I'll Miss You
Escrito por Lizandra Antunes | Revisado por Natashia Kitamura
Domingo à tarde
Ele parecia não ligar para a doença. Continuava cantarolando pela cozinha, como se nada estivesse acontecendo. Ele era incrível. Nada o abalava e seu sorriso era imutável. A música que cantava era alegre, As Quatro Estações, se não me engano. O ritmo fazia com que ele batesse a colher na massa do bolo e agisse como se fosse o regente de tudo aquilo. Eu o observava calada, escondida atrás da parede, admirando quão bela é a alegria que ele tem nas pequenas coisas da vida. Sabe, a doença parece tê-lo feito sentir ainda mais vontade de viver, e não o contrário. Desde que recebeu a notícia de que estava com leucemia, começou a brincar mais, a sorrir mais e até a aprontar mais. Acho que ele finge esquecer de que está morrendo e tenta aproveitar ao máximo cada minuto que lhe resta. Colocou o pote com a massa de bolo em cima da mesa e foi ao armário debaixo da pia.
- Ué, onde está a forma de bolo?
- No armário oposto a esse. - Comentei baixinho. tomou um susto enorme, que, aliás, foi muito engraçado. Prendi o riso assim que percebi que seu semblante mostrava desapontamento. Ou algo parecido com isso. - Esse é o armário das panelas, querido.
- , era uma surpresa! - Ele parecia um pouco triste por eu ter visto o que ele preparava. - Por que você olhou?
- Eu estava te vendo cozinhar, qual o problema? Acordei e não te encontrei. Fui ao banheiro e nada de te achar. Encontrei-o aqui, mas você parecia tão concentrado que eu achei um desperdício jogar toda aquela sua alegria fora. Bolo do que?
- Surpresa, mocinha! E não tente bancar a esperta. O mágico sou eu, você é apenas minha assistente, portanto nada de truques!
- Tudo bem, tudo bem. Vou te esperar no quarto, ok?
- Não, fique na sala, onde eu possa manter os olhos em você. - Fez cara de James Bond e voltou a procurar a forma no armário de panelas.
- Armário de lá! - Apontei novamente onde estava a bendita forma de bolo. Ele me olhou “bravo” e pude notar um “Vá!” saindo meio espremido de sua boca. O obedeci rindo e fui me sentar no sofá que ficava de costas para onde ele estava. Fiz perninha de índio e comecei a meditar.
Depois de um bom tempo, me gritou e pediu que eu fosse até a cozinha. Ele tampou meus olhos e guiou meus passos até a mesa. Me sentei com cuidado e ele pediu que eu ficasse com as mãos no colo, tirando assim as mãos do meu rosto, e pedindo que eu mantivesse os olhos fechados. Pude ouvi-lo preparando ainda mais alguma coisa e de repente uma resposta. “Pode abrir.” Fui abrindo os olhos devagarinho, fazendo certo suspense. Uma linda surpresa me aguardava. Um bolo agora todo branco, por causa do creme de chantilly, enfeitado com rosas em sua lateral. Em cima, desenhou meu rosto, provavelmente com aquela massinha comestível que lembra biscuit, tudo em um tipo de cinza escuro cintilante. Apenas meus olhos se destacavam. Ele os pintou com o mais bonito azul.
- Querido... Isso é incrível! - Pude sentir meus olhos marejando, declarando quão emocionada eu estava. O sorriso de foi tão lindo quanto sua obra de arte. Eu diria até que foi grandioso.
- Feliz aniversário, meu bem. - Foquei minha atenção no fundo daqueles olhos cor de mel. Levantei e fui em sua direção, dando-lhe um abraço forte como nunca. Já sentia algumas lágrimas escorrendo por meu rosto e não fiz muita questão de tirá-las de lá.
- Obrigada.
- Você merece muito mais, meu amor, - ele nos afastou para que pudéssemos olhar um nos olhos do outro - pena que isso foi o máximo que eu pude fazer.
- , você não precisa me fazer mais nada. Só o fato de ainda te ter aqui comigo já é o bastante. Obrigada por ser essa pessoa maravilhosa que você é, obrigada pelos momentos em que você cuidou de mim e não o contrário, como deveria ser. Obrigada por sempre me ouvir, por sempre me dar forças nas horas em que eu estou mais precisando e por sempre me fazer rir nesses momentos também. Você é a pessoa mais magnífica que eu já conheci na minha vida! - Ele passou a mão pelo meu rosto e depois colocou uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha. Olhei meiga e terna para ele e percebi que ele fazia o mesmo. - Eu não mereço alguém tão bom como você...
- Eu que não mereço essa dádiva que recebi de Deus. , eu te amo muito! Você não faz ideia do quanto me dói saber que uma hora ou outra eu vou acabar te deixando sozinha nesse mundão mau. - Senti outra lágrima escorrendo por meu rosto e não me contive, beijando os lábios macios do homem perfeito que estava de frente a mim. Parti o beijo e mais lágrimas caíram dos meus olhos. Comecei aos poucos a chorar, já sentindo a falta que me faria.
- Eu te amo demais. Por favor, me diga, como eu vou viver sem você?
- Nunca se esqueça, , eu estarei sempre com você, independente do que aconteça. - Fui ouvindo, com o coração doendo, cada palavra que ele dizia. Ainda chorando, voltei a abraçá-lo muito, muito forte. Ele ficou dando beijinhos no meu pescoço, fazendo com que eu ficasse arrepiada e ao mesmo tempo confortada. Sua mão deslizava por minhas costas, na tentativa de me fazer parar de chorar. - Então, vamos comer logo esse bolo? Não é porque ele está lindo que precisamos deixá-lo intacto! - Olhei para ele e sua feição era de uma alegria recém surgida, a alegria que ele nunca perdeu. - Vamos? - Acenei positivamente com a cabeça e ele abriu um sorriso largo. Deu um beijo na minha testa e em seguida passou um dos braços por cima dos meus ombros, levando-me novamente ao bolo que preparara. - Chocolate, o seu preferido. - Cortou uma fatia e colocou num pratinho, entregando-o a mim.
Comemos mais algumas fatias, ficamos conversando e logo a noite chegou. Tomamos banho e nos arrumamos para dormir. Assim que deitamos, como de costume, me deu um beijo delicioso e orou comigo. Virei para o meu lado e ele me abraçou. Ficamos assim, de conchinha, enquanto eu sentia sua respiração no meu pescoço. De súbito, as lembranças do dia em que saímos pela primeira vez, de quando ele me pediu em namoro aos meus falecidos pais e do dia do nosso casamento. Quieta e sozinha, chorei, como faço de costume, sabendo que não há o que eu possa fazer contra isso. Desde o dia em que me contou sobre a leucemia, eu tenho me esforçado para não pensar no assunto e muito menos comentar algo com ele. Desde aquele dia, eu choro sozinha, choro enquanto trabalho e até enquanto estou no banho. Eu vou perdê-lo, e isso é inevitável.
Segunda-feira de manhã
Acordei cedo para ir trabalhar. Bem, trabalhar porque esse é o nome, mas não sinto que estou fazendo isso. Como escritora e cronista do jornal, minha vida é relativamente tranquila e eu posso trabalhar em casa mesmo. Só preciso manter o cronograma e não atrasar a entrega das crônicas, mesmo porque, se eu atrasar, o Brown vai querer comer meu fígado com manteiga, então é melhor não arriscar. Levantei, tomei um banho relaxante e voltei ao quarto, para procurar uma roupa. Fui direto ao nosso guarda-roupa, pegando algo confortável para vestir. Estava colocando a blusa quando ouvi um ronco mais alto. Olhei para trás e vi , tranquilamente, dormindo o sono dos justos. Sorri ao ver seu peito subir e descer, num sinal de respiração. Eu ainda o tinha junto a mim. Fui até a cama e me ajoelhei ao lado dele. Passei delicadamente a mão por seu rosto e desci-a ao lado de seu corpo, apoiando-me na cama. Com a mão livre, trouxe meu cabelo para trás e fui descendo a cabeça, até deitá-la em seu peito. Abracei-o devagarinho, fechei os olhos e fiquei ali, ouvindo seu coração bater e sentindo seu corpo todo pulsar.
- O nome disso é vida... - sussurrei. Senti certo conforto ao tocá-lo. - Ele está aqui.
Levantei devagar, para não acordá-lo, e fui em direção à sala. Ao lá chegar, peguei meu computador em cima de um dos sofás e o liguei. Olhei no relógio: nove horas em ponto, exatamente a hora de começar a trabalhar meu cérebro. O computador ligou e eu fui diretamente ao arquivo que me interessava: I'll Miss You, um pequeno livro que estou escrevendo para . É, na verdade, um desabafo, um pouco do meu ponto de vista sobre a situação que estamos vivendo por causa de sua doença. Nele estou tentando encorajá-lo a lutar, pois, apesar de seu caso ser quase irreversível, ainda há a esperança de que o um por cento de chance de cura surja no meio dessa história toda e acabe de uma vez por todas com a tragédia em nossas vidas. As esperanças de sobrevivência, para , estão extintas porque ele já não responde mais aos tratamentos, à quimioterapia nem a nada que os médicos fazem. Para mim não. A minha esperança só acaba no momento em que ele der seu último suspiro. O arquivo carregou e li a última frase que tinha escrito: “Isso me deixa muito mal, mas ter-te ao meu lado faz-me querer viver. Ah, querido, por que você?”
- Isso é tão injusto... - murmurei.
- O que foi, ? - apareceu de surpresa na sala e quase que eu derrubei o computador no chão. Ele percebeu meu susto e veio até mim. - Está tudo bem?
- Está! - Fechei rapidamente o computador. - Acordou agora, meu bem?
- Sim... - Ele parecia meio confuso e desconfiado. Acho que minha cara também não estava ajudando muito. - Você está me escondendo algo, ?
- Escondendo? Por que eu estaria escondendo algo de você?
- Vamos, , o que aconteceu? Você recebeu um e-mail do médico? É isso?
- Não, querido, fique tranquilo. Não tenho nada para te esconder.
- E por que o susto quando cheguei? - Ele me olhava como se fosse Sherlock Homes a descobrir o mistério da história toda.
- Porque eu estou trabalhando, e você sabe que eu não gosto de spoilers, então não queria que você visse antes do tempo. Você sabe, , eu sempre te mostro os livros antes de enviar para a editora. Você é meu controle de qualidade! - Ele se despiu da máscara de Sherlock e riu, balançando a cabeça como quem tenta arejá-la.
- E a essa hora da manhã ainda sou obrigado a ouvir esse tipo de lorota...
- Quem falou em lorota? - foi saindo devagar, rindo, indo em direção à cozinha, e eu larguei o computador em cima do sofá para ir atrás dele. Peguei por trás, pela cintura, e tentei fazer-lhe cócegas. - Quem está falando em lorota aqui, hein? Quem? - Ele se assustou um pouco, mas logo se voltou para mim e virou o jogo. Começou a fazer-me cócegas também e eu não resisti. - Para! Para!
- Bonito, né? Querendo me atacar sem que eu veja.
- Você sempre ganha, não vale!
- Eu só ganho pra poder te proteger. - Parei por um instante, para tentar entender sua lógica. - Se você fosse mais forte, quem me protegeria seria você. Eu quero te proteger, por isso preciso ser mais forte que você. - Ele só falava enquanto me olhava nos olhos. Abracei-o, feliz em saber o quanto ele também me ama.
- Você é incrível, sabia?
- Por trás de todo grande homem tem sempre uma grande mulher. Agora volte lá ao seu trabalho obscuro, quero logo saber sobre o que você está escrevendo! Vou fazer nosso café.
- Eu bem que poderia brigar com você por causa desse “obscuro”, mas vou deixar passar. - Rimos e fomos cada um para o canto da casa que lhe era devido.
Depois de um tempo, ele já tinha arrumado a mesa e então me chamou. Não consegui escrever muita coisa, ele foi rápido. Assim que terminamos de comer, saiu da mesa rapidamente e disse que precisava ir ao mercado, fazer as compras para o mês. Não questionei e ele foi, porém só quando saiu que me veio um pensamento: “Estamos no meio do mês”, o que significa que ainda não precisamos de comida. O que será que ele vai aprontar dessa vez?
Quinta-feira à noite
fez pra mim um jantar incrível. Até roupa nova ele comprou, tanto para mim quanto para ele! Deve ter sido isso que ele foi fazer aquele dia no “mercado”, comprar as coisas pra hoje. Preparou minha comida preferida, encheu a casa de velas, deixou tudo arrumadinho... Aí tem. Nos sentamos e oramos pelo alimento, depois ele me serviu. Conversamos um pouco sobre como foi a semana, contei sobre meus progressos no jornal e ele sobre os desenhos que vem fazendo. Meu bolo de aniversário foi só uma amostra do talento de para desenhar. Ele faz coisas maravilhosas, verdadeiras obras-primas! Todos os meus livros contêm ilustrações dele. Ele costumava trabalhar numa editora, como ilustrador mesmo, mas parou de trabalhar para fazer o tratamento. Por isso ele gosta de fazer as coisas em casa, é um passatempo. Ao terminarmos o jantar, fez questão de tirar a mesa para servir a sobremesa. Retirou nossos pratos e taças e os deixou na pia, indo diretamente à geladeira. Trouxe de lá um refratário. Cubinhos de gelatina de vários sabores misturados com leite condensado. Colocou duas tacinhas e duas colheres ao lado do refratário e depois se sentou. Estava quase me esquecendo da hipótese de haver algo por trás do jantar, quando me tirou essa alegria. Ele foi devagar, tentando enrolar a situação, mas pedi que fosse breve. Enquanto enchia nossas tacinhas de gelatina, ele me contou que havia estado com o médico hoje de manhã. A pior notícia do mundo chegou: ele tinha apenas mais três dias, contando a partir de amanhã. Sexta, sábado e domingo. Meu coração praticamente parou e eu já não sabia mais como respirar. Tentei de todas as formas processar a informação da maneira mais natural, mas foi impossível. Em meio a tentativas de recuperar o fôlego, comecei a chorar desesperadamente e meus olhos foram ficando embaçados. É o fim.
se apavorou ao me ver naquele estado e cogitou a ideia de chamar uma ambulância, mas eu gritei e o impedi, quase matando-o de susto também. Ele então correu na geladeira e pegou a garrafa de água gelada, depois um copo e açúcar. Bebi aquela água doce num gole, mas não resolveu muito. Nada vai resolver agora. São só três dias! Ele me acariciava e tentava me fazer compreender que “tinha chegado sua hora”. Eu nunca vou compreender algo assim. A morte não é algo para se entender e muito menos para se conformar. Olhei em sua direção, pois as lágrimas já não me permitiam ver o seu rosto claramente, e me atirei em seus braços. Fiquei em seu colo até conseguir parar de chorar. Assim que consegui me acalmar, me ergueu e subiu comigo até o quarto. Ele me colocou na cama e, com cuidado, eu o puxei até mim, beijando-o e sentindo mais uma lágrima grossa escorrendo por meu rosto. Nosso beijo foi se tornando mais intenso e eu fui para trás, para dar-lhe espaço, e isso obrigou-nos a partir o beijo. ficou me olhando, perguntando se eu realmente queria isso. Balancei a cabeça em “sim” e então ele subiu na cama ajoelhado. Fui tirando suas peças de cima e ele tirou a única blusa que eu usava. Me beijou outra vez e foi com uma das mãos em direção a minha calça, mas lhe poupei o trabalho de retirá-la, fazendo isso eu mesma. Ele tirou a própria calça e se pôs sobre mim.
- Eu te amo. - falou em meu ouvido.
- Eu também te amo.
Sexta-feira
Tivemos uma noite linda. Sinceramente, não sei como vou viver sem ... Ele é o homem da minha vida!
Hoje de manhã, nós decidimos que esses três últimos dias seriam inesquecíveis. Logo cedo, fui para o jornal e expliquei ao Brown o que estava acontecendo. Ele me deu duas semanas em casa. Assim que saí de lá, eu e ligamos para nossos amigos e fomos todos nos encontrar no parque municipal. Passamos a tarde tomando sorvete e brincando. Os filhos dos nossos amigos fizeram muito bem a ele. Na hora do almoço, fomos ao seu restaurante preferido. Gastamos muito, pra falar a verdade, mas isso não tem a menor importância. Quando o dia começou a escurecer, todos nos despedimos e cada um foi para sua casa. O dia foi esplêndido. Assim que entramos no nosso apartamento, um sentimento de euforia tomou conta de mim e uma ideia ótima veio junto. Olhei para e perguntei se ele não queria ir à praia. Um pouco confuso com minha pergunta, ele respondeu positivamente, mas acho que não esperava que eu tomasse uma atitude a tal hora. Sorri para ele e fui correndo ao nosso quarto. Peguei nossas bolsas de viagem e coloquei-as em cima da cama. Comecei a pegar as roupas de praia que estavam guardadas em nosso armário e fui arrumando uma a uma dentro das bolsas. chegou no quarto um pouco ofegante e se assustou mais ainda quando viu o que eu estava fazendo. Sem permitir qualquer questionamento, pedi que ele me ajudasse a arrumar as coisas.
- Essa será nossa última viagem, meu amor.
- Mas agora? , não é melhor esperar para viajar amanhã bem cedo?
- A vida não espera! Já esperamos tempo demais aqui, é hora de fazer o que queremos. O mundo não vai acabar, meu bem, mas temos muito pouco tempo e eu não quero ficar aqui vendo-o acabar. - Sem discutir mais, ele me ajudou com as malas e logo as mesmas estavam prontas. Descemos todas para a sala e corremos até a cozinha, para preparar ótimas refeições para o dia de amanhã. Arrumamos tudo no carro e então eu me lembrei do livro. - Querido, tem algo que eu quero te mostrar. Não está pronto, mas não consegui terminar a tempo, então vou te entregar assim mesmo.
- Acho que também tenho que te mostrar algo. - Fiquei intrigada com a surpresa dele. - Duas coisas na verdade.
- Ok... Espera só eu imprimir o meu?
- Tudo bem.
Corri novamente para dentro de casa e liguei o computador na impressora. Ao que me constava, faltava apenas um último capítulo para que eu terminasse o livro, então não me importei muito. Coloquei tudo para imprimir e demorou um pouco, mas não o suficiente para me fazer desistir. Arrumei as páginas, organizei por capítulos e grampeei em cima, só para não perder.
- Vamos!
Nossa “jornada” até a praia durou cerca de duas horas, chegamos lá no início da madrugada. A praia estava deserta, claro, e nós ficamos no lugar mais escondido e afastado que encontramos. A praia em que fomos não costuma ser movimentada, é apenas a casa de algumas famílias de pescadores. Nos acomodamos e ficamos olhando para o horizonte, onde somente as ondas podem ser avistadas. O luar nos cobriu e assim ficamos até o momento em que adormecemos.
Sábado
Ao surgimento do primeiro raio solar, senti se movendo ao meu lado e acabei despertando. Ele já estava acordado e, pelo o que pude entender, estava me observando. Seu sorriso me preencheu a alma e o dia se tornou feliz. Abracei-o e ele beijou meu pescoço, fazendo-me sentir deliciosos arrepios.
Tomamos nosso café da manhã de frente ao nascer do sol e nada poderia tirar a alegria que eu estava sentindo. De repente lembrei-me do livro. Interrompi aquele momento gostoso e entreguei minha arte para .
- Aqui está, querido. O livro que eu tanto escondi de você, o livro ao qual eu tanto me dediquei. Pena que eu não consegui terminar... - Ele lia algumas das primeiras linhas enquanto eu falava. - Espero que você goste. - Deixei-o lá e fui andar na praia.
Não sei ao certo quanto tempo depois veio me procurar, sei apenas que o sol já parecia indicar a proximidade do meio-dia. Estava sentada na beira do mar e ele se sentou ao meu lado. Ele estava com o rosto molhado.
- Sabe, eu tinha decidido não contar mais o tempo. Acho que você notou que me desfiz de meus relógios. Decidi apenas viver, sem me preocupar com quanto tempo isso duraria, mas aquela visita ao médico me fez ver que meu tempo acabou. Por isso topei todas essas suas loucuras, , para não perder tempo longe de você. - Ri lembrando de tudo o que fizemos ontem. - Você é a pessoa mais importante desse mundo para mim. Infelizmente, não tivemos tempo de ter nossos filhos, mas você me bastou. Saiba que o dia em que te conheci foi o mais importante da minha existência, pois a partir dali eu comecei a viver. Obrigado por tudo, meu amor, você me fez o homem mais feliz do mundo. Para onde quer que eu vá, estarei sempre olhando por você e pedindo aos céus que te protejam. - Parou de falar por um instante e puxou meu rosto para que eu pudesse vê-lo. Eu, como sempre, já estava com o rosto todo encharcado de lágrimas. - Eu te amo, minha escritora. Cada palavra daquele livro me mostrou ainda mais a pessoa maravilhosa com quem me casei. Tenho orgulho de vê-la sendo chamada de Senhora . Você, sim, é incrível. Obrigado. - Suas últimas declarações me fizeram cair em meu choro habitual. Novamente, desesperadamente, chorei como uma criança que se perde da mãe. me abraçou e ficou repetindo que me amava. Era tudo o que eu precisava hoje.
Horas depois, montamos um pequeninho banquete de frente ao crepúsculo praiano. Não havia nada melhor no mundo do que o lugar onde estávamos. Nada.
Domingo
Voltamos para casa ao meio-dia. Almoçamos na casa de um amigo de ; a família dele foi muito receptiva conosco. Após o almoço, voltamos para casa. Como não sabíamos a que horas seu corpo não aguentaria mais, decidimos que era melhor voltar. Ao chegarmos, lembrei-me de que não tinha me mostrado sua surpresa na tarde anterior e lhe cobrei isso.
- Espero que tenha ficado tão bom como os outros que já fiz de você. - Ele me entregou um bloco de anotações onde o primeiro papelzinho tinha escrito “Pra você, meu amor.” - É um stop motion. Você sabe como fazer?
- Acho que sim. - Dei início aos desenhos. Conforme as folhinhas iam passando, um rosto ia se formando. Era o meu rosto. Estava igual ao desenho do meu bolo de aniversário. Chegou na última folha e o desenho estava acabado, com os olhos azuis e o cabelo loiro. Ao lado do meu rosto, tinha a frase mais linda que já me escreveu: “Mesmo que as estrelas caiam e que o sol não volte a aparecer, eu te prometo, meu amor, estarei sempre com você.” Dessa vez segurei meu choro. Fechei as páginas e apertei-as contra o meu peito. - Querido, vamos dormir?
- Por quê? Não quer terminar de aproveitar o dia?
- Eu só quero uma última vez deitar ao seu lado.
Ele concordou e subiu comigo. Tomamos banho juntos. Ao sair, nos trocamos e fechamos as janelas e cortinas do quarto. Tranquei a porta e deitamos.
Apesar de não saber em que momento não acordaria mais, decidi dividir com ele seu último sono. Não queria que de súbito ele tivesse uma falha em seu sistema nervoso e caísse no chão. Nos abraçamos e sussurramos nossas últimas juras de amor um para o outro. Não posso fazer nada para impedir que ele se vá, então ficarei ao seu lado. Até seu último suspiro.