I’m Miles from Where You Are

Escrito por Júlia Oliveira | Revisado por Júlia

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  Apertou-se ainda mais no casaco pesado quando o vento soprou-lhe os cabelos, sua respiração também lhe soava pesadamente, quando o ar gélido atravessava-lhe como um raio pelas narinas. Finalmente achara uma boa explicação para a semelhança entre Inverno e Inferno. Queria pegar suas coisas e abandonar tudo, e quem sabe, conseguir esquecer o último ano: que agora não lhe parecia mais tão aconchegante.
  Paralelos a seu mundo particular de dor, os bêbados do Soho começavam a surgir aos poucos, tenebrosamente: como fantasmas. Surgiam negros na escuridão, com risadas extasiadas pelo álcool, essas nem tinham razões explícitas: mas se conseguia ouvi-las de todos os cantos, uma melodia completamente melancólica e cataléptica.
  Qualquer um que passasse por essas ruas acharia a sinfonia horrenda, e tentaria o mais rápido possível se livrar daqueles sons que pareciam com o Tártaro. Ele não. Mal notava a presença daquelas almas risonhas, pra ele não havia sinfonia. Era apenas ele e o vento assassino, arranhando-lhe as bochechas vermelhas: que por tanto tempo tinham sido aquecidas pelo brilho dela, hoje não passavam de pedaços grotescos de gelo.
  - Eles dizem... – um bêbado chamou-lhe a atenção, de uma maneira tão forte e sobrenatural que o parou, fazendo encarar o velho barbudo e sujo no canto do beco que segurava apenas a garrafa de uma bebida que não lhe chamara a atenção, sentando em meio aos trapos, parecia um rato de traços humanos. – tudo que vai, volta. – concluiu, em meio a soluços e as risadas dos outros seres, finalmente pôde ouvi-los. Não se arrepiou, ouvia a sinfonia dos mortos, desde que ela se fora, com tanta freqüência: que quase desejava se juntar a elas – mas a minha garota se foi. Nunca mais voltara.
  Sentiu outra rajada de vento cortando-lhe o estômago. Dessa vez soava como uma faca, arrancando-lhe todos os órgãos usando unhas, garras. A dor – que não tinha cessado por um único momento pelos últimos meses – pareceu se tornar mais forte. Agarrou-se ao casaco com mais força, em outra circunstancia riria da tamanha coincidência, mas não agora. Não entendendo a dor que aquele ser também sentia. Tudo que vai, volta. Quem diabos poderia ter criado uma lei tão estúpida? Era uma grande e deslavada mentira. Ela não estava ao lado dele. Nem tudo que vai, volta.
  - Não estou certo, garoto? – o bêbado lhe chamou a atenção novamente, o rapaz concordou com a cabeça. Voltando a caminhar no breu que chamavam de rua em direção a sua casa, agora um tanto inabitável.
  Não que o caminho se tornasse mais agradável com a medida que os passos eram dados. Ele só se tornava pior. Lugares que ele julgava eternamente e relativamente alegres, agora lhe soavam sombrios e mortos. As janelas das vitrines pareciam petrificadas, mesmo que ainda funcionassem como espelhos, mas espelhos que distorciam sua imagem. Não podia acreditar que em sua frente aquela figura era ele: o que vestia ainda soava como o velho e feliz , forte e imponente. A barba era um desastre: lembrou-se de ter cuidado dos pelos faciais como se fossem um tesouro por causa dela, amava a barba do rapaz, rala, por fazer, bem feita, mal feita, ela sempre dizia ser terrivelmente encantadora, terrivelmente sexy, terrivelmente apaixonante. Suspirou sentindo o frio apertar-lhe os ossos, apresentando a dor que a saudade também deixara: saudade dos braços quentes e confortáveis de , que agora: ele nem sabia ao certo onde estavam. Os olhos, antes brilhavam com um azul tão puro quanto a água, agora eram castigados por tons vermelhos pela freqüência que as lágrimas tinham o visitado pelas últimas semanas, tanto: que suas reservas se esgotaram. Agora, se procurasse lágrimas não as encontraria.
  Parou com a palhaçada de ficar encarando aquela figura desfigurada na vitrine. Era lembrar demais de . Soltou uma risada em deboche: até sua própria figura lhe lembrava a garota. A que ponto chegara?
  Caminhou em passos firmes, cheios de dor e pesar, até a entrada da casa – antes branca – cinzenta. As flores, em sua maioria, sucumbiram ao frio e a falta de cuidado e já estavam mortas. Logo as poucas tulipas e bromélias se esvairiam também. Era estranho como, antes, as flores lhe remetessem a liberdade e a beleza, hoje só lhe remetiam a morte. Mais vozes fantasmagóricas, almas que não conseguiam terminar de atravessar a ponte e resolviam ficar ali, para que infelizes e desgraçados como ele as escutassem até que se juntassem a elas.
  Havia esquecido as luvas de propósito. Era uma maneira masoquista de se castigar pelos erros cometidos. Lembrou-se da expressão atônita da moça da padaria quando o viu sem luvas com a queda tão brusca da temperatura, e quase riu. Se a coitada soubesse o que fizera: talvez gostaria de linchá-lo completamente nu em praça pública com 30º negativos.
  Abriu a porta, ouvindo a fechadura cansada resmungar. Trancou-a novamente: podia não encontrar paz desde que se fora, mas ainda era um total paranoico com portas.
  Abandonou o casaco na primeira barra, a chave fora deixada na pequena mesinha de centro que ela havia deixado na sala, ao lado de mais flores. Fez questão de tirar os sapatos com os próprios pés e deixá-los na entrada como se ela fosse abrir a porta e reclamar do tamanho desleixo. Caminhou até a cozinha e abriu um dos armários, pegando algumas canetas que havia largado ali.
  Bagunçou seu próprio cabelo enquanto caminhava para o quarto, desdenhando das próprias paredes, que continham desenhos de . Eles o mantinham aquecido durante as noites do que parecia ser o inverno mais severo que a Europa já enfrentara. Passou pelo quarto, apenas abrindo a porta, seu foco era o quarto ao lado.
  Era onde ela escrevia seus romances quando o tempo lá fora não lhe permitia ficar no jardim, e onde ele mais gostava de desenhá-la. Agora as paredes, antes verdes, eram recobertas dos mais diferentes papéis, e milhares de s em posições diferentes. Tantos olhares e aspectos diferentes de apenas uma garota. Cinqüenta tons de . Riu do próprio pensamento.
  Sentou-se na poltrona da garota, encarando as coisas de sua amada. Além de várias fotos dos dois, – agora viradas para baixo, escondendo as fotografias de sua antiga realidade feliz – o mapa mundi tinha seu lugar reservado na parede: com um alfinete em cada lugar onde já estiveram. Alemanha, Índia, Malta, Itália, Espanha, Holanda, Haiti... Todos possuíam sua bolinha reluzente vermelha.
  Caminhou até a o mapa, não sem pegar uma régua e uma das canetas ali abandonadas e desenhou, com a mão um tanto trêmula uma linha reta: ligando a Inglaterra ao Brasil. Atravessou rios, mares, cidades, pessoas, barcos, carros, trens: tudo naquele risco parecia tão fácil. Parecia tão prático: como se em alguns segundos pudessem concertar todos os erros que cometera em toda aquela vida. A distancia não passava de cinco ou oitos dedos alinhados. Como se em alguns segundos e com algum movimento estúpido e fútil fizessem com que ela voltasse pra ele, juntasse os dois continentes e a fizessem voltar.
  - Eu estou a milhas de onde você está – sussurrou, como se o escutasse.
  Se ainda houvesse-lhe lágrimas, essa era a hora que elas desabariam novamente. Mas elas já tinham acabado assim como a paz. E inclusive a esperança.
  Largou a régua e a caneta no chão, não se importando com o estado das duas e caminhou – quase correu – a passos largos até o quarto que dividira com ela.
  Sentou-se na cama, colocando os cotovelos nos joelhos e tapando o rosto com as mãos. A cor das paredes do recinto fazia com que suas articulações doessem ainda mais, como se a dor e frio apertassem-lhe os ossos. Vermelho – ouviu a voz de dizer – a cor do amor. Ela sempre fora atenciosa com tudo que fazia, com os tons que cercavam o casal não fora diferente: tomara o cuidado de escolher a dedo inclusive os móveis marfim que enfeitariam o ambiente. Os travesseiros eram de pena de ganso, os lençóis de seda, e os edredons – para noites em que apenas o calor do corpo do outro já era o bastante – eram de algodão. Ela nem deixava com que as terríveis bolinhas – resultado do uso e da lavagem – surgissem. Para ele, ela só daria o melhor.
  Jogou-se na cama, encarando o teto branco. Quase sentia os resquícios – já escassos – do cheiro dela nos lençóis – que nem fizera questão de trocar, mesmo depois de semanas – na verdade, o aroma exótico da garota parecia pairar por toda a casa. Tudo que eu tenho, cheira a ela. Pensou sozinho, fechando os olhos e tentando ignorar o quarto, não só o quarto: como toda a – semi – vida que levava agora. Todas as terríveis memórias que tinha pra mantê-lo aquecido, mas também: terrivelmente doloroso, como se a dor que o agarrava por todo esse tempo só se tornasse maior, maior, maior, maior. Lembrou-se do velho bêbado da rua e sua contestação à ciência, imitando-o.
  - Se o tempo cura tudo... – sua voz ainda soava um fio, quase inexistente. Engraçado a maneira como um rapaz falante podia parecer mudo em tão pouco tempo – por que continua doendo tanto? – arqueou as sobrancelhas, ainda encarando o teto – Por que eu simplesmente não posso continuar?
  Fechou os olhos, com força. Talvez tudo aquilo fosse um sonho ruim. Não, pesadelo. Talvez fosse um pesadelo, terrível pesadelo. E ele poderia acordar e encontrá-la sorrindo ao seu lado, ou até mesmo com os cabelos escuros em seu peito nu. Não era um pesadelo, era realidade. E mesmo que fosse mais confortável se iludir, essa era a verdade.
  Exausto, acabou dormindo naquela posição. Na horizontal da cama, de barriga pra cima e com todas as luzes acessas. Não dormia direito há semanas, apenas pregava os olhos, acordando pouco depois, sentindo a dor na garganta aumentar. Mas costumava sonhar. Sonhava com o momento com que errara, que a deixara sair pela porta e ir embora com tantas malas. Mas mudava o final, fazia a coisa certa. Fazia-a ficar.
  E depois passava a sonhar com a felicidade que sentia antes, sonhava com os planos que os dois fizeram por tanto tempo: imaginava-a entrando na igreja de detalhes dourados usando o tão almejado vestido branco. Quase sentia o pequeno incomodo da gravata borboleta em seu pescoço – oh, , você não faz idéia de como fica bem de gravata borboleta – ouvia garota sorrir. Via a garota segurando uma versão menor de si própria em um quarto de hospital. Mais dor. Todos esses sonhos tornavam o sono algo terrível, revirava coisas que ele desejava enterrar, esquecer, deixar no passado, no papel, no desejo, onde nunca sairão. Mas era impossível: a voz de ainda soava como música pra seus ouvidos. Ela ainda habitava toda sua existência, ainda era toda a pouca razão que lhe restara.
  Só queria que algo o levantasse e o levasse para os braços calorosos de .
  Acordou com o sol – ainda muito fraco – no rosto. As cortinas do quarto eram mais bonitas do que úteis. Coçou os olhos, enquanto apalpava a cama a procura do corpo da garota, sem sucesso.
  Cambaleou até o banheiro sem se encarar no espelho e lavou o rosto. Agora desperto. Caminhou até a cozinha e abriu a geladeira, pegando a única garrafa que a água ainda não havia congelado e a tomando no gargalho, o gelo da água fez com que seu corpo tremesse, mas não se importou, largando a garrafa na pia e se sentando na bancada, sem saber o que fazer sem ela por ali.
  Foi quando o vento pareceu ir embora. Arranhou-lhe o rosto, exatamente como a noite passada, mas se foi: abrindo espaço para uma brisa. Estranhamente quente para a época do ano e pra tristeza que tinha o abatido, era quase... Confortável.
  Resolveu ignorar, talvez o vento frio e cortante voltasse antes mesmo que tivesse a idéia de aproveitar a brisa quente: mas a casa começou a substituir os tons cinzentos e escuros por tons leves de ouro. E ficar cada vez mais quente.
  Ouviu a trinca da porta de entrada reclamar enquanto a chave era girada. Pensou – Talvez seja a morte, talvez esse seja o fim. – mas todas as suas suspeitas se acabaram quando o aroma conhecido surgiu-lhe, cada vez mais forte.
  Ela voltara. Ela abrira a porta. Ela mandara embora o vento gelado. Ela esta ali, bem na sua frente. E não era um fantasma. Ela tinha lágrimas singelas no rosto, e seus lábios estavam transformados em um pequeno biquinho, triste e melancólico. Ele voltou a sentir seu coração batendo. Depois de uma eternidade, ela sussurrou, na voz como um fio:
  - Eu estava a milhas de onde você está.



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