Kairos: Rewind'n remember

Escrito por ella escreve. | Revisado por Mariana

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Rock’n prologue

  Reino unido, 2018
  — Você consegue achar artistas que fazem música mais badalada que elas, gente mais bonita, mais nos padrões esperados… mas não é a perfeição que as fazem serem famosas, é a autenticidade. Essas garotas têm algo nelas que é difícil de achar, esse amor tão forte pela música — a mulher gesticula enquanto comenta sobre kairos, um sorriso nostálgico em seu rosto — Elas tem essa sede por criar, como se estivessem perdidas em um deserto e o único jeito de se manterem fosse respirar melodias e se saciar em partituras.
  Um silêncio tomou a sala enquanto a produtora tentava encontrar as palavras certas.
  — Mas isso não acontece, digo, saciar-se… A fome por criar nunca vai embora e enquanto ela está ali presente no coração de cada uma, elas fazem o que sabem fazer de melhor: estar no palco.

PARTE I - Reveal ‘n roll
Capítulo 1.1 — Rock ‘n roots

  — Ah, eu sempre quis uma banda…
  Em 1974, durante as férias de verão, Lasowski trabalhava em uma cafeteria no centro da cidade, não porque era uma garota aplicada que desejava aumentar sua experiência no mercado de trabalho, mas porque era o único jeito do senhor Clark deixá-la cantar quase todas as noites de microfone aberto no lugar.
  De manhã, o café era um espaço onde estudantes iam para confraternizar, estudar e até planejar secretamente manifestações, fingia não escutar nada, desde os detalhes sórdidos de festas de fraternidade até as senhorinhas reclamando de netos bagunceiros. No entanto, era só fingimento, a garota ouvia tudo —e transformava qualquer coisa em melodia.
adorava improvisar no palco, cantar para as pessoas na plateia e fazê-las entender que ela os enxergava de verdade.
  — Posso ajudar? — ela perguntava com um sorriso no rosto, lembrando-se do porquê estar fazendo tudo aquilo.
  , mais conhecida como por todos (porque nunca parava de cantar), tinha o apoio de sua mãe em relação ao seu sonho. Não que sua mãe não tivesse fé nas capacidades de , mas era difícil para uma mãe solteira nos anos 70 acreditar que a filha que trabalhava de garçonete todos os dias se tornaria a próxima Janis Joplin. Especialmente porque sua geração ainda tinha o diploma acadêmico como uma garantia de um futuro estável.
   Lasowski acreditava que aquilo era balela.
  Ela sonhava em estar em um palco desde que era pequena. Ligava as lanternas da mãe e apontava para seu rosto, em uma tentativa de se acostumar com os holofotes. O processo doía seus olhos o suficiente para ela ter que ir dormir logo depois, mas quando pegava a escova de cabelo para usar de microfone, nenhuma luz era forte o suficiente para tirá-la de seu mundinho.
   gostava de dizer que seu DNA era diferente dos outros, que significava Determinação, Nostalgia e Arte ao invés de toda a normalidade biológica que sempre a corrigiam.
  Sua melhor amiga brincava que na verdade era Disciplina, Noção e Aflição, tudo aquilo que não tinha.
  Durante os pequenos intervalos de , quando não tinham clientes chegando ou pessoas pedindo pelas contas, ela se sentava na banqueta do caixa e puxava seu caderno, cheio de etiquetas de preços que ela colava na capa.
  Ali, guardava seus maiores segredos, rabiscos de letras, poemas, desenhos, tudo que ela acreditava que poderia lhe dar mais inspiração para escrever uma música depois. Ela gostava de desenhar clientes e fazer melodias com todos aqueles traços diferentes, era um talento único poder achar arte em qualquer pessoa que passasse pela porta.
  — Eu te pago para desenhar ou trabalhar aqui? — o senhor Clarke perguntou, com sua voz grossa e bigode branco, franzindo o cenho para a garota e a acordando de seu mundo de pensamentos.
   respirou fundo.
  Talvez não qualquer pessoa que passasse.

  O parque das laranjas era longe de sua casa o suficiente que ela tinha que pegar dois ônibus, mas era também suficientemente bonito para fazer valer a pena a viagem. adorava sentar-se no banco e assistir as pessoas andando. Ela se encontrava bastante nessa situação, de observadora —apesar de todos olharem como a protagonista do dia.
  Ela se sentou no banco perto da estátua de mármore e da fonte.
   abriu seu caderno, olhando para os cachorros e as crianças chorando para irem embora do parque, ela escreveu:
Eu consigo ouvir os latidos de noite, eu consigo sentir os dentes afiados entrando na minha pele;
A pior parte é como me olham quando conto meu medo, como se eu fosse uma maníaca, uma criminosa —como se algo bonito fosse incapaz de machucar.
Talvez, eu apenas odeie o que parece comigo, talvez meu medo de olhar nos olhos-esperançosos-esperando-na-porta de um cachorro e ver eu mesma em sua íris.
Ele só existe quando ele é amado.
(Eu ainda tenho medo da mordida)
(Eu coço a minha palma, esperando por você.)
  Ela franze o cenho, pendendo a cabeça para o lado, como se fosse mudar sua perspectiva.
  — Ugh…
  Xiou consigo mesma, perguntando a si mesma se metáforas com cachorro já estavam fora de moda. Não que fosse ligar para isso, arte era arte, e ninguém faria a arte dela como ela.
  Sua atenção foi tomada por um letreiro colorido, fazendo se levantar, olhando animada para o lugar. Não teve dúvidas, se levantando e caminhando até a loja.
  A Claflin Records, uma loja de discos, não tinha nada de especial, mas para uma amante fervorosa da música como , era tudo que ela podia querer em uma tarde nublada sem nada para fazer.
  — Boa tarde, procurando por algo específico? — o atendente sorriu para ela, e teve de sorrir junto.
  Ele parecia simpático, apesar de ter um olhar ansioso, ao redor de seu pescoço, ela conseguia notar um grande colar, vários braceletes nos braços e um sorriso nervoso.
  — Preciso da seção rock, só apontar que eu me acho.
   disse, sorrindo enquanto o encarava, era engraçado como ele parecia nervoso só por falar com ela. Eles se conheciam de algum lugar?
  — Por ali, senhora…?
  Os olhos dele se arregalaram quando percebeu o título que usou, a boca de abriu em choque, uma gargalhada ecoando pela loja, fazendo os outros clientes olharem para ela.
  — Caramba, senhora é nova pra mim…
  Disse apenas, mandando um beijo na direção do garoto e indo até a seção onde ele apontou.

   morava em um apartamento pequenino mas com uma vista impecável e escadas para o jardim do terraço, junto com a mãe, uma senhora que passava a maioria das manhãs tricotando e vendo o mesmo canal de tevê (mais por preguiça de se levantar e mudar de canal do que realmente ter apego aos anúncios de jóias que nunca poderia comprar). Ela amava a mãe com todo o coração, que a amava de volta na mesma intensidade.
  As duas tinham uma rotina nas noites de terça-feira, assistir ao filme favorito de , um corpo que cai, enquanto comiam as bolachas de confeitos que as duas fizeram na tarde anterior.
  Entretanto, esta noite foi diferente, a mulher estava indisposta e decidiu tirar um cochilo, prometendo rever o filme na noite seguinte. não se incomodou, sentada na frente da tevê, pegou seu caderno para anotar ideias.
  Sua coelha preta, a senhora pulgas, estava deitada confortavelmente no chão frio, enquanto seu gato, Galileu Gatolei, estava andando pela casa, se espreguiçando e buscando coisas para arranhar, já que todas as cadeiras já tinham suas marcas e aparentemente, isso as deixava sem graça.
   se levantou do sofá quando a tevê começou a chiar, arrumando a antena e mexendo no botão de canais até que achasse um sinal bom. Ela não sabe quantas vezes apertou para mudar de canal, mas acabou em um canal que nunca viu antes, assistindo um filme que nunca tinha visto em sua vida.
  Na tela, um homem quase nu dançava para uma plateia e um padre, suas vestes lembrando a pintura do nascimento de Vênus de Boticelli.
   se sentou no chão, hipnotizada com a tela, gritando quando o frame trocou de repente, na tevê, um esqueleto com larvas aparecia.
  Pelo sotaque presente, ela julgava ser um filme religioso, um filme religioso com muitas sátiras, mas mesmo assim deveria ser religioso.
  Sua mãe apareceu no batente da porta, passando pela cortina de miçangas e sorrindo para a filha, fazendo-a dar um pulo e se esticar rapidamente para desligar a televisão.

  — Ah, Pippa sempre foi muito tranquila. — afirmou com a cabeça, tentando segurar uma risada enquanto encarava a câmera.
  — E ai? Quem tá pronta para uma festa?! — Pippa entrou na casa de , uma garrafa de vinho na mão enquanto fazia uma dancinha animada. A mãe de encarou a amiga da filha, com a mão na testa, enquanto negava com a cabeça.
  — Nem pensar, Pippa, a gente vai pro café, lembra? — a cantora entrou na sala, colocando argolas nas orelhas — eu vou cantar lá.
  — De novo? — a mãe perguntou, cruzando os braços — você e essa mania de desperdiçar suas noites com hobbies ao invés de dança…
  — Não é um hobbie, mãe, é um-
  — chamado. — as outras duas mulheres presentes terminam a frase, rindo da careta que bufou, não só por ser interrompida, mas também ao ter sua sentença completada. O quão previsível ela poderia ser?
  — Vamos lá, tá na hora, tchau mãezinha.
  — Tchau, querida.
  — Tchau, tia.
  As duas garotas saíram, se despedindo com um abraço na mulher e sorrisos no rosto.
  Ao sair da casa, Pippa abraçou de lado, colocando sua cabeça no ombro dela.
  — Você tá carente hoje, o que aconteceu, o Marcus foi viajar?
  Foi a vez de Henrietta bufar, negando com a cabeça e sorrindo.
  — Touch starved? I've never tasted it.
  As duas riram até perceberem que o ônibus já estava no ponto. A corrida foi desesperada, mas valeu a pena, logo Pippa e estavam dentro do veículo, sorrindo aliviadas —e reclamando das mudanças de horário.

  Quando chegou ao café, ela rapidamente começou a arrumar o palco provisório (que ficava lá por tanto tempo que nem provisório era), colocando as mesmas no estoque e limpando os bancos em formato de disco de vinil. As mesmas estavam todas postas, com biscoitos especiais em cima, guardanapos quadriculados e copos coloridos.
  Ela ajustou o karaokê, arrumando o volume e testando os microfones, sorrindo para uma Pippa animada, pulando pelo café enquanto colocava cartões nas mesas —cartões com as informações de , para caso alguém precisasse de uma cantora para festas e celebrações.
  Então, ao final da arrumação, as duas pararam na frente das portas de vidro, olhando para o lado de fora, esperando empolgadas.
  E então, esperando um pouco menos empolgadas.
  E então, esperando cansadas.
  E então, não esperando mais, frustradas.
  — Ninguém veio…
   reclamou, se jogando na beirada do palco, as mãos na cabeça, decepcionada.
  — Comece a cantar, , você invoca até os deuses congelados no polo norte com sua voz. — Pippa tentou sorrir empolgada, mas não conseguia esconder sua tristeza em ver a amiga triste.
a olhou.
  A cena do filme que havia assistido, aquele que não sabia o canal, o nome ou a data de lançamento, a deixou embasbacada. A cena de uma mulher suplicando por beleza e perdão para Deus enquanto asas de demônio pareciam nascer de suas costas, enfeitiçou a mente de .
  Olhando para o café vazio, a garota se questionava sobre o que imploraria se tivesse a chance, se realmente acreditasse que alguém estava ouvindo.
  Pediria por fama eterna ou por manter a chama de sua paixão pela música acesa para sempre?
  Ela encarou Pippa, a melhor amiga que continuava tentando sorrir empolgada, e teve certeza: ela preferiria mil vezes continuar a cantar com a mesma paixão apenas para a amiga.

  — Você e suas teorias da conspiração… o governo te levaria embora se soubesse suas ideias mirabolantes…
  Pippa riu, olhando para encantada como sempre olhava. Ela tinha muita admiração pela melhor amiga, como uma criança olha para a mãe, se perguntando se algum dia poderia existir um ser maior que aquele.
  — Você pensa em como as coisas seriam se você não fosse você?
  Henrietta balançou a cabeça, confusa pela pergunta.
  — Tipo, às vezes eu penso em como as coisas seriam mais fáceis se eu não fosse uma artista… e eu nem digo pela estabilidade, eu poderia entrar em uma faculdade se eu quisesse, viver a vida de uma mãe suburbana se aguentasse, mas eu sei, eu sei que sempre existiria esse pedacinho de mim lá no fundo do meu estômago, se revirando, me comendo por dentro, implorando para eu criar algo… — para de varrer, encarando o chão, perdida em seus pensamentos, uma feição dolorida em seu rosto — é horrível ser artista, pois é horrível ser Deus; você olha para sua criação e não consegue imaginar como fez isto, mas você fez, e é uma benção e uma maldição ao menos tempo… você fez isso e isso sente.
  Ela tomou uma golada de ar, encarando a amiga com as sobrancelhas fincadas.
  — Como é a vida daqueles que não sentem a imensa necessidade de criar o tempo todo, Pippa? Como respirar sem transformar o ar em arte e os pulmões em poesia? Eu queria poder só exalar e inalar sem precisar me preocupar em tornar aquilo útil para minha arte…
  Minette negou com a cabeça, um sorriso triste nos lábios. Talvez ela não entendesse a profundidade do sentimento, mas ela entendia a necessidade de fazer arte, mesmo que ninguém olhasse.
  — Dizem que Jesus morreu pelos pecados de todos, acho que alguns tiveram o azar de nascer com eles de volta.
  — É a cruz que carregamos.
  — Muita arte é feita em madeira, , mas nem toda árvore precisa ser derrubada, entende? Pelo contrário, a gente precisa de florestas.
   sorriu, os olhos marejados mas sem deixar nenhuma lágrima cair. Ela murmurou um obrigada sem som.
  Pippa correu até o outro lado da sala, abraçando a melhor amiga.

  Quando chegou em casa, todas as luzes já estavam desligadas, todas exceto o abajur do lado da porta que sua mãe sempre deixava ligado, na esperança da filha lembrar de tirar os sapatos sujos antes de entrar na casa.
  A garota os tirou, caminhando de meia até o quarto de sua mãe e a dando um boa noite baixinho, deixando um beijo em sua bochecha.
  Depois, ela tomou um banho demorado, demorado o suficiente para que o espelho do banheiro embaçasse e as paredes suarem. saiu do banho com pijamas, uma camisa em volta do cabelo e pantufas e se jogou na cama, cansada.
  Ela suspirou, se perdendo em pensamentos enquanto olhava para as poucas estrelas que restaram em seu teto. Ela lembra quando seu pai a ajudou a colocar. Sentiu saudades de Pippa e sua habilidade em tirá-la de memórias tristes.
   se levantou da cama, apenas para sentar no chão de seu quarto e puxar o violão para seu colo, começando a dedilhar algumas notas. Não se preocupou com o sono da mãe, a mulher já estava acostumada.
  — I've sing this song before, I've told you this again and again… — ela murmurou sozinha, fechando os olhos com força, frustrada — again and again…?
  Pegou sua bolsa no pé da cama e procurou pelo caderno de músicas, puxando uma página qualquer, já que viu que improvisação não a ajudaria nesta noite.
  — Okay, okay, respire, … — balançou a cabeça, tentando reiniciar seu treino — and when you think of me, I hope it ruins rock and roll…
  Dessa vez, sua voz era mais firme, certa das palavras que iriam sair por sua boca, feliz por saber tocar de cor a melodia de uma de suas bandas favoritas.
  Seu canto continuou por horas.
  E quando acordou, era quase meio-dia.
  Ela olhou para o céu confusa, as costas doendo por ter dormido sentada no chão, as pernas implorando para ela ajustar —e o relógio parecia zombar do desespero dela ao ver o horário.
  Quase quatro horas e meia de atraso, esse era seu novo recorde.
  Colocou as primeiras roupas que viu na cama torcendo para não serem da pilha suja que ela estava enrolando para lavar, e então correu para a porta, saindo ansiosa.
  Parou de repente, ao ouvir um grito da mãe.
  Ela voltou para casa, dando um beijo de despedida na bochecha da mulher e então voltando a correr.
  Quando chegou, ela quase foi de encontro ao chão. Trombando com um homem na sua corrida para a cafeteria.
  — Desculpa, Lasowski, garçonete daqui, licença, preciso ir…
  — Eu não tinha ideia de quem ele era… — a mulher gargalhou, animada — se a eu do passado soubesse que ele tinha algum parentesco com o Sr. Clarke, eu jamais teria me aproximado.
  — Sou , Williams… — respondeu para o nada, uma vez que a garota já estava a metros de distância.

CONTINUA...



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