Memoirs
Escrito por Danielle | Revisado por Lelen
“O meu amor pelo Linton é como a folhagem dos bosques: irá se transformar com o tempo, sei disso, como as árvores se transformam com o inverno. Mas o meu amor por Heathcliff é como as penedias que nos sustentam: podem não ser um deleite para os olhos, mas são imprescindíveis. Nelly, eu sou Heathcliff. Ele está sempre, sempre, no meu pensamento. Não por prazer, tal como eu não sou um prazer para mim própria, mas como parte de mim mesma, como eu própria. [...]” – O morro dos ventos uivantes, página 75.
Prólogo -
Eu tinha cem por cento de certeza de que estava sonhando – duas coisas presentes no cenário eram suficientes para me deixar convicta disso. A primeira: meus pais estavam felizes, sorridentes, contando piadas e trocando carícias o tempo todo. Na vida real, os dois só estavam juntos ainda porque eram orgulhosos demais para admitir que não adiantaria continuar tentando, que o amor havia acabado e só sobrara espaço para o ódio mútuo e a impaciência entre eles – sentimentos esses que ambos eram generosos o bastante para dividir comigo. O segundo fator que tornava a situação pintada em minha mente uma mentira era a minha aparência. No sonho, eu era uma garota linda – os cabelos castanho-claros brilhantes e esvoaçantes, os olhos verdes alegres, o corpo perfeito coberto por um vestido branco e uma expressão tão serena na face que lembrava um anjo. E eu definitivamente não era assim no mundo verdadeiro. Porque no mundo verdadeiro eu estava pesando cinquenta e três quilos – três mil gramas acima do peso! Porque na vida real meus cabelos já estavam apagados e sem vivacidade alguma – comer besteiras até não aguentar mais e colocá-las para fora induzindo o vômito cobra o seu preço. Porque no mundo de verdade, onde eu era obrigada a acordar todos os dias e viver cada hora deles, eu me parecia muito mais com um fantasma do que com uma criatura divina. No mundo real, não havia nada de surreal em mim.
Talvez exatamente por saber que estava sonhando, eu não queria que aquele momento feliz acabasse. No entanto, ele foi arrancado de mim quando a fumaça invadiu minhas narinas e me fez acordar tossindo. Levantei-me desnorteada e vi a névoa cinza-escura entrando por debaixo da porta do meu singelo quarto. Instantaneamente, eu me apavorei. O que faria agora? A casa estava pegando fogo por completo? Onde estavam os meus pais? A última coisa de que eu me lembrava antes de me deitar completamente exausta do último vômito era de escutar minha mãe gritando no primeiro andar da propriedade para que meu pai abaixasse o volume da tevê...
- Mãe? – falei em voz alta e tossi mais uma vez. – MÃE? – gritei mais desesperada e, novamente, não houve resposta. Então, reuni toda a minha coragem e abri a porta do cômodo.
O corredor de minha casa estava tomado pela fumaça e eu podia ver as chamas do fogo lambendo o corrimão da escada. Corri em direção ao quarto dos meus pais, contudo, o caminho estava bloqueado por outras chamas altas – estas abraçavam e destruíam as paredes, o chão de madeira e a porta do banheiro, formando um muro quente entre mim e o cômodo onde minha mãe e meu pai dormiam todas as noites. Eu tentei chorar de desespero, de medo, de dor, mas o ar estava tão quente que nem mesmo as primeiras lágrimas saltaram dos meus olhos.
- MÃE? PAI? SOCORRO! ALGUÉM ME AJUDE! – eu gritei a plenos pulmões usando provavelmente o resto do oxigênio que sobrava.
Tentei descer as escadas, mas as chamas me permitiram avançar somente até a metade delas – distância suficiente, no entanto, para que eu visse o primeiro andar da casa destruído e completamente invadido pelo fogo. E a partir deste momento a única sensação que restou dentro de mim foi o pânico. Corri para o meu quarto e abri a janela – uma decisão sábia, embora a noite estivesse quente e o vento fosse fraco. Vi os bombeiros lutando contra o fogo para entrarem na casa e os vizinhos gritando horrorizados ao redor da propriedade. Fui até meu guarda-roupa e peguei a foto dele – a última imagem que eu gostaria de ver na vida, a única imagem que importava agora. Segurei-a junto ao meu peito e senti o ar quente e a fumaça aumentarem a intensidade dentro do meu “refúgio feliz”.
Eu sabia que iria morrer - isso já era algo incontestável. Por mais que os bombeiros lutassem contra as chamas, por mais que eu rezasse pedindo a Deus por um milagre, eu podia ouvir a morte sussurrando o meu nome. Eu nunca fui uma garota que merecesse segundas chances, porque eu nunca soube aproveitar as oportunidades de melhorar. Eu chamava meus pais de orgulhosos, mas eu mesma era assim o suficiente para me resignar com o fato de que eu não prestava, de que eu não merecia nada de bom, por isso as coisas boas nunca se dirigiam a mim. Além do mais, eu já havia gastado toda a minha quota de sorte quando apareceu na minha vida e ele, mesmo em toda a sua perfeição, insistia em não desistir de mim – a garota errada, o “caso perdido”. Eu já havia passado quase um ano da minha vida convivendo com a melhor pessoa do mundo – o que mais poderia pedir?
E exatamente quando já havia aceitado que morreria, quando o ar já estava tão rarefeito que eu arfava mais a cada instante para continuar respirando, que a ideia e a coragem para executá-la me surgiram. O que era pior, afinal: quebrar um braço ou uma perna – ou os dois – pulando de alguns metros de altura ou deixar que o fogo torrasse cada órgão do meu corpo e fizesse meu sangue evaporar? Disseram-me uma vez que as piores formas de morrer são por afogamento e por queimaduras... E foi isso que me motivou o bastante para subir na janela do meu quarto e saltar dali, de olhos fechados e sussurrando o que eu queria que fossem minhas últimas palavras: , eu te amo.
Capítulo Um –
Dois anos depois
- O que você acha de sairmos pra dançar amanhã à noite, depois de fechar a lanchonete? – minha melhor amiga, , perguntou enquanto ainda colocávamos o avental.
- Não acho que minha tia vá me deixar sair na sexta, . Sábado nós abrimos muito cedo.
- Cara, você trabalha todos os dias das três e meia às dez da noite. Isso é escravidão pra sua idade, !
- Ela quem paga as minhas contas e é a minha tutora até Novembro, lembra? Então, eu tenho que obedecer calada.
- É, eu sei. Mas, , eu não quero sair sem você. – fez um bico e cruzou os braços sobre o peito.
- Ah, não seja boba, flor. Vá lá e...
- Meninas, as mesas não se limpam sozinhas. Já bateram o cartão de ponto? – minha tia e chefe, dona da lanchonete, perguntou interrompendo a conversa.
- Sim. – respondemos em coro.
- Então vão trabalhar porque eu não pago vocês para conversarem. – Vanda, a pior pessoa que eu conhecia no mundo, completou em seu mau humor eterno. Olhei para minha amiga de soslaio, peguei minha flanela e iniciei mais uma quinta-feira de trabalho pesado.
Desde que meus pais morreram num incêndio – uma estupidez que começou com minha mãe esquecendo um pano de prato sobre o fogão aceso e abandonando a cozinha por tempo suficiente para que o primeiro andar da casa se tornasse inabitável –, eu morava com a minha tia Vanda. Como ainda tinha 17 anos de idade e ela, irmã de minha mãe, fora o único parente que me restara, a única opção depois da pior tragédia da minha vida foi me mudar para Middlesbrough, no nordeste da Inglaterra. Todas as vezes que minha tia jogava na minha cara como eu lhe dava trabalho e despesas, e a cada ocasião em que ela me humilhava dizendo coisas depressivas sobre os meus pais, minha vontade era fugir daquele lugar e viver foragida até os meus 18 anos, tão próximos agora. No entanto, uma coisa me segurava na casa de minha tia - e não era a gratidão por ela ter me recebido quando eu fiquei sem nada neste mundo. O que me fazia continuar vivendo de bom grado com aquela pessoa grossa e narcisista era o meu primo, filho dela, .
Meu primo era alguns meses mais velho que eu, e ele salvou a minha vida quando eu cheguei a Middlesbrough, sem saber sequer qual era o meu nome completo. Os médicos disseram que eu havia sofrido uma anóxia – privação de oxigênio no encéfalo -, o que provocou uma lesão no lobo temporal, e, consequentemente, uma amnésia grave. Eu também tive prejuízos na fala e na coordenação motora em virtude das lesões, mas recuperar-me desse tipo de dano foi fácil se comparado a aprender a ser uma pessoa de novo. E o pior é que mudar da minha cidade, onde eu conhecia algumas pessoas e poderia descobrir quem eu costumava ser, fez com que eu precisasse nascer de novo, descobrir o mundo de novo, formar outra personalidade, outra vida. O mais perturbador disso tudo era a sensação constante de que eu havia enterrado a que existia e todas as pessoas que faziam parte da vida dela haviam ido junto, sem chances de se despedirem nem nada do tipo.
Eu pensava em tudo isso todos os dias da minha vida, pelos últimos dois anos. Pensava enquanto lavava o chão da lanchonete, enquanto corria para ir à escola de manhã, enquanto me revirava na cama à noite antes de dormir. E estava pensando nisso exatamente nesta última situação – deitada sobre os cobertores, esperando que o sono chegasse – quando entreabriu a porta do meu quarto.
- ? – ele sussurrou meu nome.
- Entra. – murmurei em resposta.
- Minha mãe me mata se me vê aqui. – disse como de costume; ele usava essa mesma frase todas as vezes que me fazia uma visita noturna.
- O que você quer, ? – perguntei revirando os olhos.
- A Kate me chamou para sair amanhã à noite. – ele falou com uma naturalidade forçada.
- Que bom pra você. – dei de ombros mais incomodada com aquilo do que deveria e provavelmente como ele gostaria que eu ficasse.
- Você acha que eu devo ir?
- Você quer ir?
- A Kate é legal, mas eu não sei.
- Se você não sabe, eu sei menos ainda, né? – eu havia me sentado na cama para falar com ele, mas, como a conversa não me interessava, me deitei de lado de novo e fechei os olhos.
- Ok, você não está a fim de conversa. Boa noite. – meu primo levantou-se da minha cama, onde havia acabado de sentar, e me deu um tapa na bunda ao dizer o “boa noite”. Pensei em protestar com um “ei”, mas meu humor não ia tão longe.
Refleti brevemente nos motivos para ficar incomodada agora quando falava de alguma garota – eu costumava dá-lo conselhos antes, isso não deveria me deixar chateada. No entanto, a reflexão no assunto não durou muito. Dentro de instantes eu já estava adormecendo, e, naquela noite, eu tive o sonho mais real da minha vida.
Capítulo Dois –
Conferi de novo no mapa se estava tomando mesmo a direção certa. A cidade era um pouco grande, então, se eu não tivesse sorte nem com o GPS nem com as imagens das ruas impressas no cartaz que comprei no posto, estaria mesmo ferrado. Acalme-se, , você vai conseguir, cara – garanti isso a mim mesmo pela enésima vez desde que decidi que iria atrás dela.
havia saído da minha vida da mesma forma que havia entrado – inusitado e perturbadoramente. Eu a havia conhecido num acampamento da escola – eu estava um ano a sua frente – e nós dois estávamos perdidos. Na atividade em que estávamos participando, cada aluno deveria encontrar alguns itens na floresta e, o que chegasse mais perto de obter todos, venceria. caiu encima de mim, despencando do galho de uma árvore enquanto tentava alcançar uma pedra pintada que, até hoje, eu ainda não sabia como ela havia conseguido enxergar aquilo ali. Sem ela, sem sua valentia e esperteza, eu não teria ficado em segundo lugar naquela competição. E depois daquele dia eu soube que aquela menina firme, orgulhosa e forte não sairia mais dos meus pensamentos.
Quando eu soube que a casa de estava sendo consumida pelas chamas, eu não estava na cidade – na verdade, eu e ela havíamos tido uma briga alguns dias antes da tragédia e eu sequer atendia às suas ligações. Meus pais receberam um telefonema de um dos vizinhos de no dia seguinte ao incêndio e foi então que saímos da casa dos meus avós em Folkestone e corremos para Londres. Eu passei tanto tempo chorando de remorso no meu travesseiro que cometi um segundo erro ainda mais estúpido do que o primeiro de não atender quando ela me ligara: eu só descobri que a garota que eu amava recebera alta do hospital e fora imediatamente para a casa da tia, em outra cidade, quando ela já não estava mais em Londres e eu nem sabia para quem poderia perguntar sobre ela.
Dois anos haviam se passado e parte de mim ainda questionava a lógica em trancar minha matrícula em Medicina na Universidade de Londres, pegar meu carro e minhas últimas economias e dirigir para o lugar onde eu suspeitava que a única família que tinha ainda morava. Afinal, ela provavelmente não era mais a garota que eu conhecia e a quem venerava. Sem qualquer contato com sua vida de antes, como ela se manteria a mesma agora? No entanto, a parte de mim que implorava pela visão dela de novo era mais forte do que qualquer outra. Não importava se ela não se lembrava de mim, de nós – porque eu me lembrava dela todos os dias da minha vida.
Flashback on
- Seus pais devem chegar dentro de minutos, . – eu disse quando a garota tirou a blusa e se debruçou sobre mim, recomeçando a beijar meu pescoço.
- Deixa eles, ué. – ela disse com a voz afetada aumentando a minha vontade de ir adiante com aquilo e destruindo qualquer ideia de parar. Apertei sua cintura com força e desci uma das mãos até a sua bunda, coberta apenas por uma saia de um palmo de comprimento. Virei meu corpo sobre o dela, de modo a inverter nossas posições, e tirei a minha própria camisa.
- Você esqueceu dos meus pais bem rápido, hein? – perguntou enquanto eu beijava sua barriga.
- “Deixa eles, ué”. – falei no ouvido dela imitando sua voz e mordi sua orelha, provando-lhe uma risada e um gemido.
Flashback off
Mesmo se eu quisesse expressar em palavras a saudade que tinha dela, sabia que era inútil sequer tentar. Não havia modo de descrever a dor que tê-la arrancada de mim provocava, e todas as vezes que eu me lembrava que a covardia havia contribuído para que o nosso momento de reencontro – ainda que só fosse reencontro para mim – houvesse demorado tanto, eu tinha vontade de morrer de verdade, não dessa forma infernal que exigia que eu continuasse ativo.
Capítulo Três –
- : mesa três. O garoto pediu um hambúrguer e uma Coca. – disse passando-me a bandeja com o lanche pronto.
Coloquei a toalhinha dentro do bolso do avental e equilibrei a travessa em uma das mãos até chegar ao rapaz que já me encarava de longe. Preparei-me para a reclamação – sempre que um cliente tão bonito me olhava assim havia uma reclamação pela frente.
- Desculpe pela demora, senhor. – falei de antemão e coloquei os pedidos dele sobre a mesa. – Se quiser alguma coisa para comer de sobremesa, veja nosso cardápio de novo. Minha sugestão seria brownie de chocolate. – sorri, mas o rapaz continuou me encarando da mesma forma, sem dizer nem uma palavra. E o pior no olhar dele era que eu sentia que o conhecia de algum lugar.
- Obrigado. – ele se limitou a dizer e abriu a latinha de Coca à sua frente. Eu respondi com um “por nada” e corei, antes de voltar pelo caminho pelo qual havia vindo.
Aquela noite, eu e pudemos ir ao bar para que ela dançasse e eu ficasse a noite toda no balcão tentando convencer o barman a me vender uma vodca ou outra coisa com álcool. E assim se deu: encontrou um garoto também do último ano que estudava na mesma escola que nós e dançou com ele a maior parte do tempo; eu, por minha vez, sentei-me no barzinho e pensei no cara da lanchonete, em que estava mais estranho a cada dia – ou os meus sentimentos por ele que ficavam mais esquisitos a cada hora que passava – e no garoto que apareceu no meu sonho duas ou três vezes durante o último mês... E ao lembrar-me dos sonhos tão bobos, mas tão reais, eu me lembrei de novo do garoto que havia me encarado na hora do almoço naquele dia. Devia ser a bebida me transtornando porque nada daquilo fazia sentido!
- Dia difícil? – um rapaz perguntou ao meu lado trazendo-me de volta à realidade.
- Todos eles são. – falei sinceramente e tomei o restante do líquido que havia no meu copo.
- Momentos melhores virão, . Mas você precisa primeiro acreditar.
Ele havia me chamado pelo meu nome? Inclinei minha cabeça em direção ao garoto e o reconheci imediatamente – eu havia pensando nele boa parte do dia e na sensação de que o conhecia de algum lugar.
- Como você sabe o meu nome? – questionei mais apavorada do que confusa.
- Eu costumava saber um monte de coisas sobre você. – ele respondeu tranquilo. Sua expressão era exatamente a face do menino do meu sonho, sempre sorrindo e com os olhos serenos.
- Eu perdi minha memória há dois anos. Se você me conheceu antes disso...
- Nós nos conhecemos antes disso.
- Como nós nos conhecemos? Nós fomos amigos?
- Também. Você costumava me chamar de namorado. Ou de mesmo. Ou de quando estava brava...
- Nós... fomos... – tentei gaguejar a pergunta, mas o choque foi tão grande que eu não fui capaz de terminar a frase.
- Sim, nós namoramos por quase um ano e ainda estávamos juntos quando aconteceu o incêndio na casa da sua família. Mas você foi embora assim que saiu do coma e eu não tive chance de me despedir.
- Eu sinto muito, ... – falei sem saber exatamente o que mais poderia dizer. Então, decidi escolher a primeira pergunta que me veio à mente: - E por que você não me procurou antes? Por que preferiu esperar mais de dois anos para me falar isso?
Em vez de me responder, balançou a cabeça de um lado para o outro e riu divertido. Não entendi como ele poderia ver graça naquela situação.
- Posso saber qual é a graça? – perguntei um tanto ofendida.
- Eu pensei que não encontraria nem vestígios da garota que eu conhecia, já que você teve de recomeçar de novo em um contexto totalmente diferente, mas eu me enganei. Ainda há muito da garota por quem eu me apaixonei aí. Suas últimas perguntas demonstram isso claramente.
- E você vai responder à minha pergunta? Quero dizer, por que esperar dois anos para ir atrás da sua namorada com amnésia?
- Porque você tinha quinze anos quando saiu de Londres vindo para uma cidade que eu não fazia ideia de qual poderia ser. Eu sou alguns meses mais velho, mas não chega a um ano. Eu não poderia simplesmente dizer aos meus pais: “Hey, eu preciso ir atrás da , então, até logo!” O que eu mais quis na ocasião foi fazer isso, mas eu só tive oportunidade quando completei dezoito anos e fui para a faculdade. Terminei o primeiro semestre tendo como atividades extracurriculares procurar por você no Reino Unido inteiro. E quando eu a encontrei, a primeira coisa que fiz foi trancar a minha matrícula, pegar o meu carro, ignorar o que meus amigos e familiares diziam e vir para cá, na esperança de que você entendesse os meus motivos por ter ficado tanto tempo ausente.
Refleti sobre as palavras dele por um minuto. Se meu namorado - ou se , pensando em alguém que eu já sabia amar e sem quem não conseguia imaginar minha vida – simplesmente perdesse a memória e se mudasse para longe quando eu só tinha 16 anos de idade e ainda estava apavorada com a ideia do acontecimento, eu provavelmente teria chorado por dias no meu travesseiro, mas levaria ainda um bom tempo para reunir coragem o suficiente para procurá-lo realmente. E o que com certeza me faria relutar tanto era a reação que a pessoa que eu amava poderia ter ao me ver – será que eu suportaria olhar nos olhos dele e ver que seu amor por mim havia desaparecido junto com a perda da memória?
- Me desculpe por dar a entender que estava te cobrando alguma coisa. Eu definitivamente não tenho esse direito. – eu disse sinceramente abandonando meus pensamentos.
- Você tem sim. Eu sei que as coisas entre nós acabaram há muito tempo e que não foi por opção minha ou sua, , mas eu era seu namorado e, de certo modo, eu te abandonei.
- Você tinha 16 anos, ! Eu esqueci você, esqueci quem eu era, esqueci tudo e todos que amava. Você deveria me odiar, no fundo, sabe?
- Eu te odiaria... Se a sua lesão não afetasse sua noção de personalidade e seu emocional também. Quero dizer, no início eu me questionei como você pôde me esquecer por causa de alguns minutos de má oxigenação cerebral. Mas eu faço faculdade de Medicina, então, digamos que um período de estudos já abriu um pouco a minha mente e me fez entender melhor algumas coisas.
- Caramba. – eu sorri depois de alguns minutos em silêncio tentando digerir mais aquela informação.
- O que foi? – perguntou admirado.
- Eu namorava um futuro médico. – brinquei cutucando-lhe no flanco, do lado esquerdo; se contraiu sorrindo. - Um ponto fraco aqui, doutor?
- Você também tem que eu me lembro, tá? – ele devolveu o cutucão e eu me contraí também com uma risada.
- Sabe, , me deixa muito feliz ver que meu primeiro contato com o meu passado foi assim tão agradável. – confessei.
- , eu nunca menti para você e não vai ser agora que vou começar a fazer isso, então, vou ser bem sincero: nem tudo o que você eventualmente vai descobrir sobre quem era é exatamente bom, admirável ou feliz. Na verdade, a maioria das coisas podem ser difíceis de encarar à primeira vista. Mas isso não importa. Você era forte o bastante para viver aquela vida e continua sendo. A boa notícia agora é que você não precisa ressuscitar as suas falhas de personalidade nem as coisas que fazia e das quais não se orgulha. Você só precisa entender que a pessoa que você é agora que importa.
- Falando assim você me dá medo, sabia?
- Está aí uma diferença muito grande para a que eu conhecia: a minha não tinha medo de nada. – falou orgulhoso, como se estivesse citando um diferencial muito importante de seu cachorro de raça em comparação ao cachorro de um amigo.
- Bom, quem sabe eu não reaprenda a ser assim conhecendo a sua ?
- Quer mesmo saber mais sobre o seu passado? – questionou sério, me encarando profundamente, como fizera quando eu lhe servi o hambúrguer na lanchonete na hora do almoço naquele mesmo dia.
- Eu preciso saber mais, . Eu preciso.
Capítulo Quatro –
tinha a semana sempre lotada, então era difícil passar qualquer tempo hábil com ela. E quando tínhamos a oportunidade de conversar, eu era a pessoa que mais falava, embora tivesse tantas perguntas. A maioria das coisas que acabei descobrindo sobre a nova foi observando seu comportamento.
Como em Londres, tinha uma melhor amiga para todas as horas – Evans, ou simplesmente . Sua amiga era tão parecida com Summer, a garota com quem mais convivia na capital britânica, que era de dar arrepios – as mesmas gírias bobas e vícios de linguagem, a mesma paixão por sair à noite, a mesma empolgação e vontade de praticar a justiça. era a Sum de Middlesbrough. A nova tinha ainda outras coisas que eu me recordava tão bem da minha namorada: a mania de colocar o cabelo atrás da orelha quando estava nervosa, o mesmo hábito de fazer caretas quando não gostava de alguma coisa que diziam perto dela, e o tom autoritário tingia sua voz tão bem quando ela estava mais nervosa ou estressada que eu me sentia revigorado ao perceber que seus defeitos não haviam desaparecido por completo. No entanto, havia diferenças muito grandes também: esta comia bem menos que a de antes, era bem mais obediente e submissa, e era possível ver em seus olhos que ela tinha medo de viver. E tanto as diferenças quanto as semelhanças me tornavam um cara cada vez mais apaixonado e aos pés daquela garota.
- Boa tarde, meninas. – cumprimentei e de dentro do meu carro quando as duas atingiram a calçada da escola.
- Veio dar uma carona pra gente até a lanchonete, ? – perguntou tirando o cabelo do rosto quando o vento despenteou suas madeixas.
- Vim te raptar. – respondi com um sorriso malicioso.
- Minha tia me mata se eu não for para a lanchonete agora. – ela disse.
- Eu fiz um acordo com a sua tia, não se preocupe. Você tem o dia de folga hoje.
- Vai lá com ele e para de questionar, . Eu vejo com a sua tia se está tudo bem a sua folga hoje mesmo e, se não estiver, eu te mando uma mensagem e você voa pra lanchonete. Se estiver tudo tranquilo, aproveite o dia livre que você merece e precisa relaxar um pouco. Nem eu aguento seu estresse mais, cara. – colocou um ponto final à conversa e começou a caminhar em direção ao trabalho.
- Podemos te dar uma carona até a lanchonete da tia Vanda, . – eu gritei para a garota.
- Vão se divertir e me deixem em paz, meninos. Brigada. Beijos! – a garota respondeu por sobre o ombro e continuou o trajeto.
- Devemos obedecer?
- Com certeza. – assentiu afivelando o cinto de segurança no banco do carona ao meu lado e seguimos para onde eu pretendia levá-la.
- Estamos indo à Londres? – perguntou chocada quando viu que estávamos entrando na rodovia intermunicipal.
- Estamos sim.
- , você está ficando louco? Eu preciso estar em casa até às...
- Meia noite, eu sei. Eu combinei isso com a sua tia de antemão, não se preocupe. Eu consigo chegar em Londres dirigindo dentro de quatro horas. Estamos saindo daqui às duas da tarde, então até as seis chegamos no seu antigo bairro. São mais quatro horas para voltar, então, temos duas horas para que você conheça a rua onde morava, seus antigos vizinhos e reveja sua antiga melhor amiga. – respondi usando as palavras que havia treinado na frente do espelho a manhã inteira. Eu ainda tinha medo que aquela ida à terra natal de saísse pela culatra, tendo o efeito contrário ao que eu esperava, mas aquilo precisava ser feito.
- Você sempre foi assim?
- Assim como?
- De planejar tudo, ter todas as coisas sob controle?
- Sempre. A frase que você mais usava comigo era: “Relaxa, , e deixa rolar”. – eu ri ao lembrar-me daquilo.
- Nossa, você não tem ideia de como eu gostaria de me lembrar de como ser assim tão tranquila.
- Sua tranquilidade beirava a irresponsabilidade, o que não combina com a sua vida agora. Quero dizer, dava para ser irresponsável com os seus pais sempre indo atrás de você para corrigir os seus erros ou tentando justificar para si mesmos a sua rebeldia. Você não pode se dar ao luxo de ser assim agora, com a sua tia que adoraria lhe ver saindo da casa dela algemada.
- É verdade. Cada um aprende a boiar na água a sua própria maneira, né?
- E isso prova que você é a mesma de sempre: você aprendeu bem rápido a sobreviver na sua nova vida. – Meus olhos brilharam ao pronunciar aquela constatação.
- E eu vou poder conhecer seus pais também ou não vai dar tempo?
- Eu moro um pouco longe da sua antiga rua, mas podemos tentar fazer dar tempo. – garanti e sugeri que colocasse alguma música para que escutássemos. Eu já havia lhe mostrado todas as bandas que ela costumava gostar antes e todas lhe agradaram de novo, apesar de que agora ela possuía outras preferências.
Eu pensei que fosse chorar quando visse as ruínas da casa que era dela há pouco mais de dois anos, mas ela foi neutra quanto a isso, provavelmente porque a falta de lembranças tornava tudo mais impessoal mesmo. Eu a empurrei no balanço em que demos nosso primeiro beijo, na praça perto de sua residência e quando ela perguntou por que estávamos ali, eu corei antes de explicar o motivo.
- ... – começou a perguntar quando entramos no carro de novo para nos dirigirmos à casa de Summer.
- O que?
- Eu preciso fazer uma pergunta que estou com vergonha de fazer, mas vamos lá. Nós já nos beijamos, porque namorados se beijam, então vou manter isso em mente. – ela disse mais para si mesma do que para mim.
- Pergunte o que quiser, . Não tem que ter vergonha comigo. – rolei os olhos.
- Nós, enquanto namorávamos, já... Nós já transamos?
Eu tossi várias vezes antes de responder e precisei me concentrar muito para manter o foco na estrada à minha frente.
- Desculpe, eu disse que você poderia perguntar qualquer coisa, mas fiquei constrangido. Eu sou muito idiota mesmo... – falei batendo a palma da mão esquerda na testa e mantendo a direita no volante.
- É constrangedor mesmo. Mas e aí? Já fizemos sexo?
- É, nós fazíamos.
- Nós erámos tão jovens. – comentou com um tom de censura na voz.
- Aconteceu pela primeira vez pouco antes de você ir embora. – respondi tentando justificar nossas atitudes.
- Entendo. – ela murmurou pensativa. Eu tive vontade de perguntar o que ela estava pensando, mas não consegui reunir coragem suficiente para isso.
Felizmente, chegamos à casa de Summer e o assunto se encerrou por aí.
Capítulo Cinco –
- Cinema amanhã à noite. Eu pedi à minha mãe para te dispensar e ela disse que está tudo bem. E aí, o que acha? – disse colocando-se entre mim e a TV minúscula do meu quarto enquanto eu tentava ver a cena do filme que passava.
- Me parece uma ótima ideia, . – respondi sorrindo. – Seria melhor ainda se você convencesse sua mãe a me dar o domingo livre também, hein?
- Você quer o domingo livre pra quê? Pra sair com o seu amigo de Londres que ressurgiu do seu passado? – ele perguntou sarcasticamente e puxou a cadeira da minha escrivaninha para sentar-se de frente para mim.
- Não me diga que está com ciúme! – falei e levei a mão aos seus cabelos lisos para bagunçá-los.
- Estou é preocupado com você, na verdade. Você confia demais nesse cara, . Não há como você ter certeza de que ele era mesmo seu amigo quando você morava na capital.
- E como ele saberia tantas coisas sobre mim assim sem mais nem menos, ? Ele me levou até a rua onde eu morava, os vizinhos me reconheceram e tudo mais. Além disso, nós não erámos só amigos. Nós namoramos.
- Cara, você não percebe que isso é mentira? Aposto que esse sujeito inventou que era o seu namorado no passado só para conquistar você agora! E você ingênua demais está caindo como uma patinha na conversa fiada dele. – rolou os olhos e cruzou os braços sobre o peito.
- Isso é mal de família? Você não consegue enxergar boas notícias também, ? Tudo no mundo é cruel e suspeito pra você assim como para a Vanda? Caramba, você devia ficar feliz por mim. Feliz porque finalmente o passado bateu à minha porta e deu as caras. E se o vai me machucar ou não, eu acho que sou grandinha o bastante para lidar com isso. – respondi nervosa com as palavras dele que questionavam toda a minha capacidade de viver a minha vida. soava exatamente como a mãe dele ao fazer isso.
- , eu só estou preocupado com você, ok? Eu não quero te ver magoada por ninguém. E não quero te perder pra ninguém também. – pegou minhas mãos e acariciou o dorso delas, fitando-as juntas enquanto fazia isso.
- Você não vai me perder pra ninguém, seu bobo. Tem o bastante pra você. Sempre terá o bastante pra você, priminho. – falei erguendo o rosto dele.
Como o momento seguinte aconteceu, eu não sabia explicar. O fato é que antes que eu pudesse reagir ao gesto, me beijou. E eu, fraca demais para resistir ao rosto perfeito e ao cheiro dele, correspondi ao beijo até que nós dois não tínhamos fôlego mais para continuá-lo. Desde que sofrera a tal perda de memória, eu nunca tive contato físico tão próximo com algum garoto. Eu tinha necessidades físicas, sim, mas passava a maior parte do tempo tentando ignorá-las do que procurando parceiros para sucumbir a elas. Saber que eu não era virgem através de não me surpreendeu, mas também não despertou qualquer lembrança em minha mente. Portanto, beijar naquela hora era uma espécie de primeiro beijo para mim. E a sensação de emoção misturando-se a ansiedade que aquilo me provocou tornou as coisas ainda mais confusas na minha mente.
- , eu... – começou a dizer quando nos separamos.
- Eu preciso pensar, . – foi tudo o que eu disse.
- Eu devia... Eu queria ter lhe feito uma pergunta antes de te beijar, mas eu agi por impulso.
- Faça a pergunta. – encorajei-o sem vontade genuína de responder a qualquer coisa àquela altura do campeonato.
- Você já foi apaixonada pelo , se vocês namoraram de verdade...
- Nós namoramos de verdade, . E isso não é uma pergunta. – eu o interrompi.
- A pergunta é: você ainda sente esse tipo de coisa por ele?
- Eu não sei o que sinto pelo .
- Você sabe o que sente por mim?
- Eu amo você. Só não sei como. Quero dizer, não sei se é como o garoto que me fazia cócegas quando eu estava triste para me fazer rir, ou como o garoto que acabou de me beijar, entende? – respondi sentindo o olhar dele sobre mim, mas sem conseguir encará-lo.
- Você tem o tempo que precisar para descobrir, ok? Me desculpe se eu piorei as coisas. – disse e beijou o alto da minha cabeça antes de sair do quarto e me deixar sozinha com os meus pensamentos.
Capítulo Seis –
- Qual era meu esporte predileto? – perguntou enquanto jogava uma pedrinha o mais longe que conseguia no rio Tess.
- Você odiava qualquer um, mas curtia andar de bicicleta de vez em quando.
- Pelo menos uma coisa que eu não consegui esquecer: como andar de bicicleta. – ela disse e levou as mãos ao céu como se estivesse agradecendo por isso.
- A ler e a escrever você também não se esqueceu. E o seu idioma. E como andar. E como comer...
- Como andar eu meio que tive que aprender de novo sim porque cheguei aqui com uma perna quebrada. E como comer... Bom, meu cardápio era diferente de todo mundo há até pouco tempo. Aliás, eu ainda não posso comer várias coisas.
- Você estava com gastrite, certo?
- Eu já tinha há muito tempo antes do incêndio, né? Deve ser por isso que já era quase uma úlcera quando cheguei aqui. Como você me deixava comer tantas besteiras, hein? – me acertou com uma de suas pedrinhas e sorriu. Eu tentei sorrir em resposta, mas meus pensamentos eram tensos demais para que eu conseguisse fingir. – O que foi? – perguntou caminhando até mim.
- Você está pronta para descobrir uma daquelas coisas do seu passado que eu disse assim que nos reencontramos a três meses que você não se orgulhava?
- Acho que está na hora de eu parar de perguntar quais eram as coisas de que eu mais gostava e começar a encarar os fatos, né? – ela devolveu a pergunta pensativa.
- Só se você se sentir pronta pra isso.
- Estou cansada de fugir do meu passado, . E então, por que eu quase tive úlcera?
Pensei por alguns instantes em como diria aquilo.
- Você era louca por doces... E pela sua aparência. Você morria de medo de engordar, mas não estava disposta a deixar de sentir a sensação boa que ingerir açúcar dá. Então, você comia, e depois colocava o que havia ingerido pra fora. – falei, por fim, selecionando as palavras o máximo que pude como se fazer isso fosse atenuar a verdade.
- Eu praticava bulimia? – perguntou depois de alguns segundos em silêncio br />
- Sim. Você parou um pouco com isso depois que nos conhecemos, mas eu lembro que você me falava que era como um vício, algo muito difícil de abandonar definitivamente.
- Certo, vamos aproveitar que eu estou anestesiada por essa informação e me diga o que mais de pesado assim você sabe sobre mim. – ela perguntou pálida.
- Você tem certeza, ? – questionei relutante ao observar a expressão de choque que ainda estava estampada em seu rosto.
- Tenho, , continue.
- Bom, o que eu sei que era mais difícil de lidar para você na sua vida, além disso, eram os seus pais. Vocês não tinham uma relação boa. Sua mãe e seu pai brigavam todos os dias e você costumava dizer que eles só não se separavam porque não sabiam “largar o osso” e admitir derrotas. Quase um mês antes do incêndio, você ouviu um telefonema da sua mãe que indicava que ela estava... traindo o seu pai.
- Mais alguma coisa? – perguntou com a voz chorosa encarando o rio e de costas para mim.
- Eu não devia ter continuado, . – eu disse sem saber o que mais poderia falar.
- Mais alguma coisa?
- Nem você suportaria mais problemas do que esses na vida e Deus não deixa a gente levar mais carga do que consegue.
- Olha, , me desculpe se o que eu vou dizer agora vai ferir os seus sentimentos ou magoá-lo, mas eu não aguento isso mais. – falou depois de suspirar alto três vezes. - Quero dizer, eu devo ser grata todos os dias da minha vida daqui para frente não só por ter sobrevivido àquele incêndio, mas por ele ter acontecido também. Eu sei que isso é egoísta e mesquinho, porque meus pais morreram por causa daquilo, mas a minha vida era um lixo. Perder a memória pelo menos me afastou de tudo aquilo e me deu a oportunidade de começar de novo, de ser alguém melhor, diferente. Eu sinceramente não entendo como você pôde se apaixonar mim, mas tenho certeza de que uma hora ou outra você cansaria e desistiria do caso perdido que eu era. – ela disse enquanto as lágrimas escorriam por sua face. Eu me aproximei dela, peguei seu rosto com as minhas mãos, e falei o que eu mais tinha certeza com relação a mim mesmo:
- Eu nunca desisti nem desistiria de você. Mantê-la na minha vida nunca foi opção, , sempre foi necessidade. Eu segurava a sua onda quando seus problemas familiares ou emocionais a deprimiam, e você me dava razões para viver cada dia da minha vida. Eu fui mais feliz com você em dez meses e meio de namoro do que em quinze anos de vida, antes de conhecê-la. E o que eu admirava na garota que eu namorava não eram suas crises pessoais que a levavam a enfiar a escova de dente na garganta. O que eu venerava em você era a sua capacidade de erguer a cabeça depois e dizer de cara limpa: “Sim, eu tive uma crise, mas eu estou viva e sob controle agora”.
- Bom, essa morreu naquele incêndio. Meus pais morreram, então problemas com eles eu não tenho mais. Eu perdi minha memória e mal gosto de doces hoje em dia, então nunca mais vou provocar um vômito. Tenho medo da minha tia sim, e mal vejo a hora de sair da casa dela, mandar em mim mesma e parar de esfregar o chão de uma lanchonete para comer todos os dias e ter onde dormir e o que vestir. Eu só quero viver minha vida agora e fingir que superei todas essas coisas de que não me lembro de ter vivido. – ela falou com firmeza enxugando seu rosto das mangas da blusa de frio.
- Você está certa. – foi tudo o que eu disse.
- E quanto a nós, ... Eu acho que você deveria voltar para Londres, destrancar sua matrícula na faculdade e continuar seguindo a sua vida. Estão acabando as férias de verão e eu não quero que você perca mais nenhum semestre por minha causa.
- Você já sabe como vai fazer com relação aos seus estudos?
- Eu fui aceita aqui em Middlesbrough, na Teesside University, e em Londres na Universidade de Brunel. Como só faço 18 anos em Novembro e o semestre começa em Setembro, eu devo começar por aqui mesmo e, se for o caso, tentar alguma transferência depois.
- Certo. – assenti com a voz neutra sem saber o que falar.
- Me desculpe, . Me desculpe por não te corresponder à altura, me desculpe por ter desperdiçado o seu tempo, me desculpe por não ser a mesma pessoa de antes. Mas eu não posso fingir com você que não me sinto diferente, que esses últimos dois anos longe de você não foram nada. Você merece mais que uma pessoa confusa, perdida e que não sabe o que fazer com o próprio passado.
- Essa pessoa me bastaria, . Mas você quem deve escolher o que considera o melhor para você mesma. Você tem meu endereço de Londres e o meu telefone. Se precisar de alguma coisa, me procure. Você sempre poderá contar comigo. – eu disse sinceramente e abracei longamente a garota que eu amava pela última vez, feliz por ter tido pelo menos a chance de me despedir.
Capítulo Sete –
- Onde você está me levando, ? – perguntei depois de alguns minutos em que estávamos na estrada. estava com um sorriso estranho no rosto desde que iniciamos a viagem e eu não reconhecia o caminho que estávamos tomando.
- Já estamos quase chegando. Fique tranquila que vai compensar.
Tentei obedecê-lo e cantarolei músicas aleatórias pelo resto do percurso ao passo que pensava em como os últimos meses passaram depressa. Na semana seguinte eu estaria, enfim, alforriada – dia cinco de Novembro anunciaria meus 18 anos tão aguardados.
Finalmente, estacionou o carro na entrada de veículos da casa pequena em uma rua pacata. Segundo ele, a casinha ficava perto da Teesside University e era seu novo lar a partir daquele dia.
- Você vai me abandonar sozinha naquela casa com a megera da sua mãe? – perguntei e me arrependi um pouco de ofender a Vanda assim, na cara do único filho dela.
- Eu só vou me mudar pra cá quando você sair da casa “da megera” da minha mãe, é claro. – disse rolando os olhos e fechou a porta da casa atrás de mim. Ele me pegou pela mão e me conduziu ao longo dos cômodos para me apresentar cada canto do lugar.
- Caramba, foi reformada recentemente? – perguntei admirada.
- O empreiteiro terminou tudo ontem. – sorriu animado. – Vou te mostrar o melhor lugar daqui. – ele disse e me puxou para o único quarto da propriedade que já continha uma cama grande e aparentemente muito aconchegante.
me olhou com malícia e passou os braços em volta da minha cintura. Nós estávamos namorando – escondido da mãe dele, é claro – há pouco mais de um mês, e tê-lo tão perto de mim era uma novidade que ainda me provocava piruetas no estômago. me beijou com vontade e me apertou tanto contra ele que eu já não sabia dizer onde começava o meu corpo e onde terminava o dele. Instantes depois do início do beijo, eu já estava sobre a cama da casa nova do meu namorado e com seu corpo pesando sobre mim. Sentir os lábios de no meu pescoço era uma sensação incrível, mas, depois dos primeiros minutos do amasso, eu já me sentia tão culpada que minha cabeça começou a doer intensamente. Fechei os olhos e tentei ignorar a parte do meu cérebro que dizia que aquilo era errado. No entanto, a imagem de surgiu na minha mente e a única coisa em que eu conseguia pensar era que terminar o que eu e estávamos começando seria o mesmo que trair a .
- – falei com a voz fraca, por fim. Ele ignorou, como se tivesse entendido aquilo como incentivo. – . – chamei de novo, agora em um tom mais firme.
- O quê? – ele me olhou com um sorriso nos lábios e a dúvida impressa no olhar.
- Acho melhor nós pararmos.
- Não está bom pra você?
- Não é o momento pra mim. – respondi fugindo da pergunta.
- Desculpe, , eu não quis forçar nada. – falou saindo de cima de mim e arrumando suas roupas.
- Não entendi como forçassão, não se preocupe.
- Certo. Então, eu já te mostrei meu novo lar, acho que podemos ir ao restaurante jantar.
Pensei em pedir que ele me levasse para casa porque eu precisava de verdade ficar sozinha e entender porque diabos tinha sensação de compromisso com agora – este que eu não via há mais de três meses! No entanto, eu não consegui pensar em uma desculpa boa o bastante para ir embora sem tornar a situação ainda mais chata, então deixei que ele me levasse ao tal restaurante e rezei para que o tempo passasse o mais rápido possível.
Eu tentei pelos dias seguintes eliminar o incômodo que ser tocada por me provocava. Meu aniversário chegou e ele ofereceu para que ficássemos juntos temporariamente em sua nova casa própria, mas havia me salvado e arranjado uma quitinete barata e decente, onde eu moraria a partir do dia seis de Novembro. Aquele havia sido o presente de 18 anos que me preparara – o melhor presente que recebi na vida, eu poderia jurar.
- , isso chegou para você ontem. Desculpe, mas eu esqueci de levar à sua casa. Quero dizer, à casa da Vanda. – fez uma careta e me passou o embrulho. O endereço no pacote era de Londres... Era o endereço de . Eu havia pedido a ele que, se mandasse qualquer coisa, que fosse através do endereço de , porque não era tudo que me enviavam que minha tia me passava de fato quando a entrega era feita na casa dela.
Agradeci a minha melhor amiga e rasguei os papéis que cobriam a caixa. Dentro dela havia um envelope amarelo grande e um sobretudo preto perfeito. Abri o envelope delicadamente e observei com cuidado as duas fotos que ali continham: uma em que eu e estávamos super agasalhados e com gorros de papai Noel – a data era de 25 de Dezembro de 2009 -, e a segunda era de cinco de Novembro de 2009 – eu estava com o rosto completamente lambuzado de chocolate e segurava uma caixa em que estava escrito “Trufas de brigadeiro Light”. A carta que acompanhava as duas fotos dizia:
,
Parabéns pelos seus 18 anos! Espero que a nova idade signifique uma nova etapa em sua vida e que esta fase que começar agora traga todas as melhoras que você espera e busca.
As fotos são para lembrá-la de sorrir em todos os momentos da sua vida, mesmo que os motivos para chorar permaneçam à espreita. Espero que você tenha alguma lembrança comigo que provoque qualquer sorriso ainda, porque você me deu várias razões para sorrir. E o agasalho é para mantê-la aquecida em mais um Natal.
Felicidades hoje e sempre.
Eu tentei não derramar nenhuma lágrima, mas foi impossível manter-me neutra àquilo. O que eu havia feito para merecer os sentimentos de uma pessoa daquelas? Mesmo depois de tê-lo afastado de mim pela segunda vez, não me ignorava ou desistia por completo de mim.
E aquelas palavras se mantiveram na minha mente pelas semanas que se sucederam. A presença de passou de essencial e super agradável à errada e irritante. De alguma forma, eu havia aprendido a dar espaço a apenas um deles dentro de mim, e estava presente demais para que fosse possível manter a normalidade dentre mim e meu namorado.
- , o que está acontecendo? Sério, toda vez que eu toco em você o seu humor muda, e não é para melhor. – disse farto daquela situação, é claro.
- Ok, , você está certo. – respondi e respirei fundo duas vezes. - Eu acho que nós devíamos dar um tempo.
- Como é?
- Eu estou confusa. Eu acho que nosso namoro foi algo precipitado, e eu não quero perder você, mas eu sinto que o afasto a cada dia que passa porque nós claramente não estamos em sintonia, não estamos na mesma página.
- O te procurou de novo? – perguntou depois de suspirar alto.
- Não, ele não me procurou. Esqueça o , ok? O meu problema não é o . O meu problema sou eu mesma. – Eu precisaria desenhar para que ele entendesse?
- Está bem. Se você quer pensar, então pense. Eu amo você, , mas eu não sou de ferro nem um brinquedo. Só não se esqueça disso. – me olhou com a expressão mais frustrada que eu já havia visto em seu rosto em toda a minha vida e saiu do meu micro apartamento com a cabeça baixa.
Eu afundei meu rosto no meu travesseiro velho e transformei minhas dúvidas e arrependimentos em lágrimas. Eu sabia o que tinha vontade de fazer agora, mas será que era a coisa certa, afinal?
Epílogo –
A neve deixava tudo naquela cidade ainda mais clássico e fantástico. Londres era, provavelmente, o lugar que mais combinava com o cenário de Natal de todo o mundo. E, embora apreciar a vista do centro da capital britânica de dentro do táxi quente e confortável fosse um bom motivo para ir até ali, aquela não era a razão da minha chegada à cidade naquela manhã gelada.
Depois de mais alguns minutos de viagem, o taxista parou o carro em frente à bela casa. Fiz o pagamento da corrida deixando uma pequena gorjeta e caminhei a passos lentos, porém firmes, até a soleira da porta e apertei a campainha.
- Atende a porta, filho! – escutei a voz da senhora gritando do lado de dentro.
- Eu estou ocupado.
- Por favor, meu bem! – a mulher insistiu com a mesma delicadeza do primeiro pedido.
Não escutei resposta do rapaz, mas ouvi o barulho da maçaneta girando e o encarei tão ansiosa quanto feliz.
- ? – ele falou chocado.
- Oi, Dan... – o abraço de supetão que recebi de interrompeu meu cumprimento. Passamos alguns minutos daquele jeito, simplesmente abraçados e ouvindo a respiração um do outro.
- Vamos entrar. – disse, por fim, antes de me soltar.
- Eu gostaria de conversar aqui fora primeiro, antes de você me reapresentar à sua família.
- Claro, claro. – ele concordou me largando. – Quer conhecer de novo a minha rua? – perguntou oferecendo-me seu braço.
- Com certeza. – respondi passando meu braço entre o dele e apoiando minha mão em seu bíceps definido.
- E então, o que te traz aqui? – perguntou-me casualmente.
- Eu me transferi para a Universidade de Brunel.
- Está brincando? – questionou em seu tom de voz mais feliz que eu já havia ouvido até aquele dia.
- Não, é verdade. Eu e a alugamos um apartamento juntas no centro e já conseguimos um emprego de garçonete em um barzinho famoso daqui.
- Nando’s?
- É famoso mesmo então.
- Posso perguntar o que a motivou a se mudar para cá de novo?
- Eu percebi que não quero fugir do meu passado nem de quem eu sou. Não vou dizer que não tentei, , mas não há como deixar partes tão grandes assim de mim para trás.
- Sim, eu posso imaginar que não deve ser nada fácil tentar adotar para si mesma uma nova cidade, um novo rumo, mas sentir-se deslocada e fora de contexto. – ele disse sinceramente e ainda alheio ao que minhas palavras significavam.
- Essas coisas contam, mas a parte grande de mim que eu tentei ignorar e foi impossível foi você, . Eu passei cinco meses da minha vida dizendo para mim mesma que você era parte do passado e que eu não queria nada da minha antiga vida de volta, mas não dá pra dar as costas ao que eu sinto por você, ao que eu sempre senti. A verdade é que eu não sei e não quero deixar você no ontem. Você foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida, não aquele incêndio. Hoje eu entendo isso perfeitamente. Será que você conseguiria me perdoar por demorar tanto tempo para enxergar algo tão óbvio? – Eu nunca havia sido tão verdadeira ao expressar os meus sentimentos, nem mesmo antes de perder a minha memória, eu tinha certeza disso. Não poderia ser presunçosa o bastante para pensar que isso bastaria, mas eu poderia tentar. E agora eu sentia vontade de lutar por como nunca havia sentido por qualquer outra coisa antes.
- Eu amo você. – foi tudo o que ele disse e então colou os seus lábios nos meus trazendo do fundo da minha mente a sensação mais maravilhosamente pura que eu já havia sentido. Tocar queimava a minha pele sem machucá-la, parava meu coração figurativamente falando e tirava o meu ar sem trazer prejuízos ao meu encéfalo. Eu senti naquele instante que pertencer a ele não era mais questão de escolha para mim também – eu precisava estar com ele para me sentir completa e satisfeita. E, felizmente, eu estaria com ele todos os dias da minha vida a partir de então.
Fim
Olá, people!
Quando eu vi que minha amiga secreta era a Marcella (Ribeiro) eu pulei de alegria e me perguntei “Danielle, desde quando você tem tanta sorte?!”. Sim, porque apesar de conhecer a Mah há pouco tempo, eu a considero uma amiga muito querida, a quem admiro não só pela autora genial e brilhante que é, mas por ser uma pessoa maravilhosa também. No entanto, exatamente por ela ser tão incrível com as palavras e ter ideias sempre tão inovadoras e profundas, que a minha reponsabilidade em criar uma história a sua altura foi imensa, né? Eu comecei uma fanfic que tem uma ideia central até bacana, mas que não combinou como eu gostaria com o tipo de história que eu acredito que agrada mesmo à Mah. Daí, eu me lembrei da ideia dessa fiction que foi até sugerida pela Nat quando ela mandou um quote de um tumblr pelo chat do ATF. E acho que consegui escrever algo que seja capaz de tocar de verdade à minha amiga secreta.
Não sei se vocês vão conseguir sentir o amor incapaz de morrer pelo favorito de vocês, como é o amor da Cath de O morro dos ventos uivantes pelo Heathcliff, mas espero de coração que isso aconteça.
Muitos beijos para todas as pessoas que lerem Memoirs, e um abraço especial para minha amiga secreta e agora declarada, Marcella Ribeiro. <3