sentiu ofendida o suficiente para, gradativamente, diminuir a risada até ficar quieta. – Já disse, vou me mudar. E você e suas piadinhas idiotas não vão me impedir disso, mesmo que você ache que eu não tenho capacidade de viver por mim mesma sem ser sustentada. Até porque pouco me importo com sua opinião, afinal, quem é você na minha vida?
- Tem certeza disso, querida? – Minha mãe perguntou após mais alguns segundos de silêncio.
- Absoluta. Vou começar a empacotar tudo que vou levar hoje. Estou pensando em me desfazer dos móveis, talvez vendê-los ou doá-los, o que acham?
- Gosto de ver seu ânimo, ! Se quiser ajuda... – George se pronunciou.
- Não acho necessário, George, mas obrigada. Vou pedir ajuda a com as coisas, e com o resto me viro. – Me levantei do sofá, pegando minha jaqueta. – Bom, é isso. Fico feliz com suporte de vocês!
Comecei a andar em direção às escadas, mas antes parei e me virei apenas o suficiente para que enxergasse Abby.
- E, Gail... Da próxima vez que eu chamar minha família em uma reunião, não se incomode de vir. – Disse com a voz baixa, e não fiquei a tempo de ver sua reação.
-x-x-x-
- Obrigada por vir. – Foi a primeira coisa que falei assim que abri a porta.
apenas acenou com a cabeça e entrou, olhando para os lados. Talvez pra saber se meus pais, Gail ou as câmeras – deveria achar que era uma pegadinha – estavam por ali. Não dissemos nada, eu apenas gesticulei para que subíssemos ao meu quarto, e assim fizemos. Ao chegarmos lá, e ao abrir a porta, pude ver a reação surpresa de . Algumas coisas já estavam encaixotadas, e todas as minhas roupas estavam jogadas em cima da cama.
A primeira coisa que fiz ao subir pro meu quarto, algumas horas antes, foi ligar pro meu melhor amigo. Pedi para que ele fosse até minha casa, pois tinha algo para contar. Ele me disse que não estava em casa, mas assim que conseguisse, iria me encontrar. Não quis saber o que ele estava fazendo – talvez fosse o melhor; não queria me decepcionar com sua resposta.
- Vou me mudar. – Eu disse, entrando no quarto.
- Oi?
- Você ouviu. Vou me mudar. – Me virei pra ele. – Vou morar com minha colega de trabalho, . Ela tem um quarto vago em seu apartamento e eu preciso aprender a ser menos dependente dos meus pais. É juntar o útil ao agradável.
- Você tem certeza disso? – Ele perguntou, fechando a porta e chegando mais perto de mim. – Quero dizer, você mal sabe cozinhar! Aposto que queima até água. – Ele disse exatamente a mesma coisa que Abigail, e eu soquei seu ombro, fazendo com que ele risse.
- Por que todo mundo fala isso? Por favor, eu sei fazer miojo! – Respondi, com um sorriso. – E bolinho de caneca. – Rimos.
- E você não podia ter me contado isso por telefone?
- Não, porque não te liguei só pra isso. Quero pedir desculpas por ter sido meio rude aquele dia. Sei que não fez por mal. Quero dizer, eu fiquei extremamente brava com o que você fez. Mas temos uma história a contar e eu não vou conseguir convencer ninguém que sou sua namorada se estiver brava contigo. – Terminei meu discurso e pude ver um sorriso se abrir no rosto de meu melhor amigo.
- E é por isso que eu te amo. – Rimos. – Bom, vamos lá, então. Temos muito que arrumar!
Eu me virei em direção à cama para continuar arrumando minhas roupas quando ele me chamou novamente.
- . – O olhei por cima do ombro e fiz um barulho para que ele soubesse que eu estava ouvindo. – Prometo não fazer nada que você não queira no nosso namoro. Nunca mais.
E eu senti que tinha algo a mais por trás daquela frase, um duplo sentido. Até porque ele não disse namoro falso ou namoro inventado. Disse só namoro. Mas apenas afirmei com a cabeça e deixei passar, fingindo que ele não tinha falado nada e continuando a arrumar minhas coisas.
-x-x-x-
- Bom, acho que é isso. – Eu disse quando havíamos, finalmente, terminado de arrumar tudo em malas e caixas. – Amanhã eu venho aqui novamente pra botar preços nos móveis. Vou pedir pra minha mãe o número de um caminhão de mudanças, já volto. – Terminei e saí do quarto.
Desci as escadas, encontrando minha mãe ao telefone na cozinha. Ouvi passos atrás de mim, em direção às escadas, e assumi que era George, pois não havia chances de Abby ter ficado em casa em um sábado. Esperei a minha velha terminar sua ligação e pedi o tal número.
Sem muita enrolação, liguei pros caras e eles me informaram que só teriam um caminhão disponível no dia seguinte.
Voltei pro meu quarto mas, antes disso, vi Abby conversando com no topo da escada. Não queria que eles conversassem, mas não sou do tipo que interrompe conversas. Por isso, apenas me afastei o suficiente para não ser vista. Achei que estava longe o suficiente para que não conseguisse ouvir o que eles falavam, mas estava enganada.
- Você contou pra ela? Tem o que na cabeça? Titica? – Ouvi a voz de e tive que me segurar pra não rir. Abby fez um barulho afirmando. – E o que mais contou? Que eu perdi a virgindade com você, também, sendo que você já não era virgem?
Bom, , disso eu não sabia. Mas obrigada por compartilhar.
- Idiota! – Pude ouvi um barulho de tapa e rolei os olhos. – Disse que vocês cresceram juntos e que você a viu crescendo e se tornando uma mulher. Mas ela não caiu nessa.
- Claro que não caiu, Abigail. é muito mais inteligente que isso. – Pude ouvir a provocação na voz dele. – Quando você vai entender que eu só ficava com você pra te pegar? Não é como se eu fosse um santo, e eu deixei isso bem claro pra você. E você aceitou!
Senhoras e senhores, meu melhor amigo.
Um cafajeste.
- Mas depois que você começou a namorar com a Ellinor, nós nem nos víamos mais! E quando vocês finalmente terminam, você me vem com essa historinha mal contada de que tá namorando a ?
Opa.
Mal contada?
- , você e ela enganam nossos pais, seus pais e a universidade inteira. Mas não enganam a mim. Está mais do que claro que esse namoro é mais falso que os peitos da Agatha.
EI! Ninguém fala assim dos peitos da minha mãe a não ser eu!
- Abby, conforme-se. Eu sei dos seus sentimentos por mim, mas... Eu amo a . E você vai ter que superar isso. – Foram as últimas palavras de .
Não ouvi passos, mas assumi que eles haviam parado de conversar, então subi as escadas. Não falei nada, só olhei de relance pra e ele me seguiu até meu quarto. Chegando lá, ele ficou parado na porta enquanto eu ia me deitar na minha cama. Quando o fiz, fechei os olhos e relaxei. Estava extremamente cansada de ter que arrumar tudo. Claro que me ajudou, mas era muita coisa pra apenas duas pessoas fazerem.
- Vamos sair? – Ouvi a voz dele após alguns minutos de silêncio. Em seguida, pude ouvir a porta se fechando e o som dos passos dele em minha direção.
- Hm... – Fiz um barulho com a boca. – Pra onde? – Perguntei, e senti a cama se afundar ao meu lado e soube que ele tinha sentado ou deitado ali.
- Sei lá... A gente pode ir no shopping ver se tem alguma loja de móveis aberta pra você já comprar ou escolher seus novos móveis. – Ele disse, e a cada palavra que ele pronunciava em sua voz suave, mas sono eu tinha.
- Mas tá tarde, ... – Respondi molenga.
- Ah, , eu só quero sair com você! Difícil? – Ele perguntou e eu abri um dos olhos. Ele estava sentado, me olhando com cara de cachorrinho sem dono.
- Ugh, tudo bem! Vamos logo, vai. Só vou tomar um banho rápido. Talvez você devesse fazer o mesmo.
- Eu não. Sou cheiroso por natureza, fofa! – Fez uma voz afetada. Gargalhei.
- Ford, você é uma figura!
- Eu sei, obrigado.
Peguei uma roupa bonitinha e segui pro banheiro. Antes de fechar a porta, ouvi:
- Ah, e a gente vai andar de mãos dadas, viu? – Gargalhei ainda mais alto.
E apesar de me deixar puta às vezes, eu não consigo ficar brava por tempo demais com esse garoto.
Será que existe alguém que não gosta do ? Eu acho impossível.
Ele é incrível demais pra ser odiado.
Capítulo oito
- Uou, , esse apartamento é o máximo! – Foi a primeira coisa que eu disse assim que terminou de me mostrar meu novo lar.
- Ugh, foi um trabalho enorme deixá-lo assim. Quando aluguei, ele estava uma espelunca nojenta e inabitável, sério! – Ela rolou os olhos e eu ri com a cara de nojo que ela fez. – Ah, mas eu estou tão feliz que você tenha se mudado pra cá! – Ela soltou um gritinho agudo e se jogou em cima de mim. Ri e a abracei de volta.
Fazia uma semana que eu tinha decidido me mudar. Houve uns problemas aleatórios com o caminhão de mudanças e eu só consegui me mudar, de fato, no final de semana. me ajudou a colocar preços nos meus móveis e algumas coisinhas velhas – inclusive quase todas as minhas roupas – e eu e ele fizemos uma venda de garagem e arrecadamos dinheiro o suficiente pra eu praticamente mobiliar o pequeno apartamento inteiro de novo. Assim, consegui comprar coisas adoráveis, úteis, inúteis e diversas outras e até pintei o quarto de novo, enquanto não podia me mudar pra lá. Foi bem difícil conciliar a mudança com a faculdade e ter que aguentar Abigail me irritando, tudo ao mesmo tempo. Mas eu consegui, ainda mais com o apoio dos meus pais e meus amigos.
- Eu to morta! Preciso dormir por, pelo menos, umas quarenta e oito horas. Me acorde na segunda de manhã. – Reclamei e me joguei no sofá. riu de mim.
- Ah, mas nem pensar! Você quase não tem roupas, precisamos ir às compras! – Ela exclamou, animada demais pro meu gosto.
- , você pode parar de ser a típica patricinha de Beverly Hills por, pelo menos, algumas horas? É pedir muito? – Perguntei, abrindo os olhos e vendo ela gargalhar.
- Sim, é pedir muito, me desculpe. Agora, levante esse traseiro daí que temos muito que comprar!
-x-x-x-
- , eu não aguento mais! – Eu exclamei assim que saímos da, não sei, vigésima loja em que tínhamos entrado. Eu não aguentava mais tantas sacolas! Meu dinheiro já estava acabando, também.
- Tudo bem, tudo bem. Mas temos uma última coisa a fazer!
Dito isso, ela me arrastou para um salão de beleza, onde me fez cortar o cabelo e fazer não sei quantas hidratações e relaxamentos.
Não sei pra que, no dia seguinte já teria saído tudo.
Saindo do cabeleireiro, meu celular começou a tocar. Era .
- Fala, satanás! – Ouvi sua risada do outro lado da linha. fez uma cara maliciosa pra mim, perguntando sem som se era . Confirmei com a cabeça e sorri com a reação dela.
- ! Tenho tentado te ligar o dia inteiro, o que aconteceu?
- Relaxa, tá tudo bem. me arrastou pro shopping e nós compramos tudo que tinha em umas dez lojas! – Exclamei e levei um tapa da garota ao meu lado, que berrou que eu era exagerada. riu de novo.
- Hm, tá com roupas novas, é? – Ele perguntou.
- Aham! E com um corte de cabelo novo, também, acabamos de sair do salão.
- Aposto que tá gata. Tava pensando em passar no seu apê novo, ainda não conheci!
- Por que não nos pega no shopping? Realmente não estou a fim de voltar de ônibus com esse monte de sacolas! – Bela hora pra bater o carro.
- Tudo bem, folgada. – Respondeu e eu comemorei. – Já aproveito e vejo seu novo visual.
- Com certeza. Vê se vai logo, minhas pernas estão me matando.
Ele riu, confirmou e logo nos despedimos e desligamos. ficou me enchendo o saco, falando que parecíamos um casal de verdade.
Essa garota é meio doente.
-x-x-x-
- Você deve ser a . – Ele disse, pegando algumas sacolas da minha mão ao mesmo tempo em que cumprimentava minha amiga com um beijo no rosto.
- . E você deve ser o .
- . – Eles sorriram.
Colocamos a maioria das sacolas no porta-malas, deixando apenas algumas coisas com no banco de trás.
- Não é que tá gata, mesmo? Dei sorte. – Ele ia me beijar, mas eu botei uma mão na frente do rosto. Ele fez uma cara de dúvida.
- Ela sabe. – Expliquei e ele disse que entendeu, mas pude ver que ele estava um pouco decepcionado.
Esse garoto não perde uma.
- E aí, onde é o apartamento?
explicou direitinho o caminho. Liguei o rádio e cantei junto com a música qualquer que passava. Abri a janela e deixei o vento bagunçar meus cabelos.
Apesar de estar cansada, eu não estava tensa. O dia havia sido divertido, apesar de eu não ser daquelas que faz compras frequentemente.
Não demoramos muito a chegar em casa. Pegamos as compras e subimos ao décimo oitavo andar, onde ficava nosso apartamento. Já lá em cima, demorei certo tempo até achar o molho de chaves no meio da bagunça da minha bolsa. Finalmente entramos, e eu avisei aos outros que colocássemos as sacolas no chão, ao lado da porta, ao mesmo tempo em que olhava em volta, prestando atenção aos detalhes do apartamento.
- Não é tão mal, até. Pensei que fosse menor. - Ele comentou.
- é rica. - Provoquei, e ela me mostrou a língua. Rimos.
- E tem comida nessa casa?
- Sabia que você estava comigo só pelos meus dotes culinários.
- Que dotes? - e perguntaram ao mesmo tempo, o que nos fez rir mais ainda.
-x-x-x-
Estávamos jogados no sofá depois de nos entupirmos de comida chinesa – sobras do dia anterior. Um programa de auditório qualquer passava na TV, mas ninguém prestava atenção. soltava um barulhinho, algo como um ronrono – acho que havia adormecido. Pelo menos ele não roncava.
Me levantei, pegando os pratos da mesa de centro e indo até a cozinha. Com preguiça demais pra lavá-los, apenas joguei uma água por cima e deixei-os na pia, mesmo. Lavaria outra hora.
Ao voltar pra sala, estava sentado propriamente, não mais dormindo, e não estava mais lá.
- Ué, cadê? - Perguntei.
- Disse que ia tomar um banho e capotar.
- Mas são seis da tarde! - riu e deu de ombros.
Me sentei ao seu lado e ficamos em silêncio por alguns minutos. Ele pegou o controle e começou a passar pelos canais. Eu parei de prestar atenção no mundo ao meu redor, deixei a mente em branco. Estava muito cansada, mas não sei se conseguiria dormir de tarde. deixou a TV em um canal de música qualquer. E, assim, ficamos em silêncio por alguns minutos, até que eu parei de brisar.
- Quando você terminou com a Ellinor? - A pergunta me veio em mente. Eu lembro dele ter comentado algo sobre o assunto, mas não me lembro se ele disse quando.
- Pouco antes de você me chegar com essa conversa doida de namoro falso. - Ele riu fraco.
- Porra, , você nem me apresentou a garota antes de terminar com ela! - Me fingi de indignada e ele riu um pouco mais.
- Não era sério, de qualquer jeito. Ela é meio insuportável.
- O que é uma pessoa meio insuportável?
- A Ellinor. - Rimos alto. - Além disso, eu tenho alguém em mente. - Completou.
Abby?
Deus me livre!
- Hmm, e vai me apresentar essa? - Finalmente olhei pra ele, que me olhou de volta.
- Acho que você a conhece. Na verdade, acho que a conhece muito bem. - Ele olhou no fundo dos meus olhos e eu fiquei estática.
Eu?
Deus me livre mais ainda!
- Ah, é? - Perguntei meio em transe e ele apenas fez que sim com a cabeça.
Ele olhou pra baixo, lambeu os lábios e então voltou a olhar pra mim. Antes que pudesse falar ou fazer alguma coisa, contudo, apareceu meio esbaforida.
- Tem uma aranha monstruosa na porta do banheiro, alguém me ajuda!
bufou e murmurou algo como “ótima hora pra ser aracnofóbica, ”, mas eu fingi não ouvir e apenas olhei para baixo, me focando em minhas mãos, que estavam pousadas nas minhas coxas. Ele se levantou e foi ajudar com o bicho.
Ao voltar, apenas disse que estava indo embora. Tentei convencê-lo a ficar mais um pouco, mas ele disse que tinha uma redação pra terminar. Não engoli a desculpa, mas deixei que ele fosse porque ainda estava meio constrangida com a cena de poucos minutos antes.
À noite, na hora de dormir, não consegui impedir minha mente de ficar revivendo a cena. Não estava sonhando acordada comigo e nos casando, tendo filhos e um futuro feliz. Não estava exatamente animada com aquilo. Mas fiquei revivendo, talvez tentando captar algum detalhe que não notei na hora. Foi um momento muito estranho, e eu não conseguia realmente absorver o fato de que, talvez, meu melhor amigo estava começando a gostar de mim.
Acho que nunca me senti tão desconfortável na vida.
Capítulo nove
- ! - Acordei com um berro.
Olhei em volta. Havia adormecido com a cara na escrivaninha, babando em cima dos livros. Minhas provas decisivas começariam em breve, e eu estava me matando de estudar. Esse semestre da faculdade era cheio de matérias que eu não gostava muito, então tinha que me esforçar pra aprendê-las.
Pelo jeito, não estava dando certo, já que eu caí no sono na página 8 do livro.
voltou a berrar meu nome e me levantei da cadeira e fui até a sala, onde ela estava parada na frente da porta com uma roupa qualquer de sair, uma bolsa a tiracolo e um molho de chaves na mão.
- Vou ao supermercado, quer alguma coisa? – Perguntou.
- Disposição. – Respondi, coçando o olho e bocejando, e ela riu.
- Tudo bem, passo na cafeteria e te trago um expresso. Bolinhos também?
- Por favor.
-x-x-x-
voltou pouco tempo depois com as compras e nosso café-da-manhã. Comemos em silêncio na bancada da cozinha estilo americana. Eu estranhei seu comportamento. O silêncio, quero dizer. Depois de quase um mês morando com ela, eu já sabia cada detalhe de – além do que eu já sabia do pouco que conversávamos no trabalho. E pra ela estar em silêncio era porque algo grave havia acontecido. era a pessoa mais bem-humorada e faladeira que eu conhecia.
- O que aconteceu? – Não me contive, e ela me olhou pelo canto dos olhos.
- Vou conhecer meu noivo hoje.
- O QUE? – Berrei.
Nossa, eu berrava essas duas palavrinhas com frequência.
- Você ainda não o conhecia? – Perguntei abismada e ela soltou uma risadinha fraca, fazendo que não com a cabeça.
- Eu já te disse quem é meu pai? – Ela perguntou e eu neguei com a cabeça. – Com certeza sabe o que é o Conselho Municipal, certo?
O Conselho Municipal é o corpo de administração de Wolverhampton. É como a prefeitura, mas menor, digamos. Decide e põe em ação melhorias pra cidade e para a população. Seu tosco bordão diz que “O Conselho Municipal de Wolverhampton: lidera, guia, apoia e inspira nossa cidade. Nos orgulhamos de estar prestando os serviços de hoje e nos impondo para vencer os desafios de amanhã.” George odiava o conselho, dizia que ele realmente era bom em algumas coisas, mas em outras deixava a desejar – e muito.
Perdi as contas de quantas vezes ouvi reclamações do meu padrasto.
- Bom, meu pai faz parte do conselho. Eu sou de uma família rica, sabe? Mas não gosto de sair falando disso, porque as pessoas começam a achar que eu tenho tudo que quero porque meu pai me dá, sendo que eu trabalhei pra chegar onde estou. Com minhas próprias mãos.
Me arrependi de tê-la julgado mal quando a conheci. Achei que ela só tinha tudo que queria por causa do papai, mesmo.
Foi mal, .
- E por sermos de uma família rica, meu pai quer ascender na política. Por isso, fez um contrato com o prefeito da cidade para que me casassem com o filho dele. – Ela baixou os olhos e eu quis abraçá-la até que ela se sentisse bem o suficiente pra encher o meu saco em relação a de novo.
Coloquei minha mão sobre a sua, em um gesto que dizia que eu sentia muito. Ela me olhou no fundo dos olhos e sorriu.
Não falamos mais nada.
-x-x-x-
Uma semana depois e as primeiras provas decisivas já haviam passado, depois de muita ralação. Ai de quem disser que biologia é fácil. Te digo uma coisa, querido: não é, não. Enfim, eu ainda tinha outras pra fazer, e a preguiça de estudar me controlava.
Estava sozinha em casa, assistindo um filme qualquer do Homem Aranha (o com o Tobey MaGuire, porque eu não ia com a cara do Andrew Garfield) quando meu telefone tocou.
- Fala! – A voz do outro lado riu e eu não consegui conter um sorriso.
- Oi, ! – respondeu. – Posso passar por aí? To sem nada pra fazer.
- Nossa, assim me sinto ofendida. Agora sou segunda opção, ? – Me fingi de indignada e ele riu.
- Claro que não, coisinha linda da minha vida. Enfim, to passando aí. – Nem me deixou responder e desligou.
Mas é um cara de pau, mesmo.
Não demorou muito para que ele chegasse à minha casa. Só deu tempo de eu perceber que estava sem calças, cobrir as pernas, aproveitar pra ir ao banheiro e logo ele estava lá. O apartamento de era mais no centro da cidade, e a república dele não era tão perto, por isso achei estranho que ele tivesse chego tão rápido. Imaginei que ele já contava com a minha resposta afirmativa à sua visita e, quando me ligou, na verdade já estava a caminho.
Depois de dizer ao porteiro que ele poderia subir, ele demorou mais cerca de um minuto ou dois pra tocar a campainha do apartamento. Abri a porta e ele me cumprimentou com um beijo demorado na bochecha, para o qual eu sorri. Ele entrou e, todo folgado, já se jogou no sofá. Perguntei se ele queria alguma coisa, e com sua resposta negativa, sentei ao seu lado.
Conversamos por um tempo, mas logo eu não consegui controlar meus impulsos e entrei no assunto das provas e minha preguiça de ajudar. alegou que, se soubesse alguma coisa de biologia, me ajudaria. Então eu dei um leve coice nele ao dizer que não era ruim na matéria, já que eu era um gênio; eu só não gostava muito. Ele riu e entramos em um silêncio.
Eu não sabia muito o que conversar. Antes da ideia do namoro, eu e éramos inseparáveis. Não ficávamos um dia sem falar com o outro – fosse por telefone, internet ou celular. Mas depois da minha ideia meio problemática, parecia que tínhamos nos afastado um pouco. Isso me deixava triste e um pouco decepcionada – não com ele, mas comigo mesma. Afinal, eu que tive a ideia, certo? Talvez se eu não tivesse inventado tudo isso, eu talvez ainda teria o meu antigo melhor amigo.
Veja bem: não que eu estivesse reclamando do comportamento de . Ele estava agindo como sempre agira.
Só não parecia querer agir do tal jeito perto de mim.
-x-x-x-
estava no apartamento há pouco mais de duas horas quando chegou do terceiro encontro com , seu noivo. Acontece que eles se deram super bem naquela primeira vez que se viram. dizia que era bem parecido com ela em alguns aspectos e completamente diferente em outros, e que isso equilibrava a relação. Quando eu perguntei se ele não agia exatamente do jeito que ela queria porque estava tentando fazê-la se apaixonar, ela disse que não, ele era daquele jeito mesmo. Alegou que, depois de conhecer tantas pessoas que se fingem por interesse, ela já sabia distinguir quem estava sendo verdadeiro e quem estava sendo falso.
Depois de se conhecerem, saíram mais três vezes juntos, em encontros reais, como se fossem um casal de namorados – ou melhor, “ficantes” –, dispostos a se conhecerem melhor, e não dois jovens prestes a se casarem. tinha a minha idade, dois anos a mais que (aliás, até hoje eu acho um absurdo que a forçaram a se casar com apenas vinte anos!). Mas, apesar da pequena diferença de idade, eles pareciam se dar muito bem.
Fiquei feliz por ela.
Ao chegar, se jogou ao meu lado no sofá e parecia doida pra falar cada mínimo detalhe do encontro, e só não tinha começado pela presença de ao meu outro lado.
Sabe como é, conversa de menina.
Acho que ele percebeu que queria conversar comigo, então se despediu e foi embora pouco depois. Tentei convencê-lo a ficar – eu parecia quase dependente dele nos últimos dias, fazendo questão de sua presença –, mas ele não se convenceu. Quase matei por isso.
- do céu, o homem é perfeito! – Ela quase gritou assim que fechei a porta. Achei que ela falava de , mas ao ver o brilho em seus olhos, me toquei que era .
- Não duvido, você já está caidinha por ele.
- Não é pra tanto. Mas ele é perfeito! – Ela tentou negar, e eu só ri.
Ficamos o resto da tarde conversando sobre e seu mais novo namoradinho. Ela parecia uma garotinha da sétima série que acabara de dar o primeiro beijo.
Ou uma garotinha do primeiro colegial que acabara de dar... Outra coisa.
Mas eu realmente não via grande diferença.
-x-x-x-
“to aqui fora”
Foi o que eu li assim que o professor dispensou a classe. Pedi a para me pegar na faculdade, porque queria ficar mais com ele – pra ver se conseguia recuperar a amizade antiga. Além disso, ainda tínhamos que manter o disfarce.
Do lado de fora do prédio, ele estava encostado no carro mexendo no celular. Suspirei ao vê-lo com minha jaqueta de couro favorita
O que?
Eu nunca disse que era feio.
E eu tenho um fraco por jaquetas de couro.
Só isso.
Ao chegar perto dele, ele me recebeu com um abraço e um beijo no canto da boca. Repreendi um calafrio e sorri pra ele, que me devolveu o gesto e abriu a porta pra mim. Fiz uma feição surpresa pelo ato de cavalheirismo e ele riu, logo fechando a porta, dando a volta e entrando ao meu lado.
- Tudo bem? – Ele perguntou. Demorei pra responder, pois estava vidrada em uma garota assustadora, parada a poucos metros de mim, e que parecia querer me matar apenas com o olhar.
- Tudo, tudo sim. Você?
- Também.
A conversa se resumiu a, basicamente, isso. parecia entristecido e distraído com alguma coisa, e eu imaginei que fosse pessoal demais para que ele ainda não tivesse contado. Assim, preferi não perguntar.
Dois dias antes, ele me contou que o pai dele fez a ele a mesma proposta que George fez a mim: se casar com uma desconhecida. Ele negou, e quando o pai perguntou o porquê, ele disse que tinha uma boa razão e só estava esperando o momento certo pra contá-la.
No dia seguinte, ele disse que diria ao pai sobre nosso “namoro”.
O pai de era um senhor bem rígido. Apesar de uma boa pessoa e geralmente calmo, não se podia dizer que ele era do tipo que deixa o filho fazer o que quiser.
Pelo contrário.
Então imaginei que estava agindo estranho por ter tido, não sei, uma briga com o pai. Sr. não deve ter reagido bem à notícia, e deveria estar tentando pensar em algo para fazer o pai se convencer do nosso “namoro” e aceitá-lo.
Quando chegamos na frente do meu prédio, parou o carro e destrancou as portas. Ao me virar para dar-lhe um beijo no rosto, meu coração se partiu com a carinha triste dele.
Não resisti.
Peguei seu rosto entre as mãos e selei nossos lábios por pouquíssimos segundos, me afastando logo. parecia surpreso, mas eu apenas lhe dirigi um sorriso e sussurrei um “tchau” fraquinho. Abri a porta e saí do veículo. Antes de entrar no edifício, me virei e ele me olhava com um sorriso bobo no rosto. Acenei e ele devolveu o gesto. Sorri sozinha.
Talvez eu não tivesse só um fraco por jaquetas de couro.
Capítulo dez
- Mãe! To aqui! - Berrei assim que abri a porta da minha antiga casa.
Seis meses.
Já haviam se passado seis meses desde que eu tive a ideia revolucionária de inventar um namoro. Cinco desde que eu havia me mudado para o apartamento de . Quatro desde que ela conheceu o noivo.
Quatro meses.
Quatro meses desde que eu tinha dado um beijo em .
Tudo bem, não foi realmente um beijo. Foi um selinho. Apenas encostamos nossos lábios. Mas já foi alguma coisa! Afinal, eu era amiga dele há, sei lá, quinze anos, e mal nos tocávamos! Um selinho foi algo surpreendente. Pelo menos ele voltou a falar comigo normalmente.
E passamos a ter uma intimidade um pouco... Diferente, digamos.
Não estávamos nos agarrando pelos quatro cantos, mas parecia aceitar qualquer desculpa pra me tocar. Apoiava a mão nas minhas costas, ou o braço nos meus ombros, o tempo todo. selinhos e abraços demorados, então, nem se fala.
E estava na casa de mamãe e George para pedir um vestido emprestado de dona Agatha, já que eu não tinha um realmente adequado à situação. A situação, no caso, é a festa de noivado de e . Eu nunca mve conformaria com o fato de que ela é mais nova que eu e já está casando. Forçadamente, ainda por cima! Tudo bem que eu muito provavelmente teria que fazer a mesma coisa, mas eu estava adiando o máximo possível. não podia fazer isso. Ela não tomava decisão nenhuma ali. Estava fora de suas mãos.
Sua própria vida estava fora de suas mãos.
- Oh, querida, como você está linda! - Minha mãe apareceu, vindo da cozinha, limpando as mãos no avental que usava por cima das roupas. - Essa tal fez muito bem ao seu guarda-roupa, posso ver! - Ela brincou, e eu não deixei de rir junto enquanto a abraçava e lhe dava um beijo estalado na bochecha.
Minha velha estava certa, afinal. me integrou à sociedade. Não vou mentir e dizer que agora era a garota mais popular do campus e minha agenda mal tinha espaço devido às diversas baladas que eu frequentava. Muito pelo contrário, eu ainda era a mesma freak de antes. Só usava roupas melhores.
Inclusive aprendi a andar de salto alto, olha que bonito. Estava virando mocinha.
- Eu não teria vindo aqui te encher o saco, normalmente é quem me ajuda na arrumação. Mas hoje o dia é dela, e ela não passou nem meio minuto em casa. De manhã cedinho já estava saindo.
- Ah, mas eu não me importo nem um pouco! Fico muito feliz em te ajudar, querida. Só me dê um minuto que vou tirar o bolo do forno. Quer alguma coisa? - Perguntou, voltando para a cozinha.
- Não, obrigada! Já vou tomar um banho, tudo bem? - Perguntei e só ouvi seu “Ok!” gritado do cômodo ao lado.
Ri sozinha e subi as escadas em direção ao meu antigo quarto.
Que saudades eu sentia daquela perua.
-x-x-x-
- Querida, você está absurdamente incrível! - Minha mãe soltou, animada. Sorri pra ela e me virei para o espelho, encarando meu reflexo.
O vestido que eu usava era longo, chegava ao chão, o tecido era preto e meio transparente. O busto era um pouco mais justo, e tinha um decote significativo, mas a saia era soltinha. Um tipo de cinto separava a parte de cima da parte de baixo. A sandália era de , eu já queria usá-la fazia um tempo, e essa foi a oportunidade perfeita. Minha amiga tinha feito minhas unhas no dia anterior, era um dom dela como manicure. A bolsa eu já tinha há anos, e usava para ir a lugares como a padaria, e não uma festa de noivado. Aliás, eu sentia que estava usando preto demais e que isso me deixava um pouco fúnebre, mas minha mãe fez de tudo pra dispersar esse pensamento da minha mente. Os acessórios - colar, brincos e pulseira - eram todos prateados, e eu fiz a única maquiagem que conseguia fazer: olhos de gatinho e batom vermelho, só pra chamar atenção.
- Sra. , você fez um ótimo trabalho. - George falou, encostando-se na porta e sorrindo. Sorri junto e minha mãe foi correndo se juntar ao marido.
- Acho que isso merece uma foto! - Ela disse animada e eu soltei uma gargalhada, levantando a saia do vestido e passando correndo entre eles para ir ao corredor.
- Mas é nunca! - Exclamei enquanto me afastava.
me ligara pouco tempo depois, dizendo que já estava do lado de fora. Peguei as coisas básicas e enfiei na bolsa a tiracolo, dando um beijo em mamãe e George, saindo da casa em seguida. estava encostado no carro, como de costume, mexendo no celular. Estava com uma camisa social e um blazer por cima, calça também social e um tênis esportivo.
Repito: tênis esportivo.
Ri dele e ouvi minha mãe me dizendo para voltar no meu aniversário, que seria em breve, dali a poucos dias. Virei para trás, sorrindo e acenando para o casal parado na porta, em seguida voltando a olhar para frente. levantou os olhos da telinha do celular e eu ri mais um pouco ao vê-lo abrir a boca em surpresa. Eu estava mesmo bem arrumada.
- Caralho… Quem é você e o que você fez com a minha melhor amiga? - Ele soltou e eu ri mais alto, batendo de leve em seu braço. Ele me pegou pela cintura, me levando para mais perto de seu corpo. - Me beija, seus pais tão olhando. - Ele murmurou, tentando não mexer muito a boca.
Eu rolei os olhos e olhei por cima dos ombros, confirmando que Agatha e George estavam mesmo nos olhando, George parecendo saber de algo a mais. Voltei a olhar pra , e, ignorando o fato de que aquilo era apenas uma desculpa para se aproveitar da minha “inocência”, coloquei a mão em seu pescoço e lhe dei um selinho bem demorado. Senti sua mão apertar minha cintura com mais força e logo me separei dele, pedindo licença para entrar no carro. Sem poupar esforços, ele deu uma de cavalheiro e abriu a porta pra mim - como se eu não soubesse entrar sozinha-, fechando-a em seguida e correndo para o lado do motorista. Abri a janela apenas o suficiente para colocar a mão pra fora e acenar para o casal de tiozinhos parados na frente da casa, babando como se fosse o dia da minha formatura do colegial.
Logo partimos.
-x-x-x-
A festa era na casa do prefeito. Assim que chegamos, reclamou que estava se sentindo muito pobre no meio daquele bando de milionários. Eu ri, e poucos segundos depois, estava estacionando na frente da porta da mansão. Dois homens se aproximaram, cada um de um lado do carro. Um me ajudou a sair do carro - como se eu não soubesse sair sozinha - e o outro pegou a chave e foi estacionar o carro. me deu o braço, que eu enlacei com o meu, e fomos em direção à casa. A porta estava aberta, então entramos. Fomos recepcionados por uma moça que usava um tipo de terno feminino, que nos deu boas vindas e disse para que ficássemos à vontade. me ofereceu a mão, que eu peguei com a minha própria, entrelaçando nossos dedos.
Passamos pelo hall de entrada, indo para onde um barulho de conversas surgia. Diversas pessoas passaram por nós, indo e vindo pela casa, em seus melhores trajes a rigor. tinha razão. Eu me sentia pobre no meio daquele povo. Já na sala, onde se encontrava a maioria das pessoas, eu demorei a achar minha amiga. No final, ela estava numa poltrona bem no centro do enorme cômodo, rodeada de mulheres que pareciam mais velhas até do que eu mesma. olhava em volta, e eu chamei sua atenção ao apertar sua mão entre a minha. Ele olhou pra mim, e eu fiz um gesto com a cabeça, apontando para onde estava. Fomos até ela, recebendo alguns olhares quando chegamos lá.
- ! Finalmente você está aqui, estava começando a achar que você não vinha. - Ela exclamou, feliz, me olhando como se eu tivesse acabado de salvar sua vida. E eu não duvido que eu tivesse, mesmo.
- Não perderia isso por nada no mundo. - Sorri, a abraçando sem soltar a mão de . o cumprimentou logo em seguida, e virou para encarar as mulheres atrás de si, que ainda nos olhavam estranhamente.
- Moças, essa é . É minha colega de trabalho e casa, eu a mencionei antes.
As mulheres fizeram barulhos de concordância, como se finalmente tivessem entendido. Talvez o fato de que eu e não fossemos da mesma classe social delas estivesse óbvio, porque elas nos olharam com tanto desdém que eu tive vontade de vomitar.
se desculpou com elas antes de nos puxar para longe dali, alegando que nós tínhamos que conhecer . Nos levou através do hall e da cozinha, parando para falar algo com um cara aleatório. Continuou nos puxando pela casa até o jardim dos fundos, - que era lindo, por sinal - onde se encontravam mais algumas pessoas. Eu não sabia como o tal era, então não me preocupei em procurá-lo.
parou na frente de dois homens, que conversavam. Um deles eu reconheci imediatamente como o prefeito, enquanto o outro supus que era , até porque ele era bem parecido com o Sr. .
- , olá! - O prefeito falou, antes de olhar para mim e , ainda parados atrás de . - Vou deixar vocês, jovens, conversarem. Me procure depois, . Ainda temos que terminar essa conversa. - Mandou um olhar rígido ao filho que me fez engolir em seco, antes de sair sem nos dirigir outro olhar.
Eu não gostei muito dele, não. Talvez George tenha razão em xingar o governo de Wolverhampton.
nos olhou como se pedisse desculpas antes de tomar em seus braços e lhe dar um selinho. Tive vontade de soltar um "awn", mas me segurei. O casal 20 ficou de frente pra mim e , sorrindo como bobocas.
Até que eles são bonitinhos juntos.
- Oi! Vocês devem ser e . É um prazer finalmente conhecê-los, vocês são o assunto favorito da . - Eu dei risada e percebi que sorriu sem graça.
sem graça?
Há!
Essa é nova.
- Oi, ! O prazer é nosso. E eu tenho que discordar, você é o assunto favorito da . - Falei, e dessa vez minha amiga quem ficou com vergonha.
beijou as costas da minha mão e trocou um aperto firme com . Então, os dois entraram numa conversa profunda sobre faculdade e administração e relacionamentos inventados enquanto me puxou, para que ficássemos um pouco distante deles.
- Ele não é uma delicinha? - Ela soltou, e eu não consegui impedir uma gargalhada monstra de sair. riu comigo.
- Devo admitir que, sim, ele é um pedaço de mal caminho.
- E é um amor de pessoa. Sabe, ainda não estamos lá, no mesmo nível que deveríamos estar, mas acho que manter um relacionamento com ele não vai ser difícil. Ele é tão despreocupado com tudo que consegue me deixar confortável em quase todas as situações.
- Fico muitíssimo feliz com isso, . É bom saber que você vai conseguir aproveitar isso tudo e levar numa boa. Porque eu não sei se eu vou. - Respondi, abaixando a cabeça e coçando um ponto aleatório no braço.
- Ah, ... Eu realmente queria conseguir te ajudar, mas eu também não sei o que faria no seu caso. Quero dizer, vocês se conhecem há eras, né? Acho que se fosse pra acontecer alguma coisa entre vocês, já teria acontecido. - Ela disse, parecendo realmente preocupada. - Talvez você devesse tentar com Edmund. Ele é um cara legal! E seríamos da mesma família, olha só! - Exclamou animada e eu ri, recebendo um sorriso como resposta.
- É, talvez.
-x-x-x-
- Você acha que isso vai a algum lugar? - Perguntei, e me olhou confuso.
Estávamos sentados em um banco no quintal. Uma música romântica e lenta tocava dentro da casa. e estavam conversando com um grupo qualquer de pessoas mais velhas que nós. Provavelmente políticos.
continuou me encarando de forma confusa e eu soube que ele não tinha entendido a pergunta.
- O relacionamento, quero dizer. Nosso relacionamento. Nossa… Mentira. - Ele desfez a feição confusa, soltando um suspiro.
- Não faço ideia, .
Ficamos em silêncio por mais alguns minutos. batucava os dedos na perna; parecia incomodado. Talvez eu não devesse ter feito a pergunta.
- Por que perguntou? Não foi você quem inventou tudo isso? - Se virou pra mim, o tom de voz um pouco rude, e eu me assustei. Era difícil perder a calma.
- Sim! Sim, eu sei, eu só… Quis saber o que você achava.
Voltamos ao silêncio. suspirou mais uma vez antes de se levantar e me deixar ali. Vi que ele entrou na casa, e soltei um bufo. Não queria ficar ali sozinha, mas não queria incomodá-lo - ou a . Então continuei sentada no banco, xingando até minha vigésima geração por me ter colocado nessa situação absurdamente desconfortável.
Achei que ele tinha ido passear, mas logo voltou, com uma bebida em uma das mãos. Sentou-se novamente ao meu lado, passando a mão livre pelos cabelos antes de soltar mais um suspiro.
- Desculpa, . Eu fui um pouco idiota. Acho que essa festa me deu um pouco nos nervos. Pensar que logo pode ser a gente… Acho que não estou pronto.
- Ah, … Sinto muito! Eu não… Não quis que você pensasse nisso agora, não sei nem por que comecei essa conversa. - Bufei novamente, irritada com a minha própria estupidez. - Sabe que eu não vou te forçar a isso, né? - Ele suspirou.
Estávamos suspirando bastante naquela noite.
- Se quiser desistir disso, , eu vou entender. Não quero que você faça só pra me agradar, ou sei lá.
- Tudo bem, . Eu prefiro namorar e casar com você do que com uma desconhecida. - Sorriu e eu senti o peso de cima dos meus ombros sair. Sorri de volta e ele pegou minha mão, apertando-a levemente. - Além do mais, é claro que eu faria isso só pra te agradar. Você sabe que eu sou todo seu, .
Ai, que maldade.
Sorriu mais abertamente e se inclinou pra me dar um selinho. Ficamos daquele jeito por alguns segundos, sem nos movermos. Eu achava minha pseudo-relação romântica com uma coisa muitíssimo interessante. Mesmo que nunca tivéssemos nos beijado, propriamente dizendo, eu não tinha vontade. Parecia que só o encostar de nossos lábios era o suficiente pra me deixar feliz e satisfeita. E ele parecia sentir o mesmo.
- Eu faria tudo por você, . Tudo mesmo.
-x-x-x-
A garota no espelho parecia feliz. Não sei se confiava nela, até porque ela estava no espelho. E o espelho me engana muito. Na maioria das vezes, ele me faz parecer linda - eu confio nele, vou tirar uma selfie e BUM! Estou horrorosa.
Mas a garota no espelho parecia feliz. Ela me encarava de volta com um pequeno sorriso nos lábios. O penteado já estava se desmanchando e a maquiagem não estava mais impecável. Mas ela estava bonita.
Eu estava bonita.
Deixei de ser otária e pensar em mim na terceira pessoa e destranquei a porta do banheiro, pronta pra voltar para a sala. Tudo naquela casa era luxuoso, até o banheiro. Acho que a maçaneta era de ouro.
Já do lado de fora do cômodo, rapidamente encontrei , e conversando em um canto. Olhei para o resto da sala, e vi que o pai de estava abraçado com uma mulher, que imaginei ser a mãe do garoto; e eles conversavam com outro casal - que assumi ser os pais de . Já começava a ficar tarde, mas as pessoas na festa não pareciam ir embora. A ostentação que aquela mansão exalava parecia hipnotizar a todos, e ninguém queria deixar o lugar.
Comecei a andar em direção ao meu grupo de amigos quando ouvi uns gritinhos obviamente infantis. Antes de localizar as crianças que gritavam, porém, elas me localizaram. Não só me localizaram como correram em minha direção e trombaram comigo. Olhei pra baixo e tive tempo de reconhecer dois garotos de uns sete ou oito anos, antes que um deles se desequilibrasse e cambaleasse para trás. Eu vi minha vida passando diante dos meus olhos quando percebi que a mesa de bebidas estava logo ali, atrás do garotinho. Tentei chegar até ele e impedi-lo de cair, mas foi em vão. Ele tropeçou no pé do outro garoto e bateu contra a mesa.
No princípio, Deus criou os céus e a terra.
No segundo dia, Deus disse “Faça-se a luz!” E a luz foi feita.
No oitavo dia, Deus disse “Faça-se a tragédia”. E a desgraça caiu sobre a Terra.
Naquele momento, eu desconfiei que estava no oitavo dia.
O garotinho bateu com o tronco e a cabeça na mesa. Alguns copos se quebraram automaticamente, outros caíram no chão. Uma bacia cheia de ponche ou sei lá que bebida era aquela virou-se quando o menino apoiou o cotovelo nela, e sujou toda a blusinha dele.
Eu tinha certeza que minha cara estava mais vermelha que as cortinas de veludo que cobriam as janelas da casa. Já poderia ser apelidada de “cara-de-tomate”, ou “50 Tons de Vermelho”. Não olhei em volta, me recusando a encarar os olhares de (muito provavelmente) reprovação da elite de Wolverhampton, e fui em direção ao garotinho, que parecia perdido. Por sorte, nenhum caco de vidro o atingiu forte o suficiente para causar um corte, apenas alguns arranhões. O ajudei a ficar de pé e ele estava se contorcendo para tentar ver sua blusa manchada quando uma mulher, que supus ser a mãe dele, apareceu.
- O que aconteceu, Leo? - Ela perguntou, parecendo preocupada.
- Eu estava brincando quando bati nessa moça e me desequilibrei. - Ele apontou pra mim, e a mulher me olhou. Não notei nenhum desdém por parte dela, e aquilo me fez relaxar um pouco. - Desculpe, moça. Não vi você na minha frente.
Meu. Deus.
Que gracinha.
Conti minha vontade de apertá-lo e mordê-lo até ele explodir e apenas sorri, respondendo:
- Que isso, não foi nada. Eu que deveria pedir desculpas por causar essa cena toda. - Cocei meu braço, como sempre fazia quando estava embaraçada, e senti um aperto firme no meu ombro. Virei para trás, encontrando o Sr. .
- Não peça desculpas, Srta. . Tenho certeza que você não merece ser culpada por isso. - Ele sorriu, e apesar de educado, eu ainda o achava um pouco assustador. Me lembrava aquele tal Snow de Jogos Vorazes.
- Vamos, Leo. Temos que te achar roupas novas e ter certeza que não se machucou de verdade. - A mãe do garotinho se pronunciou novamente, dando a mão para que o filho segurasse. - Sinto muito, querida. E não se preocupe, a culpa não foi sua. - Ela sorriu docemente e fez uma reverência ao prefeito antes de se retirar.
- Vou pedir a alguns empregados para que arrumem isso. - Sr. avisou. - Podem voltar a festejar, queridos convidados. Sinto pelo incoveniente.
Trocamos mais algumas palavras antes de eu sair praticamente correndo para longe dali. Finalmente fui em direção a , e , e vi que eles se acabavam de rir. Fiz uma cara ofendida e dei um tapa no ombro de .
- Não riam de mim!
Eles só gargalharam mais ainda.
- Acho que essa foi a pior situação da minha vida. E olha que eu já passei por muitas situações horríveis. - Olhei para meu namorado, tentando lembrá-lo do nosso primeiro beijo, alguns meses atrás. - Aliás, motorista particular, me leve pra casa. Antes que eu quebre mais alguma coisa. - Olhei pra , sendo o mais sarcástica que podia.
E eles novamente morreram de rir da minha cara.
Mereço.
-x-x-x-
- Aqui estamos. - diz, assim que estaciona o carro na frente do meu edifício. Olho pra ele, que esta sorrindo, e sorrio de volta. Estou abrindo a porta para sair quando vejo as horas no relógio do painel.
- Nossa! Já é tão tarde? Achei que fosse mais cedo. - Exclamo um pouco espantada, e vejo que segue meu olhar, também percebendo que já passou da meia noite. - , quer dormir aqui? Sua república é um pouco longe, pode ser perigoso voltar a essa hora.
- Tem certeza? - Ele pergunta, e antes de eu responder, parece perceber algo, e continua. - Quer saber? Você tem razão. Vamos entrar.
Ele desliga o carro e sai, e logo eu faço o mesmo. Passamos pelo porteiro, que nos deseja uma boa noite, e entramos no hall, logo pegando o elevador e apertando o botão com o número 18. No tempo da pequena viagem, tento achar meu molho de chaves naquela bolsa minúscula. Quando finalmente encontro, já chegamos ao meu andar. Saímos do cubículo, paramos em frente à porta do meu apartamento e eu a destranquei. A casa estava toda escura, e só então eu me lembrei que ficaria na casa do prefeito.
Isso significava que eu e estávamos sozinhos.
- Quer alguma coisa? - Perguntei, e ele negou rapidamente com a cabeça. Foi em direção ao banheiro e eu soltei a respiração que nem lembrava de estar prendendo.
Fui para a cozinha e me servi um copo d’água, bebendo mais dois em seguida. O pensamento de estar na mesma casa que , só eu e ele, por uma noite inteira, me deixava nervosa. E eu não conseguia pensar em um motivo para isso.
- Ei. - O dito cujo surgiu no balcão que separava a cozinha da sala, e eu tomei um susto. - Nossa, tava pensando na morte da bezerra? - Ele riu.
- Algo do tipo.
Sim, eu estava pensando na morte da bezerra.
A bezerra, no caso, sendo eu.
Causa da morte: hiperventilação.
- Bom, eu vou dormir no seu quarto, certo? - Ele perguntou, e eu quase cuspi a água que estava bebendo (sim, eu já estava no quarto copo). - Nossa, calma!
- Por que você dormiria no meu quarto? - Perguntei, e minha voz devia estar umas duas oitavas mais alta.
- Ué, porque eu sou seu namorado.
- Meu namorado falso, . Não se esqueça disso. - O olhei como se dissesse uma coisa óbvia. O que, na verdade, eu estava fazendo.
- Aham, vai nessa. - Ele piscou e eu quis quebrar seu pescoço. - Não sei, vai que seus pais aparecem aqui do nada no meio da noite ou amanhã de manhã.
- Como eles vão entrar, ?
- E eu lá sei? Coisas de pais, ué.
- Eles sequer têm a chave.
- Isso não os impede de subir até aqui. E então pode já ter chego e abre a porta pra eles.
- O porteiro tem que interfonar pra avisar que eles estão aqui!
- Mas… - Ele ia continuar dando desculpas idiotas, mas eu o bati levemente.
- Chega, . Já entendi, você quer dormir comigo. Vamos logo antes que eu mude de ideia.
Ele me olhou confuso, e então sorriu empolgado. Segurei uma risada e rolei os olhos, bufando e indo em direção ao meu quarto. me seguiu e logo eu estava no banheiro, colocando uma flanela qualquer depois de escovar os dentes, e ele estava no quarto. Tive que ir ao quarto de para retirar a maquiagem com um dos produtos dela e, quando voltei, estava na cama, deitado, olhando para o teto.
Detalhe: Sem camisa.
E que delícia de corpo.
- Que é isso? Tá tentando me seduzir? - Perguntei, e ele olhou pra mim rindo.
- Talvez.
- Bom, não está dando certo. - Menti e me sentei na cama de casal, ao lado dele. - Depois de mais de uma década de amizade, você é que nem um primo feio pra mim. Primos bonitos, todo mundo pega. Mas primo feio é, tipo, a aberração da família.
soltou uma gargalhada, que eu acompanhei enquanto me ajeitava deitada ao seu lado. Ele se deitou lateralmente, me encarando, enquanto eu continuei olhando para o teto.
- Foi uma noite divertida.
- Foi mesmo.
Ficamos em silêncio por mais alguns segundos e então eu apaguei a luz com o interruptor que se encontrava estrategicamente ao lado da cabeceira da cama. Me deitei na mesma posição que , o encarando de volta. Na verdade, eu nem o enxergava, mas eu sabia que ele estava ali, então dava na mesma.
- Boa noite, . - Ele disse, e eu percebi que ele parecia mais próximo. Colocou uma mão em minha cintura e me puxou pra perto dele.
- Boa noite, . - Respondi, e ele me abraçou forte.
Eu nunca tinha dormido abraçada com um cara. Como já falei, a única vez em que fiz sexo, eu estava em uma das poucas festas a qual eu compareci na minha adolescência, e estava bêbada. Sequer lembro direito como eu e o cara chegamos ao ponto de transar, mas lembro que foi no banheiro, com uma camisinha que estava demasiadamente desproporcional ao membro do cara - e isso não quer dizer que o piu-piu dele era grande. Na verdade, a camisinha que era. Enfim, eu não me arrependo porque devo assumir que não foi ruim, apesar de ter sido minha primeira vez e toda aquela frescura. Mas, obviamente, não deu pra gente dormir abraçadinho depois.
Toda essa asneira pra explicar que eu estava nervosa por estar tão perto de .
sem camisa.
Enfiei minha cabeça em um espaço entre seu ombro e pescoço, e senti ele beijando meus cabelos. Fiquei com vontade de olhar pra ele, mas continuei do jeito que estava. Sua respiração estava calma, mas eu podia ouvir que seu coração estava descompassado.
também estava nervoso por estar tão perto de mim, e isso me trazia um estranho prazer.
Atendi à minha vontade e levantei a cabeça, o encontrando de olhos fechados. Me inclinei pra cima e selei nossos lábios, rapidamente levando minhas mãos ao seu rosto. Pude perceber que ele se surpreendeu, mas correspondeu ao meu beijo. E eu não digo meu selinho, porque foi um beijo de verdade.
Eu e nos beijamos.
Tipo, um beijo mesmo.
E, por mais que eu achasse que seria o contrário, não foi nem um pouco estranho. Foi… Diferente e interessante. Foi bom.
Beijar meu melhor amigo foi bom. Muito bom.
Capítulo onze
Achei estranho que a porta da casa estivesse aberta, mas não questionei e entrei. A sala estava vazia e nenhuma voz vinha da cozinha. Parecia não ter ninguém na casa, e eu me perguntei se mamãe e George lembravam que eu apareceria por lá, já que era meu aniversário.
Resolvi não chamar ninguém e apenas os procurei. Ninguém na sala, ninguém na cozinha. Já estava enchendo meu pulmão de ar pra gritar os nomes deles quando ouvi uma voz vinda do corredor.
Duh, mas é claro.
O escritório.
Me aproximei da porta ao lado da escada e estava com a mão na maçaneta quando resolvi parar para ouvir o que eles falavam.
Podem me chamar de enxerida, se quiserem.
- Não sei, não, Agatha. Achei isso muito repentino.
- Mas eu tenho certeza que não é mentira. Por que ela mentiria sobre isso?
- Ué, ela ficou assustada com a ideia. Inventou na emoção do momento.
- Ah, George, não sei. Ela parece bem com .
Eita porra, é disso que eles tão falando?
- Não duvido disso, eles são melhores amigos desde sempre. Mas duvido desse namoro.
- George, eu conheço minha filha. Ela nunca inventaria algo do tipo só pra se safar de algo. Ela enfrenta os problemas dela, não foge deles. E também tenho certeza que ela nunca fingiria estar apaixonada se não estivesse.
Ih, mãe, então tu não me conhece tão bem assim. Sinto lhe informar.
Devo dizer que me senti mal por aquilo. Minha mãe tinha ficado, de alguma forma, orgulhosa pelo meu namoro com . E ele não passava de uma mentira.
Apesar de termos nos beijado.
Porque mal nos falamos depois do beijo. ficou estranho. Eu não ligava, não mesmo. Se continuaríamos apenas amigos ou se viraríamos namorados de verdade, pra mim não fedia nem cheirava. Mas, quando acordei no dia seguinte, ele não estava mais lá. E não foi me buscar na faculdade nenhum dos dias seguintes. E não me ligou, não me mandou mensagem. Não deu sinal de vida. E eu resolvi deixar como estava e dar um tempo pra ele pensar.
Me afastei do corredor e da porta do escritório, me sentindo um pouco culpada. Fui para a cozinha e me sentei no balcão. Busquei meu celular de dentro da bolsa e fiquei o encarando. Tudo bem não ter ligado antes. Mas era meu aniversário, e estava sumido.
Era normal eu ficar chateada com isso.
Mas talvez eu estivesse de TPM, porque a falta de contato com estava me dando vontade de chorar.
Chorar muito.
-x-x-x-
- ! Desde quando está aqui, querida? - Me assustei quando minha mãe entrou na cozinha. Eu já estava ali há uns bons minutos.
não ligara.
Não mandara mensagem
Nada.
- Não faz muito tempo. Não achei vocês, então decidi ficar aqui esperando. - Respondi, e me levantei do balcão.
Mamãe e George vieram em minha direção, me abraçaram e me encheram de beijinhos e carinhos e palavras de amor e desejos de felicidade. Típico aniversário.
- Abby voltou pra Londres. - Meu padrasto disse.
DEUS EXISTE!
- Sério? Que pena. - Respondi com o máximo de sarcasmo que podia, e ele riu enquanto Agatha apenas revirava os olhos.
- Quanto amor. - Ela se pronunciou. - Mas ela deixou um presentinho. - Tirou um pequeno embrulho do bolso do avental.
- Tem certeza que não é uma bomba? - Perguntei e, dessa vez, os dois riram.
Abri a embalagem e achei um colar, parecia de prata. O pingente era em formato de coração, daqueles que abrem. Custou um pouco pra que eu conseguisse abrir, mas finalmente o fiz. Dentro, em um dos lados, tinha uma foto de família. Eu, ela, mamãe e George; um ano depois deles se casarem. Tínhamos uns 16 anos, acho. Do outro lado, um papelzinho escrito “Ur a lil bitch (você é uma putinha)” em letra de mão.
Soltei uma gargalhada, e os dois adultos, curiosos, enfiaram a cara pra tentar ver o pingente. George riu comigo, e mamãe soltou um “Credo!” antes de também dar uma risadinha.
Até que a desgraçada tinha um bom senso de humor.
E eu to falando da Abby, pra deixar claro.
- Bom, isso foi divertido. - Meu padrasto disse, limpando as lágrimas que escorriam dos cantos dos olhos. - Mas eu tenho que trabalhar. Vai ficar aqui o dia inteiro, querida?
- Vou sim.
- Então te vejo de noite, tudo bem?
- Aham. Espero você antes de ir pra faculdade. Bom trabalho, G. - O abracei com força, e ele retribuiu.
Minha mãe disse que iria ao seu quarto rapidinho, e enquanto isso, eu fui para a sala. Sentei no sofá e busquei o controle remoto com os olhos, mas desisti de assistir TV quando vi que o infeliz estava no outro sofá.
Preguiça mata, viu?
- Bom, como estão as novidades? - Mamãe perguntou assim que chegou na sala, se sentando ao meu lado.
- Ah, tudo normal. Tobby ficou de bom humor esses dias e aumentou o salário de todo mundo. Acho que ele ganhou na loteria, não sei. - Minha velha riu.
- E os amigos? E ?
Engoli em seco.
- Ah, a mesma coisa de sempre… Sabe como é.
- Você ainda é socialmente desajeitada, ? - Perguntou, um pouco decepcionada.
Sinceramente, não sei por que minha mãe tem esse desejo absurdo de que eu seja popular e tenha vários amigos e sei lá o que mais. Acho que, de vez em quando, o lado burguesa dela fala mais alto.
- Felizmente, pra mim; infelizmente, pra você.
- Bom, pelo menos está namorando.
Ai, mamãe.
Você é uma fofura de tão ingênua.
- Com certeza. Eu e estamos às mil maravilhas.
- Tenho certeza disso. - Ela piscou e sorriu, animada. - Mas talvez você deva ficar um pouco mais reconhecida. Talvez deva trabalhar em mais alguma coisa, ou fazer algum tipo de caridade… - Colocou uma das mãos no queixo e fez cara de pensadora. Me segurei pra não rir dela.
- Posso pensar na ideia de dar aulas particulares pra galerinha da escola. - Sugeri apenas pra que Agatha me deixasse um pouco em paz.
Eu amo muito minha mãe, mas fala sério! Às vezes a velha é insuportável.
- Ótima ideia, ! Fale com um professor seu.
- Pode deixar. - Menti, sorrindo falso.
-x-x-x-
A ideia ficou presa na minha cabeça. Não era tão ruim, afinal. Eu gostava de explicar, e aquilo poderia me render uma graninha extra. Por isso, depois que fomos dispensados da última aula do dia, eu continuei na sala, esperando meu professor favorito terminar de arrumar suas coisas. Quando ele finalmente o fez, praticamente corri até ele.
- Professor Henning! - Chamei, quando ele estava quase na porta. Parabéns, , vai sentar no fundo da sala, mesmo.
- Srta. . No que posso ajudar?
- Sabe se tem alguma escola ou algum lugar que oferece estágio? Estava pensando em descolar uma graninha extra. - Respondi, e ele me olhou um pouco estranho antes de soltar um risinho.
- Conheço uma escola perto de Albrighton que está procurando alguns turores particulares. - Murmurou pensativo, e eu soltei um grunhido um pouco baixo pelo fato de Albrighton não ser exatamente próximo de casa. - É a Codsall, não sei se você conhece.
- Conheço, sim! Vou entrar em contato com eles. Muitíssimo obrigada, Professor Henning! - Ele sorriu pra mim e eu corri pra fora da sala. Já estava tarde, e eu ainda tinha que ir pra casa, o que demoraria um pouco.
Já do lado de fora da universidade, andando em direção a um ponto de ônibus próximo, senti o celular vibrar na bolsa. Estava um pouco frio, então eu fiquei com preguiça de tirar as mãos do bolso do moletom só pra pegar o aparelho. Mas ele vibrou novamente, e mais duas vezes logo após. Soltei um bufo, me sentando no banquinho do ponto e buscando o telefone infeliz. Quando o achei, vi na tela que tinha quatro novas mensagens.
“sinto muito”
“muito mesmo”
“porra, sinto muito pra caralho”
Entendi o que queria dizer com aquilo. E me deixou feliz saber que ele estava triste (oi?). Mas o que me deixou realmente animada e quase me fez saltitar pela rua cantando “Singing In The Rain” (sendo que nem estava chovendo) foi a quarta mensagem. Era algo que costumávamos dizer ainda quando éramos pequenos, e eu não ouvia aquilo há mais de uma década.
“feliz aniversário, emy. eu amo você bastantão e você é, tipo, a melhor pessoa da face do universo inteiro”
-x-x-x-
A quietude de bibliotecas sempre foi algo que me deixava um pouco nervosa. Eu odiava lugares quietos demais. Por isso, mesmo que eu esteja estudando, coloco uma música pra tocar - nem que seja bem baixinho. Mas o silêncio me incomoda.
Eu esperava meu primeiro aluno. Ele estava com problemas em entender o básico de vegetais, e apesar de não ser minha matéria favorita, eu ajudaria a pobre criatura. Eu já sabia que era um garoto, e que estava no último ano do colegial, mas só isso. Nem seu nome eu sabia.
O professor de biologia do colégio havia me dito que marcara com o garoto às duas da tarde. Já eram quase três e meia e o infeliz ainda não tinha chego. Atrasos eram outra coisa que me irritavam.
Estava levantando para ir pegar um livro para me distrair quando vi uma pilha deles se posicionando na mesa. Tomei um sustinho, e quando levantei os olhos, dei de cara com um garoto que eu poderia considerar “aparenta ter muito mais do que sua idade”. E com um detalhe a mais: ele era lindo.
É nesses momentos que eu fico agradecida por ninguém poder ler meus pensamentos. Porque, se alguém conseguisse, eu provavelmente teria sido presa por pedofilia.
A não ser que o garoto fosse maior de idade.
Aí é outro caso. Mais interessante, na verdade.
Enfim.
- Você é a ? - Ele perguntou, sorrindo de lado, e eu levantei da cadeira e estiquei minha mão para que ele apertasse.
- Sou, sim. E você é o…?
- Cameron. Muito prazer. - Se apresentou, e eu quis morrer com a cara linda dele.
Por que só aparece homem bonito na minha vida?
- Bom, Cameron, ouvi dizer que você está com dificuldade em vegetais, é isso? - Perguntei, pra ter certeza, e ele assentiu com a cabeça enquanto nos sentávamos, ele do meu lado. Pegou um dos livros e abriu em uma página qualquer, logo depois pegando um caderno e um estojo da mochila (que eu não tinha visto). - Comecemos pelas classes. A briófita…
-x-x-x-
Meu primeiro dia como tutora foi interessante. Cameron era bem sincero, e me falava quando continuava com alguma dúvida - o que dizia se eu havia explicado de um bom modo ou não. De vez em quando dávamos um tempo em plantas e falávamos sobre nós mesmos. Ele era um garoto… Interessante.
Estava indo para a república de . Não falava com ele desde o meu aniversário, alguns dias antes. Liguei pra ele quando cheguei em casa e conversamos um pouco, mas sem nunca tocarmos no assunto do beijo. Inclusive, acho que ainda havia uma tensão entre nós pela falta de comunicação.
Mas, no fundo, aquilo não me importava nem um pouco.
Por isso, estava indo para a república dele para lhe fazer uma surpresa.
Quando cheguei lá, uma garota que me parecia familiar abriu a porta. Me olhou com certa admiração, e eu achei estranho. Falou que eu podia entrar, e que estava no seu quarto. Acenei pra um garoto que fazia algumas aulas comigo antes de subir correndo.
A porta de estava cheia de adesivos. Eu não lembrava de tê-los visto antes, então imaginei que fossem novos. Um deles dizia “If you want me, sorry. I’m taken!”¹ e eu ri antes de abrir a porta cuidadosamente.
Do lado de dentro, ele estava sentado na cama, de costas pra mim, de frente para um notebook. Estava com um violão na mão e, ao mover um pouco a cabeça, vi que estava com uma página de cifras aberta. Começou a tocar, e eu não consegui identificar a música até que ele começasse a cantar pelo refrão.
- See the flames inside my eyes? It burns so bright I wanna feel your love, no. Easy, baby, maybe I'm a liar. But for tonight I wanna fall in love. And put your faith in my stomach…² - Ele cantou I’m A Mess, do Ed Sheeran, e eu nem sabia que sabia cantar.
Dei mais passos para dentro do quarto, e percebi que ele me viu pelo reflexo na tela do notebook, porque parou de tocar na hora, virando-se para me encarar.
- Quer se apaixonar por quem, ? - Perguntei, provocando, apesar de ter um pouco de medo da resposta.
- Só porque estou cantando essa música não quer dizer que… Eu quero dizer o que ela diz. - Ele se enrolou todo, e eu ri antes de parar na frente da cama. Ele se ajoelhou e me abraçou com força pela cintura. - Senti saudades. Sinto muito por não ter ido te ver no seu aniversário.
- Tudo bem. - Sorri amarelo.
Não, não estava tudo bem. nunca deixara de me ver em sequer um aniversário meu, e por algum motivo ele ter feito isso logo naquele ano me deixou mais triste do que deveria.
- Bom, vamos colocar o papo em dia. Você disse que ia começar a dar aulas particulares para colegiais, não foi? Já começou?
- Sim! - Respondi, animada. - Comecei hoje. Estou ajudando esse garoto do último ano que tem problema com vegetais.
- Hm, ele é do último ano? - Perguntou, se remexendo na cama. Parecia desconfortável. Acenei que sim com a cabeça. - É maior de idade?
Oxe.
- Não sei, por quê?
- Curiosidade. - Respondeu, dando de ombros.
Ficamos em silêncio por mais alguns minutos. pegou o notebook e colocou em seu colo, fechando a aba com a página de cifras e começando a fuçar o facebook. Desviei o olhar - não sou dessas que invade a privacidade dos outros - e passei a observar todo o quarto. Percebi que, em cima da escrivaninha, tinha um porta-retratos e, nele, uma foto nossa, de quando tínhamos por volta de uns treze anos, por aí.. Não contive o sorriso.
- Por que veio aqui, mesmo? - A voz dele me assustou um pouco e eu voltei a olhá-lo. - Não que eu esteja te expulsando, é só pra saber, mesmo. Não avisou, nem nada. - Justificou.
- Sei lá, queria te ver. Não te via desde… Aquele outro dia. - Tentei não mencionar em detalhes o dia em que ele dormiu em casa, porque aquele assunto me deixava desconfortável. E a ele também, já que, novamente, ele se remexeu e olhou pra outro canto do quarto.
- Bom, fico feliz que veio. - Falou depois de mais alguns segundos em silêncio, voltando a olhar pra mim e sorrindo. Sorri de volta. - Mas, então, sobre o seu aluno…
Me perguntei por que ele ficara tão interessado no meu aluno, mas não falei nada em voz alta.
- Bom, ele é bem educado, simpático, sincero. Quando não entendia alguma coisa, me dizia e isso me ajudava a explicar de um jeito melhor. - Respondi, sorrindo, e também sorriu. Notei que não era irônico, ele estava realmente feliz porque eu gostei da experiência de ensinar um adolescente. - E devo admitir que ele era bem bonitinho. - Soltei uma risadinha, e fechou a cara.
Ri mais alto e ele corou, virando o rosto pra outro lado. com ciúmes. Tá aí algo que eu nunca pensei que veria na vida.
- Ciuminhos da namorada, ? - Perguntei, e ele me deu um peteleco no braço.
- Me recuso a falar algo. - Respondeu, dando língua como uma criança de dez anos, e eu ri mais ainda.
Apesar de ter rido, aquilo ficou meio que impregnado na minha cabeça. Eu não estava brincando quando disse que ver com ciúmes não era normal. Quero dizer, acho que isso nunca tinha acontecido. E com toda essa coisa de beijo e sei lá o que mais, é minha obrigação dizer que eu estava confusa.
Se é que já não estava óbvio.
era meu amigo há mais de uma década, e nunca havia passado pela minha cabeça ter algo além da amizade com ele. Eu nunca sequer havia me sentido atraída por ele na vida. Ele era exatamente como o primo feio (porém legal) que ninguém pega. Aliás, mais que isso. Ele era um irmão. E não um meio irmão, tipo a Abby - que, se fosse um homem, seria pegável (mas ignorem isso). Um irmão mesmo. De sangue. De alma. Irmão, sabe?
E eu não sei se gosto de incesto.
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¹ “Se você me quer, desculpe. Tenho dona!”
² “Estás vendo as chamas dentro dos meus olhos? Estão queimando tanto; eu quero sentir seu amor. Calma, baby, talvez eu seja um mentiroso. Mas, por hoje, eu só quero me apaixonar. Então ponha sua fé em mim…”
Capítulo doze
- É o demônio? - A voz do outro lado da linha perguntou, mas eu estava nervosa demais pra responder.
- Quase lá. - Respondi.
- Sinceramente, eu acho que acertei em cheio. - reclamou, e sua voz era de quem acabara de acordar. - , qual é o seu problema? Você sabe que horas são?
- Uhm… Onze e meia da manhã? - Arrisquei. Afinal, era o que estava escrito no relógio digital do aparelho de TV a cabo.
- Em Wolverhampton! - Praticamente gritou. - Mas sabe que horas são em Sydney? DUAS E MEIA DA MANHÃ!
estava de férias do Tobby’s, por isso havia ido viajar, junto com . Escolheu Sydney, na Austrália, com a mera desculpa de que queria saber se a rua P. Sherman, 42, Wallaby Way existia. Eu disse a ela que era mais fácil procurar no google, mas ela disse que eu só estava ranzinza porque não era uma princesa da Disney e precisava de sexo.
Vai saber.
- Sinto muito, . Mas eu preciso… Eu preciso conversar.
- Deus que me perdoe, eu vou matar alguém. - Ela murmurou, e a linha ficou em silêncio por alguns segundos, antes de voltar. - Ok, pelo seu tom de voz desesperado, você está em crise.
- Sim! - Alguém que me compreende. Obrigada, , eu te amo. - Eu to… Eu não sei, eu estou muito confusa no momento!
- E seria por causa de ?
O QUE?
Não, claro que não. Por que eu estaria confusa sobre o ? Não é como se eu tivesse o beijado, e depois ele tivesse ficado com ciúmes de um garoto anos mais novo que eu.
E não é como se ele tivesse me ligado no dia dos namorados pra dizer que o passaríamos juntos. Como um casal. De namorados.
Não é como se eu estivesse nervosa.
- ? Bom, pode ser… OU! Ou, eu posso estar falando sobre o aquecimento global e o derretimento acelerado das calotas de gelo. Quero dizer, e os ursos polares? Sabe? Ursos polares são pessoas também. Eles têm direitos que merecem ser respeitados!
, você já merece o prêmio Tapa Na Cara do Mais Otário do ano.
soltou uma gargalhada que deve ter acordado - que provavelmente dormia ao seu lado - e o hotel inteiro.
- Tudo bem, entendo. Mas por que você me ligou em plena matina, mesmo?
- Porque eu estou confusa, ! Não sei o que fazer! - Reclamei, e senti meu peito arder.
- Em relação aos ursos polares? - Ela perguntou, e eu podia sentir o sorriso na voz dela.
- O que? Não, claro que não; sobre o ! Droga, , você está me acompanhando? - Gritei; eu estava falando sério e gracinhas não eram bem-vindas no momento. Ela riu novamente antes de continuar:
- Eu realmente não sei o que você quer que eu diga, . - Ela suspirou, e eu percebi pelos sons de fundo que ela estava abrindo e fechando uma porta, muito provavelmente saindo do quarto para não acordar . - Você já disse a ele como está se sentindo?
- Claro que sim! Ele foi a primeira pessoa pra quem eu contei. - Ri sarcasticamente. - Afinal, não é como se ele fosse meu melhor amigo e esse tipo de conversa fosse deixar um clima estranho entre nós.
- , vocês estão em um relacionamento de mentira. Porque você propôs. Desculpa aí, querida, mas já tem um clima estranho entre vocês, e a culpa é única e exclusivamente sua.
- Que boa amiga você é. - Resmunguei, e ela riu. - Ugh, , me ajuda! - Praticamente implorei. Só faltava eu me ajoelhar; apesar de saber que ela não veria.
- , está tarde. Por que você não me deixa dormir e se preocupa com isso em outro momento? - Ela pediu, e eu podia sentir que ela estava quase dormindo novamente.
- Porque ele me ligou há meia hora dizendo que ia me pegar em casa pra gente ir passear e ter um dia dos namorados como um verdadeiro casal de namorados! - Surtei, e novamente a linha ficou em silêncio. Considerei a ideia de ter realmente caído no sono, mas então ela me respondeu.
- Bom, nesse caso… Feliz dia dos namorados! E boa noite. - Disse, antes de desligar na minha cara.
Cretina.
Decidi não voltar a ligar pra ela porque, realmente, ninguém merece ser importunado às duas da manhã. Mas eu estava tão aflita que sequer havia pensado naquilo e, quando vi, já estava discando o número do celular dela. Quando notei o que estava fazendo, desisti na hora. Joguei o telefone na cama e passei as mãos pelos cabelos. Durante toda a conversa, eu estava andando pelo quarto.
tinha me ligado mais de uma hora antes e eu ainda não estava pronta. Estava só de calcinha e sutiã.
Peguei uma calça de veludo e uma blusa estampada qualquer e bem quentinha, sequer notando se elas combinavam ou não - estava nervosa demais pra checar esse tipo de coisa. Também peguei um suéter e uma jaqueta, no caso de esfriar muito, e meias bem felpudas. Coloquei um par de botas que eu tinha desde os, não sei, quinze anos. Vesti toda a roupa, logo escovando os dentes e prendendo o cabelo em uma trança bem largada, apenas porque não queria ele caindo na minha cara.
Fui para a sala, colocando o telefone de volta na base e deixando minha bolsa no sofá antes de ir pra cozinha. Chequei se tudo estava em ordem e tomei um copo d’água. Voltei pra sala e sentei no sofá. Peguei a bolsa e vi se estava tudo dentro dela. Coloquei ela de lado. Passei os olhos pelo cômodo. Tudo certo.
Meu Deus, por que eu estava assim tão ansiosa?
O interfone tocou e eu me levantei em um pulo, já pegando a bolsa novamente. Atendi e disse ao porteiro que avisasse que eu já estava descendo.
Saí do apartamento, tranquei a porta e estava agitada demais pra descer de elevador. Corri pelas escadas como Usain Bolt corre em uma pista de 200 metros rasos. Quando cheguei no térreo, me surpreendi ao ver que não estava sequer suando.
O que uma boa dose de adrenalina não faz.
estava, como sempre, na frente de seu carro, olhando para o outro lado da rua. Cumprimentei o porteiro e isso chamou a atenção de , que olhou pra mim já com um sorriso no rosto. Sorri de volta.
Nossa, eu faço muito isso.
- Não tinha roupa melhor, não? - Perguntou, debochado. - A gente tá saindo num encontro de dia dos namorados e você vai com uma blusa de caveirinhas?
Olhei pra baixo e vi que, realmente, a estampa era de caveiras. Com sangue saindo da boca.
Hm.
- Não podiam ser, sei lá, uns corações? - Perguntou, me puxando pela cintura e me abraçando rapidamente.
Abriu a porta do carro e eu achei que fosse para que eu entrasse, mas ele tirou um buquê de cima do banco e fechou a porta novamente. Ofereceu as flores pra mim, e eu as peguei admirada. Eram minhas flores favoritas, tulipas, e eu não sei como sabia daquilo. Eu não lembrava de ter compartilhado isso com alguém nunca na vida. Sequer minha mãe sabia.
- Por que não disse que tinha trazido flores? Elas precisam de água! - Soltei um muxoxo, apesar de ainda estar rindo, e ouvi alguém atrás de mim chamando meu nome.
Ao me virar, vi que o porteiro estava com o rosto pra fora da guarita. Ele ofereceu que eu deixasse as flores ali até que voltasse do encontro. Ele tinha um vaso com água lá dentro. Aceitei a proposta e logo estava no carro com ; nosso destino: o clássico West Park.
-x-x-x-
O West Park é um dos maiores e mais populares parques de Wolverhampton. Junto com ele, na liderança, está o East Park.
Até os nomes são parecidos, ó que bonitinho.
Uma das coisas mais legais sobre o West Park é que ele tem vários lagos ornamentais, onde se pode andar de barquinho. E essa foi a primeira coisa que me convenceu a fazer assim que chegamos ao parque, apesar do frio descomunal.
- A gente parece aqueles casais de filmes clássicos. - Comentou, rindo.
- Só faltam roupas estravagantes e um guarda-chuva pra ser usado como guarda-sol. - Completei, sorrindo de lado. Ele gargalhou.
- Mas normalmente isso acontece no verão. Hoje tá frio pra caralho!
- Sim, é verdade. To surpresa que não está nevando. Ou que o lago não está congelado. - Respondi, olhando em volta. O parque até estava relativamente vazio, porque todos preferiam ficar em suas casas quentinhas.
- Sabe, esse é o primeiro dia dos namorados que eu passo namorando em um bom tempo. O último foi uns quatro ou cinco anos atrás, com aquela minha namorada do colegial. - Disse, sorrindo. Me lembrei da tal namorada. Ela era gente boa, eu gostava dela. Mas foi pros Estados Unidos assim que terminou o colégio.
Saudades.
- Esse é o primeiro dia dos namorados que eu passo namorando. Ponto. - Respondi, e ele riu.
Não era segredo pra ninguém que eu nunca tiva um namorado. Já era difícil eu ficar com alguém, quanto mais namorar. era meu primeiro namorado, e era falso.
Ótimo começo, .
- Ok, cansei de remar. Chega. - Reclamou, parando o barco numa parte mais rasa do lago.
Arregacei as barras das calças antes de sair, pegando meus tênis - que eu havia tirado antes de entrar no barco - e minha bolsa. Um arrepio passou por todo o meu corpo quando tive que passar rapidamente pela água congelante antes de voltar a terra firme. Sequei meus pés com a jaqueta antes de colocar as meias e as botas. e eu nos dirigimos a uma árvore e sentamos por ali. havia trazido uma cesta cheia de comida, então eu já sabia que faríamos um piquenique. Mas ele bem que podia ter trazido uma toalha, também. Minha jaqueta ficou cheia de grama.
Ficamos no chão, mesmo, e começamos a comelança. havia levado várias comidinhas, e uma coisa ou outra estava em recipientes térmicos. O dia estava sendo divertido. era um cara divertido, era difícil não ter bons tempos ao lado dele.
Estávamos em silêncio, alguns minutos após termos comido quase tudo. estava encostado na árvore, e eu estava encostada nele.
- Ei, . - Me chamou, e eu murmurei um barulho pra que ele soubesse que eu estava escutando. - Olha aqui.
Olhei, e ele já estava me observando. Levantei uma sobrancelha, questionando o que ele queria, e ele sorriu, desviando os olhos para meus lábios. Em seguida, se inclinou, e aconteceu.
Outro beijo.
Não consegui conter um sorriso. Em algum momento dessa narrativa, eu disse que estava desconfortável com a ideia de ter gostando de mim. Na verdade, pouco tempo antes desse encontro de dia dos namorados, eu havia dito que não gostava de “incesto”. Mas eu só estava confusa. Desde o selinho na festa de e , eu não me via mais daquele jeito. Na verdade, até gostava da possibilidade.
- , acho que temos que falar sobre esses beijos… - Cortei o momento, e ele me olhou estranho antes de sorrir novamente.
- Pra que falar se podemos praticar? - Ele perguntou antes de colar nossos lábios novamente, pouco se importando com o que eu tinha a dizer.
E eu esqueci o que tinha a dizer.
Levei minha mão até sua nuca, e ele passou um dos braços pelos meus ombros, o outro indo em direção à minha cintura. Fiz carinho em seu pescoço antes de passar as mãos para seu cabelo, puxando um pouco antes de pressioná-lo contra mim.
Quer saber?
Foda-se.
Eu adoro a possibilidade de gostar de mim.
-x-x-x-
tinha corrido atrás de um vendedor de cachorro-quente e me deixou ali na árvore. O dia já estava quase chegando ao seu fim, e o Sol estava quase indo embora e dando lugar à noite. Mas eu não queria sair dali.
Devo dizer que, para um primeiro encontro e primeiro dia dos namorados, foi tudo muito bom. sempre foi muito romântico, eu observava isso com sua namorada anterior - a única que eu conheci, e que foi embora.
Saudades.
Apesar de ter certeza que ele era um cachorro quando solteiro, - como pude bem observar quando o peguei de agarra-agarra com Abby - sabia que ele levava um namoro a sério. E, mesmo que nosso namoro sequer fosse de verdade, passara a tratar como se fosse depois do incidente com minha meia-irmã.
Talvez estivesse começando a ser.
- Ora, ora. Veja só quem está aqui. - Ouvi uma voz desconhecida, e levantei os olhos do meu celular. Uma garota que eu reconheci estava parada na minha frente, as mãos na cintura e um sorriso cínico nos lábios. Não fazia ideia de quem ela era, mas me lembrava de tê-la visto na faculdade em um dia que o foi me buscar. Ela estava me encarando como se quisesse que eu morresse...
Devia ser alguma tiete.
- Perdão, eu conheço você?
- Não. Mas eu te conheço.
Que frase clichê, colega. Tá treinando pra ser vilã em filme adolescente de comédia romântica?
- Ah. Ok, então. E você seria…? - Perguntei, já um pouco impaciente.
- Meu nome é Ellinor, fofa.
Ah.
Explicado.
- Prazer, Ellinor. falou de você. - Falei, tentando ser simpática. Briga por causa de macho é para otárias.
- Muito bem, com certeza. - Sorriu convencida.
Com certeza.
Sorri de volta, assentindo com a cabeça, apesar de ser mentira. Mas a coitada não precisa saber disso.
- E posso te ajudar com alguma coisa, Ellinor?
- Bom, vi que você veio com . Queria te dizer umas coisas há algum tempinho e aproveitei que ele não está aqui. - Ela disse, trocando o peso de perna e cruzando os braços. Mas o sorríso cínico ainda estava ali.
- Pode falar.
- Acho que é maldade te esconder esse tipo de coisa. Sei que você e são amigos há mais de década, e que você deve ter uma visão maravilhosa dele. Afinal, ele é um bom garoto. - Ela começou, e o sorriso saiu do rosto.
Ainda bem. Já estava começando a ficar meio insuportável.
Não falei nada, apenas fiz um movimento com a cabeça pra que ela soubesse que poderia continuar.
- Olha, , não quero parecer má ou alguma coisa assim. Só quero ser honesta. Não sei o que aconteceu pra que vocês começassem a namorar assim, do nada, mas devo admitir que imagino o que tenha por trás disso. - Ela fez uma breve pausa. Parecia sincera. Talvez só fosse uma boa atriz. - sempre falou muito bem de você. Porque você é melhor amiga dele, pode ter certeza. Mas… De vez em quando, ele deixava escapar uma ou outra coisa.
Congelei. Tinha certeza que ele não contaria nenhum segredo meu pra ele - até porque eu quase não contava segredos pra . Eu era um livro aberto, e o que eu contava pra ele, eu contaria pra qualquer um. O que eu não contava nem pra ele, era só meu.
Mas o que ela disse era pior que qualquer segredo que eu poderia ter.
- Ele admitiu que não gostava do seu… Status social, digamos. Nunca achei que ele fosse fútil ao ponto de se importar com isso, mas ele aparentemente se importa. - Rolou os olhos. - Disse que tem vergonha de ser seu amigo, às vezes, porque você é tão excluida… - Ela inspirou profundamente, como se estivesse se preparando pra dizer o que viria a seguir. - Disse que você é tão excluída que chega a dar dó.
Foi como um tapa na cara.
Eu aceito absolutamente tudo, menos pena. Saber que alguém sente dó de mim me dá repulsa. Porque eu não mereço dó. Minha vida é incrível, eu sou feliz e nada me incomoda. E sabe disso. E ele sabe que eu odeio todo esse negócio de status quo e sei lá o que mais.
Porém, pensando bem, vi que o que ela falava tinha fundamento. Toda vez que eu mencionava os olhares estranhos que recebíamos quando saíamos juntos e dizia que eu odiava que me olhassem como se eu fosse uma aberração, coçava a nuca daquele jeito que deixava óbvio que ele estava desconfortável.
Ele concordava.
me achava uma aberração.
- Ellinor? O que está fazendo aqui? - A voz do dito cujo me cortou dos meus pensamentos, e eu olhei pra ele abismada.
- Vi sua namorada aqui e achei que talvez fosse bom te expor um pouquinho. - Respondeu, o sorriso cínico de volta. - Como é, mesmo? Freak show¹?
O jeito como ela disse aquilo só me deixou mais desconfortável. Ela dizia como se não coubesse na boca dela. Como se não tivesse sido ela quem tivesse falado.
Como se estivesse lembrando de uma coisa que ele dissera.
- É verdade? - Perguntei, desacreditada. Não me surpreenderia se meus olhos estivessem lacrimejando.
- Eu… Eu só disse uma vez. E eu não quis dizer aquilo, , eu juro! Estava fora de mim! - Respondeu, jurando. Implorando. Sua voz estava esganida.
Pela visão periférica, percebi que o sorriso de Ellinor crescera.
Ok, eu estava começando a achar que estava, mesmo, em um filme adolescente de comédia romântica.
“Eu estava fora de mim”? Isso sequer faz sentido!
- Eu não acredito nisso.
Peguei minha bolsa e meu casaco, levantando e andando pra longe deles. Ouvi me chamando, mas eu não conseguiria passar um minuto perto dele sem matá-lo, e a possibilidade de ir para a cadeia não me agradava muito.
Eu não acreditava naquilo.
Ele era meu melhor amigo, poxa. Sabia como eu me sentia em relação a tudo aquilo; como as pessoas me tratavam, me olhavam. Eu odiava tudo aquilo. Eu sabia o que falavam de mim, mas nunca poderia imaginar que, ao invés de condenar o que diziam, falava junto.
Ele não apenas sentia vergonha por mim. Não, se fosse isso talvez nem fosse tão ruim. Ok, , não exagera. Seria tão ruim quanto.
Mas... sentia vergonha de mim. E isso doía mais que três socos no nariz e um chute nas costelas.
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¹- Freak show = Show de aberrações.
Capítulo treze
“Uma vez que é impossível maximizar no mesmo ecossistema usos em conflito, duas soluções possíveis para o dilema surgem naturalmente. Poder-se-á tentar continuamente um compromisso entre a quantidade da produção e a qualidade do espaço vital, ou pode-se planear deliberadamente realizar a compartimentação da paisagem por tal forma que se mantenham, simultaneamente, tipos altamente produtivos e tipos predominantemente de proteção como unidades separadas submetidas a diferentes estratégias de ordenamento.”
Era o que estava escrito nas páginas 429 e 430 do livro “Fundamentos da Ecologia”, de Eugene Odum - um dos meus favoritos. Tinha que revisá-lo para uma prova.
O que eu estava entendendo?
“Blé blé blé, nhan nhan nhan, GHUUUUU!”
Literalmente.
Minha mente não estava ali. Biologia era, de longe, minha menor preocupação naquele momento - por mais que eu estivesse quase no fim do curso, e em provas decisivas. Por mais que eu estivesse prestes a ter que fazer uma tese sobre alguma teoria de algum biólogo aleatório e maluco. Por mais que esse livro fosse enorme e eu tivesse que lê-lo inteiro pela enésima vez. Por mais que quase todos os meus professores fossem insuportáveis, e por mais que eu quisesse parar de frequentar a universidade, porque não aguentava mais.
Mesmo com tudo isso, biologia nem me vinha à cabeça.
vinha mentindo pra mim, me fazendo de tola, por anos. Vai saber quanto tempo ele teve essa opinião sobre a minha pessoa? Vai saber quantas vezes ele já não havia me chamado de aberração para os amigos?
Eu sequer estava com raiva.
Eu estava magoada.
Decepcionada.
E, por mais que eu estivesse tudo isso, eu ainda sentia falta dele.
Flashback on - um dia antes
- Ok, agora venha comigo. - se levantou, esticando a mão para a garota que continuava sentada de baixo da árvore.
- Ir aonde?
- Para de ser precipitada! - Exclamou, sorrindo de canto. - Só vem logo.
aceitou a mão e, com a ajuda do namorado, se levantou. Ela não soltou a mão de quando levantara, e foram andando assim pelo parque. A garota não fazia ideia de onde a estava levando, mas não poderia se importar menos. Aquele dia estava sendo especial, e iria a qualquer lugar que fosse sem sequer questionar.
Chegaram a uma parte um pouco afastada do West Park, e não havia quase ninguém por ali. Apenas um garoto - que reconheceu como sendo do seu curso - lendo um livro em um banco; e uma família brincando. Foi levada por até que pararam em frente a duas árvores. Elas estavam tão próximas que pareciam a mesma; as folhas e galhos se confundindo, os troncos quase como um. Um mísero buraco entre os dois caules as separava, não devia ter mais de um metro e meio de diâmetro.
se identificou com elas.
Era daquele jeito que queria estar com . Tão próximos que praticamente se fundiam.
, ao seu lado, soltou a mão da garota apenas para parar à sua frente, sorrindo pra ela e a abraçando pela cintura. sorriu pra ele antes de abaixar o olhar, passando a contemplar o chão. soltou um riso nasalado antes de apertá-la contra ele, apoiando seu queixo no topo da cabeça da garota. Não poderia estar em situação melhor. Não sabia há quanto tempo aquele sentimento estava se formando dentro dele, mas sabia que o que sentia por não era mais, nem de longe, apenas amizade.
Era melhor.
Ficaram daquele jeito por um tempo, até que criou a coragem para levantar a cabeça. Passaram a se encarar, e se aproximavam mais a cada segundo. Um vento forte bateu, vindo completamente do nada, e soltou um gritinho que fez rir alto. Os cabelos da garota grudaram em seu brilho labial, e ela fez uma cara emburrada - o que apenas fez com que risse mais. Ele levantou seus braços, tirando-os da cintura de , e levando suas mãos até o rosto dela. Ajudou-a a desgrudar os fios da boca, e em seguida se encararam novamente. continuou com uma das mãos no cabelo da garota, parando para apreciá-la. As pessoas podiam dizer o que quisessem, mas era linda. A mão que estava parada no meio dos fios da garota passou a puxar sua cabeça para perto dele; enquanto a outra desceu novamente para a cintura dela. Suas testas se encostaram, e soltou um suspiro alto que fez rir mais uma vez antes de encaixar seus lábios em mais um beijo.
Flashback off
- Ugh, sai da minha cabeça! - Exclamei, batendo na minha testa.
Pelo jeito, esse garoto ainda vai me perseguir por muito tempo.
Meu celular começou a berrar de algum canto do quarto, e eu corri como louca tentando achá-lo. Eu dizia a mim mesma que estava procurando apenas porque poderia ser uma ligação importante, mas no fundo eu sabia que eu só queria confirmar que continuava na insistente tarefa de conseguir contato comigo.
Achei o infeliz aparelho e, ao ver um “ ♥” na tela, bufei e rolei os olhos antes de deslizar o dedo pelo vidrinho, finalizando a chamada. Aproveitei e desliguei o celular, com a finalidade de não ser mais atrapalhada por .
Que merda eu tinha na cabeça quando inventei essa ideia de namoro falso? Meu deus, , você precisa de ajuda profissional. Quero dizer, tudo bem que eu fiquei desesperada e tal, mas eu poderia apenas confessar tudo logo em seguida. Dizer que eu me assustei com a situação.
Mas não.
Eu tinha que apenas aumentar a mentira.
Me joguei na cama e cacei o controle da televisão, o achando embaixo dos travesseiros. Liguei a TV, que estava num canal de filmes qualquer, no meio do comercial. Não vi nas informações qual filme estava passando, então deixei que o comercial acabasse, o que aconteceu pouco menos de um minuto depois.
“Voltamos a apresentar: Esposa de Mentirinha”
- Ah, aí você já tá tirando com a minha cara! - Berrei, desligando o aparelho eletrônico e tacando o controle longe.
Bufei e me joguei novamente, de costas, no colchão macio. Eu tinha, mesmo, que ter continuado com a ideia idiota de fingir um namoro. Não poderia apenas aceitar ficar com Edmund e…
Ficar com Edmund! Como não pensei nisso antes?
-x-x-x-
Eram duas da tarde em um domingo. Mamãe com certeza não estava em casa, pois nesse dia, nessa hora, ela tinha encontro com as amigas delas pra beber chá e falar sobre livros ou alguma coisa típica da comunidade feminina da burguesia. George estava sozinho em casa. Por isso fui visitá-lo.
- ! Não te esperava por aqui. - Exclamou, surpreso, quando abriu a porta. Forcei um sorriso e ele me deixou entrar.
Fomos até a cozinha e ele me preparou um chá de maracujá - meu favorito. Na verdade, eu adoro a história por trás do meu gosto por chá de maracujá. Eu conheci e comecei a tomá-lo graças a George, inclusive. Quando mamãe começou a namorá-lo, um ano depois da morte do meu pai, eu ainda tinha pesadelos e acordava chorando à noite. Quando ele estava em casa, me preparava uma xícara e eu me acalmava.
George sempre foi bom pra mim - até resolver acabar com a minha vida, claro. Mas isso é detalhe -, por isso eu sei que ele é o certo pra Agatha.
- Posso te ajudar em algo, ? - Ele perguntou, parecendo preocupado.
- Uhm, na verdade… Sim. Mas podemos falar de coisas cotidianas antes? Não quero entrar tão rápido nesse assunto.
Ele aceitou minha proposta e falamos de diversas coisas. Como estava a empresa, como estava a faculdade; como estava a vida sem a minha presença na casa - George disse que estava muito monótona e chata. Como se eu fizesse alguma diferença, afinal, eu sou monótona e chata.
Mas tudo bem.
Tudo estava correndo lindamente, até que meu padrasto chegou à pergunta proibida.
- E como estão você e ?
Ah, George. Por que, George? Por quê?
- Não muito bem; na verdade, vim falar sobre isso contigo.
- Ah, sério? - Fez uma cara surpresa.
Fiquei em silêncio por alguns segundos, tentando formular um jeito de falar o que eu queria. Foi complicado, pois aquela ideia nunca tinha me vindo à mente.
- George, eu… Eu ganharia algo se ficasse com Edmund?
Ele fez uma cara surpresa e, de início, não soube como responder. Sua boca se abria e fechava, mas nenhum som saía de lá. Ele realmente foi pego de surpresa.
Eu também fui, G.
- Uau, , eu não esperava por essa. - Disse em um sussurro. - Não sei, quero dizer… Não tinha isso em mente, mas caso você queira alguma coisa…
George Huston fazendo uma chantagem. Isso sim é algo novo no mundo.
E eu achando que ele era um homem de bem.
Mas, se pararmos para olhar, o começo dessa história - e a situação que nos leva a esse momento - deixam bem claro que, no fundo, ele sempre teve como prioridade seu trabalho.
Porra, G. Me desiludiu.
- Seria… Uma ideia… Interessante. - Falei pausadamente.
Ficamos mais alguns minutos em silêncio. Nenhum dos dois sabia como reagir.
- Mas a situação com está assim tão horrível? - Perguntou sinceramente, e eu baixei a cabeça. - … O que acontece entre vocês dois?
Me levantei, pegando minha bolsa que eu havia deixado largada na mesa, indo em direção à porta da cozinha e quase indo embora sem falar mais nada.
- . - George chamou, autoritário.
- Você sabe como essa história começou. - Falei ainda de costas pra ele. - Sempre soube.
Silêncio.
- Não me faça assumir em voz alta. - Pedi, me virando pra ele, e notei um certo tipo de solidariedade em seus olhos.
- Verdade. Eu sempre soube. Desde que você inventou tudo isso, quase dez meses atrás.
Dez meses.
Eu não fazia ideia de que já haviam se passado dez meses. É mês pra caralho!
- Só… Não conta pra minha mãe. Nada disso. Ela ainda sonha em me ver casada com alguém do sexo masculino. - Quase supliquei. Não queria fazer o sonho da minha velha desmoronar, assim, do nada, apesar de ele ser extremamente fútil.
- Você pretende casar com alguém do sexo feminino, então? - G tentou fazer uma piada, mas tudo que eu menos precisava no momento era humor.
Acenei pra ele, saindo da cozinha e da casa em seguida.
Eu precisava pensar em como terminar um relacionamento.
Capítulo catorze
- ? - A voz dele me fez tremer e por pouco eu não voltei a chorar.
Fazia quase uma semana desde que eu havia ido em casa e conversado com George. Pensei, pensei e pensei mais um pouco e decidi que iria, sim, terminar com e tentar com Edmund. Não tinha colocado nenhuma parte desse plano em ação, pois apenas a ideia de falar com me deixava um pouco enjoada e triste demais para o meu próprio bem.
- ? - Ele perguntou de novo e eu voltei à realidade.
- A gente… A gente precisa conversar.
A linha ficou em silêncio e eu imaginei que ele soubesse do que iria se tratar a conversa.
- Tudo bem. Eu acho.
- Não dá pra continuar isso. - Soltei de uma vez. Segurar estava começando a machucar.
E eu não aguentava mais dor.
- Isso… O que?
- A gente.
Silêncio novamente.
- Pensei que “a gente” não existisse. - Zombou, e eu soube que ele estava bravo.
- E eu, por um momento, pensei que pudesse existir. Mas aparentemente não. - Resmunguei, minha tristeza passando a ser raiva. - E quem você pensa que é pra ficar com raiva? Você que começou isso!
- Eu? - Quase gritou. - Que eu saiba, foi você que bateu na porta da minha república em plenas dez da noite implorando pra que eu fizesse parte de um namoro falso com você!
- Desculpa por te meter nessa, então! - Exclamei, e percebi que iria chorar de novo.
Meu deus, eu devia estar na TPM pra estar tão sentimental. Pensando bem, eu estou de TPM faz um bom tempo. TPM infinita. E eu pensando que não tinha como a desgraçada piorar.
- Não se preocupe, não vou mais te incomodar com nada disso. - Falei, num sussurro.
- , espera… - Ele chamou, a voz voltando ao tom suave de sempre, mas eu ignorei e desliguei o telefone, me jogando no sofá e cobrindo o rosto com os braços.
-x-x-x-
Acho que é bem claro que eu passei a tarde chorando. Quando chegou da casa de , no começo da noite, e me viu largada no sofá, de cara inchada e uma playlist depressiva tocando no celular, acho que quase teve um colapso.
Um fato sobre a : ela odeia ver pessoas tristes.
Ela odeia tristeza.
Acho que é porque ela sempre foi feliz demais.
Passou um tempo apenas abraçada comigo antes de perguntar o que tinha acontecido. Quando eu contei, acho que ela quase teve outro colapso.
- Você acha que eu fiz a coisa certa? - Perguntei quando finalmente consegui parar de chorar.
- Bem provável. Quero dizer, ele fez merda, e você tem o direito de ficar puta. Mas, talvez, você só esteja abalada com o que Ellinor disse. Vai saber até que ponto aquilo é verdade? Vai saber há quanto tempo ele falou aquilo? - Questionou, e eu pensei até que ponto ela tinha razão.
- Bom…
- Talvez ele mereça outra chance.
Confirmado: é a maior tiete do que já existiu.
E existiram muitas.
- , , não sei… Me magoou muito, sabe? Ele era meu melhor amigo…
- Era? - Se levantou do sofá. - Ah, não.
Que?
- Ah não! Você vai deixar de ser amiga dele também?
- ! O que ele fez não me deixou magoada como namorada, seja falsa ou de verdade. - Expliquei. Não era óbvio? - Me deixou magoada como melhor amiga de infância dele! Saber que ele pensava aquilo me deixou puta não pelo pensamento em si, mas por saber que outras pessoas pensavam assim de mim e ele concordava! Mesmo sabendo o quanto eu odeio esse infeliz desse pensamento!
- Bom… , é verdade. Nem sei por que to defendendo ele. - Disse, voltando a sentar ao meu lado no sofá. - To do seu lado, viu? Sempre.
E esse era o maior motivo pelo qual eu amava . Apesar de nos conhecermos há pouco tempo, ela se importava comigo assim como eu me importava com ela. Ela era a irmã mais nova que eu nunca tive, que eu sonhei em ter e pensei que teria quando Abby chegou.
Ela era importante.
Apesar de praticamente lamber o chão que pisava.
Mas isso era passageiro.
Espero.
-x-x-x-
- Tchau, ! - Clary, uma garota com quem eu estava fazendo dupla em uma aula, gritou pra mim enquanto nos afastávamos na saída da faculdade. Acenei e sorri de volta.
Devo assumir que meu “namoro” com fez com que as pessoas passassem a falar mais comigo, me respeitar um pouco mais. Se elas eram falsas ou não, são outros quinhentos; mas elas pelo menos não me ignoravam. E eu passei a ser mais sociável, também, graças a isso. Não ficava mais tão nervosa em falar com desconhecidos.
E eu, ingênua, pensei que me deixaria em paz.
Pobre de mim.
Na rua, ele estava - como sempre; acho que já narrei isso umas vinte vezes - encostado na lateral do carro, de óculos escuros e… Guess what?
Minha jaqueta de couro favorita.
- Que diabos você tá fazendo aqui, ? - Gritei sussurrando quando cheguei perto dele. Ele estava olhando para algum lugar ao seu lado, mas voltou o rosto pra mim quando ouviu minha voz. - A gente “terminou”, tá sabendo não?
- Que eu saiba, eu não concordei com isso. - Sorriu de canto e eu tive vontade de bater naquela cara linda. - Só me deixa levar pra casa. E eu prometo que te deixo em paz…
Concordei, sem querer enrolar demais, e entrei no carro, não sem antes ouvir um sussurrado “por enquanto”.
-x-x-x-
O caminho até minha casa foi silencioso. Não sei o que Ash pretendia com aquela carona, já que ele não fez questão de abrir a boca pra iniciar uma conversa sequer, mas eu também não questionei. Era melhor assim.
Era estranho receber a carona dele e, quando chegarmos no meu prédio, ele não descer do carro e ir até o apartamento comigo; ou nos despedirmos com um selinho.
Eu já estava tão acostumada.
E pensar que eu provavelmente não teria mais aquilo…
- Bom… Obrigada. - Murmurei, abrindo a porta e colocando uma perna pra fora.
- , eu...
- Não. - Interrompi. - Só… Sinto muito, . Muito mesmo. - Concluí, saindo de vez do carro e correndo para dentro do edifício.
Eu realmente não fazia ideia do que era ficar magoada.
Capítulo quinze
A tela da televisão estava preta, e nenhuma imagem passava. Afinal, ela estava desligada. Mas, na verdade, eu não me importava. Já havia perdido as contas de quantos minutos ou horas passei encarando a TV desligada.
Eu pensava sobre a noite anterior. Estava acabado. Quando eu consigo me acostumar com a ideia de e eu, juntos, acaba. Mas a Lei de Murphy é uma vadia nojenta, mesmo.
Quando acordou, depois do meio dia, eu devia estar no sofá com cara de monga há mais de uma ou duas horas. Havia ido dormir por volta da uma da manhã e acordado pelas cinco ou seis. Tomei banho, comi, fiz uma tarefa aleatória e passei a encarar a TV. Então, quando acordou, eu já estava ali há um bom tempo.
— Que diabos você tá fazendo? — Ela perguntou, e eu saí do meu transe pra olhar pra ela.
— Olhando pra televisão?
— Tá, isso é bem notável. — Resmungou, se jogando ao meu lado e olhando pra TV também, talvez tentando achar algo que pudesse ser o motivo da minha obsessão pela tela preta. — Mas por quê?
Abaixei a cabeça. Quando percebeu que eu não tinha respondido, alguns segundos depois, se mexeu desconfortavelmente e olhou pra mim com uma cara confusa.
— … O que aconteceu?
— Terminei. — Foi a única coisa que eu disse, e ela não precisou de mais nada para entender.
— Mas… de vez? — Perguntou. Acenei que sim com a cabeça. — Como isso?
Expliquei pra ela que fora me buscar na faculdade no dia anterior, que me deu uma carona e que passamos o caminho inteiro em silêncio. Falei que ele tentou dizer algo, mas que eu não deixei e saí do carro. Contei que fui dormir tarde, depois de pensar muito, e acordei poucas horas depois, passando a pensar muito novamente.
— Uau! Mas você não deixou ele se explicar nem um pouco? — Perguntou, parecendo um pouco surpresa.
— Não… Não sei se aguentaria a explicação dele.
ficou em silêncio, e eu também. Não tinha nada pra falar.
— Eu tinha certeza que vocês iriam ficar juntos de verdade, que nem eu e . — Ela disse, baixinho, depois de vários minutos quieta. — Pareciam perfeitos um pro outro.
— Nada na vida é perfeito, . — Resmunguei, querendo chorar de novo.
Definitivamente, fazia anos que eu não chorava tanto.
— Você e eram.
-x-x-x-
A Tobby’s estava movimentada naquele dia. Eu realmente não sabia de onde tinha saído tanta gente. Ainda mais porque a maioria dos fregueses era da faculdade, e era raro os alunos de lá irem tomar café em algum lugar que não fosse hipster que nem a Starbucks.
O sininho tocou pela vigésima vez em dez minutos, e eu nem me dei ao trabalho de olhar quem era. Apenas continuei limpando o balcão. Alguém passou atrás de mim e tocou minha cintura como se pedisse licença. Aproveitei a deixa e fui para a área interna da cafeteria, guardando o pano e logo depois voltando para o balcão.
Chegando lá, reconheci o cliente na hora. Ele olhava para o menu gigante colado na parede, tentando decidir o que queria, mas quando eu me aproximei, levou o olhar até mim e seu rosto pareceu se iluminar. Forcei um sorriso.
— ! Há quanto tempo! — Exagerou um pouco, rindo em seguida.
— E aí, Cameron? Realmente, já faz um tempinho. — Sorri, apoiando os braços no balcão.
Era verdade, em partes. Depois da nossa terceira ou quarta aula (não lembro), Cameron avisou que iria viajar por duas semanas. Viagem de formatura ou alguma coisa assim. Não me importei muito.
— A viagem foi boa? Lembro que você comentou que chegaria por esses dias. — Perguntei, não muito interessada.
ainda não saíra da minha cabeça.
Não era uma boa época para criar uma crush em um colegial qualquer.
— Sim, foi ótima. Cancun é incrível... — Ele começou, e parecia querer falar mais, porém deve ter notado que eu estava pouco me fodendo e voltou a olhar pro menu atrás de mim. — Me vê um mocha médio pra levar, por favor. — Sorriu.
Anotei o pedido e entreguei o papel pra um outro atendente que estava passando por ali, voltando a me apoiar no balcão em seguida.
— Mas então, como anda a vida? — Ele perguntou, parecendo realmente interessado, diferente de mim. — Ainda namorando? — Sorriu.
Nossa, Cameron, você tem um dedo podre pra escolher assunto.
— Não. Na verdade, terminei com ele, tipo, ontem. — Falei, mesmo que já tivesse feito uma semana desde que eu havia indiretamente terminado com .
— E quem era o sortudo?
— Não sei se você o conhece, o nome dele é … — Fui interrompida.
— Uou, pera aí! Você é a namorada do ? — Perguntou, empolgado. “Era a namorada do ”, corrigi mentalmente. O motivo dele parecer idolatrar é algo que nem Deus sabe. — Quero dizer, ouvi falar que ela era gatinha, mas… Eu não esperava por isso! — Sorriu de canto.
É sério que essa criança está me cantando?
Quero dizer, Cameron é muito lindo e inteligente. Para um garoto da idade dele, ele me parecia bem maduro. Mas não deixava de ter dezessete anos. Além do que, falta de senso parece uma característica do menino.
Fala sério, cara! Eu acabei de dizer que terminei com meu namorado ontem e você já tá dando em cima de mim?
Por favor.
O sininho tocou novamente bem no momento em que eu me virei para pegar o mocha de Cameron. Voltei a olhar pra ele, já falando novamente.
— Pois é. Mas, como já disse, nós terminamos.
— Bom saber disso, . — Ouvi uma voz conhecida e quase derrubei o café do garoto. — Legal da sua parte me deixar por dentro das novidades. — sorriu ironicamente, e eu coloquei o copo em cima do balcão, na frente de Cameron. Este, por sua vez, parecia ao mesmo tempo entretido e com medo da situação que acabara de se desenrolar bem à sua frente.
— , que surpresa te ver aqui. — Comentei, tentando me manter calma.
Não pula nele, .
Controle seus hormônios.
Controle sua vontade.
Tudo bem que esse corpo dele parece pedir pra ser abraçado, e que essa boca dele parece pedir pra ser beijada…
Mas se controle, mulher!
— Eu ia pedir um café e uma conversa, mas acho que é desnecessário, não é mesmo? — Fechou a cara ao mesmo tempo em que eu fazia uma careta. Virou-se pra Cameron, ao seu lado. — E você, tem quantos anos, quinze? Para de dar em cima de meninas cinco anos mais velhas que você, pivete. Toma vergonha nessa cara jovem. — Ele parecia querer dar um belo soco no menino, mas conseguiu se controlar. — Foi um imenso prazer te ver de novo, . — disse, e eu nunca ouvi seu tom de voz tão seco.
— , espera aí! — Tentei, em vão, fazê-lo ficar.
Acho que aquela cafeteria já havia presenciado mais cenas da minha vida pessoal do que meus pais.
Bati a cabeça no balcão, ouvindo os passos de Cameron em seguida, me dizendo que ele tinha ido embora. Sequer me importei se ele havia pagado a conta, aquele era o último dos meus problemas.
Por um lado, eu estava frustrada. Não gostava de ter meu melhor amigo bravo comigo. sempre fora a parte mais especial da minha vida, e pensar que ele estava desapontado comigo me deixava pra baixo. Mesmo depois de ele ter pego meu coração, jogado em água quente, picado com uma faca de açougueiro e jogado para lobos selvagens comerem.
Por outro lado, eu estava ardendo de raiva. Eu pensei que tinha deixado bem claro que nada mais poderia acontecer entre a gente. Achei que não precisava dizer com todas as letras “nós terminamos!” porque, na minha mente, ele tinha inteligência o suficiente para deduzir isso sozinho. Aliás, eu fui bem clara, na verdade. “Não dá mais pra continuar com isso, ‘isso’ sendo ‘a gente’, quero dizer” faria a maioria dos seres dotados de cérebros entender muito bem o que diabos estava acontecendo.
É, pensando bem e colocando tudo numa balança, eu estava muito mais puta do que triste com ele.
Quando constatei isso, levantei a cabeça do balcão e o cliente que me esperava do outro lado pareceu se assustar. Eu devia estar com cara de serial killer. Tudo que eu mais queria no momento era pegar a cabeça de e apertá-la, e esfregá-la contra um ralador de queijo, e passar por cima dela com um caminhão, e várias outras coisas dolorosas.
Ele merecia dor.
Na minha mente deturpada, ele merecia dor simplesmente pela dor que ele me fez passar.
Naquela hora, eu estava com tanta raiva que, se pudesse voltar no tempo, teria voltado aos meus oito anos e não faria amizade com ele nunca. Apesar de todos os momentos bons que me proporcionara, a decepção que ele me causara pouco tempo antes parecia muito maior do que qualquer sorriso ou risada que ele arrancou de mim.
-x-x-x-
A rua da república de estava lotada de carros, e ao olhar para uma das últimas casas delas, pude constatar que o motivo de tamanha movimentação era uma festa que estava rolando. Pensei em esquecer a ideia de tentar falar com apenas para comparecer na festa, de penetra, e encher a cara.
Uma tequila seria uma boa.
E eu não digo uma dose.
Digo uma garrafa.
Parei em frente à casinha amarela de dois andares, com uma tentativa falha de jardim na frente. As garotas que moravam ali tentaram plantar algumas flores, mas elas não pareciam saber cuidar delas, porque três quartos delas estavam mortas. As outras só estavam vivas por um milagre.
Bati na porta e a mesma garota que sempre me atendia abriu. Da primeira vez, ela me olhou com desdém. Talvez porque eu ainda era apenas a melhor amiga perdedora de . Da segunda, ela me olhou com admiração. Talvez porque eu tinha virado a namorada maneira de .
Daquela terceira vez, ele me olhou com pena.
— Ei, . — Me cumprimentou, soltando um sorriso fraquinho. — Sabe, eu acho que sou a que mais gosta do com você nessa casa. Talvez a única que não morre de ciúmes dele. — Soltou uma risada nasalada, e eu estava confusa. — E ele sem você fica insuportável, devo acrescentar. Mas ele não quer te ver. Disse que está de cabeça quente e talvez vá descontar em você mais do que você merece.
E eu devia merecer muito, na mente dele.
— Bom, tudo bem, ahn… — Eu não fazia ideia de qual era o nome dela.
— Georgina.
— Tudo bem, Georgina. Eu acho que entendo. — Virei, pra ir embora, mas ela me chamou novamente.
— Não quer deixar um recado ou alguma coisa assim?
Ponderei.
Eu queria que fosse atrás de mim? Ou queria que ele me deixasse de lado e nós seguíssemos cada um pro seu lado? Será que eu aguentaria conviver sem ele todos os dias?
Eu sequer sabia o que estava fazendo na república dele, pra começo de conversa.
— Não. Obrigada de qualquer jeito. Se puder, nem diga que eu passei aqui.
Sorri fraco mais uma vez, e ela retribuiu antes de fechar a porta. Fui para a rua e olhei para a casa, onde a festa parecia badalada.
Eu nunca fui muito fã dos destilados, mas eles pareciam me chamar. Quem liga? A ex-namorada maneira de merecia encher a cara de vez em quanto, e eu tenho certeza que ela seria aceita de braços abertos pelas pessoas da festa, mesmo que estivesse chegando de penetra.
Afinal, ela era a ex-namorada maneira do .
Capítulo dezesseis
O dia, para contrariar meu humor nada bom, resolveu estar lindo quando eu acordei na manhã seguinte. Apesar do frio, o céu estava aberto e o sol brilhava fortemente. Ah, a doce ironia da vida.
São Pedro já pode ir se foder.
Levantei sem vontade nenhuma, já que minha cabeça doía por causa da ressaca. Mas é claro que, além do meu mau humor (justificado), eu ainda estava de ressaca. Sobre a festa: um porre. Literalmente. Lembro que descobri no meio da festa que o dono era um dos nerds do meu curso de anatomia. Não sei como ele conseguiu tanta gente pra ir na festa dele, mas isso realmente não importava. Acabei ficando com um cara aleatório, sequer lembro o nome dele. Foi um acidente, culpa de um desafio que ele levou no jogo da garrafa. Mas tudo me lembrava de , e eu parecia estar com o gosto dele na minha boca, e a tequila não estava adiantando praquele gosto ir embora. Também lembro de ver um dos amigos de lá, e ele tentou falar comigo, mas eu fugi como uma garotinha assustada. Porra, eu estava tentando esquecer o cara e me vem um dos melhores amigos dele? O que diabos ele estava fazendo lá, afinal?
— ? Você tá em casa? — Perguntei, saindo do quarto depois de escovar os dentes e colocar uma roupinha melhor, além de pegar minha bolsa.
— Na cozinha! — Ela gritou em resposta.
Fui até o cômodo e encontrei minha amiga em uma tentativa falha de cozinhar panquecas. estava sentado no balcão, rindo sem dó da noiva. Seu sorriso era gigante e era possível enxergar de longe o quanto ele a admirava.
, vamos parando. Sua felicidade me deixa pra baixo.
— Bom dia. — Cumprimentei, sentando ao lado dele.
— Bom dia! — Recebi um coro do casal vinte. — Quer uma panquequinha? — continuou.
— Prefiro continuar viva, mas obrigada. — Respondi ironicamente, e ela parou o que estava fazendo apenas para se virar pra mim e me lançar um olhar raivoso. Ri. — Vou ao supermercado, precisa de alguma coisa?
— Uhm, acho que sorvete seria uma boa. — Pude sentir o sorriso em sua voz. Virei pra , indagando se ele queria alguma coisa também, e ele apenas negou com a cabeça.
— Bom, então vou indo. , quando voltar tenho que te pedir uma coisa.
Ela me olhou por cima dos ombros, demonstrando confusão, mas não perguntou nada. Deve ter notado que, se eu não falei na hora, foi porque não queria que soubesse. Na verdade, não era nada demais, só que eu não tinha intimidade o suficiente o cara pra ter uma conversa aberta com ele ao lado. E também porque, provavelmente, ele não saberia me ajudar. E eu não iria encher a cabeça dele com meus problemas doidos, ele não tinha nada a ver.
Mandei um beijo pra cada e saí. Na verdade, não iria ao mercado, queria apenas pensar um pouco fora de casa. Bom, teria que passar no mercado de qualquer jeito, pra comprar um sorvete. Nunca mais pergunto nada por educação.
-x-x-x-
— Cheguei. — Voltei pra casa depois de quase duas horas. correu pra sala, vinda do próprio quarto.
— Me assustei, você demorou! — Exclamou. — Criatura, não faz mais isso. — Suplicou, rindo.
— Foi mal, queria pensar. Nem ia no mercado, só falei pra dar uma disfarçada.
— Eita, e você foi só pra pegar o sorvete que eu pedi? — Perguntou, ao mesmo tempo em que eu lhe entregava o pote de sorvete de menta, e eu concordei com a cabeça. — , não precisava!
— Relaxa.
— Bom, o já foi. Podemos conversar.
Fomos pra cozinha e eu peguei duas colheres. Sorvete de menta não era lá meu favorito, mas até que eu gostava. E qualquer doce estava bom pra mim, eu só precisava de açúcar no meu sangue. Rumamos em direção à sala e nos jogamos no sofá, abrindo o pote e já enfiando a própria colher lá dentro.
— Quero o telefone do Edmund, você pode me passar? — Pedi depois de um tempo, e ela parou seu braço no meio do movimento de levar o talher cheio de sorvete até a boca, me olhando em confusão.
— E você quer pra que? - Perguntou, voltando a deixar a colher dentro do pote. — Não que seja da minha conta ou que eu queira parecer grosseira, mas fiquei curiosa.
— Quero tentar com ele. George disse que eu posso ganhar alguma coisa se resolver ficar com Ed, e um carro não seria ruim. — Respondi, comendo mais uma colherada. — Andar daqui até o mercado a cada dois dias não é moleza. E eu não aguento mais andar de ônibus.
Ficamos em silêncio por um tempinho, parecia estar digerindo a informação. Se levantou de supetão, saindo do meu campo de vista e voltando alguns minutos depois, com o celular na mão e parecendo procurar algo pela tela.
— Como sei que nada que eu te disser vai te convencer a tentar ficar ou ao menos falar com , apenas vou ceder de uma vez. — Resmungou, se jogando novamente ao meu lado no sofá.
Me passou o número de seu primo, e eu comemorei me jogando em cima dela. riu, mas realmente não parecia satisfeita com aquilo. Não sei por que ela tinha essa obsessão louca com a ideia de eu e juntos. Parece minha mãe.
Continuamos conversando por mais um tempo até que acabamos com o sorvete. Falei sobre o fato de ele ter ido à cafeteria no dia anterior, e ela concordou comigo que ele era um babaca, e prometeu parar de defendê-lo. Não que eu ligasse; na verdade, era interessante ver alguém que ainda tinha aquela visão romantizada de .
A visão que eu tinha poucas semanas antes.
Eu fui lavar as colheres e foi se arrumar pra ir trabalhar. Eu achava admirável de sua parte que, apesar de estar prestes a se casar com o filho do prefeito e ser mais rica que todos os seus colegas de trabalho juntos, ela continuava no Tobby’s, apenas para ganhar um dinheiro que poderia realmente balançar no ar e falar “conquistei essa porra com o meu próprio suor!”.
E, acreditem, ser garçonete é cansativo. A gente soa mesmo.
Não restava dúvidas em mim; era uma pessoa maravilhosa.
-x-x-x-
— Tudo bem, então eu te aviso caso tenha mais algum problema.
— Tá bom. Até amanhã, Cam. — Respondi e desliguei o telefone, já discando outro em seguida.
Eu demorei dois dias pra criar coragem até falar com Edmund, e nesse meio tempo, Cameron me ligou para marcar uma aula. Me ligou novamente pra dizer que teríamos que adiantar em algumas horas por algum motivo pessoal que eu não quis perguntar qual, apesar de ter ficado curiosa.
— Tudo bem, , tudo bem. Só disca e fala alô. É a única coisa que você precisa fazer. — Me confortei antes de discar e apertar o botãozinho verde. A linha chamou por um tempo até que Edmund atendeu. — Alô?
— Alô, posso ajudar?
Eita caralhos, e o que eu faço depois do “alô”?!
— Oi, é o Edmund Collins? — MERDA! — Cooper, aliás! Desculpe. — Fiz uma careta, querendo bater minha própria cara na parede.
Eu nunca acertava o nome do infeliz.
— ? — Ele pareceu reconhecer minha voz (e minha idiotice).
— Isso! É a . Eu, no caso. Sou a ... Enfim! Eu queria falar com você sobre… O contrato.
A linha ficou muda por alguns segundos e eu pensei que ele havia desligado ou que a ligação tinha caído, mas então Edmund voltou a falar.
— Ahm… Tudo bem. — Mais silêncio. — Desculpe, é que eu não pensei que você iria voltar atrás.
— Nem eu. — Ri fraco, e ele me acompanhou. — Quer se encontrar comigo em algum lugar pra gente conversar melhor? — Sugeri.
— Claro! Mas eu estou bem ocupado esses dias, só vou poder no final de semana.
— Sem problemas.
— Pode ser no West Park?
Péssima escolha, Edmund Cooper.
Olha, acertei!
— Ahm, se puder ser em outro lugar… O East Park está ótimo.
— Tudo bem.
— Bom, então até lá. — Esperei que ele respondesse e desliguei o telefone, colocando-o na base e me jogando no sofá em seguida.
Ainda era terça-feira. Eu tinha quatro dias pra me preparar para o encontro com meu possível-futuro-marido.
E algo me dizia que eu nunca estaria preparada o suficiente.
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Edmund me mandou uma mensagem de texto dizendo que estava em um local coberto perto da maior árvore do parque. Não sei se ele esperava que eu soubesse onde “a maior árvore do parque” ficava, mas o ponto é: eu não sabia. Tive que perguntar pra umas três pessoas até que achei a bendita árvore e o local coberto.
— É um amieiro. — Disse assim que me sentei ao lado dele num banquinho. Ele não tinha me visto, então se assustou um pouco. — A árvore. — Expliquei. — É um amieiro. A madeira é muito utilizada pra fazer violões. Normalmente não são tão grandes, essa aí é uma exceção.
Ele estava sorrindo, e assim que eu terminei de falar, soltou uma leve risada.
— Bem que o George disse que você é muito nerd. — Disse, e eu senti minhas bochechas corando.
— Um pouco. — Rimos juntos. — Faço faculdade de biologia. A parte das plantas não é minha favorita, mas até que é interessante.
— Entendi. Como você deve saber, eu faço faculdade de administração. — Assenti. — Mas eu gosto mesmo é de física.
— Credo! — Exclamei, e ele riu alto.
— Poucas pessoas entendem o maravilhoso mundo das exatas.
— Só os loucos gostam disso. É só ver Einstein. O cara ajudou a construir a bomba de Hiroshima, sabia?
Conversamos por boas horas. Ed era muito legal, e apesar de aparentar ser muito formal, ele era, na verdade, bem descontraído. Conseguia me prender nos mais variados assuntos, e sempre de um jeito divertido que não me deixasse desconfortável. Não falamos do possível contrato em momento algum; pelo contrário, Edmund tentou manter a conversa o mais longe possível de coisas que pudessem remeter à empresa de contabilidade de nossos pais.
Depois de um tempinho em silêncio, apenas curtindo a presença um do outro, ele voltou a falar:
— Sabe, um dia desses eu estava passeando pelo West Park e vi você e lá.
— Uhm, sobre isso... — Tentei cortá-lo, mas ele não me deixou.
— Vocês realmente pareciam um casal.
— Mas não somos. — Expliquei. — Era fingimento.
— Eu sei. — Ele sorriu. — Você pediu que ele te namorasse de mentira pra ver se vocês conseguiriam fugir de casamentos com desconhecidos.
Meu queixo foi ao chão.
— George contou a meu pai que suspeitava disso, e eu acabei ouvindo por acaso. — Piscou e eu sorri. — Mas, , naquele dia... Vocês não estavam fingindo. Inclusive, perguntei se poderíamos nos encontrar no West pra tentar provar uma teoria. E, pela sua reação, ficando desconfortável e querendo se encontrar em outro lugar, eu estava certo.
Fiquei em silêncio e desviei o olhar dele, passando a observar minhas mãos pousadas em minhas coxas.
— Você gosta dele.
— Não! — Me assustei com a rapidez com que neguei a afirmação de Edmund, e isso fez com que ele jogasse a cabeça pra trás e risse alto.
— Olha, talvez vocês deveriam juntar o útil ao agradável e ficarem juntos de uma vez por todas.
— O que seria o útil e o que seria o agradável? — Perguntei, voltando a olhar pra ele.
— O útil é satisfazer seu padrasto e a empresa. O agradável é ficarem juntos quando se gostam.
— Mas a gente não se gosta!
— Finge que me engana que eu finjo que acredito. — Ele piscou e riu novamente, e eu cruzei os braços e eu forjei uma cara emburrada.
Conversamos sobre outras coisas depois, e Ed não quis falar sobre o nosso contrato porque achava que eu ainda mudaria de ideia e assumiria que gostava de . Me deixou em casa pouco antes de escurecer, e eu fiquei com todo o discurso de Cooper na cabeça pelo resto do fim de semana.
Eu não gostava de .
Não é?
Capítulo dezessete
— E aí ela simplesmente pulou na piscina! — contou, praticamente berrando, e eu ri mais ainda. — Onde eu iria pensar que minha mãe pularia na piscina?! Ela é tão certinha e do nada me berra “Gerônimo!” e pula na piscina. Eu nunca imaginaria.
Estávamos almoçando, e tinha passado o final de semana com e os pais na mansão dela. A piscina era interna e aquecida, aliás. Pra deixar bem claro. Porque estávamos no inverno.
Fazia dois dias que eu tivera o tal encontro com Edmund, e tudo que havíamos conversado ainda não tinha saído da minha cabeça.
O garoto tem uma boa lábia.
O interfone tocou e eu estranhei, e pela cara de ela também achou estranho, o que significava que ela não estava esperando ninguém. Como já tinha terminado de comer, ela foi atender e, ao desligar, estava animadíssima. A campainha tocou e ela voltou pra cozinha com em seu encalço dois minutos depois.
Tá explicado.
— E aí, zinha? Tudo bom? — Perguntou, me dando um beijo na bochecha e roubando um pedaço do meu frango.
— Ei! — Reclamei, e ele riu. — To bem, e você?
— To ótimo! E o ? Não falo com ele já faz um tempo.
Ok, acho que já tá bem óbvio que Deus me odeia e quer me ver sofrer. Todo mundo fica perguntando do infeliz!
— Ih, falei besteira? — Ele perguntou, assim que notou minha cara de quem comeu e não gostou.
E, muito pelo contrário, o frango estava delicioso, eu amei.
— Não te contei, ? — se intrometeu. — Eles terminaram.
— Ah, nossa! Por quê?
— Ele fez merda e a achou melhor acabar de uma vez. Até entrou em contato com o Ed.
— Quem? — Olha, eu não sou a única que nunca lembra do cara.
— Edmund, meu primo, cacete! Que tava designado pra ela desde o começo. — rolou os olhos, e eu bufei.
— Supera isso, . Que inferno. E para de falar de mim como se eu não estivesse aqui.
Isso porque ela tinha prometido não defendê—lo mais. Porém, ela ainda era tiete do , e isso era bem claro.
Terminei de comer e deixei o prato ali, saindo da cozinha em seguida.
já estava me enchendo o saco com essa ideia de ficar brava comigo só porque eu terminei com o cara dos sonhos dela. Não posso mais nem tomar conta da minha própria vida. Antes era minha mãe, e quando eu penso que achei uma amiga boa, ela se intromete no que é da minha conta ainda mais do que a dona Agatha.
Eu, hein.
-x-x-x-
Eu estava um pouco atrasada quando saí de casa pra ir pra faculdade. Mas meu ônibus passava com frequência, então não demoraria pra chegar. A primeira aula era do Sr. Henning, também, e ele com certeza me deixaria entrar atrasada.
Mas, para a minha surpresa, estava na portaria do meu prédio quando eu saí do elevador.
— Mas que infernos! — Praticamente berrei, e ele me viu. — Cara, me deixa em paz, pelo amor de Deus!
— Calma, esquentadinha. Eu ainda to fingindo que to te namorando pra uma galera da universidade, e só quero te dar uma carona. Não é como se eu quisesse te ver, também.
Me engana que eu gosto, completei mentalmente.
— Ai, tanto faz. Eu to atrasada de qualquer jeito.
Vi um brilho diferente passar pelo olhar dele, mas logo não estava mais ali. Apenas o segui até seu carro, entrei, cruzei os braços e fiquei desse jeito. ligou o rádio e, como de costume, cantarolou junto. Fechei os olhos e não prestei atenção no caminho.
Isso é, até perceber que estávamos demorando demais pra chegar na faculdade.
Abri os olhos e olhei pra fora do carro. Estávamos quase na auto—estrada!
— ASHTON! — Berrei, e ele quase perdeu o controle do carro no susto. — Dá meia volta e me deixa na faculdade agora mesmo!
— Que? — Ele se fez de desentendido, e eu só fiquei com mais raiva ainda.
— Ugh, eu vou te estrangular! Você me prometeu carona, seu desgraçado.
— Ofereci carona, mas não disse pra onde.
Ah, mas ele vai ver só.
Abaixei o vidro do carro e coloquei metade do corpo pra fora, passando a gritar por ajuda em seguida. se desesperou e parou o carro na hora, quase causando um acidente.
— Ce tá louca? Entra agora! Vão achar que eu vou te sequestrar ou alguma coisa assim!
— Segundo o dicionário, sequestro é a situação em que se é privada a liberdade de alguém, física ou psicologicamente, fazendo com que o indivíduo não aja conforme sua própria vontade e querer aquilo que impede alguém de exercer sua volição. Então, no caso, você está SIM me sequestrando! — Gritei novamente.
Ele havia conseguido me fazer perder a paciência.
— Tá bom, louca, eu te deixo na faculdade, então.
Me acalmei e me ajeitei no banco.
— Não faz mais que sua obrigação.
Quando estacionou na frente da faculdade, eu corri pra fora do carro no maior ímpeto, mas ainda assim pude ouvir seu grito de “Mas vamos conversar depois!”.
Infeliz.
-x-x-x-
Seguindo minha rotina normal, esperei toda a sala sair para, só então, segui—los até a saída. Parei em um canto e me escorei na parede, aguardando a muvuca se desfazer. Por fim, fui a última aluna a deixar o prédio, de longe já avistando o carro de . Não pude segurar um rolar de olhos. Eu ainda estava puta com ele.
Uma figura se enfiou no meio do meu caminho, e eu parei abruptamente. Olhei pra frente e reconheci Cameron na hora.
— Oi! — Começou, animado, e eu arqueei a sobrancelha. — Vim fazer uma pesquisa em um livro que só tem na biblioteca da faculdade, e acabei encontrando o .
Ai, cacete.
Olha pra minha cara e diz se eu sou obrigada.
Cameron, amorzinho, tudo que eu menos tenho no momento é paciência pra aguentar você e seu lado stalker psicótico.
Por favor, me deixe em paz.
Agradecida.
— Ele disse que veio pegar a namorada dele. Achei que vocês tinham terminado. — Ele parecia realmente confuso, e eu quase caí na dele e senti dó.
Quase.
— Não que seja da sua conta, fofinho, mas nos vamos conversar agora mesmo. Isso é, se vossa senhoria me deixar passar. — Sorri o mais ironicamente que pude, e ele engoliu a seco.
Não esperei resposta e contornei o garoto, indo em direção ao carro de . Quando entrei, ele já estava olhando pra mim ao mesmo tempo em que dava partida.
— O que o pivete queria?
— Sabe, vocês não são tão diferentes. — Respondi sem olhar pra ele. — Os dois ficam me perseguindo e parecem não aceitar um não como resposta. — Finalizei, sorrindo de lado, e aumentei o volume do rádio ainda mais.
-x-x-x-
— Ok, agora a gente vai conversar.
Foi o que disse assim que saímos do carro e entramos em sua república.
E eu não sabia como reagir.
Capítulo dezoito
Corri pro quarto dele quando vi que tinha várias pessoas na sala, eu realmente não estava a fim de ter uma DR com plateia. me seguiu calado, mas quando chegamos ao seu quarto, ele fechou e trancou a porta, colocando a chave no alto do guarda-roupa.
Só porque eu não alcanço.
Repito: infeliz.
— Ok, fala.
— Uhm... Eu não sei o que falar.
Bufei e joguei as mãos pro alto.
— , você me sequestrou e me trouxe até aqui pra falar comigo, então fale!
— Eu tenho coisa pra falar, mas eu esqueci, tá? Calma! Eu to nervoso. — Ele esbravejou e se sentou na cama.
Ficamos em silêncio por alguns minutos, e meus olhos não deixaram o guarda-roupa em momento algum. Eu estava bolando algum jeito de conseguir aquela chave.
— ... — Ele me chamou, e eu finalmente passei a olhar pra ele. Seu tom de voz era dolorido, e ele parecia estar sofrendo. — Eu acho que to gostando de você de verdade.
Congelei no lugar.
Ah, não. A conversa do “gostar” de novo, não. Com Edmund até foi aceitável. Mas eu não saberia lidar com falando sobre isso.
— Eu não sei como isso foi acontecer, porque nos conhecemos há anos! E eu nunca te vi de um jeito além do típico amor fraternal. Pra mim, você sempre foi como uma irmã, e eu não sei se curto incesto.
Acho que eu já ouvi isso em algum lugar.
— Tá me entendendo? — Ele me olhou no fundo dos olhos, e eu apenas assenti com a cabeça. Não sabia como responder. — Mas desde que você propôs namoro, parece que alguma coisa mudou, sei lá. Acho que se eu fosse escritor de romances, diria que algo em mim despertou, uma chama em mim se acendeu, e agora eu te amo mais que tudo! — Exagerou um pouco antes de suspirar alto. — Mas também não é pra tanto. Eu só... Não sei explicar, . Realmente não sei.
Comecei a refletir. Eu sentia o mesmo?
Algo em mim havia despertado?
Uma chama em mim havia se acendido?
Eu amava mais que tudo?
Não.
Claro que não.
— Eu só consigo pensar no jeito que você me olhou no dia dos namorados, e em como você parecia tão decepcionada comigo e aquele olhar me causou tanta dor, ... Que tudo que eu queria era te abraçar e te beijar e te dar carinho até que você não estivesse mais magoada comigo. — Tentou explicar, e suas palavras saíram meio enroladas, e eu quase cheguei a pensar que ele estava chorando.
Mas não chora.
não chora, não sente ciúmes, não fica envergonhado.
não se apaixona.
Não depois da moça que se mudou pros EUA após do colegial.
— Na verdade... — Soltou uma risada. — Eu só penso em te abraçar e te beijar e te dar carinho desde que te vi brava comigo por eu ter te beijado no campus. — Olhou pra baixo, com um sorriso triste nos lábios, e eu não consegui fazer com que os meus se curvassem pra cima também por um mísero segundo.
Ele voltou a ficar sério e olhou pra mim de novo. Eu olhava pra ele no maior misto de confusão, admiração e mágoa do universo. Dentro de mim, tudo parecia rodar, e eu realmente não conseguia optar pelo melhor sentimento pra seguir.
— , eu...
— Não fala nada. — Suplicou. — Por favor. Não estraga. Eu... preciso pensar, eu acho.
— Eu também! — Expliquei, me afastando um pouco. Ele se levantou da cama e veio até mim.
Inconscientemente, fui andando pra trás até estar com as costas encostadas no guarda-roupa, e estava com uma mão de cada lado da minha cabeça.
— , você tá confundindo tudo. — Passei as mãos pelo rosto em um ato de nervosismo. — Você só não quer aceitar que o nosso namoro de mentira acabou. Mas é isso que ele é, ! De mentira! — Tentei explicar, e ele negou com a cabeça.
— Não, , você não tá entendendo.
— To sim! , não seja idiota, você não gosta de mim!
— ! Claro que gosto, eu to te falando isso agora. — Ele ficou um pouco bravo e bateu no guarda-roupa com força, o que fez com que a chave caísse e nossos olhares fossem atraídos pelo barulho do metal batendo no chão.
Nós dois praticamente nos jogamos no chão pra tentar pegar o pequeno objeto, e por algum milagre dos céus eu consegui ser mais rápida que ele. Abri a porta na hora, antes de me virar pro garoto à minha frente, que parecia desesperado.
— , não vai embora... — Ele pediu, e eu quase fiquei só pelo seu tom de voz.
— Por que... — Criei coragem antes de dizer. — Por que você não fica com Abby? Por que não casa com ela? Vocês ficam desde que se conheceram, né? Pronto, tá aí a solução. E eu vivo livre. Ótima ideia. — Sorri triste, e ele soltou uma gargalhada. Mas eu sabia que ele não achou graça.
Ele só não sabia como responder.
— Não. Não! , você... Ugh! — Gritou de novo, se afastando de mim e virando de costas. Pude perceber pelo movimento de suas costas que ele estava respirando com mais força. — Por favor. Não me deixa.
— , que é isso? Você não é de implorar pra alguma garota ficar. A gente ainda pode ser melhores amigos, tudo bem. Eu não vou embora da sua vida.
— Eu não quero ser só seu amigo.
— , isso é a vida real, cara! A vida segue! Lida com isso, pelo amor. Eu não quero deixar de ser sua amiga. Mas isso não é um filme de comédia romântica, a gente não tá assistindo "Esposa de Mentirinha" ou sei lá o que. — Citei o filme infeliz.
Ouvi uma fungada e então a minha ficha caiu.
chorava, sim.
— ? — Perguntei, com a voz mais suave, e me aproximei. Antes de chegar perto o suficiente, no entanto, ele se afastou mais uma vez e voltou a me encarar.
— Vai logo. Vai, . Foda-se, também. — Se jogou na cama, cobrindo o rosto com o travesseiro, e meu coração se quebrou em dez mil pedaços.
Eu fiz chorar.
Engoli a seco e virei as costas, saindo do quarto e fechando a porta em seguida.
Eu acabara de perder meu melhor amigo.
De verdade, agora.
-x-x-x-
Um dos colegas de república de chamou um táxi pra mim, e eu fui pra casa quieta pelo caminho inteiro. Dei uma nota alta qualquer pro motorista, sequer ligando pro troco, e passei pela portaria sem dar meu típico “boa-noite” pro porteiro, apesar de ter ouvido sua voz me desejar, em fato, uma boa noite.
Tarde demais, Sr. Porteiro.
Minha noite foi uma bosta.
Ao entrar no apartamento, me deparei com e dormindo abraçados no sofá, enquanto a televisão mostrava uma cena romântica qualquer de “Diário de Uma Paixão”. Soltei um sorriso e fui logo em direção ao meu quarto.
Deitei na cama e encarei o teto.
Flashback on - nove anos antes
Era uma tarde nublada. O sol não aparecia, estava escondido atrás das nuvens carregadas e cinzentas. Mas corria pelo gramado como se fosse o mais belo dia de verão que ela já havia presenciado. corria atrás dela, com a blusa completamente suja de barro.
— Nem vem, . Você não vai me sujar de lama! — A garota berrou, tentando apertar o passo. Mas já estava correndo há minutos, não aguentaria muito mais.
— Deixa de ser fresca, ! — O garoto gritou de volta, em um tom divertido.
— Não é frescura, ok? Minha mãe não quer que eu suje esse vestido, só isso! — Ela respondeu, parando finalmente de correr.
Era casamento de uma moça da vizinhança de . Os pais do garoto foram convidados e, como ele não conheceria ninguém e não queria ir sozinho, resolveu levar a melhor amiga com ele. Foi uma ótima ideia, ele estava se divertindo como nunca. Apesar da garota estar meio emburrada.
Sentaram-se nas balanças que estavam ali por perto. A festa estava sendo no sítio dos pais da noiva, e assim as diversas crianças poderiam divertir-se livremente pelos campos esverdeados. Era o que mais queria fazer, mas sua mãe dissera a ela que não deveria sujar aquele vestido, pois não era dela - era de Abigail, filha de George, seu padrasto. não conhecia a garota, mas já via que gostaria dela. O vestido era muito bonito, apesar de não saber muito dessas coisas de beleza.
— O que você achou da cerimônia? — perguntou, após um tempo em silêncio. Estava com aquilo na cabeça. Não entendia porque todas as pessoas pareceram emocionadas ao final da comunhão.
— Foi bonita, eu acho.
— Mas bonita como? Bonita por quê? — voltou a questionar. — Por que todo mundo gosta tanto disso? De casamentos, quero dizer.
— Porque é uma festa. A união de duas pessoas que se amam.
— Ué, e daí?
— E daí que elas se amam, ! É o sentimento mais poderoso do mundo. — Ela retrucou, com a voz um pouco cansada.
— E como você sabe disso? Já amou alguém? — O garoto fez mais uma pergunta, parecendo realmente confuso.
— Como assim? Eu amo várias pessoas. — respondeu, olhando para o adolescente ao seu lado. — Amo minha mãe, amo meu pai, amo George...
— Não esse tipo de amor! — Ele bufou. — Aquele tipo de amor. — Apontou para os recém-casados, que dançavam lentamente, próximos à casa principal do sítio, parecendo aproveitar apenas a presença um do outro.
— Ah. — pareceu entender. — Não, acho que não.
Ficaram em silêncio por alguns minutos, após concordar com a cabeça. Não havia realmente entendido o que fora aquela conversa, mas não sabia se queria continuar. Quero dizer, e se de repente percebesse que amava, sim, alguém? Daquele jeito? Ele não iria aguentar. Para ele, era só sua. Não se importava se aquilo soava um pouco babaca, nenhum outro menino poderia gostar dela. Não dela. Com tantas garotas disponíveis, se algum idiota resolvesse gostar de sua , iria se ver com o taco de baseball do pai de .
Ah, se iria!
Veja bem, ele cuidava da garota há quase sete anos. Fora seu primeiro amigo de verdade, assim como ela fora a dele. Ele se importava tanto com ela quanto se importava com sua mãe, ou seus peixes de estimação. E, para ele, era só dele.
— E eu? — Perguntou a ela, não conseguindo se conter.
— O que tem você, bobão? — Perguntou, sorrindo de canto.
— Você me ama?
se calou por alguns segundos, a boca entreaberta em surpresa. Mas que tipo de pergunta era aquela?
— Mas que tipo de pergunta é essa? — Verbalizou. — Claro que sim, ! Eu amo você! Eu amo você bastantão e você é, tipo, a melhor pessoa da face do universo inteiro! — Ela praticamente gritou, quase ofendida pelo fato que questionou seus sentimentos por ele.
O garoto sorriu e se levantou do balanço. Parou em frente à mais nova e esticou uma das mãos. Ela fez uma cara confusa, mas não perguntou nada. Se levantou sem a ajuda de (afinal, ela sabia se levantar sozinha) e o encarou em dúvida.
— Um dia eu vou casar com você, .
O QUE?
— O QUE? — A garota perguntou. — Por que diz isso?
— Ué, não é o que pessoas que se amam fazem? Elas se casam, não é?
— Sim, mas só quando elas se amam daquele jeito. — explicou, voltando a apontar para o casal, que ainda dançava.
levantou uma sobrancelha enquanto ria levemente. olhou pra ele, que a encarou de volta, olho no olho.
— E quem disse que eu não te amo daquele jeito?
corou, o que fez com que sorrisse ainda mais largamente, e desviou a atenção para qualquer outro ponto da festa. Voltou a sentar-se na balança, e usou as pontas dos pés para ir vagamente para frente e para trás, apenas porque não conseguia ficar parada. O garoto sentou-se na grama, de frente pra ela.
— , você já beijou algum garoto? — voltou a perguntar, deixando a mais nova ainda mais constrangida. Se é que era fisicamente possível.
— Não sei por que todo mundo me pergunta isso. , já beijou um garoto? , já gostou de algum garoto? , e como vão os namoradinhos? — Fez uma voz irritante, e riu alto. — Ué, não! Mas por que tem que ser um garoto? Não posso beijar uma garota? Ou gostar de uma garota? Ou ter uma namoradinha? — Continuou questionando.
— Você... Você gosta de garotas? — perguntou, um pouco amedrontado. Se ela gostava de garotas, não tinha como ela gostar dele nunca! A não ser que ele se tornasse uma garota... É, acho que ele estava disposto a se tornar uma garota por .
— Não. Mas eu poderia muito bem. Só que todos insistem em me perguntar só sobre garotos. Isso me dá raiva. Eu tenho uma tia que gosta de garotas, sabia? E ela é minha tia favorita! — Bradou alto, cruzando os braços e parecendo realmente irritada, e sorriu largamente.
— Voltando ao assunto inicial... Então você nunca beijou ninguém? — Ele perguntou novamente.
— Não. — não parecia decepcionada, muito pelo contrário, sorriu ao responder. — E prefiro assim. Meninos são babacas.
suspirou em alívio ao receber a resposta. Que ótimo! Ninguém tinha encostado em sua ...
— Mas tem esse garoto da minha sala que tentou, um dia desses, na festa de aniversário da Leen. — Ela continuou, e o sangue de ferveu.
— Mas você não deixou, né? — Ele perguntou, assustado.
— Eu acabei de falar que nunca beijei ninguém, . É óbvio que não deixei. — Ela afirmou novamente, rolando os olhos com a lerdeza do amigo.
— Ah, tá... Que bom.
— Também acho.
Novamente voltaram a ficar em silêncio por mais uns bons minutos. A mãe de passou por ali em determinado momento, perguntando se eles queriam um lanche. Mas eles haviam comido há pouco, minutos antes de cair na lama, sujar-se todo e decidir que queria sujar a amiga também.
— Por que você perguntou tudo isso? — A voz de voltou a se fazer presente.
— Isso tudo o que?
— Se eu já amei alguém, se já beijei alguém. Por que está interessado? — Ela parecia realmente curiosa, e não apenas ansiosa pela resposta para que pudesse “lhe dar um fora” e rir da cara dele.
O mais velho corou e se levantou, e isso surpreendeu . nunca cora.
— Bom, você sabe... — Ele se virou de costas pra ela, passando a andar lentamente enquanto chutava, de leve, a grama. — Porque... Porque, bem, porque… você sabe, né? Me entende? — Finalizou, após uma pequena enrolação de alguns segundos.
Virou-se novamente na direção da garota e se surpreendeu ao vê-la parada bem à sua frente, com os olhos um pouco mais arregalados que o normal. Encostou a palma da mão de leve na bochecha do menino, que segurou o impulso de fechar os olhos com o toque.
— Eita... Você tá mesmo corado. — Ela constatou, sorrindo de leve em seguida. — Que bobão! — Fez piada do menino, que rolou os olhos.
— , eu vou fazer uma coisa e tente não me bater ou me xingar por isso, tudo bem? — Ele perguntou, e ela concordou com a cabeça, apesar de extremamente confusa.
Ele fechou os olhos e respirou fundo. Aproximou a cabeça da menina e encostou seus lábios levemente, por apenas alguns segundos. Segundos o suficiente para que seu corpo todo fosse tomado por um arrepio e cada pelo que tomava sua pele ficasse levantado.
Se afastou, observando abrir lentamente seus olhos, enquanto o olhava surpresa até demais para o próprio bem. Seu coração batia mais rápido do que nunca, e ela estava verdadeiramente assustada com a reação de seu corpo.
Ela adorara o selinho.
Ofegante, a garota apenas se afastou um pouco e sentou-se novamente no balanço. seguiu seus passos e fez o mesmo no balanço do lado. Não falaram disso pelo resto do dia, nem pelo resto do mês, nem pelo resto do ano. Nem pelos nove anos que seguiram. Mas, ah, não tenha dúvidas: eles nunca se esqueceram.
Podem ter deixado aquela lembrança arquivada no fundo do cérebro. Mas ela ainda estava ali. Quietinha, imóvel. Só esperando para ser ativada novamente, e despertar. E causar um formigamento na alma.
Flashback off
Suspirei.
Talvez quem estivesse em estado de negação não fosse .
Talvez fosse eu.
Talvez eu quisesse estar abraçada com ele, dormindo, enquanto uma cena romântica qualquer de “Diário de Uma Paixão” passava na TV. Talvez eu quisesse abraçá-lo, beijá-lo e enchê-lo de carinhos, como ele mesmo disse.
Talvez eu quisesse ficar com ele de verdade.
Talvez eu gostasse dele.
Mas talvez já fosse tarde demais.
Uma única lágrima rolou pela lateral do meu rosto até encontrar o lençol.
Eu tinha perdido meu melhor amigo mesmo, não é?
Eu tinha perdido .
Eu fugi de , e de qualquer tipo de relação romântica que nós poderíamos chegar a ter.
Eu fugi dele.
Saí correndo, literalmente.
E ele me deixou ir.
Capítulo dezenove
Estranho pensar que em um ano tantas coisas podem acontecer.
Minha mãe e meu padrasto haviam vindo pra cima de mim com uma ideia de casamento falso em Abril.
Já era Março.
Em onze meses, eu havia recebido uma proposta de casamento, dito não a ela, feito uma proposta de casamento pra outra pessoa. Em onze meses, eu namorei meu melhor amigo, fiz novas amizades e fiquei popular na minha faculdade apenas por ter uma vida romântica. Em onze meses, eu conheci melhor pessoas que eu achava que conhecia direito.
Me decepcionei.
Me entristeci.
Mas, olha o absurdo: também me apaixonei.
nunca tinha se apaixonado por ninguém, e quando decide fazê-lo, decide que vai ser por , um cara que ela conhecia há anos.
Porra, .
Fazia uma semana desde que eu havia brigado com . Depois daquele dia, não derrubei mais nenhuma lágrima por ele. Eu tinha outras coisas pra fazer com a minha vida, e nunca fui de chorar por outras pessoas. E não começaria agora.
O que eu começaria era minha vida.
De verdade.
Sem meu melhor amigo. Por mais que isso não parecesse certo.
-x-x-x-
O prédio da Counting Knowledge tinha exatos vinte e dois andares de escritórios, gente mal-humorada e contas. Muitas contas. Afinal, era um escritório de contabilidade. Ficava no centro de Wolverhampton e era uma das construções mais modernas da cidade, já que o resto dela parecia estar presa no século XIX.
Entrei no elevador e apertei o número 22. Era o andar dos chefões. Os seis adultos babacas que resolveram estragar as vidas de seus filhos. Lá pelo décimo quinto andar, uma voz saiu das paredes do elevador.
“No que posso ajudar?” A voz falou, e a moça parecia absurdamente entediada.
— Ahn... Vou no escritório de George. — Não sabia qual sobrenome ele usava, o dele ou o da minha mãe, então apenas falei seu primeiro nome. — Sou a enteada dele, .
“Tudo bem, senhorita , vou anunciar sua chegada.”
Ao chegar no andar desejado, a porta do elevador se abriu e eu dei de cara com um enorme e estreito corredor, com diversas portas. Saí do cubículo e me perguntava pra onde eu deveria ir quando uma das portas se abriu, revelando uma mulher que não deveria ser tão mais velha que eu.
— Por aqui, senhorita . — Ela me chamou com a mão e eu fui até ela, seguindo-a para dentro do escritório. Esse, por sua vez, tinha apenas a mesa da secretária e alguns sofás, além de mais duas portas e uma máquina de café. — Pode entrar, o senhor Houston já te aguarda.
Agradeci e segui até a porta que tinha uma plaquinha com os dizeres “George Houston, CEO”. Levantei as sobrancelhas e entrei sem bater, encontrando G mexendo em uma enorme estante ao lado de sua mesa. Ele não me olhou, mas eu sabia que ele notara minha presença. Segui até uma das cadeiras em frente à sua escrivaninha e me sentei ali. Logo, ele me acompanhou, sentando-se à minha frente.
— Oi, . Tudo bem? — Ele perguntou, mas eu não respondi. Estava focada demais em uma foto na estante. A mesma que tinha no meu colar; eu, Abby, e nossos pais. Automaticamente, levei a mão ao pingente. Eu tinha parado de usar o colar de avião de papel que ganhara do meu pai aos oito anos. Eu agora usava o presente de Abby todos os dias. — Você me parece meio distante. Quer conversar? — George perguntou, largando alguns papeis na escrivaninha e cruzando os dedos.
— Tá tudo bem, sim. — Respondi, algum tempo depois. — Eu acho.
Ficamos mais alguns minutos em silêncio, e meus olhos ainda estavam cravados na foto. Mais precisamente, na garota ao meu lado.
Me pergunto se seguiu meu conselho.
Se pediu Abby em casamento.
Um lado meu esperava que sim, enquanto o outro ainda queria que ele fosse atrás de mim mais uma última vez. Mas, não, era errado. Ele havia ido atrás de mim muitas outras vezes, e eu não o dei nenhuma chance. Estava cega demais pra perceber o quanto gostava dele.
Além da amizade.
E, apesar dele ter me magoado além dos limites do aceitável, amor tem a ver com perdão, também, né? Pelo menos era o que eu via nos filmes do Nicholas Sparks.
Quando uma das pessoas do casal não morria, quero dizer.
— ... Eu estava pensando. — George se levantou e deu a volta na escrivaninha, parando ao meu lado. Virou minha cadeira e se agachou à minha frente, pousando as mãos levemente em meus joelho. — Não vou te forçar a nada. Nada que a deixe infeliz. Demorou um pouco para que eu percebesse, e eu me odeio um pouco por isso, mas a felicidade da minha filha é mais importante que meus negócios.
Minha filha.
George me chamou de filha.
Não pude impedir que meus olhos lacrimejassem um pouco, e sorri para o cara à minha frente.
— Que bom, G. Fico muito feliz por isso. — Respondi, e segurei uma de suas mãos entre as minhas. Sorrimos um para o outro. — Juro, você não faz ideia do quanto isso significa.
— Eu conversei com os outros e, junto com Ewan e Walter, conseguimos convencer os outros três.
Parei na hora. O sorriso, que estava até então no meu rosto, se desfez. Eu só poderia ter ouvido errado. Uma abelha entrou no meu ouvido e estava prejudicando minha audição.
— Ewan? Ewan ? — Perguntei, para ter certeza de que não estava ficando louca.
— Sim. O pai de . — George sorriu de canto, com certeza sabendo o que se passava em minha mente. Aquele homem me conhecia muito bem.
Soltei as mãos do meu padrasto e me joguei de encontro ao encosto da cadeira, batendo as costas com força. Aquilo não parecia algo que Ewan faria: convencer os outros a não lucrar. Porque esse era o plano original. Eles tinham inventado toda aquela baboseira de casamentos arranjados apenas para que pudessem lucrar mais.
E se existia alguém que gostava de lucrar mais do que George Houston, esse alguém era Ewan .
Engoli a seco enquanto olhava para os pés do homem à minha frente, que já havia levantado e estava reclamando de dor nas costas. Pensei em qual seria a reação de ao descobrir que o pai dele havia desistido da ideia. Ele iria ficar tão feliz… Eu gostaria de ver seu rosto quando recebesse a notícia.
Merda, . Tá tendo pensamentos apaixonadinhos de novo.
— Bom, já que os planos foram abandonados, acho que posso ir embora, então.
— O que você veio fazer aqui, de qualquer jeito? — G perguntou, enquanto pegava algumas coisas na gaveta da escrivaninha.
— Vim te avisar que eu ia desistir dessa loucura. Aí você me deu essa notícia maravilhosa. — Sorri e me levantei, indo de encontro ao meu padrasto. — Tchau, G.
Ele me abraçou com força e eu me senti bem. Meu pai me abraçava daquele jeito, como se eu estivesse toda quebrada e seu abraço pudesse me colar de volta.
Eu sentia falta daquele abraço.
George nunca reporia o buraco que meu pai havia deixado em meu peito. Ninguém nunca faria aquilo. Mas eu sabia que meu padrasto me amava tanto quanto amava a própria filha, e eu o amava como um pai também. Apesar de ele quase ter acabado com a minha vida, ele tinha se arrependido e era aquilo que importava. Eu estava orgulhosa.
Minha mãe deveria estar puta da vida.
Dei mais um tchau e saí do escritório com um sorriso nos lábios. Sorriso, este, que durou pouco. Isso porque, no final do corredor, o elevador se abriu e, de dentro dele, saiu uma figura muito conhecida.
Apertei as mãos em punhos ao ver , respirando muito forte. Me bateu uma dor de cabeça repentina, e eu não conseguia sair do lugar.
Ele levantou a cabeça e seus olhos vieram diretamente até mim.
Ele também estancou no lugar.
Ficamos nos encarando pelo que pareceram séculos, mas no fundo eu sei que foram apenas alguns segundos. Voltamos a andar ao mesmo tempo, e nos encontramos exatamente no meio do corredor.
Na minha cabeça, a pergunta “O que você tá fazendo aqui?” parecia berrar, e eu queria berrar também. Queria berrar tudo que estava entalado no meu peito, tudo que eu queria dizer a ele há dias. Queria contar a novidade, que ele não precisaria mais se casar com ninguém, queria dizer que o amava. Mas continuei quieta, e passei por ele o mais rápido que pude, praticamente correndo em direção ao elevador. Ao chegar no mesmo, apertei com força o botão de térreo, e antes que as portas se fechassem, consegui enxergar de longe os olhos decepcionados de ainda me observando.
-x-x-x-
Cheguei em casa exausta. Após ver , eu tinha a sensação de que havia levado uma surra e ainda tinha sido colocada em uma máquina de lavar roupas ligada. Meus ossos doíam e minha cabeça latejava.
O que o amor não causa.
não estava no apartamento, já que estava na cafeteria. Encontrei uma jaqueta no meio do caminho até o meu quarto e, por ser grande demais, soube que não era dela, e sim do seu noivo.
Noivo.
Que palavra bonitinha.
e iriam se casar em dois meses, e eles haviam me convidado para ser madrinha deles através de um grupo no facebook que falava do evento. Essa sociedade moderna é meio estranha.
Ao chegar no quarto, joguei a bolsa na cama e fui rápida ao tirar os sapatos. Estava com muita vontade de tomar um banho, mas minha fome falava mais alta. Calcei um par de pantufas e fui para a cozinha, logo tirando do armário um copo de cup noodles. Coloquei água num outro copo, de vidro, e enfiei no microondas.
Assim que apertei a tecla para que o tempo começasse a rodar, o telefone tocou. Fui até a sala e peguei o aparelho, atendendo a chamada.
— Alô?
— O que diabos está acontecendo? — A voz de Abby praticamente berrando do outro lado da linha me surpreendeu.
— Pergunto eu. Por que tá me ligando?
— Simples! me chamou dia desses no facebook pra perguntar se eu estava solteira. — Engoli a seco. Merda. Ele havia, de fato, seguido meu conselho. — Isso por si só já foi estranho. Mas, antes de me deixar sequer digitar uma resposta, ele disse que não se importava, e você sabe o que ele fez em seguida?
Abby fez um silêncio estranho, provavelmente me dando tempo para tentar adivinhar. Mas só de pensar em algumas possibilidades, eu fiquei com vontade de vomitar e, por isso, fiquei quieta. Ela notou que eu não falaria nada, sequer perguntaria “o quê?” e suspirou. Quando voltou a falar, sua voz estava mais calma.
— Ele me pediu em casamento, .
Meu mundo caiu. E eu fui junto.
Sequer me esqueci que não estava na frente do sofá, perdi o equilíbrio e literalmente caí de bunda no chão. Abri os braços na tentativa de tentar me segurar em alguma coisa, mas o máximo que consegui fazer foi derrubar uma cadeira ao meu lado. Cadeira, esta, que eu não entendi o que estava fazendo na sala - ela era da mesa da cozinha.
— Meu deus, o que aconteceu aí? — Abby perguntou, rindo de leve. — Não precisa se desesperar tão rápido, garota, eu neguei o pedido.
O microondas apitou na cozinha. Foi minha motivação para me colocar de pé e ir para o cômodo ao lado. Gail continuava rindo no telefone, enquanto eu tirava o copo do micro tentando não me queimar.
— Por que você disse que não? — Perguntei, com certo receio da resposta.
Foi a vez dela de ficar quieta por um tempo. Mas logo voltou a falar.
— Por dois motivos. — Pude imaginar que ela estava enumerando com a mão livre. — Primeiro: nem ele nem você me deixaram terminar, mas eu não estou solteira. Conheci um cara quando voltei pra Londres da última vez que estive aí, e estamos juntos desde então. E eu realmente gosto dele.
Soltei um suspiro de alívio e sorri, realmente feliz. Coloquei a água quente no copinho de macarrão e mexi com uma colher que estava jogada ali na pia, mas que parecia limpa. Nojento, eu sei, mas eu joguei uma água nela antes.
Como se tivesse resolvido alguma coisa.
Enfim.
— E o segundo motivo? — Questionei, quando notei que Abby estava enrolando pra falar.
— Porque seria sacanagem com você.
— Comigo? E desde quando você se importa com o que seria sacanagem comigo? — Eu quase ri, mas então pensei que ela poderia ficar ofendida, desligar na minha cara, ligar pro namorado só pra terminar com ele e então voltar atrás na resposta que tinha dado a , dizendo que queria, sim, casar com ele.
— Eu sei que não tenho sido uma boa irmã nos últimos… sei lá, seis anos. E boa parte disso foi por pura inveja da sua amizade e proximidade com . Mas agora eu vi o quanto fui babaca e, apesar de ainda te odiar pra valer, quero tentar reconstruir nossa relação.
Eu estava sonhando.
A abelha que tinha entrado no meu ouvido mais cedo, além de prejudicar minha audição, tinha me causado uma reação alérgica que me fez desmaiar e, agora, eu estava num hospital, em coma, sonhando com aquilo que estava acontecendo.
Era a única explicação para o fato de que Abigail Houston, minha inimiga-irmã desde os catorze anos, estava querendo parar de ser minha inimiga-irmã.
— A pergunta certa é: por que você ainda não casou com ele?
Engasguei com o macarrão que tinha colocado na boca. Coloquei o telefone na pia e corri para buscar água e tentar me acalmar. Podia ouvir Gail berrando no aparelho, perguntando o que tinha acontecido e se eu estava bem. Demorei para me recuperar e, quando finalmente consegui, corri para voltar a atender a garota.
— Como assim, por que eu não casei com ele ainda?
— , vocês se amam. É óbvio. — Ela soltou uma bufada do outro lado da linha, e eu mordi a parte interna da bochecha. Era tão óbvio assim? — E vocês simplesmente têm que ficar junto. É tipo uma obrigação.
— Mas ele tá muito puto comigo, acho que não tem volta.
— O que você fez?
— Longa história. Mas nos vimos hoje e ele ficou me encarando com uma cara brava por vários segundos. E eu também fiquei sem coragem de tentar falar alguma coisa.
— Ai, garota. — Ela riu. — não fica bravo com você nunca. Você poderia colocar fogo na casa dele, com o peixe dele lá dentro, e ele ainda assim te perdoaria se você pedisse. E você sabe como ele ama aquele peixe.
Fiquei quieta, parando até mesmo de comer meu macarrão. Será que ela estava certa? Se eu pedisse desculpas mais uma vez, será que ele me escutaria? Me perdoaria?
Será que teríamos outra chance?
— Por favor, tenta falar com ele. Me pedir em casamento só deixou claro o quanto ele está desesperado. Apesar de tudo, você é família, e eu quero te ver feliz. Não muito feliz, mas pelo menos um pouco.
Suspirei e dei risada. Aquela conversa estava estranhamente interessante.
— E, pra minha infelicidade, eu te vejo muito feliz com o . — Ela riu também, e eu coloquei mais uma garfada de macarrão na boca. — Vocês são perfeitos um pro outro, , sempre foram. E devem continuar assim.
— Nada na vida é perfeito, Abby. — Respondi. Me surpreendendo (e me causando um deja-vu), Gail respondeu:
— Você e são.
Epílogo
Era verdade que, após a ligação de Abigail, eu tivesse ficado levemente mais motivada a tentar de novo com . Mas toda vez que eu pensava em ir novamente atrás dele, me desculpar, fazer acontecer, eu me lembrava da discussão que havíamos tido em seu quarto na república.
E, toda vez que eu me lembrava dessa briga, eu me sentia suja.
Me sentia horrível.
Me sentia maldosa.
Me sentia humilhada.
Eu havia não apenas me humilhado na frente dele, como também havia o humilhado. Acho que eu nunca havia dito coisas tão péssimas pra alguém antes. E o pior de tudo: não era uma simples pessoa qualquer. Era . Meu melhor amigo. Ou ex, sei lá.
Como eu havia conseguido dizer aquelas coisas?
Por isso, toda vez que eu pensava em ir novamente atrás dele, me desculpar, fazer acontecer, eu desistia no meio do caminho. Porque, se fosse eu no lugar dele, eu não o desculparia. Assim como não o desculpei pela fatídica revelação feita por Ellinor no dia dos namorados. Assim como não atendi suas ligações e, quando o liguei por fim, o fiz apenas pra terminar a nossa quase-relação.
Por que diabos ele não faria o mesmo comigo?
Eu merecia, afinal.
-x-x-x-
— E então você entra com o Bret, cada um carregando uma aliança. Vão cada um pra um lado, você fica do meu e o cara fica do lado de . Vou te dar meu buquê e você o segura até o final da cerimônia, ouviu? E tem que prestar muita atenção no padre, sei que você vai se distrair, mas não é pra se distrair, ! Tem que prestar atenção, porque ele vai dizer “e agora, a troca de alianças” e aí é sua deixa, você tem que me dar a aliança enquanto o Bret dá a aliança pro pra que a gente troque as alianças. E aí vai ter o beijo e tal e nós saímos primeiro, e aí antes de eu sair você tem que me devolver o buquê porque ele é meu!
falava como uma matraca. Eu estava sentada no sofá enquanto ela andava de um lado pra o outro na minha frente. Só de vê-la se mexendo tanto, eu estava com um pouco de tontura.
Era meio de maio. Havia se passado oito meses desde o noivado de e , e eles estavam pra se casar logo. Os preprativos estavam à tona, eu seria a madrinha, junto com o melhor amigo de . Eu nem conhecia o cara. Mas preferia entrar com ele. O plano inicial era eu entrar com . E aquilo não era algo que eu queria.
Dois meses se passaram desde a ligação de Abby, e eu não tive a cara de pau de tentar nem um mínimo contato com nesse meio tempo. Eu sabia como ele estava graças aos meus pais, e de vez em quando, . Mas só sabia o geral, nada muito aprofundado. George estava querendo se aposentar, Abby estava terminando o curso em Londres, e estava pensando em assumir a gerência no lugar de seu pai, pelo menos até ter dinheiro pra fundar sua própria loja de roupas.
Eu também estava terminando minha faculdade, e pensava em abrir uma escola de tutoria pra alunos com dificuldades. Teria de achar outros professores de outras matérias, mas seria um negócio interessante. Eu gostava de explicar, descobri esse traço sobre mim mesma quando passei a ensinar Cameron.
Cameron que, por sua vez, nunca mais vi. E isso não é uma reclamação. O garoto era um pé no saco.
continuava falando sozinha - porque eu que não estava prestando atenção - quando a campainha tocou. Ela ficou estática na hora e correu pra atender. Quando vi seus pais entrando, tratei de sair discretamente da sala, indo nas pontas dos pés pra o meu quarto.
Os pais de eram meio neuróticos. Eu não gostava muito deles.
Chegando ao quarto, tranquei a porta. Pendurado na maçaneta do meu guarda-roupas, estava o vestido que eu usaria no casamento, que seria em uma semana. Me aproximei da peça e passei suavemente a mão pelo tecido. Ele era de um ombro só, a alça ornamentada por flores artificiais. Todinho verde água. A parte abaixo do busto era chanfrada, e formava dobras charmosas pelo resto do vestido.
tinha um bom gosto, isso eu podia admitir.
Me joguei na cama. Estava um pouco apavorada com aquele casamento. Minha família inteira havia sido convidada, ou seja, até Abby e seu novo namorado viriam. Mas esse nem era o problema. O problema era . Eu estava com medo de não conseguir me portar ao vê-lo. Afinal, eu ainda era . Havia esbarrado numa criança e quebrado uma mesa de bebidas, espalhando ponche por todo o lado - e tudo isso só no noivado.
Imagina a merda que eu faria no casamento.
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O dia chegou. Eu estava com nos fundos da Igreja, tentando ajudá-la a ficar pronta. O problema é que ela estava afobadíssima, não prava quieta um segundo. A maquiadora, a cabeleira, a mãe, eu e as outras madrinhas - todas nós já havíamos mandado que ela ficasse quieta, mas quem disse que ela ouviu alguém?
Estava até mesmo chorando antes da hora. Foi o momento em que a maquiadora mais brigou com ela, porque tinha acabado de passar lápis e rímel. E parecia que tinha esperado ela acabar pra começar a chorar.
Gente mimada e teimosa é mimada e teimosa até depois dos vinte.
Fiquei de saco cheio e saí do quartinho. Queria ter algum tipo de vício pra aliviar o estresse. Tipo fumar. Pensei, acho que vou começar a fumar. É chique, e ri de mim mesma. Fui pra longe do “camarim”. Aposto que logo ia sair dali atrás de mim, e se eu estivesse bem na porta ela iria me puxar pra dentro, mas se tentasse me procurar, as outras não deixariam e a puxariam de volta pra ela terminar de se arrumar.
Eu só saía ganhando.
Dei uma espiada do lado de dentro da igreja. Os convidados conversavam alegremente, esperando o momento em que a cerimônia começaria. Consegui ver as famílias do casal, sentadas lado a lado. tinha um irmão mais novo e uma irmã mais velha. Eu não lembrava daquilo. era filha única, então seus pais conversavam entre si enquanto a família interagia apenas consigo mesma.
Meus pais estavam algumas fileiras atrás, Abby e seu mais novo companheiro de namorico. Ele era bonito, apesar de ter cara de criança. Me perguntei quantos anos ele tinha, e se minha meio-irmã era meio-pedófila.
Do outro lado do corredor, na mesma fileira, estavam os . Ewan e a mulher, Dorothy, conversavam alegremente enquanto , ao lado da mãe, mexia no celular. Não consegui segurar a curiosidade. Será que ele estava conversando com alguém? Será que era uma mulher? Será que ele já havia me superado?
Porque eu, definitivamente, estava longe de superá-lo.
E, apenas por ironia do destino, Allison e Walter Cooper estavam sentados à frente dos . Era óbvio que Edmund havia sido convidado também, mas ele não estava lá.
Estava me perguntando onde ele poderia estar quando senti uma mão em meu ombro repentinamente. Saltei uns cinco centímetros do chão e soltei um berro enquanto me virava, apenas pra dar de cara com Ed rindo loucamente da minha cara. Tentei controlar a respiração e coloquei a mão no peito, sentindo meus batimentos cardíacos acelerados como Usain Bolt.
— Desgraçado seja, Edward! Quase me matou, boboca! — Reclamei, errando seu nome de propósito e ele só riu mais.
Estava meio curvado, as mãos na barriga e provavelmente quase mijando nas calças enquanto ria.
Demorou uns bons minutos pra se recuperar.
— Você tinha que ter visto sua cara! Foi muito hilária, você fez bem assim, ó! — Tirou um sarro, em seguida fazendo uma cara de espanto tentando me imitar, mas ele estava tão bizarro que duvidei que minha cara conseguisse se dobrar daquele jeito esquisito.
Com a imagem mental de sua própria imitação, ele voltou a rir, e eu lhe dei um tapa no braço. Ele soltou um “ai” e finalmente ficou quieto. Olhou pra mim e apenas sorriu, que nem gente.
— Como você tá, ?
— De boa. Tentando aguentar essa barra pesada que é a vida.
Ele riu mais um pouco e parou ao meu lado, também olhando pra dentro da igreja. Depois de um tempo varrendo o local com os olhos, fez uma careta.
— Seu namorado tá me encarando com raiva.
Me virei e tentei achar o que ele estava falando. Encontrei realmente nos encarando, mas assim que viu que eu olhava pra ele também, tratou de virar pra frente e voltar a mexer no celular.
— Nossa, não sou obrigada. Fica encarando e quando eu faço o mesmo nem tem a cara de pau de sustentar o olhar.
— Coisa de gente covarde.
— Cala a boca.
— Ué?
— Só eu posso falar mal dele, Ed. — Expliquei, fazendo o cara rir de novo. Ele estava particularmente feliz aquele dia.
Voltei a olhar pra dentro da igreja, mas havia desistido de vez de ficar olhando. Dei tchau pro Ed e voltei pra o quarto onde sua prima estava se arrumando. Chegando lá, já estava de pé, arrumada, se olhando num espelho que ia do teto ao chão. Me viu pelo reflexo.
— Como estou? — Perguntou, parecendo receosa.
— Perfeita.
Eu não menti. O vestido era inspirado no de Kate Middleton no casamento real. Mangas compridas, rendadas. O decote era um pouco maior que o do vestido da duquesa, e a cauda era mais curta. O tecido também tinha um tom mais perolado, voltado pra um dourado suave. Estava usando sapatos e jóias caríssimas, porque é óbvio que os pais queriam ostentar num evento desses.
Se bem que, se fosse eu, não reclamaria. O anel de noivado brilhava mais que uma supernova e provavelmente valia mais que a minha casa toda.
E o terreno.
E as ações de George na empresa.
E toda a minha vida, provavelmente.
sorriu ao me ver avaliando seu vestido. Virou-se e me olhou, os olhos brilhando em expectativa. Me aproximei e estendi as mãos, que ela segurou entre as suas. Sorrimos uma pra outra.
Era o dia mais especial da vida dela, eu acho.
— Você ama o cara? — Fiz questão de perguntar.
Acho que era algo importante num casamento.
— Não do jeito que eu achei que amaria meu marido quando sonhava, aos dez anos, em me casar. Mas talvez o amor seja só isso. Só esse borbulho na barriga e leveza na alma.
— Acho que pode ser só isso.
— Se não for, tenho certeza de que to no caminho certo pro amor completo.
Assenti e apontei com a cabeça pra a porta. respirou fundo e olhou pra as outras moças que estavam na sala. Saímos da sala e nos encontramos com os padrinhos. já estava no altar. Sorri pro tal Bret, que me acompanharia, e ele devolveu. Éramos os últimos. Antes de entrar, olhei pra uma última vez. Ela parecia ansiosa. Acho que fiz uma pergunta com os olhos, porque ela respondeu:
— Sim. Eu amo o cara.
Sorri e me preparei pra entrar.
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Não foi um casamento surpreendente. Foi como todos os outros que eu havia ido na vida, e foram poucos, porque eles nunca me pareceram convidativos. Tive que ficar o tempo todo de pé, meus sapatos estavam me matando porque eu não tinha costume de usar salto alto.
Prestei atenção no padre.
Porque, se não prestasse, a única outra coisa que me chamava atenção era .
E eu não iria ficar encarando o .
Então prestei atenção no padre.
Fiz minhas tarefas: segurei o buquê, entreguei aliança, devolvi o buquê. Não foi difícil.
Vi várias pessoas chorando. Nunca entendi por que elas choram. Metade dos casamentos termina em divórcio. Metade do amor jurado eterno termina na metade. Não é bonito. É bem triste, na verdade.
Já na festa, eu estava sentada em uma mesa qualquer junto com minha família e a família de Edmund. Estava entre Ed e Abby, que não conseguia fazer outra coisa fora ficar se agarrando com o novo namorado. Não tinha falado muito comigo desde que chegara pro casamento, um dia antes. Não que eu me importasse. Acho que nenhuma de nós estava pronta pra recomeçar a relação de irmãs.
Pelo menos, não ainda.
Ed de vez em quando se virava na minha direção e conversávamos por incontáveis minutos, mas então cada um virava pra o outro lado e a conversa ia embora, voltando apenas muito tempo depois. Estávamos nesse vai-e-vem. Talvez quiséssemos ser íntimos, mas ainda não havíamos chegado lá.
Mas seria bom ter um novo amigo. Com , eu havia descoberto que gostava daquilo.
E por falar no diabo…
— , vem tirar uma foto comigo e com o ! — Chegou berrando e já puxando minha cadeira pra que eu me levantasse logo. — E vocês são os próximos, família da .
— Pode deixar, senhora . Eles sabem disso.
Com a minha menção ao seu recém-adquirido sobrenome, apenas sorriu mais abertamente, me puxando pela mão até onde conversava com o fotógrafo…
E com .
— , o que diabos?
— Calma, ele não vai tirar a foto com você. Mas ele foi o último a tirar com a gente, então puxou um papo com enquanto eu fui te buscar. — Ela explicou, e eu soltei um suspiro aliviado. Ainda não estava pronta pra ter contato com ele.
E nem ele comigo, já que fechou a cara e virou as costas assim que me viu, saindo de perto do noivo.
me cumprimentou com um abraço apertado, alegando não ter me visto muito ultimamente. O que não era mentira, já que começou a me monopolizar quando ainda faltava um mês pro casamento. Parei no meio dos dois e tirei dezenas de fotos, cada uma com uma pose diferente e divertida. Eu não gostava de fotos sérias. Na verdade, não gostava muito de fotos em geral, mas se era obrigada a tirar, então que fosse algo legal, não algo comum e sem graça.
Depois de duzentas fotos, me separei do casal e fiz um gesto chamando minha família, pra que pudessem tirar fotos com os também. Eles se aproximaram e tiramos mais três fotos, duas padrão e uma a mais porque Abby alegou ter piscado. Quando o fotógrafo disse que tinha terminado, olhei para os lados em busca de . Não encontrei. O que vi foi Edmund me encarando profundamente e, quando botei meus olhos nele, ele apontou discretamente com a cabeça pra uma porta que dava pra uma espécie de sacada.
Encarei a porta e me perguntei se estava mesmo pronta pra falar com ele. Querer, eu queria mais que tudo. Sentia falta da presença do meu melhor amigo, seus sorrisos discretos e seu cabelo que crescia tão rápido. Sentia falta de seus abraços apertados, por mais que eu nunca gostasse deles, e sentia falta de suas brincadeiras irônicas e sem graça na maior parte do tempo.
Eu sentia muita falta de .
E por isso, queria muito ir atrás dele. Mas, como já havia dito, não sabia se teria coragem. Porque meu maior medo era sua reação. Na verdade, meu maior medo era que sua reação viesse em forma de “não”. Tinha medo que ele me rejeitasse. Que ele não sentisse mais minha falta. Que ele não me quisesse mais como queria antes. Como eu o queria agora.
Suspirei e comecei a andar de volta para minha mesa. Na metade do caminho, antes que pudesse perceber, fui abordada por mãos me segurando forte pelos dois braços. Olhei pros lados e, na minha esquerda estava Edmund, enquanto Abigail estava na direita. Eles me pegaram com vontade e me arrastaram pra longe da mesa, em direção à porta que Cooper havia indicado.
— Que porra vocês estão fazendo? Me soltem, seus loucos! — Mandei, mas não surtiu o efeito que eu queria. Na verdade, eles se entreolharam e riram.
Riram!
— Você não vai fugir disso pra sempre, . — Quem me respondeu foi Gail, assim que paramos na frente da porta. — Entra aí por vontade própria ou eu abro a porta e te jogo lá fora.
Olhei incrédula pros dois, que tinham sorrisos estampados nas caras de pau. Não sabia como reagir, e, no fundo, sabia que se reagisse eles iriam fazer o que estavam prometendo. Por isso, apenas chacoalhei os braços pra que eles me soltassem e, respirando fundo, abri a porta e, sem olhar pra trás, fui pro lado de fora.
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estava de costas, olhando pro movimento na rua, apoiado no murinho que separava a calçada da propriedade do salão de festas. Um carro passou e deu alguns passos pra trás a tempo de não ser acertado pela água que o carro levantou com as rodas quando passou por ali.
Quase ri com sua esperteza, mas eu estava tão nervosa que só sabia tremer. Ele não parecia ter notado minha presença ainda, ou se tinha notado, estava me ignorando maravilhosamente. Cansada daquele tratamento, resolvi botar a cara no sol.
— Abby me ligou. — Disse, e ele se virou num pulo, com uma feição muito assustada no rosto.
É, ele não havia me notado.
— Disse que você a chamou no facebook e perguntou se ela estava solteira. E depois a pediu em casamento.
Ele engoliu a seco, ainda com a cara surpresa. Mas, logo depois, ficou sério e arqueou uma sobrancelha.
— Ciúmes?
— Ela disse que negou. Ela está com um namorado, e a única coisa que eles fizeram a noite inteira foi beijar. — Ele desviou o olhar por um segundo, coçando a palma da mão, desconcertado. — Não, não estou com ciúmes.
Ficamos nos encarando por um bom tempo, até que ele se virou de costas novamente e voltou para o muro, se apoiando lá e voltando a observar os carros do lado de fora. Demorei um tempo pra reagir, mas logo estava ao seu lado, fazendo a mesma coisa.
— Eu quebrei minha promessa. — Ele disse, depois de um tempo em silêncio. Olhei pra ele, questionando, mas ele ainda mirava a rua. Não me encarava de volta. — Eu prometi que um dia iria casar com você. Quebrei a promessa.
Ele se referia à mesma lembrança que eu havia tido no dia em que brigamos. O casamento da vizinha de quando tínhamos treze anos. Quando ele me disse, indiretamente, que me amava daquele jeito e me deu meu primeiro beijo. Primeiro selinho, na verdade, mas aquilo não importava. Lembrei do quanto eu tinha amado aquele selinho.
— Quebrou porque eu não deixei. — Expliquei, assumindo minha culpa. Minhas mãos estavam suando e minhas pernas estavam tremendo e eu tinha certeza de que se soltasse o muro, iria cair de bunda no chão. — Se eu tivesse deixado…
— Mas você não deixou. — Ele me cortou, e eu nunca havia ouvido sua voz tão fria. Nem quando ele foi me encher o saco no Café e me viu conversando com Cameron.
Olhei pra baixo, pros meus sapatos de salto que apertavam meus dedinhos e provavelmente iriam me causar uma joanete ou, no mínimo, um calo bem escroto. Ouvia que a respiração de estava alta, ele estava meio ofegante e aquilo estava me preocupando. não fica ofegante, pensei. Mas então lembrei que tinha errado sobre muitas coisas que eu pensava que sabia sobre no último ano.
Achei que ele não sentia ciúmes.
Ele sentia.
Achei que ele não corava.
Ele corava.
Achei que ele não chorava.
Ele chorou na minha frente.
Achei que ele não se apaixonava mais depois da menina que se mudou pros EUA depois do colegial.
Ele se apaixonou logo foi por mim.
É, eu estava bem errada sobre muitas coisas que pensei saber sobre meu melhor amigo. Olhei pra ele pelo canto do olho e ele estava com os cotovelos apoiados no muro e o corpo entortado pra frente, com a cara entre as mãos. Parecia um pouco desesperado e eu quis me matar, porque aquilo era culpa minha.
Eu fiz tudo aquilo com . Eu fiz ele sentir ciúmes, fiz ele chorar, indiretamente fiz ele se apaixonar e lá estava eu, fazendo ele sofrer. Tudo isso por mim. Eu precisava agir em relação àquilo ou me torturaria pro resto da minha vida, arrependida de não ter ao menos tentado consertar.
— Acha que dá tempo se eu deixar agora?
Ele pareceu surpreso, e eu me perguntei se eu era tão discreta assim ao ponto dele sequer considerar o fato de eu ter sentimentos por ele, se eu parecia tão insensível. Ficou me encarando com os olhos esbugalhados e a boca levemente aberta, enquanto eu tinha o cenho franzido, com medo da reação.
— Deixar… o que? — Ele não era burro, mas sim estava querendo ter certeza se o que estava pensando era verdade.
— Você cumprir a promessa.
Ficamos em silêncio de novo, ele ainda com aquela cara. Virei meu corpo pra que ficasse de frente pra ele e andei alguns passos até estar parada a apenas algum centímetros dele. fechou a boca e engoliu a seco de novo antes de também virar seu corpo pra ficar todo de frente pra mim.
— Achei que eu estava confundindo as coisas. — Sua voz tinha um tom de mágoa. Eu não estava surpresa. Eu também estaria daquele mesmo jeito. Na verdade, ele até estava calmo. Eu estaria surtando.
Como surtei na nossa conversa, quando o disse que ele estava confundindo as coisas.
— Me arrependi daquela conversa no minuto em que pus os pés pra fora da sua casa.
Seus olhos, que estavam de um tom tão escuro, ficaram levemente mais claros, e a sombra de um sorriso brincou em seus lábios. Ele parecia feliz que eu estava voltando atrás. Talvez Abby tivesse razão, e iria me perdoar mesmo se eu queimasse sua casa com seu peixe dentro.
— Me perdoa.
Ele voltou à quietude por infinitas horas que na verdade devem ter sido minutos. Mas dizem que tempo é psicológico, ou uma invenção do homem. O ponto é que ele pareceu demorar horas até que, finalmente, os cantos de seus lábios se puxassem pra cima e eu conseguisse ver a pontinha do seu dente canino quebrado - fato que havia ocorrido quando ele tentou morder uma fruta de mentira quando tínhamos catorze anos.
— Eu faço tudo por você, .
Eu senti a felicidade se alastrando por todo meu corpo, meu rosto, minha alma, até a mais funda raíz do meu cabelo. Fechei os olhos pra que ele não visse que eu queria chorar, e acho que soltei uma gargalhada ao mesmo tempo. Sem sequer medir força, me joguei em cima de , que quase se desequilibrou e nós quase caímos no chão. Ele se apoiou de costas no muro e eu fiquei na frente dele, ainda com as mãos ao redor de sua cintura enquanto sentia seus dedos se embrenhando em meus cabelos num carinho gostoso.
Olhei pra cima. Ele sorria daquele jeito que sempre sorriu quando olhava pra mim, desde que tínhamos sete anos. Aquele brilho no olhar e o canino quebrado brilhando do cantinho aberto da boca. Meus olhos ainda ardiam com a vontade de chorar, mas eu chorei tanto desde que perdi o que acho que nem tinha mais lágrima restante no meu corpo.
Vi quando ele se abaixou e fechou os olhos, e tremi por dentro quando senti seus lábios nos meus. Não perdi tempo e abri a boca pra que nossas línguas se encontrassem; nunca pensei que fosse sentir falta de um beijo, mas eu senti. Mesmo tendo beijado apenas, o que, duas vezes? Eu senti falta. Assim como senti falta de todo o resto dele.
Não durou muito, mas foi delicioso e cheio de sensações pelo corpo que me deixou flutuando. Logo ele se separou um pouco de mim, mas não muito, apenas o suficiente pra voltar a me abraçar.
— Não sou mais seu namorado inventado agora? — Ele perguntou, sussurrando no meu ouvido. Ri um pouco.
— Acho que nunca foi só invenção.
Rimos juntos e o silêncio voltou. Eu só queria ficar ali pro resto da vida, sentindo sua respiração contra a minha cabeça e seus braços ao meu redor, um carinho gostoso no ombro que ele fazia com as pontas dos dedos. Seu peito na minha bochecha, levantando e descendo conforme a respiração - que já tinha se acalmado.
Um medo passou rapidamente pela minha mente.
— E se a gente não der certo?
Senti um ventinho na cabeça quando ele riu contra meus cabelos. Me apertou com mais força contra si, tentando me deixar segura. E conseguindo um pouco.
— Eu sei que a gente vai. — Explicou, com confiança na voz. E eu acreditei. — Eu prometi. Um dia vou casar com você, .
E pela primeira vez na minha vida, eu tive vontade de comparecer a um casamento.
FIM
"Você diz que está só, você e a torcida do flamengo. Acorda cedo e se produz pra ver se aquela pessoa irá te notar hoje - faz isso todos os dias, e todos os dias não percebe que estava olhando pro outro lado
da sala enquanto a pessoa que mudaria seu mundo estava sentada e apagada a apenas duas mesas atrás de você. O amor é cheio de ironias, não tem local ou data marcada, apenas acontece, quando
você diz que amor não é pra todos, está realmente certa, pois a maioria não se da o trabalho de levantar e sair por ai pra esbarrar com o que é seu. Todos os seus amigos resolvem ir pra uma festa, e
você prefere ficar em casa pois não está bem, abre o armário da cozinha e não encontra nenhum remédio - olha que azar, resolve ir na farmácia comprar algum analgésico mas não sabe bem o que
comprar, e aparece alguém ali com um sorriso cínico pra te ajudar, sua dor de cabeça passa na mesma hora, e você até leva uns drops de morango dizendo que só estava querendo saber, e irá voltar
depois. Claro que irá voltar depois. Amar é sentir uma necessidade incontrolável de dizer que ama mesmo no meio de uma tempestade esperando um táxi que nunca chega. É ter uma intimidade, e eu
não estou falando de uma transa num sábado a noite, mas na confiança de uma vida inteira. Amor não é exigência, doamos o coração e seja o que Deus quiser, é um jogo de sorte cheio de blefes que
mais gente perdeu do que ganhou. Quando se gosta por amor não importa se ele mora na casa ao lado ou num país do outro lado, se ele é um Shakespeare ou um pedreiro nas cantadas, qualquer
pronuncia carinhosa irá te tirar um sorriso sincero. Você se pergunta diariamente quando e como irá acontecer, enquanto come um pacote de Doritos jogada no sofá torcendo pra que o telefone toque, e
que seja engano, e que seja solteiro, e que more perto, e que tenha Facebook, mas o telefone não toca, mas por que ele não tocaria? Olha que azar, deu problema na sua linha. Você liga pra companhia
telefônica e eles mandam um técnico novo, jovem, inexperiente, que faz muitas perguntas e não sabe ao certo por onde começar, na saída deixa o Email e diz que qualquer problema é só ligar. Claro que
irá dar problema, talvez amanhã você corte os fios do telefone com uma tesoura sem querer. Amor é mais sentimento do que percepção, talvez ele não note seu perfume novo, se o seu cabelo está mais
claro ou em cinquenta tons de cinza, talvez ele esqueça quando tudo começou e não lembre quando vocês farão um ano de compromisso, mas ele lembrará todos os dias de te fazer a mulher mais feliz
desse planeta. Então, pare de pensar quando ou como, não se limite aos porquês. Pare de procurar e comece a deixar as coisas serem como são, o acaso anda surpreendendo muito ultimamente."
Nota da autora (11/10/2015): É só isso. Não tem mais jeito. Acabou. Boa sorte. Não tenho o que dizer. São só palavras. E o que eu sinto não mudará.
Obrigada pelas palavras inspiradoras, Vanessa da Mata.
Eu sempre imaginei que finalizar uma longfic seria horrível. Mas nunca pensei que seria assim.
Namorado "Inventado" não foi minha primeira fic escrita, nem minha primeira postada, mas foi a primeira com essa repercurssão. Foi a primeira que conquistou leitores incríveis, foi a primeira que me deixou orgulhosa de ter escrito e postado. Foi a primeira fanfic que me deixou de coração quente de amor. Foi a primeira longfic a ser finalizada.
Escrever esse "Fim" no arquivo da história foi como pegar um pedaço da minha alma, guardar numa caixinha e jogar longe. Vocês não fazem ideia do quanto NI é especial pra mim, do quanto eu vou sentir falta de escrevê-la e postá-la pra vocês lerem.
Também vou sentir muita falta das reações de vocês. E por mais que eu já tenha novos projetos, acho que nada vai ser igual a NI. NI foi, e sempre vai ser, especial.
Obrigada, flores, por todo o apoio imenso e incrível que vocês me deram nessa jornada no último ano. Não tenho certeza quando comecei a postar a fic, mas isso não importa. O que importa é que ela foi finalizada hoje. Mas só no papel, porque eu sei que ainda vou pensar na Emily e no Ashton e na Tay e no Eric e no Ed e na Abby e no George e na Agatha e em todo mundo por muito tempo. Eles são parte de mim.
Vocês podem me acompanhar em todas essas redes sociais aí embaixo. Também tem o grupo das minhas fics no facebook, onde vocês podem ficar sabendo das novidades - inclusive da minha próxima fic! Então não deixem de entrar.
Eu amo muito todas vocês. Muito.
Vejo vocês em breve, lindas! <3