Mercúrio

Escrito por Lyra M. | Revisada por Lyra M.

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Capítulo Único - M E R C Ú R I O

   nunca teve problemas em se adaptar a novos lugares. Sua família era extremamente rica, e ela passara a vida toda viajando para todos os lugares possíveis do mundo: desde Colômbia até Noruega, e muito provavelmente já havia estado em todos os continentes. Inclusive, ela havia acabado de chegar de um intercâmbio, mas o problema é que não parecia que estava em casa.
  Ela olhou ao redor e nada estava muito diferente, com exceção de algumas lojas novas ou que passaram por alguma reforma. Mas quando olhava para as pessoas... era como estar em um sonho, e ser a única pessoa consciente de estar dormindo enquanto todos seguiam a vida normalmente.
  Bem, mais ou menos. Aliás, era muito irônico que ela tivesse pensado justo nessa comparação, visto que na verdade parecia que ela era a única pessoa acordada, enquanto todas as outras pessoas estavam em uma espécie de transe.
  À primeira vista, tudo parecia normal, mas ainda assim era perceptível que algo estava errado; todos estavam silenciosos e aéreos, mal pareciam perceber o que acontecia ao redor, e seguiam seus caminhos como se apenas estivessem cumprindo ordens e não tivessem livre-arbítrio. E, além disso, até o clima da cidade parecia diferente. Era raro um dia que não tivesse sol, mas agora o céu estava cinzento. Como se, além de uma chuva iminente, todas as fábricas estivessem trabalhando a pleno vapor, cobrindo o céu com uma nuvem escura e deixando tudo com um aspecto triste.
  Ela havia chegado de viagem durante a madrugada, e nem mesmo havia visto os pais; o comportamento do motorista estava daquele mesmo jeito estranho, mas havia passado despercebido, e o mesmo com os empregados da casa. nunca conversara muito com eles, afinal, e foi só ao sair de casa naquela manhã que ela reparara que todos estavam agindo estranho, e ela não sabia a quem recorrer.
  Olhando ao redor e apesar de todo o dinheiro e todas as mordomias que sempre teve, se sentiu perdida e sozinha, sem entender o que estava acontecendo ou o que fazer. Até então não havia visto uma pessoa sequer que não estivesse agindo daquele jeito bizarro, mas foi naquele momento que sua atenção foi capturada por uma única pessoa que também não se encontrava naquele torpor. Isso por si só já era digno de nota, mas o que realmente a surpreendeu foi o fato de que ela conhecia aquela pessoa.
  — ? — Ela perguntou para si mesma, franzindo o cenho. Ela parecia cansada e mais pálida, além dos cabelos loiros e compridos que agora eram curtos e negros, com uma franja. Mas mesmo com todas as diferenças, não havia a menor dúvida. — !
  O grito chamou a atenção de outros passantes, que olharam ao redor como se procurando a garota por quem gritara. A própria também olhou em volta, sobressaltada, e arregalou os olhos ao ver , que abriu a boca para gritar de novo. Antes que o fizesse, porém, a outra apressou o passo, deixando para trás uma confusa e se sentindo ainda mais perdida. Balançando a cabeça para espantar a confusão, ela também se pôs a andar, indo atrás de ; ela andava rápido, mas não muito. Quase como se quisesse ser seguida.
  Assim que virou em um beco, o instinto de quase a fez gritar. , que havia se escondido, pulou na frente dela, tampando sua boca e falando em um tom de voz baixo e urgente:
  — , eu preciso que você fique quieta. Nem pense em gritar, e me siga se quiser entender o que está acontecendo. — Ela esperou que a outra balançasse a cabeça confirmando, com os olhos arregalados de susto, antes de completar pausadamente, em um tom ameaçador: — E não me chame de . Esqueça esse nome.
  Lentamente, ela retirou a mão da boca de , esperando para ver se ela não gritaria mesmo, e as duas voltaram a andar, dessa vez lado a lado. tremia com a adrenalina, já que agora tinha certeza de que algo muito errado estava acontecendo. – ou seja lá qual nome ela estava usando agora – tinha o semblante sério, como um soldado que marchava para a guerra, e a guiou por entre becos e ruas vazias, em direção ao limite da cidade, quase abandonado e desabitado.
  No fim de uma rua, havia uma casa abandonada, com tábuas de madeiras tampando as janelas, e uma porta que parecia recheada de cupins. disse para entrar e assim ela o fez, embora estivesse com medo. O lugar estava vazio, mas seguiu até um armário sob a escada, onde um painel eletrônico estava instalado, contrastando com o aspecto velho e abandonado dos outros móveis e objetos.
  Digitando uma senha numérica extensa, a porta se abriu, mas não havia nenhuma prateleira ou objetos guardados. Em vez disso, uma escada levava até o subsolo, e desceu na frente, com atrás dela, tremendo de nervoso. Fosse o que fosse que ela esperava, certamente não era o que encontrou: um salão amplo e bem iluminado, cheio de computadores e aparelhos eletrônicos. Era como entrar em um forte ou um quartel-general, e os soldados também estavam presentes: jovens que, assim como , eram herdeiros das famílias mais ricas do país.
  — Voltei. — anunciou sua chegada. — E acho que encontrei reforço.
   reconhecia todos ali, embora estivessem ligeiramente mudados: todos com olheiras e expressões sérias, como se tivessem envelhecido muito em pouco tempo. Alguns haviam mudado o corte ou a cor do cabelo, como – que, por algum motivo, não respondia mais por esse nome –, e todos pareciam muito mais pálidos, como se não passassem um bom tempo ao sol há uma eternidade.
  — O que vocês estão fazendo aqui? O que está acontecendo? — Ela perguntou sem conseguir esconder um traço de medo na voz.
  — Eu sou Ajax. — O mais velho, com cerca de vinte e dois anos, respondeu, e algo no tom de voz dele indicou que aquele não era seu nome verdadeiro, e já sabia disso, mas era assim que deveriam se dirigir a ele agora. — Esses são Quione, Pollux, Anfitrite, Aquiles e Licaão, os outros estão na outra sala, pesquisando. Nós somos a Resistência.
  — Isso é algum tipo de piada? — A garota voltou a questionar, com um riso incerto, enquanto olhava para cada um dos presentes. O silêncio e a seriedade a fizeram apagar o sorriso do rosto. — E a que vocês estão resistindo?
  — Mercúrio.
   parou, balançando a cabeça como se quisesse afastar uma ideia absurda demais. Essa última informação fora como uma quebra de clímax, e se ela estava começando a acreditar que aquilo era real, então tudo voltou a parecer absurdo.
  — Mercúrio? — Ela questionou descrente. — Você quer dizer como no projeto da nova linha de computadores e celulares da TechCorp?
  — Exatamente como na nova linha da TechCorp. — Anfitrite falou em tom de segredo. — É a causa de tudo isso.
  A TechCorp, um dos mais importantes conglomerados do país, liderava todo o setor de tecnologia, desde eletrônicos até eletrodomésticos, e ainda estava em expansão. A última novidade fora uma linha de computadores, notebooks e celulares de ótima qualidade, com tudo de moderno por um preço acessível e, era preciso admitir, ridiculamente baixo.
  O pai de possuía o cargo mais alto em uma das empresas associadas ao conglomerado, de modo que ela crescera sabendo – por alto – sobre os projetos nos quais o pai se envolvia, mas nunca se interessara de fato. Como todos naquela sala, aliás. As famílias de todos ali trabalhavam na TechCorp, de modo que todos eles se conheciam desde sempre, ainda mais considerando que tinham idades parecidas, embora nunca tenham sido amigos próximos ou coisa do tipo.
  A respeito da Mercúrio, nova linha de produtos cujo nome fora inspirado no deus romano do comércio e da comunicação, ela não sabia de nada. Nunca se interessara pelo assunto, e o pouco que sabia era apenas pelo que via na TV ou seus pais lhe falavam ao telefone – ela passara o último ano fazendo intercâmbio, inclusive perdera o lançamento dos produtos. Havia voltado para a cidade no dia anterior, apenas para encontrar tudo de pernas para o ar. Todos esses pensamentos passavam e repassavam, desordenados, pela mente da jovem, quando a voz de Ajax a tirou do quase torpor em que se encontrava:
  — Os produtos foram vendidos por um preço tão ridiculamente baixo que, óbvio, todos compraram. Qualquer produto com a marca das nossas famílias é sinal de status, não importa o quão barato tenha sido. E essa era a intenção desde o começo.
  — Um produto tão bom por um preço tão barato foi o suficiente pra chamar a atenção de todos, e sabemos como um marketing bem feito pode ajudar... — Quione complementou, e Ajax concordou com um aceno de cabeça.
  — Todos caíram na armadilha. Todos compraram, e agora todos são controlados. Menos nós... E você. — Ele terminou.
  — Você estava fora do país, e nós... bem, nós éramos como éramos, certo? — Pollux continuou a explicação. — Não queríamos nada que pessoas de classes mais baixas também usassem, e nossas famílias sabiam disso. Mas acho que esperavam nosso apoio, não contavam que nossa consciência fosse falar mais alto justo nessa situação.
  — Não importa o quão imbecis nós éramos – e foi mesmo muita babaquice não aceitar um produto só porque pessoas mais pobres também o usam –, ninguém merece passar pelo que está acontecendo. — Ajax determinou. — Ter a mente manipulada, controlada e quase apagada... nós não aceitamos isso.
  — Por isso fugimos. Deixamos tudo para trás: nossas famílias, casas, até nossos nomes. — Anfitrite falou pela primeira vez, séria. — Cada um de nós agora possui um codinome, retirado da mitologia grega. Ninguém sabe onde estamos ou quem somos, agora.
  — Vocês falaram sobre controle mental? — perguntou, olhando para cada um dos presentes, e eles confirmaram com a cabeça.
  — Você os viu tão bem quanto eu. — Quione confirmou. — Se aquilo não é controle mental, eu não sei o que é. Todos parecem zumbis.
  — Sim, mas... isso não é possível. — A recém-chegada negou com a cabeça, com os braços cruzados e uma expressão de descrença no rosto. — Isso não existe, eles não têm como...
  — Você não é estúpida. — Pollux a interrompeu. — Todo mundo aqui cresceu em meio à tecnologia de ponta. Você sabe que existem programas para controlar aparelhos eletrônicos com impulsos cerebrais. O que eles estão fazendo é exatamente o oposto: usando aparelhos para controlar nossas mentes.
  — Por quê? O que eles ganham com isso? E o que vocês pretendem fazer? — perguntou após um tempo, com um traço de desdém na voz.
  — Se soubéssemos já teríamos feito alguma coisa, não acha? — Pollux respondeu, sarcástico. — Nós temos que fazer alguma coisa. Enquanto não descobrimos o que eles querem, estamos treinando. Aprendendo sobre programação, neurologia, psicologia, analisando o comportamento das pessoas nas ruas.
  — A questão é — Ajax falou, em tom de voz sério e com o cenho franzido. — O que nós fazemos com você?
  O silêncio pesou na sala.
  — Como assim? — perguntou na defensiva, recuando dois passos e olhando ao redor, para cada um dos presentes.
  — Nós trabalhamos duro para montar tudo isso aqui. A vida de todos nessa cidade, inclusive nós, depende de como vamos lidar com tudo isso, porque não podemos deixar tudo do jeito que está, mas também não podemos arriscar que você saia daqui e conte para todo mundo o que viu e soube, ainda que não tenhamos falado nem metade de toda a história. O que vai fazer, ? — Ajax quase cuspiu as palavras. — Vai ficar conosco ou ir embora?
  Ela olhou para os outros, como que esperando que todos começassem a rir e revelassem se tratar de uma piada de mau gosto, mas ninguém sorriu. Todos a encaravam com expectativa, e pela primeira vez o peso de todas aquelas informações a atingiu, e ela se sentiu tonta.
  De repente, toda sua vida pareceu superficial e inútil. Ela jamais poderia imaginar algo daquele tipo acontecendo, e a ideia de se manter imparcial em meio a essa situação era tão absurda quanto abominável; apenas a faria se sentir mais fútil do que, convenhamos, sempre fora. Respirando fundo, ela olhou ao redor, e não conseguiu evitar gaguejar um pouco quando voltou a falar:
  — Eu... eu vou ficar. Quero ajudar.
  — Então seja bem-vinda, e escolha seu nome. — Anfitrite sorriu. Após um breve silêncio em que tentou se lembrar do pouco que havia aprendido (e ainda lembrava) sobre mitologia grega no colégio, decidiu:
  — Eu sou Helena.
  — E assim é. — Quione deu um sorriso pequeno, de lado. — está morta, assim como sua vida antiga. Você é uma de nós agora.

+++

  Havia apenas uma coisa que amava mais do que a sensação da luz do sol em sua pele, e essa coisa era a sensação de andar sozinha pelas ruas. É claro, ela detestava a ideia de ser apenas mais uma na multidão, mas sabia que não era, e a aura de poder e confiança que emanava dela não deixava dúvidas. Com um copo de cappuccino em uma das mãos e o celular na outra, ela digitava o mais rápido que podia, confirmando os últimos detalhes para a festa daquela noite.
  Não era apenas o calor de verão, ela bem sabia, mas havia algo no ar que a deixava eufórica, ansiando por algo desconhecido, e de uma coisa ela tinha certeza: não ia desperdiçar essa euforia por nada no mundo. Alguma coisa continuava no fundo de sua consciência, uma certeza inerente sobre algo do qual ela nem tinha conhecimento, dizendo que algo grandioso estava prestes a acontecer. A única coisa que sabia, na verdade, era que, fosse o que fosse, ela queria sua participação muito bem marcada.
  Sentia-se adulta, com o café, celular, óculos escuros e sapatos de salto ecoando conforme andava, mas no fundo não passava de uma jovem de quase 17 anos, fazendo o que, assim como outros jovens da alta sociedade, fazia de melhor: festejando. Aquela seria a última noite do ano, e merecia uma comemoração épica. Por esse motivo, aliás, que ela estava no comando da organização; bem sabia o que diziam a seu respeito, que era irresponsável e imatura, mas havia uma única coisa que ninguém podia negar. sabia como dar uma festa.
  E naquele momento, parada em frente à boate mais disputada da cidade, a Apocalipse, com o vento agitando seus cabelos loiros e com os últimos detalhes da festa sendo acertados, sabia que aquela seria a sua noite.

+++

  — Não consegui localizá-la, Ajax. Eles devem ter encontrado o localizador e removido, ninguém é tão idiota. — Pollux informou, consternado.
  — Isso se ela ainda estiver viva. — Quione opinou, em uma voz sombria.
  — Da próxima vez que repetir isso, vamos te mandar direto para eles. — Ajax ameaçou, e a resposta de Quione veio afiada como uma faca:
  — E perder mais uma pessoa? O chip de localização não serviu para nada, e se o inibidor falhou, perdemos nossa líder justo para nosso maior inimigo. Acorda, Ajax. — Ela cuspiu as palavras. — Ela foi pega há semanas. Se estiver do lado deles agora, então é questão de tempo até nos acharem, e se me entregarem, vão ter uma pessoa a menos para ajudar. Nós precisamos de toda ajuda possível. Deixe a arrogância de lado pelo menos uma vez na vida.
  — Bem, finalmente concordamos em algo. Precisamos de ajuda. — Ele respirou fundo, e quase dava para ver as engrenagens girando em sua mente conforme ele pensava. — Olha, nós gastamos muito tempo com esses inibidores, e agora não estão funcionando. Mesmo que estivessem, qual a diferença? Não podemos viver escondidos pra sempre, 90% da sociedade está vivendo como zumbis, é arriscado demais tentar implantar em alguém de fora, e não há garantias de que eles não vão aprimorar o Sistema. Precisamos ser mais diretos que isso.
  — Como assim? — Helena perguntou, apreensiva.
  — Nós conhecemos nossos inimigos, Helena, crescemos com eles. — Ajax explicou como se falasse com uma criança, embora esta fosse Circe, com apenas sete anos, e não Helena, prestes a completar dezenove. — Mas eles nos conhecem também. Isso não vai funcionar para sempre. Chega.
  Pollux esfregou a têmpora, tentando pensar.
  — Não sei, cara. Não conseguimos entrar no sistema da Corporação, então ainda não temos como reverter essa manipulação mental. A gente até estava trabalhando em um código que pudesse ajudar com isso, mas não terminamos antes de... você sabe.
  Ninguém ali era profissional, e todos sabiam. A única coisa que todos tinham em comum, além de terem se rebelado contra o sistema, era o fato de que todos haviam sido jogados no meio daquela bagunça, e ainda estavam procurando um meio de se virar. Ajax estava se mostrando um bom estrategista, Quione era excelente em passar despercebida na rua, o que lhes garantia novas informações, até mesmo Circe ajudava com isso – não havia como suspeitar de uma criança, afinal, especialmente se ela se disfarçasse com perucas e maquiagem –, e Pollux daria um ótimo programador, se continuasse praticando.
  Mas mesmo o mais velho ali mal havia entrado na vida adulta, e, sem um líder, não iriam muito longe. Estavam se virando bem, sim, mas a única ali a ser uma líder nata havia sido pega pela Corporação, de modo que os outros ficaram perdidos.
  — Ajax? — Helena chamou a atenção dele. — O que você sugere?
  Ele olhou ao redor da sala, encarando nos olhos cada um dos presentes, e todos pareciam sentir o peso que suas próximas palavras trariam; mesmo Circe estava séria e parecia entender a gravidade do assunto. Quando o rapaz voltou a falar, sua voz ecoou grave e decidida:
  — Não é óbvio? Vamos voltar para casa. Invadir a base de Mercúrio.

+++

   sentia-se exultante – a festa estava a pleno vapor, lotada e com todos dançando. A música tocava tão alto que o lugar parecia tremer, e vendo todo aquele sucesso do alto de seus saltos 15, a jovem sentia-se dona do mundo. Tudo havia saído exatamente como o planejado, mesmo a natureza parecia cooperar, fornecendo uma temperatura agradável e um céu limpo e estrelado, que podia ser visto por qualquer um que subisse ao terraço do edifício.
  Bem, verdade seja dita que algumas coisas a incomodaram durante o dia, mas nada que não pudesse esquecer. Aliás, foram apenas duas coisas: uma sensação constante de estar sendo observada, e visões estranhas. Não que ela estivesse alucinando, longe disso, eram visões reais e conscientes. Vira e mexe ela se sentia observada e, ao olhar ao redor, notava a presença de uma criança que nunca havia visto antes, mas que parecia sumir na multidão em um piscar de olhos.
  Toda vez que a via, sentia uma sensação estranha. Aquilo era mais do que ser observada; era ser vigiada e seguida, e ela não conseguia entender o motivo. Mas pelo menos estaria a salvo na festa: apesar de que algumas pessoas na faixa dos 16 e 17 anos também estavam presentes, a grande maioria era maior de idade, como previsto – não havia chances de aquela menina aparecer por lá, era jovem demais para isso.
  Ela terminou o drink que estava bebendo, e se encostou em uma das paredes; mantinha o sorriso no rosto, acenando para alguns conhecidos e fingindo estar se divertindo. A verdade era que estava se sentindo um pouco tonta – com certeza não era pela bebida, já que estava acostumada a beber muito mais do que havia consumido até então, mas ela não saberia dizer o motivo de se sentir assim.
  Mais uma vez a onda de tontura a dominou, e tudo pareceu se mexer de forma diferente, como em um efeito vertigo. Por um momento, ela se sentiu fora de realidade, e agora a música parecia alta demais, tudo se mexia rápido demais, e precisou apoiar as mãos na parede para não cair. A luz neon que brilhava perto da cabine do DJ, anunciando o nome da balada, parecia forte demais, e as cores a deixaram com dor de cabeça. Ela tentou se concentrar assim mesmo, para focar a mente, mas as letras pareciam se mexer, e ela não entendia o que elas significavam. A sensação era tão ruim que olhou ao redor, desesperada por ajuda, mas sem conseguir pronunciar uma palavra sequer.
  Olhando em volta, ela viu mais uma vez a estranha menina que parecia segui-la em todos os lugares. Ela estava parada em meio à multidão, encarando fixamente, como um espectro. A anfitriã da festa tentou recuar alguns passos, mas só havia a parede atrás dela, e o máximo que ela pode fazer foi se apoiar, tentando não cair. Tudo parecia surreal demais, e olhou ao redor em busca de qualquer coisa que pudesse lhe dar algum conforto ou confirmar que tudo estava bem, e ela não estava enlouquecendo.
  O problema era que nada mais parecia real. Tudo parecia psicodélico, e sentia que seu corpo respondia de forma muito lenta, ao contrário de sua mente, que funcionava muito rápido. Era quase como um sonho que se transformava em pesadelo, e a festa virava um pandemônio sob os olhos dela ao mesmo passo em que ela não reconhecia mais ninguém.
  As paredes pareciam se mover e, mais ao fundo, perto da cabine do DJ, o letreiro que antes dizia “Apocalipse” agora estava modificado, e podia-se ler “Apocalypso”, fosse o que fosse isso. Ao mesmo tempo, uma voz parecia ecoar esse nome, gritando, embora o som estivesse longe e vago. Ou talvez estivesse mesmo muito tonta.
  Ela apertou os olhos, tentando fazer as coisas voltarem ao normal. O letreiro luminoso piscava, errante, de modo que ora podia-se ler Apocalipse, ora apenas Calypso. A voz desconhecida continuava a gritar o mesmo nome ao fundo, e
  E então, finalmente, tudo silenciou e escureceu.

+++

  Por vezes, aquela situação toda ainda parecia surreal demais para Anfitrite, e ela não entendia muito bem tudo que era discutido no que eles chamavam de QG da Resistência, mas tentava ajuda como podia. Por exemplo, ela não fazia ideia de porquê foram para a antiga mansão em que Ajax morava antigamente, mas forajunto para ajudar em caso de emergência - ainda estava aprendendo, mas parecia levar jeito para lidar com circuitos elétricos.
  Pollux insistira que apesar de não ter conseguido invadir o sistema de segurança da mansão, tudo indicava que a base de Mercúrio estava instalada lá, e não no prédio da empresa, e Ajax concordara, visto que nos últimos tempos o pai passara tanto tempo trabalhando em casa que ele não se surpreenderia se uma base de operações tivesse mesmo sido montada lá. E, além disso, o último sinal no rastreador da líder da Resistência havia sido bem próximo da mansão, o que poderia significar que ela estava por perto.
  Eles entraram sem grandes problemas, e agora estavam percorrendo com cuidado os corredores do lugar, procurando alguma pista que pudesse ajudar. Àquela altura, qualquer esperança de encontrar algo sobre o controle que Mercúrio exercia sobre as pessoas já era muito escassa - ninguém acreditava que informações tão importantes pudessem ser mantidas a tão fácil alcance, e não havia tempo para uma busca mais detalhada em possíveis esconderijos.
  Uma movimentação na área oeste da mansão chamou a atenção deles, e embora fosse mais seguro se manter longe, eles decidiram seguir exatamente nessa direção; Ajax disse que não era comum muito movimento àquela hora da noite, nem naquela parte da casa. Então, se houvesse algo de estranho, era lá que estaria. Era uma das poucas partes da casa onde havia câmeras, e Licaão conseguira desliga-las; o sistema de segurança do lado de fora era bastante bom, mas no interior não era tão rigoroso, ou seja: se havia algo que merecia ser protegido com câmeras, era algo que valia o interesse.
  Depois de minutos que pareceram uma eternidade, Anfitrite abriu uma porta que a paralisou, em choque. Os outros vieram em seu socorro, achando que haviam sido descobertos, mas a porta aberta dava para uma sala sem ninguém, com exceção de uma pessoa deitada numa maca, no centro. Inúmeras telas acesas estavam ligadas, com todo tipo de informação possível: desde níveis de batimento cardíaco da garota sobre a maca até códigos de programação e imagens dos corredores, capturadas por câmeras. Eles não sabiam desde quando ou por quanto tempo, mas aparentemente ninguém havia notado a presença deles ainda, apesar do monitoramento registrado.
  — Puta merda, é ela? — Licaão perguntou, olhando por cima do ombro de Anfitrite, e a garota apenas concordou com a cabeça, embasbacada.
  — Tem que ser muito doente pra fazer algo assim com alguém. — Ajax entrou na sala com raiva, sem se importar se estava falando da própria família. — Pollux, veja se descobre algo sobre esses códigos.
  Licaão se manteve perto da porta, caso alguém aparecesse, e Quione se adiantou para ajudar Ajax com as tiras de couro que prendiam a jovem à maca. Apesar de ainda inconsciente, ela começou a se mexer, provavelmente despertando com a movimentação na sala. A raiz loira já começava a aparecer, destoando do comprimento do cabelo, pintado de preto, e a face pálida e mais magra não parecia combinar com o olhar decidido que ela normalmente tinha, mas não restava nenhuma dúvida.
  — Calypso? — Anfitrite precisou chamar algumas vezes, mas a líder da Resistência finalmente abriu os olhos. — Você está bem?
  Ela olhou em volta, confusa e meio sonolenta, mas a raiva foi tomando conta de seu olhar conforme ela entendia a situação. Com ajuda, ela se sentou na maca, e depois de alguns minutos tensos em que, milagrosamente, ninguém apareceu, Calypso pareceu bem o suficiente para falar:
  — Há quanto tempo estou aqui?
  — Algumas semanas. — Licaão respondeu, hesitante, e repetiu a pergunta: — Você está bem?
  — Sim, era como estar dormindo. Acho que comecei a despertar quando vocês chegaram. — Ela comentou. — Nesse sonho que tive, era como se nada tivesse mudado. Eu ainda usava meu nome antigo, e vi Circe, mas não a reconheci. Só acordei quando ouvi me chamarem.
  — Foi Anfitrite. — Ele informou. — Eles conseguiram alguma informação sobre nós?
  — Não. O inibidor funcionou, mas eles descobriram o chip de localização. Tiraram de mim, e estive dormindo desde então. — Calypso respondeu, amarga; Todos a olhavam em expectativa, mas Pollux ainda analisava os códigos nas telas, o que levaria alguns minutos.
  — Bem, estávamos certos. — Ajax comentou, seco. — Aqui é a base de Mercúrio. Agora só nos resta descobrir algo, e usar essa informação contra eles.
  — Não importa quanto tempo eles tenham ganhado me mantendo aqui — A líder concordou com a cabeça — Vamos recuperar o tempo perdido. Eles não perdem por esperar.
  Talvez fosse algo no tom de voz dela ou no olhar dos outros, mas algo estava muito claro: aquela guerra estava só começando.



Comentários da autora


  História especialmente para o Amigo Secreto da Equipe. Nunca escrevi nada do gênero, mas foi uma experiência ótima e eu espero que você também goste, Nat! <3