Like a stone
Escrito por Natty | Revisado por Flavinha
O rosto a sua frente era distorcido, não conseguia vê-lo. Aquilo a amedrontou mais ainda quando sentiu braços frios arderem sobre os seus perfeitamente quentes, o choque térmico fez com que tremesse. Não sabia onde estava ou o que ocorria ali, não tinha noção de que dia, mês, ano era. Simplesmente não conseguia cituar-se ali. Parou de sentir no minuto em que aqueles que a envolviam soltaram-na direto no chão frio. Fechou os olhos, enquanto a escuridão dominava cada pedaço de sua realidade.
Andei até ela, tão calma e simplesmente peguei-a pelos braços. Sacudi-a duas ou três vezes, mas foi o suficiente para trazê-la de volta a si. Encarou-me, cada traço cinza em seus olhos azuis ardiam de desentendimento. Silêncio era tudo o que completava o vazio. Os pés tocavam o chão, tentando sentí-lo firme abaixo de si. Encarei-a penosamente, ao menos sabia o que se passava. Suspirei, tentando firmar sua mão na minha para que pudesse finalmente levá-la embora.
- Huh? - Cambaleou, sem querer seguir-me. Puxei mais forte, mas esta resistiu. Olhei diretamente dentro de seus olhos. "Acorde", murmurei dentro de sua cabeça.
- Você está morta, querida. - Tentei explicar, sem mais delongas, o que estava acontecendo. - Venha, precisamos ir.
Ignorou-me, tentando assimilar como chegou àquele ponto. Suspirei brevemente, pegando em sua mão. Senti exatamente o momento em que os flashes atingiram sua cabeça, fazendo-a titubear para trás. Segurei-a prontamente, impedindo que sua alma tombasse. Aguardei, enquanto ela vasculhava as últimas memórias em sua mente.
Um rosto pálido, um par de olhos verde, uma faca.
Tudo estava escuro para seus olhos, até que uma luz forte a cega, fazendo-a fechá-los quase que imediatamente. A cena se faz a sua frente: uma mulher, um homem, um pano. Se desse três passos poderia tocar-lhes a face, muito embora fossem apenas parte de sua memória. Eu estava posta ao seu lado, assistindo à cena juntamente com ela, que estava refletida poucos centímetros a frente.
O homem: alto, loiro, forte. A mulher: fraca, tola, vulnerável. O pano: firme, molhado, pronto.
Seguiu-se a ordem então, o pano sobre a face da mulher, o homem que segurava o corpo para este não despencar, o carro que aguardava do outro lado. Tudo conforme o planejado, então o homem depositou o corpo inócuo no banco traseiro do Impala. Sentou no banco do motorista, girando a chave, pisando no acelerador.
Não foi preciso muito tempo até que este chegasse ao seu destino, uma casa velha. Aquele que possuía os olhos parou o carro então, puxando a mulher do banco de trás e levando-a até a casa. Buscou pela chave nos bolsos com uma mão, enquanto a outra sustentava o corpo sobre os seus ombros. Abriu a porta logo ao achar a chave, entrando calmamente na casa e atravessando corredor por corredor. Até parar na frente de uma porta vermelha.
Girou a maçaneta: o quarto era grande, bem-cuidado e branco.
Jogou o corpo sobre a cama, sem preocupar-se em ser gentil com a mulher desacordada. Sentou na cama, ao lado da mulher. Apoiou a cabeça suavemente sobre a cabeceira da cama e aguardou. Longos minutos tornaram-se horas. Enquanto os dois estavam largados sobre uma cama grande, branca e passiva, o sol escondia-se de suas vistas, envergonhado. Logo era a lua que estava em ascensão na noite fria. E a garota ainda não havia acordado.
Olhos abriam-se lentamente, encarando tudo a sua volta sem consciência. Outro par de olhos, estes sendo , observavam cada mínimo movimento de suas pupilas negras. Então a mulher pôde finalmente vê-lo. Ofegou, pulando do lado oposto ao dele, quase caindo da cama. O homem não esboçou expressão alguma, apenas residia impassível assistindo à cena.
- Finalmente. - Sussurrou, a sua voz era rouca e alta, máscula.
Levantou-se da cama então, andando até ela lentamente, enquanto esta afastava-se para trás até bater contra a cabeceira da cama. Os olhos dela gradativamente arregalando-se com a proximidade a qual era diminuída pelos passos largos do homem alto.
- Não torne isso difícil. - Murmurou, aproximando-se dela sorrateiramente.
Um largo sorriso tomou o rosto do homem, um sorriso de escárnio, cheio de veneno. Os olhos dele cintilaram a medida em que o rosto da garota era tomado em suas mãos, a medida em que o pavor nos olhos dela crescia. Rapidamente tocou seus lábios nos dela. Separou então seus rostos, sorrindo levemente para a garota, rugas surgiram ao redor de seus olhos.
Sem aviso prévio ele jogou o corpo dela para o meio da cama, segurando-a antes que ela pudesse reagir. Intermitiu as palavras que sairiam de sua boca com a palma de sua mão. Prendeu-a com uma das mãos, enquanto a outra buscava as cordas no criado mudo. Ergueu-a brevemente, apenas para amarrá-la.
Pôde finalmente deixá-la sozinha, caminhando para fora do quarto e indo até o seu próprio, apenas para buscar o seu conjunto precioso. Tocou-as sorridente, ao chegar nelas. Três facas: uma era estreita, afiada e fina; a outra era larga, um pouco cega e grossa; a última, e sua favorita, era longa, porém estreita na largura, extremamente afiada e quase tão fina quanto uma agulha.
Voltou logo para o quarto, observando a garota que tentava desesperadamente soltar-se das cordas. Gritos mudos, que ninguém jamais ouviria. Dispôs as três facas ao lado do rosto dela, sorrindo largamente, sua face distorcida em escárnio transformava toda a sua beleza lúcida em alienação e ódio. Pegou a primeira, fazendo um corte em sua bochecha esquerda com agilidade, deleitando-se com o pingar do sangue. Buscou o conta-gotas no criado mudo, roubando algumas gotas do sangue dela e comprimindo-as entre duas lâminas de vidro.
Não deu tempo para um reflexo, não deu tempo para uma reação apropriada, ele apenas fincou a terceira lâmina quase em cima de seu coração.
Pude ver quando a garota fechou os olhos com o pavor das lembranças que atingiam-lhe pós-morte. Sacudiu levemente os cabelos longos, perfeitamente ondulados, de um loiro platinado em negação. Apertou mais as pálpebras, enquanto as lágrimas inundavam o seu rosto. Suspirei, cansada com a demora.
- Precisamos ir, querida. - Alertei-a gentilmente, tocando o seu ombro com empatia.
- Não é justo! - Bradou ela, pela primeira vez pude ouvir sua voz, era baixa e doce, voz de sinos, como a de um anjo. Um anjo morto. - Não é justo.
- O mundo não é justo, . - Comentei, enquanto observava ela elevar as mãos para secar as lágrimas. - Pessoas morrem todos os dias, você é só mais uma delas.
Ignorou-me, fechando os olhos e voltando à cena.
O homem de olhos embalou o corpo dela nos lençóis delicadamente, como se embala um recém-nascido. Encostou sua testa na dela, enquanto os seus olhos ainda podiam ver. Selou os seus lábios mais uma vez, depois parou e cantarolou baixinho. Sacudindo para lá e para cá, como se estivesse colocando-a para dormir.
- . - Murmurou a garota, a última palavra que ela pôde dizer em vida.
- Por que ele matou a mim? - A cabeça dela estava abaixada, os olhos arregalados e imersos em dor. - Ele prometeu que não iria me machucar, ele prometeu.
- São só palavras vazias, . - Suspirei novamente. - São só palavras humanas.
Agora restavam apenas três coisas: a mulher, a morte e a dor.