Meet Me In The Hallway

Escrito por Yasmin Albuquerque | Revisado por Mariana

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  Chovia torrencialmente há mais de dez minutos em Porto Seguro. “Bem vindo ao verão nos trópicos” o tempo parecia lhe dizer, zombando dele, que por anos evitou voltar e, quando o fez, não era nem ao menos recepcionado com sol, pois sua terra natal não estava feliz em recebê-lo.
  Há pelo menos vinte minutos ele aguardava que a recepcionista encontrasse os dados de sua reserva. Ele já informara seu nome completo e o número do documento utilizado duas vezes; também já soletrara seu nome e sobrenome, para evitar qualquer tipo de erro na digitação, e nada. A recepcionista, sem graça, cansada de ser ludibriada pelo sistema, pediu licença afirmando que iria contatar o gerente para resolver seu problema.
  Só o que lhe faltava era ficar sem hotel em Porto Seguro em pleno verão.
  Não escolheu o Orquídeas randomicamente; era o único hotel da região da praia de Taperapuã, sua favorita, que ainda tinha quartos disponíveis e não sediava uma das absurdas viagens de formatura de sudestinos jovens e inconsequentes. Saíra de São Paulo para um enterro e não queria festas ao redor de si. O detalhe de que ele fora quase que obrigado a ir era apenas isso: um detalhe.
  Chegava na sexta, atravessaria o rio Buranhém para ir ao enterro em Arraial d’Ajuda no dia seguinte e, no domingo às 10h estaria em sua poltrona no voo 1345 da Azul de volta para São Paulo, capital. Só não ia embora no sábado porque o único voo que conseguira com essa data tinha duas escalas e, se ele pudesse se poupar desse transtorno, se pouparia.
  Pensou até em alugar um carro e passear pela cidade no tempo que sobrasse; tentar recuperar certo nível de nostalgia, ver se sentia saudades. Não rever os parentes; Deus o livre de estender o encontro com os parentes além do obrigatório no cemitério. Mas se o tempo continuasse daquele jeito não valeria a pena o dinheiro gasto junto à locadora.
  Respirou fundo, olhando ao redor da recepção, encontrando um sofá vazio e sentando-se nele. Estava lá precisamente porque tinha grande respeito por sua avó, apesar de não sentir falta da pessoa dela (respeito, não carinho), e porque seu pai se utilizou de chantagem emocional para fazê-lo bater o martelo de que iria voltar à Bahia de fato. Sem sentimentalismo durante aquele fim de semana pois ele não tinha mais raízes que o prendessem àquela terra.
  - Perderam sua reserva? - ele ouviu a voz vindo da sua esquerda e virou o rosto, curioso.
  Não percebera a presença da garota ali tão próxima. Caso aquele não fosse um hotel livre de formandos do ensino médio, ela poderia facilmente se passar por uma, jovem do jeito que parecia ser. Tinha os cabelos úmidos presos por uma trança lateral, o nariz bem vermelho na ponte e a marca do biquíni escapando de seu colo pela blusa folgada que usava. Havaianas brancas estavam alinhadas no chão e suas pernas encolhidas sobre a cadeira de massagem desligada, enquanto não tirava os olhos do celular nas mãos, apesar de ter claramente se dirigido a ele.
  - Não encontraram minha reserva pra poder perder - respondeu, cansado, passando as mãos no rosto, querendo sair para fumar um cigarro, mas temendo que a recepcionista voltasse e achasse que ele desistiu, se não o visse.
  - Bem vindo ao clube - ela bloqueou o aparelho, deixando-o sobre o colo e olhando-o nos olhos. Talvez fosse São Paulo e todo mundo andando pra cima e pra baixo com pressa, esbarrando uns nos outros sem pedir desculpas, mas ele não estava acostumado a olho no olho. Sentiu-se desconfortável com a intromissão daquele olhar - Tô aqui há três dias e você deve ser a quarta ou quinta pessoa que eu vejo tendo problemas no check-in.
  Ele achou que deveria responder, dado o teor da conversa e o fato de ela ter bloqueado o celular para, aparentemente, prestar atenção nele. Antes que tivesse a chance, contudo, duas garotas apareceram no saguão chamando uma , e ela encaixou o celular no bolso, as sandálias nos pés e foi ao encontro delas, lhe desejando boa sorte.
   era também o nome de sua avó, que morrera no dia anterior de falência múltipla dos órgãos (velhice), motivo pelo qual ele atravessou 1.117 quilômetros para estar onde estava.
  Riu, pensando no tamanho da coincidência, e em como as pessoas iam e viam e se substituíam na vida dos outros - tinha uma música sobre isso, ele podia jurar. Então a recepcionista o chamou, com um sorriso tranquilizador nos lábios, que parecia dizer “demos o nosso jeito e o senhor não vai precisar dormir na rua”.

  Vindo do leste, bastante abafado, mas ainda alto o suficiente para ultrapassar o barulho da TV ligada, ele ouvia, de cinco em cinco minutos, um DJ gritando: “Geral fazendo barulho!”. Não aguentava mais.
  Se não tivesse tão poucas opções disponíveis, escolheria outro hotel mais distante do bendito Vitória Régia, a um quarteirão de onde estava - mas a morte repentina de sua avó naquele final de janeiro não lhe deu muitas escolhas. A recepcionista o avisou que o barulho das festas poderia chegar até lá, mas ele não colocou fé de que seria assim tão alto.
  Não poderia colocar toda a culpa de sua falta de sono no barulho, entretanto.
  Sua inquietação era apenas o reflexo de quase a integralidade de sua família ter sido contra seu crescimento profissional longe daquela cidade minúscula de pessoas simples e vida mansa, e que no dia seguinte ele encontraria todos eles. Ele sempre quis arranha-céus, poluição sonora, engarrafamentos infernais e frieza? Não, mas ele sabia aonde ir para ser grande como achava que estava destinado a ser. E a família deixou que ele se tornasse grande, sim, desde que o fizesse sozinho.
  Tornou-se Controller numa grande empresa do mercado financeiro na Faria Lima, ganhava bem pra caralho e era completamente sozinho. Ir até a Bahia para rever toda a sua família num momento de dor e perda, à qual ele não compartilhava tanto assim, só evidenciava isso.
  Respirou fundo e levantou da cama, pegando seu maço de cigarros e saindo em direção à pequena varanda do quarto. Tinha uma boa vista da piscina dali, que à noite o hotel deixava iluminada e não permitia o uso. Algumas poucas pessoas jantavam nas mesas adjacentes logo abaixo de si, tranquilas, em silêncio, casais. Na falta de uma cadeira que coubesse no pequeno espaço, encostou seu quadril na sacada e acendeu um cigarro.
  Risadas altas quebraram a paz no ambiente, se misturando a mais um “geral fazendo barulho!” que vinha do Vitória Régia. A e suas duas amigas atravessavam o pátio, do outro lado da piscina, com as mesmas roupas de quando ele a encontrara na recepção, aparentemente bêbadas. Por poucos segundos ela olhou em sua direção e o reconheceu. Acenou. Ele acenou de volta, meio incerto. Ela correu ao redor da piscina em sua direção e ele achou por diversas vezes durante o trajeto que ela fosse cair.
  - Que bom que não vai precisar dormir na rua! - gritou, ao chegar embaixo de sua varanda, as mãos ao redor dos lábios pra amplificar o som de sua voz, como se não tivesse potência vocal sozinha. As pessoas nas mesas próximas olhavam a cena, divertidas e certamente incomodadas.
  - Deram um jeito e me arranjaram um quarto - ele respondeu num tom de voz mais baixo, tragando do cigarro.
  - Me encontra no corredor, pra eu não ter que ficar gritando - ela gritou ainda assim, fingindo que sussurrava, e ele assentiu, sorrindo, sem saber porquê concordava e porquê sorria.
  Com o cigarro pela metade, jogou-o no chão da varanda, amassando-o com a sandália, deixando-o lá. Atravessou o quarto, abrindo a porta que dava para o corredor, encontrando-a nos últimos degraus da escada. Encostou-se no portal, esperando, os braços cruzados pra disfarçar a falta de camisa, que não pensara em vestir e agora sentia que deveria.
  - Eu nem sei seu nome - ela veio dizendo pelo corredor, mais baixo do que quando estivera gritando do lado de fora, mas ainda alto.
  - , prazer - eles apertaram as mãos, contato que parecia formal demais para quem acabara de gritar “me encontra no corredor” embaixo de sua varanda na frente de vários estranhos.
  - O meu você já sabe, né? Elas não param de me gritar o tempo todo - ele riu, pois fora mesmo daquela forma que descobrira o nome dela - Tá aqui a passeio?
  - Vim encontrar a família - ele respondeu de maneira vaga, não dizendo nem que sim nem que não à pergunta dela, afinal de contas, era uma estranha.
  - Você é daqui? É a primeira vez que venho pra Bahia.
  - Nasci aqui, mas moro em São Paulo. Deixa eu só colocar uma camisa…
  - Tem necessidade não - ela falou e logo cobriu a boca, rindo, ele não soube se de nervoso ou se pra fazer charme. ficou levemente perplexo. Não sabia se não tinha mais a capacidade de identificar um flerte ou se ela só estava tirando uma com a cara dele - Tô falando merda, né? Experimentei um monte de cachaça diferente na Passarela do Álcool.
  - Tá tudo bem - ele riu, sem graça, identificando que era sim um flerte e que era quase óbvio que ela fosse flertar com ele, ou não tinha pedido para encontrá-lo em corredor nenhum.
  Os números pareciam ter lhe tirado qualquer tipo de habilidade com as mulheres; uma vez de posse dela, não sabia o que fazer com aquela informação de que ali estava uma mulher interessada nele e demonstrando aquilo abertamente.
  - É agora que eu me retiro pela falta de noção ou você tá suave mesmo?
  - Quantos anos você tem, ?
  - Por quê? Pela falta de vergonha na cara? - ele riu, percebendo que ela tentava quebrar o gelo que as próprias palavras instalaram no ambiente - Tenho 22, e você?
  - 29 dia 10 do mês que vem.
  - Ah, então você é de aquário!
  - Se você tá dizendo… Eu não entendo nada de signos.
  - Eu também não, mas a Clara me fez decorar as datas de transição - ele riu, e se deu conta de que o desconforto pela falta de camisa passara, dando lugar à certa vaidade. Descruzou os braços, colocando as mãos nos bolsos do short - Tá muito bem pra um semi-paulista fumante de 29 anos.
  - Valeu, você também parece ter bem menos que 22.
  - Exceto pela falta de vergonha na cara - ela sorriu e começou a desfazer a trança lateral na qual ele reparara desde cedo.
  Ficaram se olhando em silêncio, na luz fraca do corredor, enquanto ela desembaraçava os fios de cabelo com os dedos. Internamente ele queria dar continuidade ao flerte, saber se ainda levava jeito para aquilo como quando era um jovem universitário tal qual ela deveria ser, mas não sabia se já havia perdido o timing. Então resolveu ficar em silêncio, deixar que a especialista entre os dois se manifestasse primeiro.
  Mas ela terminou de desembaraçar os cabelos e continuou olhando pra ele em silêncio. Possuía um olhar obstinado, nada afetado pelas tais várias cachaças diferentes, e estava tendo dificuldades em entender o que exatamente ela queria daquilo, de si.
  , então, juntou os cabelos com as mãos começando a enrolá-los de qualquer jeito num coque. Ao mesmo tempo, estendeu a mão e tocou a cintura dela, sobre a blusa rosa e larga, interpretando o silêncio e a intensidade do olhar como uma declaração permissiva. Ela não se opôs; pelo contrário, deixou-se aproximar, deixou de mexer nos cabelos, inclinou quase que imperceptivelmente o corpo para cima, em sua direção.
  Quando as mãos dela alcançaram seu rosto, eram seus braços e não mais sua mão que mantinham contato irrestrito com a cintura, cuja textura da pele ele ainda não sentira. Os dedos de unhas pintadas de vermelho delinearam seus lábios, e o olhar de ambos se perdia um do outro, buscando novidades que a proximidade lhes trazia. Ainda estavam sozinhos no corredor, mas era pouco provável que conseguissem perceber terceiros se aproximando.
   tomara a iniciativa de beijá-la, escorregando as mãos por dentro da blusa, sentindo de fato o gosto não identificado de álcool na língua dela, que percebeu o cigarro que ele ainda há pouco fumara na varanda logo atrás deles.
  Foi rápida a transição de um beijo qualquer entre dois estranhos pra calor e intensidade como se partindo de corpos que há muito já se conheciam. As línguas não pareciam se descobrir, pareciam matar saudade, matar a sede.
  O corpo dela imprensava o dele na parede do portal, mesmo que ele a superasse em altura e força. As mãos firmes e curiosas passeavam por seu abdômen, finalmente fazendo-o entender porque ela reclamou à sua menção de vestir uma camisa. Ele escorregou o corpo pela parede para que ela não ficasse na ponta dos pés, e as coxas dela se encaixaram ao redor de uma de suas pernas; ela suspirou, mordendo-lhe o lábio inferior, os cabelos uma bagunça por entre os dedos de .
  - Realmente, , nem um pingo de vergonha na cara - ela disse a si mesma por entre os lábios e ele riu, dando-se conta, perigosamente, do quão perto de sua cama estavam - Preciso ir - as palavras amargas tocaram seus lábios junto aos dela, tão doces, e seu pau reclamou entre as pernas.
   quis perguntar se ela tinha certeza, mas não quis parecer um escroto. Nada daquilo parecia haver sido friamente calculado por ninguém pra que ele se sentisse pessoalmente atingido por ela acendê-lo e sair correndo. Desceu as mãos da cintura para o quadril, trazendo-a para ainda mais perto de si, que fechou os olhos e sorriu, pela primeira vez parecendo entorpecida - se por ele, ou pelo álcool, não saberia dizer.
  - Tudo bem - respondeu, respirando fundo junto aos cabelos dela.
  Afrouxou as mãos e ela segurou ambas antes de soltá-lo e seguir de costas pelo corredor, descendo as escadas sem olhar pra trás.

  As balsas para Arraial d’Ajuda saíam da marina de 30 em 30 minutos, a partir das sete da manhã. O enterro estava marcado para 9h, e sabendo que era muito provável que houvesse atrasos, considerando que a chuva, apesar de ter dado uma trégua, parecia querer voltar a qualquer minuto, ele saiu do hotel faltando 15min para as 7h e tomou um pingado numa padaria na Praça dos Pataxós enquanto aguardava.
  A primeira balsa iniciou o embarque quase às 8h. Chegaria com o horário apertado, mas se molhasse a mão do taxista do outro lado do rio, ia conseguir estar lá a tempo de cumprimentar a todos, rezar um “Pai Nosso” e assistir o caixão descendo.
  Encontrou para si um lugar à direita da balsa, na ponta da fila, esperando que, tendo em vista seu entorno razoavelmente vazio, mais ninguém quisesse se sentar nos três bancos vagos ao seu lado. No celular já tinha mensagens do pai, perguntando se havia chegado em Porto, se estava a caminho do cemitério São Benedito, ou se tinha desistido de ir. Respondeu que estava na balsa e bloqueou o celular, olhando a paisagem que o tempo nublado tornava menos especial do que ele se lembrava.
  Mesmo infestada de turistas, pros quais ele nunca teve paciência, sempre achou a cidade e seus arredores incrivelmente bonitos.
  - Não te vi no café, achei que tinha fugido de mim.
  Novamente ele ouviu a voz vindo da sua esquerda e novamente ele encontrou a menina do saguão do hotel - , que lhe tirara completamente do eixo na noite anterior, afastando os sentimentos conflitantes acerca de sua família. A marca do biquíni estava coberta por uma peça verde, que aparecia levemente por baixo da transparência do vestido branco. As mesmas havaianas brancas de correias finas nos pés, óculos escuros que a impediam de perscrutar a alma dele, uma bolsa de palha nos ombros.
  - Saí cedo pra pegar a primeira balsa - sorriu, um sorriso pequeno, tentando não parecer que estava desconfortável em vê-la. Ela sentou-se na primeira cadeira da fila ao lado da sua, de lado, lhe dando total atenção. não sabia porque se justificava, mas o fazia, e relaxava em seu banco desconfortável ao fazê-lo.
  - Ué, teve trânsito pra chegar aqui?
  “Aqui” não era mais onde estavam, a balsa já tendo saído da marina rumo ao outro lado da baía. Mas não fez o papel de chato que assumira pra vida com aquela tão simpática e intrigante - tão diferente de sua falecida avó apesar de compartilharem o mesmo nome.
  - Essa é a primeira balsa - eles riram juntos.
  - Eu crente que dei a maior sorte do mundo chegando em cima da hora - ela balançou a cabeça, de cabelos soltos como estava ao deixá-lo duro e desnorteado junto à sua porta, e pegou uma garrafa d’água dentro da bolsa - Vai pro Eco Parque também?
  - Acho que tô com a vestimenta errada pra isso - ele olhou pras próprias calças jeans e tênis, sorrindo por ela não ter percebido-as antes, afinal, ele era o único ser humano de calças jeans naquela balsa.
  - Nossa, que idiota - ela riu, guardando a água na bolsa e levantando - Não vou te atrapalhar mais, bom passeio!
   voltou pra perto das amigas, algumas fileiras atrás de si, e ele percebeu que ela não tocara no assunto do beijo e ele gostaria que ela tivesse feito.

  Às 11h de sábado faltavam exatas 23h para que ele voltasse pra casa, e por aquela hora ele já havia enterrado sua avó, cumprimentado todos os presentes, dado risadinhas sem graça aos vários comentários acerca da sua falta de sotaque, e tido uma conversa nada agradável com o seu pai sobre a distância que mantinha da família. “Quem mais vai precisar morrer pra gente te ver de novo?”, o pai lhe perguntou, e ele não soube o que dizer diante disso, porque seu pai não ligava para vê-lo com frequência, só queria que ele voltasse e assumisse as responsabilidades que não tomara pra si.
  Enquanto pedia benção a todos os tios, abraçava todos os primos e apertava a mão dos conhecidos, pensava em quantas pessoas ali tinham carinho de fato por sua avó para comparecerem em seu enterro, e que ele próprio não tinha carinho nenhum por nenhuma delas, como elas não pareciam ter por ele. Não se sentia na obrigação de ter ou receber carinho de pessoas que o abandonaram emocional e financeiramente, tampouco.
  Mas isso não significava que ele passava incólume por essa linha de raciocínio. Não escolhera ser sozinho no que dizia respeito à família, mesmo que seu pai assim entendesse, mas acabou escolhendo ser sozinho em quase todos os outros aspectos de sua vida. Era difícil criar vínculos com terceiros quando o vínculo primário fora quebrado de maneira tão doída.
  Uma vez mais na balsa, agora fazendo o trajeto contrário, depois de educadamente recusar o almoço em família alegando que seu voo para São Paulo era no sábado, não no domingo, não gostaria de estar tendo os pensamentos que tinha, com o sol dando as caras e a paisagem mostrando-se ainda mais bonita do que pela manhã. A quantidade de rancor que possuía pela família era suficiente para distraí-lo de todo resto.
  Cerca de dez minutos após sair de Arraial d’Ajuda estava de volta a Porto. Chamou um uber, que logo o pegou na marina, seguindo o caminho de volta ao hotel. No meio do trajeto, contudo, mudou de ideia; queria ir andando, respirar a cidade, sentir outra coisa que não raiva daquele lugar, que não tinha culpa do que as pessoas de lá fizeram dele.
  Estava na Avenida Beira Mar, pouco depois do Toa Toa; a maior parte do caminho estava para trás, era trinta minutinhos no máximo, andando com calma, respirando o cheiro de mar e peixe frito, observando os hotéis e quiosques lotados, desviando das pessoas como estava acostumado a fazer em São Paulo. Encerrou a corrida, pagou em dinheiro, e seguiu seu caminho andando sem pressa.
  A última vez que fizera aquilo deveria ter cerca de dezesseis anos, quando os caminhos que ia trilhar começavam a ser traçados. Sua mãe lhe dissera, numa visita: “a pousada vai tá lá com ou sem você, faz o que teu coração achar mais confortável ou desafiador”. O que, em outras palavras, era o mesmo que dizer “foda-se o que seu pai quer”. E ele seguiu o conselho dela, escolhendo o desafio e lidando com as consequências dele.
  A verdade era que seu pai jamais iria perdoar aos dois por terem ido embora e o abandonado. Mas era mais do que ego; eles abandonaram tradição, a própria terra, o próprio povo, todo um legado. Seu pai se sentia traído, e transmitiu o sentimento para o restante da família, que tinham tanta ou até mais raiva deles por essa influência.
  Seus pensamentos estavam atrapalhando a vista e a vibe, ele percebeu. Então direcionou-os para a que, naquela hora, era certo de ainda estar se divertindo no Eco Parque, aproveitando o sol que resolvera dar as caras por sabe Deus quanto tempo; não pensando nele, como ele fazia com ela.
  E pensou nela todo o restante do caminho. Como não havia explicação lógica, de seu ponto de vista, para o interesse, embora existisse para a simpatia, mesmo que uma coisa não tivesse a ver com a outra. Como ela o subjugara na noite anterior fazendo tão pouco; como fizera seu cérebro dar voltas e voltas nas variáveis que envolviam ela dentro de seu quarto e não na porta, ela sem a blusa e não vestindo-a, o gosto da pele bronzeada sobre a marquinha do biquíni além do gosto da língua.
  E com tudo aquilo em mente ao chegar ao hotel, deixou um recado na recepção para a de 22 anos hospedada com mais duas amigas, cujo número do quarto ele não tinha ideia de qual era: “me encontra no corredor, 22h”.

  Clara dormia silenciosamente em seu ombro enquanto a balsa atravessava o rio Buranhém - que por algum defeito de sua língua, ela sempre pronunciava “bunharém” -, mas ela não tirava da cabeça a pergunta que a amiga fizera no meio daquela tarde, mesmo que já fosse quase 18h e muitas outras conversas tenham se sucedido àquela.
  “Tu vai dar pra ele, sua safada?” ela perguntou, um sorriso gigante no rosto enquanto tomava aquela que devia ser a décima água de coco do dia, mas o tom de quem falava sério - e ai dela se não respondesse à pergunta honestamente. Entretanto, sua resposta honesta (“não sei”) não agradara a amiga, que não acreditava nela, porque entre as três, era de fato a mais sem vergonha - e sem vergonha no sentido de completamente liberta de amarras e convenções sociais. Ela fazia o que queria fazer, muitas vezes sem pensar muito no depois.
  Doida, Clara dizia, e ela não podia dizer que a amiga estava de todo errada.
   não sabia dizer o que chamara sua atenção em , mas o vira atravessando o átrio do hotel com apenas uma mala de bordo e muita cara de quem não queria estar lá, e seu corpo instantaneamente respondeu àquilo. Como alguém poderia estar desanimado perante tudo o que Porto Seguro tinha para oferecer? Ela iria embora em dois dias e já sentia saudades!
  Aquela dúvida fizera sua língua coçar e não se conter dentro da boca quando, depois de vinte minutos, ele sentou-se próximo, frustrado e impaciente. Ele, em contrapartida, mal notara sua presença, mas aquele detalhe não serviu de empecilho nenhum pra ela. Tinha uma voz firme, gostosa, e falava puxando o “r” demais pra ser de lá, como ela posteriormente descobriu, graças à própria tenacidade.
  Não demonstrou nenhum interesse nela. Então o beijo, cuja iniciativa partira dele, a surpreendera enormemente. Ela queria, claro, mas por não enxergar reciprocidade, estava receosa de deixar aquilo mais explícito do que sua sem vergonhice ousara fazer. Acabou por descobrir que conter um pouco os ímpetos também produzia bons resultados.
  Mas ela queria dar pra ele?
  Era verdade que a coisa toda funcionara muito bem. E que ela dissera que precisava ir não porque precisava de fato, mas porque com a porta aberta e o corredor vazio achou que fosse o melhor a fazer. contendo as próprias vontades, onde já se viu!
  Era provável que nunca mais visse aquele estranho, então pra que conter qualquer coisa?
  Segurou aquele pensamento enquanto a balsa chegava em Porto Seguro e ela chamava a atenção de Clara. Ele, o pensamento, ficou no cantinho da sua mente enquanto discutia com as amigas, no uber, durante o caminho de volta ao hotel, para onde iriam aquela noite. Os planos de ir ao Beira Rio Caraíva, restaurante muito bem avaliado no TripAdvisor que provavelmente comeria o restante do orçamento da viagem, contudo, foram por água abaixo quando recebeu o pedacinho de papel dobrado da mão do recepcionista.
  - “Me encontra no corredor, 22h” - Clara leu sobre seu ombro - Hmmm acho que alguém não vai querer sair hoje.
  Verdade seja dita, ela realmente não queria.

  Ele fumava um cigarro junto à janela entreaberta no fim do corredor quando ela chegou ao último degrau da escada, às 22h08min. Atrasara-se, pois seu cansaço fora maior do que imaginava que seria, e o sono bateu pesado e por mais tempo do que planejara. ouviu o som de seus passos e olhou para trás. Sorriu ao reconhecê-la. foi acendendo cada uma das lâmpadas com sensor de presença no corredor, que foram se apagando ao passo em que ela se afastava. A porta do quarto dele estava entreaberta tal qual a janela.
  - Desculpa a demora - ela ficou sem saber se o tocava de alguma forma, então achou melhor não fazer nada. Encostou-se na parede, de frente pra ele.
  - Tá explicado então porque deu tempo de acender o segundo - eles sorriram, e ela recusou o cigarro já pela metade que ele lhe ofereceu, pois não tinha o costume de fumar. Bocejou - Tava dormindo?
  - Essa coisa de parque aquático cansa.
  - Imagino que sim - ele riu - Não precisa ficar, se não quiser. Pode voltar a dormir.
  - Se tô aqui é porque quis vir - ele assentiu, tragando o cigarro e jogando-o pela janela.
  Realmente ela quisera estar lá, de frente para , o estranho, estritamente movida pela curiosidade acerca das intenções dele em chamá-la. Tinha em mente que era muito provável (algo em torno de 70, 75 por cento) que ele apenas queria terminar o que eles haviam despretensiosamente começado na noite anterior. Também entendia que em se tratando de si, se estava lá em detrimento de estar num restaurante caro com suas amigas no seu último dia em Porto Seguro, queria terminar aquilo também.
  Enquanto os pensamentos de buscavam coerência entre si, virou de costas para a janela, a observando, estabelecendo que escrevera o bilhete baseado num impulso, os tais vinte segundos de coragem insana que algum poeta de facebook já escrevera. Não fazia questão de vê-la de novo, vez que não a veria nunca mais depois daquele fim de semana, mas não queria ficar sozinho.
  Sentira muitas coisas ruins e pesadas durante o dia todo para se afundar nelas, no restante dos cigarros em seu maço recém comprado e nas longnecks que o hotel possuía na geladeira do restaurante durante toda a noite. Queria companhia porque sua solidão o engolira, e não sentia nenhuma necessidade de se explicar para uma estranha, que claramente algum interesse nele tinha, pra ter retribuído aquele beijo que ele dera por pura curiosidade com a intensidade que fez.
  - Tá chuviscando de novo - disse, pra puxar assunto - Foi você quem trouxe a chuva?
  - Convidei ela pra despedida ser mais fácil.
  - Vai embora amanhã?
  - Sim, mas queria mais uma semana pelo menos.
   conseguia entender porquê, mesmo que ele próprio não visse a hora de sumir dali. Seu problema não era com Porto Seguro, era com os sentimentos que a cidade despertava nele. Seu passeio mais cedo naquele dia fora bastante elucidativo, mas nunca conseguiria deixar de olhar para os arredores com certo rancor. Ali não fazia parte da pessoa em quem ele se tornara.
  - Não é uma cidade cara, se programa pra voltar num feriado - ela assentiu.
  - Encontrou sua família, foi legal?
  Ele ensaiou a resposta certa, a verdadeira, em sua cabeça, e quase deixou que ela chegasse à ponta da língua e escapasse pelos lábios; faltou muito, muito pouco. Ia dizer que encontrou sim a família, no enterro da avó, e que fora péssimo como ele sabia que seria e por isso ela estava ali às dez horas da noite no corredor do hotel, para ajudá-lo a não pensar naquilo e aliviar a dor da solidão, então que fosse uma boa menina e não tocasse mais naquele assunto.
  Aquelas palavras duras, contudo, as quais aquela não precisava ouvir, jamais deixaram de ser apenas um ensaio.
  - Encontrei todo mundo.
  Ela assentiu novamente e colocou as mãos no bolso de trás do short, as pernas cruzadas, talvez entendendo que os detalhes não lhe convinham. Olhou para trás, certificando-se de que estavam mesmo sozinhos.
  - Quero te beijar de novo.
   sorriu, metade alívio metade diversão, e passou os braços pela cintura dela da mesma forma com que havia feito na noite anterior, mas dessa vez repleto de certeza. uma vez mais imprensou-o na parede e retribuiu o beijo com a mesma intensidade, como se ela tivesse deixado-o de pau duro na porta a alguns minutos e não horas.
  Se ele se concentrasse direitinho na textura da língua e no cheiro que vinha da pele ou dos cabelos, bem como nas terminações nervosas que ela ligava ao arranhar a extensão dos seus braços com as unhas quadradas pintadas de branco e beijá-lo daquele jeito, deixaria-se entorpecer o suficiente pra esquecer da pessoa amarga que era.
  Tudo bem usá-la desse jeito, ele pensava, afinal de contas pairava sobre os dois a inevitável verdade de que jamais se veriam novamente.
   encerrou o beijo e puxou-o pela mão em direção ao quarto.



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