Jinx

Escrito por Soldada | Revisado por Lelen

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Prólogo

LIMBO • ANOS ANTES

  Os pés da criatura se fincam duramente contra o gelo, mas como um condenado, o lago não o absorveu como fez com a garotinha.
  Um cântico arcaico e fúnebre, um deboche pessoal daquela que não poderia alcança-lo ali, embora pudesse sentir o peso de seu olhar em suas costas, escapava por entre os dentes trincados, devido ao frio. Era uma maneira, igualmente, de fazer com que as almas condenadas o reconhecessem, soubessem que ele estava se aproximando, e por consequência, se encolhessem com medo, com respeito. Não era porque ele precisasse os fazer temer, mas havia algo no âmago da criatura que gostava do cheiro que o medo carregava. Sempre pungente. Sempre intoxicante, fazia com que suas veias pulsassem com o apreço, o prazer inerente do desespero que corroía as almas humanas.
  Humanos...
  A criatura para de andar em uma das bordas do lago congelado, onde um buraco se abria à sua frente e se desencontrava, espalhando-se pelo lago, movendo-se e sendo carregados pela água congelada em formatos de placas. O corpinho da garotinha estava flutuando agora, de barriga para baixo. Os cabelos null se espalhavam ao redor de sua cabeça como uma auréola, cheios e volumosos — que ironia, um anjinho, bem em seu território. A pele da garotinha estava empalidecida, pequenas crostas de gelo já começavam a se formar ao seu redor, com uma tonalidade levemente arroxeada, enquanto as roupinhas, enxarcadas, estavam cobertos por incor e sangue, mas não lhe pertencia.
  Por um longo momento, a criatura apenas inclinou sua cabeça para o lado e observou a invasora de seu território, pensativo. Como aquela garotinha havia ido parar ali e como diabos havia morrido. Ele podia senti-la ali, sua alma, deliciosamente vulnerável e a seu alcance. Tudo o que ele adorava encontrar, mas desta vez, seu interesse era um pouco maior.
  O Limbo não recebia visitantes.
  Não havia como entrar no Limbo se algo não tivesse acontecido antes, sem um verdadeiro motivo. E ela não deixava ninguém escapar, independentemente de onde ou quem fosse. E, no entanto, aqui estava: a garotinha que havia escapado. Tanto da Morte, quanto de onde quer que ela viesse. Se é que tinha existido algum dia.
  Ele podia sentir algo na menina pulsar, algo errático, puro e pungente.
  Não era apenas pureza de uma alma que o atraía, era a matéria prima que esta alma poderia oferecer, algum poder ou vantagem que o fizesse ao menos encontrar novas possibilidades para além do Limbo. E ele podia sentir aquilo na menina. Ele podia sentir exatamente o que ele desejava encontrar nela. Ele podia sentir a porta que estava aberta graças a menina. Uma âncora, de certa forma, mas não para um universo, uma âncora pessoal para si mesmo.
  A criatura então colocou-se de cócoras, apoiando os cotovelos sobre seus joelhos, e inclinando a cabeça para o lado, estreitando os olhos, analisando o pequeno corpinho flutuando pela água. As unhas longas e curvadas, afiadas como navalhas se estendem na direção da cabeça da garotinha, com um cuidado demasiado, apesar de sua personificação traiçoeira, de maneira cuidadosa e lenta, fincando-se dentro do pequeno crânio, em busca das memórias.
  O vento uivou, carregando a neve ao seu redor, os gemidos dos condenados tornou-se mais arrastado, e, por uma breve fração de segundos, os olhos da criatura encontraram-se com os dela, do outro lado do lago, na margem, observando-o.
  A Morte estava esperando-a. Estava procurando pela garotinha. O capuz e manto pesado, preto, que parecia consumir tudo ao seu redor como um buraco negro, os ossos da parte inferior de seu rosto, e as costas expostas evidenciavam a aparição física da entidade. A criatura inclinou a cabeça para o lado em um silencioso convite, mas ele sabia que ela não viria captura aquela menina. Não desta vez. Estava no território dele e sabia o que poderia acontecer caso tentasse ultrapassar os limites preestabelecidos desde os primórdios dos tempos.
  Um minuto se passou, e então a entidade desapareceu. A criatura sabia que havia vencido, por ora.

•••

  null null acordou com um gritinho do pesadelo que estava tendo.
  A garotinha não esperou muito para fazer o que sempre fazia todas as vezes que tinha algum pesadelo: pegou seu ursinho de pelúcia, puído, faltando um olhinho e com o cheiro pungente de suor e até mesmo pasta de dente, abraçando-o com força e então disparou na direção do quarto do pai, ao fim do corredor. Os pezinhos descalços ecoaram ritmadamente, a respiraçãozinha irregular e acelerada, os olhinhos fixos na porta do quarto do pai, assustados demais para se voltarem para trás, temendo o que iria encontrar ali. Ela colocou-se na ponta do pé, saltando algumas vezes até conseguir abrir a porta do quarto do pai, e então correndo em direção a cama onde o pai estava dormindo.
  Vidar acordou com um pequeno sobressalto com a porta, colocando-se sentado rapidamente enquanto os olhos null buscavam ansiosamente pelo invasor de seu quarto. Soltou um suspiro pesado, em forma de alívio, seu rosto se suavizou ao reconhecer aqueles olhinhos arregalados e bracinhos gorduchos abraçados ao ursinho de pelúcia tremendo.
  — Ei, princesa, o que foi? O que acontece? Por que está acordada a essa hora? — Vidar perguntou bem, bem gentilmente, batendo no colchão ao seu lado, em um aviso silencioso para que a menina se aproximasse dele ou subisse na cama, caso não quisesse ajuda.
  Vidar a alçou do chão, com cuidado, colocando-a sentada em seu colo, enquanto verificava com um olhar breve na direção do relógio o horário, e apertava os lábios com força. As maravilhas que ter uma miniatura sua correndo pela casa trazia consigo. Ele suspirou pesado, ajeitando null em seus braços, e apoiando seu queixo sobre o topo da cabeça dela, esfregando gentilmente as costinhas da menina, tentando acalmá-la e assegurá-la de que estava tudo bem, que ela estava segura. Um murmúrio suave, arcaico e fúnebre escapando de sua garganta, enquanto ele deixava-se recostar contra a cabeceira de sua cama, pensativo, observando algum ponto invisível na porta entreaberta de seu quarto.
  — Você quer contar pro papai o que foi dessa vez?
  — Monstros — sussurrou null assustada, enterrando a cabeça no pescoço do pai e tentando abraçá-lo apertado, mas os bracinhos mal conseguiam atravessar seu peito. Vidar tentou não rir, imaginando que tipo de monstro a filha havia encontrado dessa vez, beijando a testa da menininha e então a balançando gentilmente de um lado para o outro em seus braços.
  — Meu amor, não tem como monstros viverem aqui, lembra? O papai verificou toda a casa com você, e a gente se certificou que o null ficasse de guarda do seu lado. — Vidar tentou assegurar a garotinha, mas o pequeno fungado foi o suficiente para informar ao homem que a menina estava prestes a começar a chorar.
  Algo no peito de Vidar se contraiu, um pequeno aperto pela situação infantil e ao mesmo tempo compreensivo com a menina. O escuro não o assustava, na verdade, ele até gostava, mas a garotinha? Bem, ela tinha apenas 6 anos, qualquer coisa que visse na televisão que fosse muito alto ou tivesse dentes muito afiados, seria assustador. E mesmo que fossem apenas cinco da manhã, em um dia de sábado, quando ele estava de folga e poderia aproveitar para dormir até um pouco mais tarde, ele ainda assim não se irritou com a menina. Ela era sua responsabilidade, não o contrário. Vidar suspirou, apoiando a bochecha esquerda sobre o topo da cabeça da menina, abraçando-a com um pouco mais de força.
  — Foi só um pesadelo, null. E sabe qual é a vantagem de um pesadelo? A gente sempre vai acordar dele. Pode parecer assustador, mas basta você abrir seus olhos e tudo vai ter acabado. Nenhum pesadelo vai vir atrás de você, eu prometo, hm? Você confia no papai?
  — Ela disse... — sussurrou null apoiando a bochecha rechonchuda e rosadinha sobre o peito do pai, se encolhendo e segurando com mais força o ursinho de pelúcia puído. — Ela disse que eu não deveria estar aqui, que é um erro, e que eu iria pagar... eu não sei o que fiz, mas eu não queria deixar ninguém bravo...
  Vidar tencionou a mandíbula, tentando não rir das palavras da garotinha.
  É claro que ela não desistiria daquela...
  — Ninguém está bravo com você, meu amor, eu prometo. Foi só um sonho, ok? — Vidar repetiu mais uma vez, desta, com uma voz mais doce, pegando o lençol grosso a sua esquerda, que ele normalmente acabava descartando durante a noite por sequer conseguir direito, mas insistir em ficar deitado, e então enrolou ao redor da garotinha, lançando um olhar divertido e ao mesmo tempo afetuoso em um aviso silencioso. — Ainda tá muito cedo para a senhora estar acorda, ouviu? Volta a dormir que mais tarde o papai promete que a gente vai fazer panquecas pro café da manhã.
  — Com chocolate? — questionou null, erguendo o rostinho cheio de esperança para encarar o mais velho com olhos brilhantes e vívidos. Vidar a encarou exasperado, mas o sorriso que escapava por seus lábios evidenciava que a irritação não era exatamente pela menina, mas pela comum tentativa que null tinha de querer colocar chocolate em tudo.
  — Vai dormir, vai, pirralha — murmurou Vidar fingindo-se de irritado, e algo em seu coração congelado se aqueceu com o risinho que a menina havia dado.
  Ele não sabia por quanto tempo havia murmurado a música até que null null estivesse, mais uma vez, embalada pelo sono, agora, no entanto, em seus braços, mas eventualmente, ela havia conseguido voltar a dormir. Agarrava-se, todavia, a ele como se fosse uma boia em meio a um oceano à deriva, e Vidar se questionou se o inconsciente da menina estava rejeitando o lugar. Não, era impossível isso, mas ainda assim ele precisava ser cuidadoso.
  Com o máximo de cuidado que o homem possuía, Vidar puxou a barra da blusa do pijama que null usava para dormir, a fim de verificar as costinhas da criança. A pele estava saudável, mas a sua marca estava começando a se desfazer como tinta, desaparecendo da pele, e deixando para trás apenas a cicatriz, levemente mais esbranquiçada do que a pele da garotinha era realmente. Vidar estreitou os olhos, ainda entoando o cântico, contemplativo.
  Aquilo iria ser mais difícil do que ele havia suposto...
  Os olhos null do homem cintilaram, por uma breve fração de segundos, a luz que entrava pela janela havia os tornado amarelados, erráticos, mas então, o momento se passou, e voltaram a ser aquele tom vibrante de null intensos, como os da menina em seus braços. Vidar trincou os dentes consigo mesmo, estalando sua mão esquerda, apenas para alongar seus dedos antes de revelar com um gesto rápido e preciso, as longas unhas, afiadas e curvadas, escurecidas com o poder que aquele lugar, ligado a si, oferecia. Ele traçou novamente as runas na costinha da menina inconsciente, certificando-se de que, desta vez, não iriam desaparecer facilmente. Desta vez, não havia como a entidade alcançá-la ali. E então, ele finalizou a marca com sua assinatura.
  Mephisto.

CONTINUA...



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