It's a small world after all

Escrito por Luciana Katto | Revisado por Natashia Kitamura

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  A parte ruim do mundo é que ele é pequeno demais.
  Quando você passa séculos entre a vastidão eterna e o inimaginável, é um tanto quanto difícil encarar o simplório. Sim, este é o adjetivo adequado. O plano terreno é apático, sonolento, sem graça. Melancolicamente distante das histórias com pactos aleatórios, incêndios noturnos e um pouco de sangue aqui e ali. Azazel era mesmo um bastardo exagerado.
  Eu deveria saber que seria assim, claro. Não é como se fosse a minha primeira vez. Contudo, na minha última estadia, as pessoas ainda usavam roupas recatadas e o sul brigava com o norte, ou algo do tipo. Nunca me interessei muito por política. Eu era uma camponesa idiota e com perspectiva nula de um dia ser algo diferente.
  A última vez que eu estive aqui, eu ainda era humana.
  Seria um erro dizer que o inferno fez bem para mim, mas quando penso nos anos que se passaram e, mais especificamente, comparo o que fui com o que sou... O submundo me transformou em alguém, ou algo, do qual eu não abriria mão. Ele me deu chances que eu nunca teria tido de outra forma. E se há algo que a morte me ensinou, é que novas experiências sempre trazem lições importantes. Então, quando aquele mausoléu foi aberto, eu não vi razão para não seguir o fluxo e dar um pulinho na superfície.
  Foi divertido no início. Possuir corpos cada vez mais perfeitos, arrumar uma profissão de stripper em Las Vegas, arruinar a carreira de um jogador na Espanha, você sabe, coisas do tipo. Eu até fiquei com um cara durante cinco meses, em Dubai, e quase acreditei que era algo mais do que luxúria. Mas então o tempo passou até que, um dia, eu olhei para o mapa e, simplesmente, não havia nenhum lugar que eu ainda quisesse ir.
  Eu nunca me senti tão vazia. Qual o uso da imortalidade se você não sabe o que fazer com ela?
  Concomitantemente, a batalha final, também conhecida como briguinha de família entre filhos mimados do todo poderoso, estava prestes a acontecer e eu resolvi averiguar como estavam as coisas nos Estados Unidos. Larguei um holandês amarrado na cama em Paris e peguei o primeiro voo para meu país natal. O avião desembarcou em Nova Iorque na mesma noite em que a tão proclamada briga prevista desde o início dos tempos não aconteceu.
  Não vou negar que foi um pouco decepcionante.
  E ainda criou o grande problema que eu não sabia exatamente onde isto deixava os demônios. Pensei em voltar para casa. Ao menos no inferno, eu sempre poderia me distrair assistindo o desespero dos recém-chegados, que ainda não se conformaram com o inevitável.
  Apenas que Crowley arruinou a possibilidade. Você acredita que ele teve a audácia de burocratizar o lugar? É como você sair para a faculdade e um dia receber um telefonema dizendo que seus pais transformaram seu quarto numa sala de ginástica ou, pior, na droga de um escritório. O melhor que eu fazia era ficar onde estava mesmo, o que me levava ao problema inicial de que eu não sabia o que raios continuar fazendo na terra.
  Então, agora estou aqui, bebendo uma vodca barata demais, em um bar no meio do nada, pensando em que passo tomar, a seguir. Bem vindo ao meu mundo.
  Peço meu terceiro copo e os homens presentes, tipos grosseiros que não tomam banho a dias, intensificam os olhares na minha direção. Sei o que pareço, escolhi um corpo pequeno de curvas acentuadas, combinado com um rostinho de boneca inocente. E sei o que eles estão pensando, alvo fácil. Não me importo. Quem sabe possa até me divertir um pouco com... Olho ao redor procurando pelo menos nojento e acabo encontrando ele.
  Oh.
  Ele também me nota da entrada do bar e, com a testa franzida, caminha na minha direção. Percebo que sua mão já está no bolso esquerdo da calça. Droga. Era tudo o que eu precisava mesmo. Levanto meus braços para cima, quando ele está a poucos metros de mim.
  “Hey, não precisa ir todo ‘christo’ em mim, ou” – Aponto para o jeans dele – “Tirar o que quer que seja daí, estou em paz.”
  Ele se surpreende e, obviamente, não acredita em mim, mas em vez de continuar o que tinha planejado, senta-se no banco vago ao meu lado. Imagino que isto significa, pelo menos, que o ataque não é mais iminente.
  “Um demônio em paz, claro, e o inferno congelou” – Ele comenta, com a voz um pouco mais grossa e cansada do que eu esperava, enquanto sinaliza para o bartender.
  “Na verdade, ele virou um grande órgão público” – Retruco e bebo mais um gole da minha vodca – “Isso não vem ao caso, claro”
  Ele também não está interessado nos problemas departamentais da minha casa e, sempre se mantendo atento aos meus movimentos, bebe o copo colocado na sua frente, em um gole único.
  Esta é a hora em que eu deveria me levantar e seduzir algum caminhoneiro, mas já estou na minha terceira dose e sinto como se não tivesse uma conversa de verdade com alguém há semanas. Por isso, acabo perguntando.
  “Então, Dean, o que você me conta?”
  Não há muita surpresa nos olhos verdes, quando eu revelo conhecê-lo. E nem haveria motivo para tal. Que anjo ou demônio não conhece Dean Winchester? O cara é quase mais famoso do que Deus, se você quer saber. Não, apague isto. Ele é mais famoso do que Deus nas bandas das quais eu vim. Afinal, ao menos ele, nós temos certeza que existe.
  “Não muito. Caçando alfas aqui, abandonando famílias ali, coisas do tipo. E você, demônio? Muitos pactos sangrentos em cemitérios, ou você prefere encruzilhadas?”
  Reviro os olhos, enquanto termino meu copo e peço outro – “Você pode me chamar de , obrigada, e não, eu sou mais o tipo que se satisfaz com filmes de Hollywood.”
  Há este grande desentendimento de que todos os demônios desejam causar confusão apenas pelo gosto de caos. Na realidade, a maioria de nós apenas quer se divertir, sabe? Viajar pelo mundo, transar quando der vontade e comprar os carros mais velozes. Ok, um ou outro humano pode se machucar ao longo do caminho, mas isto são percalços da estrada. Eu não tenho remorsos de matar quando necessário, mas este nunca foi meu objetivo principal.
  “E por que eu deveria acreditar em você, ?”
  “Bom, foi você quem perguntou” – Dou de ombros. E então me lembro do outro Winchester – “Mas e aquele seu irmão siamês, onde ele está?”
  “Cala a boca! Não fale do Sam!”
  Percebo que toquei em um assunto delicado. Aparentemente, o Winchester mais novo continua andando sem alma, por aí. Poderia apostar que Crowley está aprontando alguma, aquele bastardo está sempre planejando algo, mas isto não me diz respeito. Quanto a Dean, no entanto, a conversa está quase agradável e eu decido me desculpar.
  “Hey, sinto muito, perguntar não ofende. Aliás, como você soube o que eu sou?”
  É a vez de Dean revirar os olhos e sinalizar para o garçom – “Olhe para você e olhe ao seu redor. Não foi uma dedução tão difícil”
  “O quê? Mulheres não usam vestidos em bares ferrados? Sei de um tipo especifico que discordaria de você”
  “O tipo a que você se refere bebe após o trabalho.”
  Por alguma razão, isto me faz rir. Quem diria, Dean Winchester despertando meu senso de humor – “Bem, então a pergunta se transforma em no que você está fazendo aqui.”
  “Claramente tentando ficar bêbado enquanto converso com um demônio.”
  “Se isto te consola” – Bebo um gole do meu quarto copo – “Eu também não planejei terminar o dia conversando com um caçador.”
  Dean não se manifesta quanto ao meu comentário e, parece ter decidido que eu não estou prestes a atacá-lo, pois coloca toda sua concentração no seu terceiro copo de vodca.
  E, cara, como ele bebe rápido. O garoto não é alcoólatra, é? Não me lembro desta informação dos papos que ouvi no inferno. E demônios gostam de fofoca, especialmente quando elas envolvem peças chaves para profecias apocalípticas. Ficamos um longo tempo em silêncio. Apenas, quando Dean se movimenta para pedir seu sexto copo, enquanto ainda estou no meu quarto, eu pergunto.
  “Você chegou a conversar com Michael?”
  “Por que isto te interessa?” – Ele me olha, desconfiado.
  “Curiosidade? Sei lá, e o que custa me contar?” – Enrolo uma mecha do meu cabelo – “O apocalipse não aconteceu, mesmo.”
  “O que torna tudo ainda mais idiota, não?” – A amargura é demasiadamente clara na voz dele – “Tudo aquilo, decepções, pactos, mortes” – Ele bate o copo com violência na mesa, quase o quebrando – “Tudo para nada.”
  “Qual é? Você queria que o apocalipse tivesse acontecido, por acaso?”
  Dean volta a atenção para o copo e eu tento subentender uma resposta. Veja, para nós demônios, as trombetas tocando, os cavaleiros descendo, enfim, todo o pacote até pareceria interessante. Irmãos brigando entre si, deixando o mundo como um grande playground a nossa mercê. Mas para Dean? O apocalipse só traria dor de cabeça para alguém que ainda acredita que a droga da humanidade é boa.
  O dito caçador, de crenças não condizentes com a realidade, se vira para mim, antes de suspirar – “Quem sabe eu só gostaria que as coisas tivessem ficado como eram antes.”
  Reflito por alguns minutos e bebo um pequeno gole, antes de comentar – “Engraçado, eu gostaria que as coisas mudassem.”
  “É?” – Ele finaliza o copo e já pede o sétimo – “E por quê?”
  “Não era este o objetivo do seu todo poderoso?” – Pergunto, irritada, de repente –“Que as coisas sempre se transformassem e vocês estivessem em constante evolução? Livre arbítrio e toda aquela droga. Porque isto torna uma criação ainda mais especial, ou alguma idiotice do tipo.”
  Termino meu quase desabafo e percebo que, pela primeira vez na noite, os olhos verdes de Dean estão me encarando com genuíno interesse. Ele bebe um pequeno gole de vodca, antes de dizer.
  “Você ainda não respondeu por que quer que as coisas mudem.”
  Eu penso em ignorá-lo, mas o álcool solta meus lábios, antes que minha mente possa fazer algo a respeito – “O máximo que pode acontecer é tudo mudar para pior. O novo ruim é sempre melhor do que o nada.”
  De repente, Dean ri, uma risada longa e até mesmo um pouco aguda. Acima de tudo, uma risada sincera. O rosto dele se ilumina de um modo peculiar quando ele ri, quase omitindo as linhas de estresse impostas pelos anos.
  “Um demônio entediado. Realmente, eu já vi de tudo.”
  Quem sabe eu teria me ofendido, em outras circunstâncias, mas desta vez eu apenas sorrio, complacente.
  “Melhor do que um humano amargurado. E, me diga, qual é o seu problema?”
  “O que te faz achar que eu tenho um?”
  Antes que eu possa retrucar, ele balança a cabeça.
  “Qual não é o meu problema? Abandonei a única mulher que me aceitou por inteiro, em troca de um irmão sem sua parte mais essencial e um anjo que não precisa de mim. Mas é claro que você já sabe de tudo isto” – Ele ri, mas desta vez um riso vazio, em sua ironia – “Qual é o meu problema, você perguntou?”
  Sim, eu sei. Como eu já disse, demônios gostam de fofocas, e por isto eu também sei que Dean Winchester é o tipo de pessoa que se deixa corroer por dentro, sem jamais pedir ajuda. Isto não me diz respeito, claro, mas sinto que é minha obrigação, como parceira de bar, dizer.
  “Todos sabemos que você sempre vai escolher o Sam, então, por que ficar se remoendo?” – Bebo outro pequeno gole da vodca – “E Castiel? Aquele idiota iria pro inferno por você, Winchester, com o perdão da escolha de palavras.”
  “O que você pode saber sobre isto?”
  Eu sei que o céu está em guerra civil e que há ordens expressas para que nós, demônios, não nos intrometamos. Cada um com seus problemas, disse Crowley. E Dean não precisa saber disto. Não agora, informações deste tipo sempre são boa moeda de troca.
  “Eu sei que você voltaria lá para baixo pelos dois. Não, você voltaria também por aquela mulher e garoto que te fizeram companhia no último ano” – Lembro-me das histórias que ouvi a respeito do caçador na minha frente e balanço a cabeça – “O que eu estou falando? Você reviveria os piores momentos da sua vida por cada um dos idiotas que andam neste mundo. É este o seu problema.”
  “Você está dizendo que o meu problema é que eu me importo com as pessoas?”
  “O seu problema é que você se importa demais.”
  Dean fica em silêncio por um longo momento e, então, encara o fundo dos meus olhos, com a expressão totalmente séria.
  “E como é se importar de menos?”
  Sou pega de surpresa pela pergunta. Sim, eu, , a demônio, também sou pega de surpresa. Quem sabe porque a droga da pergunta atinge justamente algo que eu tenho tentado fingir que não me incomoda. Algo que eu, nem sequer, compreendo.
  Desvio os olhos dos dele - “Como eu vou saber? Eu não me importo com nada.”
  “Engraçado, ” – Dean diz, e eu reparo que ele ainda não acabou o sétimo copo – “Pela primeira vez na noite, eu acho que você está mentindo.”
  Volto a encará-lo e ficamos um longo tempo assim, apenas nos avaliando, com nossos olhos embriagados por vodca barata de um bar sujo no meio do nada. E, neste meio tempo, é como se eu assistisse as histórias que ouvi a respeito dele sob um ponto de vista diferente para concluir que...
  “Vamos fechar daqui a pouco.”
  O dono do bar, um velho gordo com roupas gordurosas, avisa, em tom rude de quem está cansado de lidar com bêbados.
  Dean tira um maço de notas do bolso esquerdo da calça e aponta para mim – “Cobre as da moça, também.”
  Para um humano, Dean Winchester é realmente único.
  Levantamos-nos juntos e os homens sujos nos encaram por todo o caminho até as saída do bar. Todos continuam a me olhar com desejo, alguns piscam para Dean como quem compartilha alguma piada interna e um, especialmente repugnante, na ponta esquerda, tem um brilho malicioso nos olhos pervertidos.
  O Impala está encostado a alguns metros do bar e nós caminhamos até ele.
  “Sam está caçando um vampiro em Montana com meu avô” – Dean comenta, encostando-se ao carro.
  “É sempre bom tomar cuidado com parentes que deveriam estar mortos” – Aviso, sabendo que não deveria.
  “Eles podem querer a herança de volta, eu sei.”
  Compartilhamos uma risada, quase gargalhada, com o efeito do álcool brincando com nossas mentes. Não suficiente para nos deixar bêbados, após anos de resistência construída, mas causando leves alterações de percepção. O céu está inusitadamente estrelado nesta noite, captando nossa atenção.
  “Quem sabe eu me importe demais mesmo, sabe?” – Dean diz, de repente – “Mas eu já aceitei que sou quem eu sou.”
  Eu encaro uma constelação especialmente brilhante no céu negro e lembro-me do cara que deixei em Dubai, após encontrar a caixa com a aliança escondida entre as camisas sociais. Ele gostava de segurar as minhas mãos, enquanto sussurrava nos meus ouvidos os nomes delas.
  “Quem sabe sejam as pessoas ao seu redor que precisam mudar.”
  Ficamos mais um longo tempo em silêncio, perdidos em pensamentos distantes daquela noite estrelada e daquele bar perdido no espaço. Pela primeira vez desde minha segunda estadia na terra, eu até mesmo penso naquela pequena vila ao sul do Texas, sinônimo de coisas que os séculos se recusaram a apagar por inteiro da minha memória.
  Quem sabe as coisas pudessem ter sido diferentes.
  “Eu preciso ir” – Dean interrompe o silêncio e abre a porta do carro. Ele se vira na minha direção e pergunta, em tom neutro – “Você quer uma carona?”
  Seria tão fácil dizer sim, seduzir o caçador mais requisitado por todos os lados da eterna guerra entre céu e inferno e garantir um trunfo que deixaria até mesmo o bastardo do Crowley impressionado. Eu até mesmo poderia começar os meus próprios planos mirabolantes.
  Apenas que eu nunca tive nenhuma ambição doentia de dominação geral e me surpreendo ao perceber que eu quero aceitar o convite de Dean apenas pelo que ele é. Sem nenhuma segunda intenção. Dean Winchester é incrivelmente...
  “Obrigada, eu vou para o sentido contrário.”
  “Mais próximo do que eu esperava.”
  Dean diz, antes de piscar e entrar no carro. O Impala faz seu barulho característico e ele logo está acelerando para o norte, provavelmente indo encontrar seu irmão siamês e seu avô zumbi. Eu gostaria de estar indo com ele, mas algo me diz que não devo, e os séculos te ensinam a confiar nos instintos.
  De qualquer maneira, eu simplesmente sei que este não é meu último encontro com Dean Winchester. Nossos caminhos, alguns alados por aí chamariam de destinos, ainda irão se cruzar.
  A parte boa do mundo é que ele é pequeno demais.



Comentários da autora


Oi, Nathalia! Espero ter te entretido. Adoro SPN e escrevi esta fic, com muito carinho. E Feliz Natal, né?