Minhas Regras
Escrito por Annelise Stengel
Acordei, a cabeça girando um pouco e um gosto horrível pela minha boca. Minha cara, amassada contra um de meus travesseiros preferidos, não devia ser das melhores. E eu nem queria ver o estado do meu cabelo, cuja sujeira eu podia sentir, juntamente com o fedor de cigarro que impregnara nele. Forcei meus músculos a se mexerem e rodei na cama, percebendo com um choque que havia alguém comigo.
Imediatamente um calafrio desceu por minha espinha, arrepiando-me de um jeito desagradável. Eu não acredito que tinha quebrado minhas regras. Soltando um gemido baixo, retornei à minha posição inicial e enfiei a cabeça no travesseiro. O homem ao meu lado revirou-se na cama e senti seus dedos me tocarem nas costas, causando uma nova onda de sensações.
Não. Eu não posso, tentei dizer a mim mesma, forçando-me mais uma vez a me mover, e saltei da cama, encarando-o com o que eu esperava ser uma expressão desafiante, mesmo nua e com cara de ressaca.
No entanto, os olhos que me encaravam confusos de volta não eram , e seus cabelos não eram . O rapaz - desconhecido - que estava na minha cama naquele momento parecia extremamente perdido, sem entender por que eu me tornara arredia subitamente. Respirei com alívio, satisfeita por ter me lembrado de minhas regras enquanto estava bêbada. Elas eram muito importantes. Elas eram o que me impediriam de cometer um erro dos grandes de novo.
– Está tudo bem? – percebi, num sobressalto, que ainda estava pé, nua, em uma pose um pouco tensa, virada para o rapaz em minha cama, cuja voz grave despertou-me dos meus pensamentos. Sorri, um pouco sem graça.
– Tudo ótimo. Você gostaria de tomar café? – desconversei.
Na cozinha, relembrei conversando com o rapaz que seu nome era , e nos conhecemos na noite anterior, na festa que eu havia ido sozinha. Ele gostava de café puro, sem açúcar, e riu com a quantidade do mesmo que eu despejava em minha xícara. Seu cabelo caia um pouco em seus olhos e seu sorriso ladino era largo e pontudo. Seus olhos eram grandes, um pouco puxados quando ele sorria, e ele falava animadamente demais pra alguém que acabara de acordar. Eu, vestindo um moletom, calcinha e meias, apoiara minhas costas no encosto da cadeira e meus pés em suas coxas, recebendo um carinho na canela e no tornozelo enquanto o ouvia tagarelas. não pareceu se ofender com minha atitude defensiva ao acordar, e se mostrou uma companhia bastante simpática para o café da manhã tardio.
Interrompendo uma de suas falações, pedi licença para ir ao banheiro. Ele sorriu largamente de novo, e se serviu de mais café enquanto eu saía da cozinha. No caminho, um barulho irritante me chamou a atenção, mas eu já o conhecia e, como de praxe, ignorei-o. Quando voltei do banheiro, no entanto, estava na sala, segurando meu celular antigo e lendo com a testa franzida o post-it que eu colara eu sua tela. Ele notou que eu me aproximei e virou a tela para mim, arqueando as sobrancelhas em um questionamento.
– “Regra número 1: não atenda suas chamadas” – ele leu, em voz alta. Eu permaneci inexpressiva, indo até ele e tirando o celular de sua mão. Levantei o post-it e constatei que a chamada perdida realmente era dele. Minha resolução de não atendê-lo fraquejou um pouco, porque eu havia decidido que ele só me ligava quando estava sozinho e bêbado. Não estava um pouco cedo para isso?
– Sobre o que é isso? – , curioso, perguntou, provavelmente notando os outros post-its espalhados pela minha casa. Ergui meus olhos pra ele, enquanto o celular voltava a tocar e eu recusava a chamada com um simples movimento do polegar.
– Minhas regras – respondi, dando um sorriso.
pareceu continuar confuso, então depois de silenciar o telefone antigo e deixá-lo virado para baixo, de forma que o post-it ficasse escondido, puxei-o para a porta, onde a regra número 2 estava colada e podia-se ler claramente “Não o deixe entrar”. E então, voltei silenciosamente para o quarto, onde a terceira regra estava colada ao lado do meu abajur, onde toda manhã eu deixava meu celular novo carregando e lia a mensagem, como um mantra, para que não me esquecesse. “Não seja sua amiga”.
– Ainda não descobriu sobre o que é? – perguntei, sorrindo e me sentando na cama. pareceu um pouco constrangido e sentou ao meu lado.
– Um ex psicopata? – arriscou, me fazendo rir.
– Quase isso.
– Quando eu tinha visto os post-its, achei que estava tentando aprender uma nova língua ou algo do tipo. Tem mais um monte pela sala.
– Eles são lembretes – eu falei, rindo. Essas são as três regras básicas, e os outros são apenas post-its escritos “Regra 1” ou “Regra 2”, pra que quando eu os veja, me lembre da regra.
– E precisa de tanta resolução assim a ponto de espalhar post-its pela casa inteira? – sua mão alcançou a minha e brincou um pouco com meus dedos, dando-me uma desculpa pra manter meus olhos baixos enquanto respondia.
– Eu já cometi o mesmo erro vezes demais. Não confio tanto mais em mim mesma.
– Por isso você deixa seu celular antigo carregado, e no modo sonoro, mesmo se recusando a atender as ligações dele? – apontou e eu me mantive em silêncio. – Não seria melhor simplesmente desistir do número e deixar o celular descarregado?
Dei ombros. Eu sabia que seria, sim, bem mais fácil e melhor. Mas eu não conseguia, ainda, lidar com isso dessa forma. parecia esperar alguma resposta, e eu suspirei, cansada de sua intromissão nos meus assuntos pessoais. Ele era um caso de uma noite, por que se interessava tanto sobre minha dificuldade em superar meu ex? Mesmo assim, decidi contar pra ele.
– Eu estava ficando louca. Minha família falava que eu começava a falar dormindo. Eu ouvi várias e várias vezes que eu nunca aprendo, e que merecia aquilo. Ele me fazia muito bem, e eu o amava, mas ele nunca me amou de volta – falei, seca. Levantei-me e parei de costas para , observando as portas do meu armário. – Toda hora que eu tentava avançar, ele me puxava para trás. Eu nunca aprendo, não é mesmo? E se a gente não aprende, o que a gente faz? – voltei-me pra ele, que prestava atenção em tudo que eu dizia, mas só pôde me responder com um levantar de ombros. Sorri, sem exibir meus dentes. – Você estuda.
Apontei para os post-its pelo quarto.
– Técnicas de memorização. Criei minhas regras e estou me disciplinando a segui-las. Está dando certo até agora – virei-me mais uma vez pras portas do armário. – “Regra número um: não atenda o telefone, pois ele só liga quando está bêbado e solitário.” – recitei, em voz alta. – “Regra número dois: não o deixe entrar, pois depois você terá que chutá-lo pra fora.”
Espiei pelo canto do olho, voltando um pouco a cabeça para trás, percebendo que sua atenção ainda estava comigo. Ele era meio fofo, o . Quem sabe desse certo, mas eu não estava com muita fé nisso.
– “Regra número três: não seja sua amiga.” – ele leu do post-it, surpreendendo-me, e pareceu aguardar a explicação daquilo. Eu sorri, abrindo as portas do armário e encarando as palavras que eu havia pintado em vermelho na parte interna delas, para em seguida as ler em voz alta:
– “Você vai acordar na cama dele, mas se você estiver por baixo dele, nunca vai superá-lo”.