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Pam Oliver | Revisada por Luba

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Capítulo único

“Eu ainda estou aqui…”

  Eu ouvia tudo em silêncio, os nomes de meus companheiros durante a premiação, os discursos políticos, os repórteres sempre tão nervosos e compatriotas, as pessoas a nossa volta com seus sentimentos distintos e alheios a toda a guerra.
  Tudo parecia bonito demais, fantasioso demais ou talvez sem importância alguma para nós, que de fato estávamos envolvidos durante tanto tempo, tempo demais para acreditar naquele conto que o governo contava para recrutar mais e mais soldados a cada ano.
  Meu nome foi mencionado exatamente vinte minutos depois que eu me sentei nas cadeiras destinadas às tropas que estavam voltando do Iraque, levantei ajeitando meu uniforme para baixo e comecei a andar. Eu podia ouvir os sussurros e os olhares sobre mim e me lembrei de minha formatura no colegial onde ninguém tinha idéia do que estava fazendo ou do que esperar a partir daquele momento. Mas hoje éramos diferentes, nós sabíamos por que estávamos ali e eu estava orgulhoso porque jamais esquecerei o quanto me esforcei e trabalhei duro para agradar o meu país, apesar de não acreditar em toda aquela merda, eu fiz o que pude e sei que dei o melhor de mim naquele inferno.
  Antes que percebesse, eu já estava na escada, caminhando em direção ao governador.   Tudo que ele havia prometido aos soldados ali em frente era mentira. Uma promessa ininterrupta, mas eu mantive a minha, eu estava ali, vivo, pronto para apertar a mão estendida de um mentiroso.
  - Senhoras e senhores, eu lhes apresento o soldado do ano, por sua honra, respeito e dedicação, , – disse ele com orgulho, como se tivesse me criado para isso.
  - Obrigado senhor. – Fingi um sorriso quando ele apertou a minha mão.
  Eu caminhei até o palanque, estava na hora do meu discurso e tudo de repente ficou tão silencioso que se um alfinete caísse ao chão eu poderia ouvir facilmente o som de seu impacto.
  Ajustei o microfone e limpei minha garganta para começar…
  - Eu... Eu gostaria de agradecer ao meu amigo Alex que me incentivou a me alistar e bom... Não posso agradecer aos meus familiares, porque eles não estão aqui para ouvir e isso não seria justo, não depois de tudo que eu os fiz passar nestes últimos tempos. Eu estou de volta, é tudo que sei, eles souberam há poucos dias e não puderam estar aqui, mas eu estou voltando, voltando para o que realmente importa no momento. – Pessoal demais, pensei antes de continuar a falar. - Eu espero um dia ser modelo para o próximo contingente. Obrigado pela honra de receber esta medalha, tenham uma boa noite.
  Fui premiado com uma medalha de honra e um certificado. Repórteres, pessoas, soldados estavam todos lá. Meu discurso, embora estranho, foi ovacionado, mostrando que você poderia falar qualquer merda, aquelas pessoas não se importariam desde que viesse de alguém pronto para salvar a vida delas.
  Porém, a única pessoa que eu estava ansioso para ver, não estava ali e não havia nenhuma carta, nenhum telefonema ou email... O dia mais honroso da minha vida e ela não estava lá...
  Deixei meus olhos vagarem por as cadeiras agora vazias e saí atravessando o salão em meio a pessoas e portas. Não havia esposa, não havia família, nem ninguém para correr, além da minha carreira militar.
  Mas se você realmente quer entender o que estou falando, acho melhor começar minha história onde todas começam... Do início.

“Perdido em mil versões, irreais de mim”

  Nasci na cidade de Killen – Texas, no ano de 1981, e tenho apenas um irmão, , que não por acaso, é meu irmão gêmeo, e com uma índole totalmente diferente da minha. Nós temos apenas minutos de diferença, sendo eu o mais velho. Fomos inseparáveis até certa idade, ou para ser exato, até conhecermos a .
   e eu tínhamos apenas sete anos quando e seu pai mudaram-se para a casa a ao lado da nossa. Ela era sorridente e encantadora, e nós dois, pobres garotos, não ficamos imunes a ela.
  Fazíamos tudo juntos, desde ir para escola até passar os finais de semana na casa um do outro, então era de se imaginar que quando chegássemos à adolescência, estivéssemos caídos de amor por ela. A nossa garota, sempre sob nossa proteção.
  E foi aí que as coisas começaram a mudar.
   sempre fora mais tímido, o tipo de cara que guarda seus sentimentos para si mesmo, e eu o tipo que contava na primeira oportunidade, o problema é que na verdade eu tinha amor demais e espalhava para todas as garotas no colegial.
  Meu irmão ia contar a ela sobre os seus sentimentos idiotas em uma tarde fria de novembro, ele estava planejando comprar uma caixinha de música que sempre gostara do antiquário e passou o verão todo cortando a grama dos vizinhos para ter o dinheiro para comprar a maldita caixa.
  Então eu o roubei, e nunca contei a ninguém sobre isso.
  Comprei uma guitarra antiga do pai do Alex com todo dinheiro que tinha conseguido e menti a ele dizendo que nosso pai havia me dado.
  Eu realmente duvido que ele tenha acreditado, já que nosso pai mal nos olhava nos olhos, quanto mais liberar grana assim tão fácil para um item tão supérfluo quanto uma guitarra que eu não fazia e ainda não faço idéia de como tocar.
  Depois disso o tempo passou e acabou não contando a ela.
  No dia da minha formatura, não apareceu, e só fui me dar conta quando suas amigas a procuravam desesperadamente, já que a mesma seria a oradora da turma.
   conversava com alguns professores, quando eu decidi que não pediria sua ajuda e que a acharia sozinho, mostrando para mim mesmo que seria tão bom quanto ele.
  Fui até a casa dela e a encontrei deitada no chão de seu quarto, estava, como ela mesmo me confessou mais tarde, tendo mais um de seus ataques de pânico.
  Naquela manhã fiquei com ela deitado ao seu lado esperando que voltasse do transe em que se encontrava, fiquei ao seu lado segurando sua mão e prometendo que ficaria tudo bem, fiquei ao lado dela até seu pai chegar e tomar o meu lugar.
  Cheguei a minha formatura minutos antes de chamarem meu nome. , de seu lugar apenas acenou com a cabeça ao me ver levantar para pegar o canudo estúpido que já deveria ter ganhado um ano antes se os professores não insistissem em me reprovar.
  Quando fiquei livre de toda aquela bobagem, voltei para casa de .
  E assim que entrei em seu quarto ela sorriu com seus olhos carregados de lágrimas.
  - Por favor, não conte a ninguém, – pediu.
  - Não vou, não se preocupe. – Foi tudo que disse antes de abraçá-la.

“Eu que tanto me perdi…
Em sãs desilusões ideais de mim
Não me esqueci
De quem eu sou
E o quanto devo a você...”

  Em outros tempos eu seria o otário que sairia contando para todo mundo, para que tivéssemos um motivo para tirar sarro depois, em outros tempos eu até mesmo poderia tirar algum proveito disso, mas não agora, não com ela. E acreditando ou não, eu não conseguia entender o motivo naquele momento. Tudo que eu sabia é que eu deveria cuidar dela.
  Mais tarde quando cheguei em casa, havia uma movimentação estranha na frente da mesma, e várias malas espalhadas pela calçada.
  Havia chegado à hora, meus pais estavam se separando. E estava indo embora com meu pai para o outro lado do país.
  Ninguém quis falar sobre o assunto no dia, e embora fosse uma despedida, tudo fora feito em completo silêncio, ou talvez soluços de choro vindos de minha mãe, com certeza em razão de estar indo embora junto com nosso pai.
  Dois dias depois, outro cara foi morar em nossa casa, o amante de minha mãe. Um cara legal e que me dava mais liberdade do que meu próprio pai, não demorou muito para que virássemos amigos. Claro, ele não teria muitos problemas comigo porque sempre me emprestava seu carro e ele sabia que minha amizade tinha lá seus custos.
  Eu era um mercenário e embora agora eu tenha vergonha de admitir isso, naquele tempo era tudo um tanto engraçado.
   e eu começamos a namorar exatamente um mês depois de meu irmão ter dado o fora com nosso pai. Ela sempre perguntava por ele, e algumas vezes até tentou me arrancar algum endereço ou número de telefone, mas eu sempre mentia afirmando que os dois haviam sumido no mundo e enfatizava a ela que era esse também o motivo por minha velha ter entrado em depressão. Outra mentira, já que minha mãe falava, - Lê-se chorava.- ao telefone todos os dias com o paspalho do meu irmão.
  Então, depois de um tempo ela parou de perguntar sobre ele e começou a prestar mais atenção em mim e em nosso relacionamento. Passamos a nos ver todos os dias e cada momento com ela era um misto de novidade e ansiedade para mim.
  Eu sempre fui o tipo de cara que acha amor e paixão as maiores bobagens já inventadas, algo que jamais aconteceria comigo, sentimentos que jamais sentiria, mas depois de tê-la em meus braços, completamente entregue em sua primeira vez, eu sabia que havia sido afetado por eles. Tudo estava perfeito, eu a amava e sabia que era recíproco.
  Passávamos o maior tempo possível juntos, e quando não era possível algo faltava em mim, como se me faltasse um braço ou perna, eu estava incompleto sem ela e também com os pensamentos mais babacas do mundo em minha cabeça... “Será que estava pensando em mim” ou se ela sentia a minha falta tanto quanto eu sentia a dela.
  Mas no final do dia, sempre voltava correndo para mim tão rápido quanto um cometa que cruza o céu.
  Então o 11 de setembro chegou e junto com as torres, minha vida também desmoronou.
  Depois do dia fatídico, todos os caras da minha cidade e com a minha idade começaram a se alistar, eu como sempre, remei contra a maré o quanto pude. Não se engane, eu não era um covarde, era apenas inteligente o bastante para saber que aquela promessa de uma guerra curta e sem muitos danos para o nosso lado era papo furado.
  Minha resistência foi até o ponto em que querendo pedir em casamento, me vi sem um tostão no bolso. Eu estava desempregado e completamente ferrado, sendo taxado de covarde por meus vizinhos que de uma hora para outra resolveram virar os maiores patriotas do mundo, colocando suas bandeirinhas na frente da casa, mostrando para todos que ali morava a família de um soldado.
  Então eu fui até a base mais próxima e me alistei como fuzileiro cinco meses após o 11 de setembro. Eu assinei os papéis, raspei a cabeça e vesti a farda que me acompanha até hoje e, por incrível que pareça, naquele momento eu me senti honrado. Contrariando tudo aquilo que eu acreditava ser verdade.
  Quando minha mãe me viu chegar em casa vestindo uniforme militar, correu para o seu quarto e chorou o resto da tarde. Gordon tentou consolá-la, mas pouco adiantou, ela não queria me ver por um tempo.
  Naquela noite, andando sozinho pela cidade, pensando em como contar a , parei em frente ao antigo antiquário e entrei ouvindo o sino bater na porta, o mesmo que ela tanto adorava quando pequena.
  Com os 20 mil ganhos ao me alistar, comprei para ela um anel de cinco que, segundo o velho da loja, pertencera a alguma condessa algum dia, eu não dava a mínima para essas coisas, mas sabia que ela gostava de velharias então iria gostar de algo do tipo.
  Eu não a procurei naquele dia, nem tão pouco voltei para casa, passei o resto da noite no rancho com meus antigos amigos, bebendo e jogando conversa fora, porque sabíamos que vida seria diferente depois de termos assinado aqueles papéis.
  Alex iria para Alemanha comigo, e os outros, direto para o Iraque. Hoje posso dizer que não fazíamos idéia do que estava por vir, ainda que nossas expectativas fossem grandes.
  De manhã, quando abriu a porta da frente, lá estava eu sentado na escada a esperando, de ressaca, é claro.
  Ela sentou ao meu lado e puxou o capuz de minha cabeça, passou a mão na mesma e começou a chorar, ela já sabia de tudo, minha mãe com certeza havia se encarregado de contar.
  Ela chorou, e nós brigamos o dia todo, eu tentando explicar a ela os motivos que me levaram ao alistamento e ela tentando me lembrar que eu não estava partindo para um jogo de vídeo game.
  Eu a tranquei em seu quarto e de lá não saímos o dia todo, depois de muitas brigas eu queria que ela entendesse que não tinha mais volta e que tínhamos pouco tempo juntos. Que partiria na próxima semana.
  Quando ela finalmente cedeu deitando-se ao meu lado, eu a pedi em casamento e dei a ela o anel que comprara na noite anterior.
  Sabe-se lá porque, eu esperava que ela chorasse, é o que todas fazem, mas quando contei a ela a história do anel, tudo o que ela fez antes de cair no sono foi balbuciar um:
  - Teria gostado até mesmo se fosse de plástico, - disse aconchegando-se em mim e eu nunca vou entender o que quis dizer, eu nunca vou entender porque ela, com a disposição, foi se apaixonar por alguém tão ferrado quanto eu.
  - Isso é um sim? – perguntei a ela, olhando seus olhos se fecharem lentamente. – Você casa comigo?
  - Claro.
  Sua resposta, embora sonolenta, veio carregada de emoção.
  E dois dias depois finalmente estávamos prometendo amor eterno no quintal da casa de seu pai, com apenas dez pessoas como convidados.
  Eu estava feliz, porque de repente eu não era mais aquele garoto irresponsável, eu estava orgulhoso de mim mesmo, apesar do medo de ir embora e deixá-la ali sozinha.
  Todos de certa forma me viam como um herói, mas só queria que eu tivesse uma chance de mudar de idéia.
  Mas essa chance não era uma possibilidade e todos nós sabíamos disso. Então na semana seguinte Alex e eu partimos para Alemanha e tudo que eu levara de era uma foto com uma legenda escrita por ela mesma. “Ainda estou aqui”
  O que não fazia qualquer sentido para mim naquele momento, porque na minha cabeça eu voltaria para ela, assim que possível e sabia que ela estaria lá pra mim de qualquer forma. Antes de sair deixei um bilhete no meio de seu livro favorito que estava no criado mudo.

“ Tenta não se acostumar
Eu volto já
Me espera”

  Era uma promessa que talvez a salvasse nos dias longos em que estaríamos separados, eu voltaria logo, tinha certeza.
  Mas eu estava enganado, e meus superiores, como sempre, estavam mentindo…
  Depois de passar um ano e dois meses em treinamento na Alemanha, finalmente fui enviado de volta para casa para passar apenas uma semana, porque eu sabia, embora não quisesse admitir, que meu novo endereço seria Bagdá, em Harrydi, um dos piores campos de onde quase ninguém voltava, e se voltava não era inteiro.
  Ela estava me esperando em frente ao portal da rodoviária onde os ônibus que trariam os fuzileiros iriam parar. Quando seu olhar caiu sobre o meu, correu me abraçando e beijando-me o quanto foi possível antes de minha mãe também pendurar-se em meu pescoço.
  Quando cheguei a nossa casa, dada por seu pai meses depois de eu ter partido, parei na soleira da porta e observei tudo antes de ouvi-la chorar ao meu lado.
  E naquele momento, pela primeira vez, eu amaldiçoei o dia em que a pedi em casamento.
  Não me entenda mal, eu a amava mais do que tudo, mas quando você ama alguém, a última coisa que quer é magoá-la, e só quando entrei naquela casa e senti o peso de seu silêncio, foi que me dei conta de que eu não acrescentava em nada na vida de .
  Quando você se casa, você quer a pessoa junto, quando compra uma casa, espera preenchê-la com filhos, mas quando você entra no exército e parte para uma guerra, todas essas coisas ficam para trás, jogadas em um canto qualquer, como lembranças imaginárias de tudo aquilo que você não disse e não fez.
   não merecia isso, eu não era bom o bastante para ela, era apenas um fantasma que apareceria de vez em quando em sua vida até sumir completamente em um dia qualquer.
  Aquela fora a primeira vez que eu me culpei, por ter tomado a chance de ficar com ela, porque meu irmão, com sua infinita bondade, saberia a maneira certa de fazê-la feliz.
  Eu dei meia volta e entrei na casa de minha mãe, eu não queria ficar em nossa casa, eu mal conseguia olhar nos olhos e foi assim a semana inteira que estive lá.
  Eu a ouvia chorar em nosso quarto, estranhando minha reação fria e meus longos silêncios, mas eu não conseguia e não podia reagir aquilo.
  Fui até o antiquário e penhorei minha antiga guitarra, deixando clara a minha vontade caso meu irmão um dia aparecesse por lá.
  Também deixei uma carta a ele com poucas linhas em uma das gavetas de nosso antigo quarto, o tempo que ele demoraria em recebê-la não importava, um dia o momento chegaria e eu não estaria mais lá.
  No dia do meu embarque plantei abaixo da janela de nosso quarto uma roseira amarela, eram suas preferidas, e eu sabia o quanto ela odiava flores enroladas em plásticos ou plantadas em vasos porque elas estariam secas e mortas em pouco tempo e tudo que era morto era perdido.
  Deixei sua foto ao seu lado na cama, não queria mais levá-la comigo, não queria mais tê-la em meu pensamento.
  Esperar para sempre é muito tempo, pensei para mim mesmo antes de deixar o quarto e ir embora mais uma vez.
  E o tempo mais uma vez passou, e com ele tentei esquecê-la, todos os dias, um pouco de cada vez.

“Mesmo quando me descuido
Me desloco
Me deslumbro
Perco o foco
Perco o chão
Eu perco o ar”

  Fomos mandados para Harrydi, que fica cerca de 60 km a noroeste de Bagdá. Uma cidade bastante perigosa, para ser franco, aquele era um dos piores lugares do Iraque. Era uma tarde de sábado, estávamos com as câmeras ligadas para gravar nossa operação, todos rindo e brincando com a situação das mulheres afegãs em burcas com todo o calor que fazia naquele lugar, até nosso capitão ser atingido em cheio em uma das veias de seu pescoço, deixando seu casaco completamente banhado em sangue, então tirei o meu para dar a ele, pois estava tendo uma crise de hipotermia devido à perda exagerada de seu sangue que escorria sem parar.
  Mas para nossa surpresa, nosso tanque fora atingido segundo depois.
  Acordei em um hospital militar, horas mais tarde, ou dias depois.
  Alex estava sentado à minha direita e seu braço esquerdo estava enfaixado.
  Quando recebi alta hospitalar e voltei ao forte militar na Alemanha, nosso oficial superior nos concedeu a baixa já que estávamos esperando há muito tempo. Depois de três anos e meio no exército, havíamos excedido nosso primeiro contrato.
  Meu contrato era de três anos... Mas no mesmo contrato diz que eu sou responsável por oito anos... Então isso significava que se eu saísse do exército depois dos meus três anos eles poderiam me chamar e ativar o meu contrato novamente até quatro anos depois. Ou seja, nossa baixa concedida nada mais era do que um tempo de folga até que eles resolvessem nos levar de volta.
  Alex e eu aceitamos sem nos opor, não pelos machucados supérfluos, mas porque aquela era nossa deixa para virarmos desertores, eu não estava arrependido, não me entenda mal, eu não me arrependo da vida que escolhi pra mim, mas esses lugares e esses rostos estão ficando velhos, então decidi que voltar para casa, seria o melhor a fazer.
  As coisas estavam certas na minha cabeça, tudo matematicamente calculado, eu voltaria para casa e levaria comigo para o Canadá, assim que conseguíssemos documentos para cruzar a fronteira.
  Alex manteve contato com o coyote que nos daria os documentos falsos o tempo todo durante nossa volta para casa, estava tudo certo para que quando chegássemos lá fossemos amparados pela associação dos desertores veteranos do Iraque.
  Liguei para Gordon assim que chegamos a Killen e pedi para que fosse nos buscar na rodoviária, eu não entendi o motivo no dia, mas ao ouvir a minha voz, Gordon pareceu vacilar ao telefone, como se não acreditasse que de fato era eu do outro lado da linha, mesmo três anos depois, era de se esperar que um dia eu retornasse.
  Alex resolveu que só saberiam de sua volta ao chegar em casa, não queria que sua família comunicasse sua volta aos vizinhos, evitando assim que todos soubessem que tínhamos voltado para fugir.
  Esperamos Gordon por volta de uma hora, até ver o velho carro do mesmo ser estacionado em frente ao terminal. Gordon estava com as mãos nos bolsos e um velho boné dos Yankees, ele não parecia ter mudado em nada.
  - .
  - Você está bem? – Eu o abracei brevemente. – Onde está a minha mãe?
  - Ela está em casa, eu não contei a ela.
  - Tudo bem, então vamos para casa, deixaremos Alex no caminho.
  Disse isso a ele enquanto caminhava, jogando nossas bolsas na traseira da caminhonete.
  - Nós podemos deixar Alex no caminho, mas eu não posso te levar para casa, não antes de conversarmos.
  - Tudo bem, então. – Olhei pra ele por um momento tentando entender o que estava acontecendo.
  Deixamos Alex no rancho e voltamos para estrada, parando em frente ao antigo bar do Jack. Fui cumprimentado por poucos que ainda lembravam de mim naquele lugar.
  Gordon sentou-se em uma mesa afastada e assim que me juntei a ele, começou a falar:
  - Seu irmão está aqui.
  - ?! – Pergunta estúpida, pensei, quem mais seria? - Há quanto tempo?
  - Dois anos.
  - Dois anos? – Senti minhas mãos formigarem e a raiva tomar conta de mim. – Aonde quer chegar?
  - Ele voltou para a cidade e está morando aqui há dois anos, está ajudando a
  - Ajudando? – Levantei-me nervoso, de repente queria ir embora, e quebrar a cara dele. – Ajudando ela com o que, exatamente? – Gritei e todos me olharam.
  - , você ficou muito tempo fora, você nem mesmo respondia nossas cartas ou emails. – Gordon me segurou. – Sua mãe entrou em depressão, a única notícia que tínhamos de você vinha da família do Alex ou do próprio exército, achávamos que estivesse morto, eles…
  - Aonde quer chegar? – Gritei outra vez, se não saísse daquele lugar, o primeiro a tentar me segurar ia levar uns bons murros. – Eles estão juntos? É isso que quer me dizer?
  Atirei minha cadeira longe e todos no bar caminharam em minha direção me segurando, quando enfim Gordon pediu que me largassem e eu saí.
  - Aonde você vai? – Ele veio atrás de mim. – Você precisa ver a sua mãe.
  - Eu não quero ver ninguém.
  É tudo que disse antes roubar seu carro e ir em direção ao velho rancho na fazenda dos pais de Alex.
   estava com , e eram casados, e me traíram, não, espera, ela me traiu!
  Quando minha mãe apareceu de manhã a confusão estava armada, ela me bateu antes de me abraçar, mas quando o fez deixei-a cair em um choro profundo até que se cansasse.
  - Porque está escondido nesse rancho?
  - Vou desertar, – avisei-a – Alex está vendo os papéis, vamos para o Canadá amanhã.
  - Não faça isso, .
  - Ah é? E porque não fazer? Volto pra cá e descubro que minha mulher está dormindo com meu irmão, porque eu devo ficar aqui? De que lado você está? – Gritei com minha mãe como se estivesse falando com um dos meus soldados. – Eu estava lá, todos os minutos poderiam ter sido o último e eu volto pra casa... Eu volto pra casa... – E de repente, não conseguia mais falar, as palavras falharam em minha garganta e eu chorei, como jamais fiz algum dia.
  - , você só está com medo, olha pra mim. – Ela segurou meu rosto. – Me deixe contar o que aconteceu, por favor, filho.
  - Eu não estou com medo. Droga! – Eu me afastei. - Estou com raiva, não quero voltar a lutar em uma guerra sem sentido, não quero mais ser obrigado a invadir casas e colocar mulheres e crianças na rua, eu não quero mais ficar longe desse lugar, eu não queria mais ficar longe da e olha o que eu encontro quando decido voltar pra ela.
  - Nós sabemos que não está com medo. - Gordon disse sendo sensato. – Mas precisa nos ouvir.
  - Eu não estou preocupado em ouvir vocês, eu só preciso ficar longe de tudo, – disse a eles virando as costas.
  - Ela está no hospital. – Minha mãe gritou de repente e meus pés travaram. – Eles apareceram na porta dela logo depois do acidente com o seu tanque, e ela pegou o carro, não quis ouvir, você sabe o que acontece quando dois soldados batem em sua porta no meio da noite?! Ela estava sozinha, apavorada, o carro derrapou e ela foi jogada pra fora, bateu a cabeça em outro carro parado a rua.
  - deve estar cuidando dela. – Não sei por que disse aquilo, mas disse, não sentindo mais o meu coração bater dentro de mim com as mil possibilidades criadas em minha mente. – Ela não precisa de mim.
  - Está errado, , – disse Gordon saindo de perto. – O que ele está fazendo é por você também.
  Tentei ignorar as palavras de Gordon, mas sabia que de alguma forma ele queria o melhor pra mim. Olhei para o rosto de minha mãe coberto por suas mãos e a vi soluçar.
  O carro de Alex chegou e quase me atropelou, quando a porta abriu saltou de repente, vindo até mim furioso. Ele me empurrou e me bateu, antes de começar a chorar. Eu o abraçei, algo que nunca fiz.
  -Você encontrou minha carta? – perguntei a ele.
  - Eu não queria magoar você, – meu irmão disse. – Eu fiz o que me pediu, eu cuidei dela, mas como um irmão. – Ele limpou o rosto, chorão como sempre. – Ela também leu.
  - Como ela está? – Senti meus lábios tremerem, acho que não estava preparado para ouvir.
  - Ela está bem, mas você precisa saber... Ela não se lembra de quase nada da vida antes do acidente, – disse e senti meus lábios secarem, não podia ser verdade. – Se tivesse voltado depois que descobrimos que estava vivo, talvez ela tivesse uma recuperação mais rápida com a sua ajuda, eu não sei…
  - Droga , você não sabe o que eu passei durante este tempo, você não faz idéia de tudo que acontece naquele lugar, – gritei com ele, só pode estar brincando. – As cartas nem sempre chegam, vocês…
  - E você não tem idéia do que acontece aqui, as pessoas sempre falam do quão difícil é para quem vai para guerra, mas não há manuais para os que ficam, – ele gritou de volta em tom áspero que não reconheci, jamais gritou comigo antes.
  - Me desculpa, – disse a ele e caminhei para dentro do carro de Alex, esperando que ele me acompanhasse e me levasse até o hospital.

“Me reconheço em teu olhar
Que é o fio pra me guiar
De volta
De volta
Tenta me reconhecer... No temporal”

  Quando chegamos, todos o cumprimentaram, recepcionistas, médicos, enfermeiras, todos naquela porra de lugar o reconheciam, mas não faziam idéia de quem eu era e de que na verdade a paciente seja minha esposa e não dele. Bom, talvez eles saibam, mas eu estava louco demais para admitir isso.
  - Oi . – Ela sorriu, sentada na cama, por algum motivo não consegui me mexer, fiquei encostado à porta enquanto ele caminhava e a beijava na testa.
  - Lembra que eu falei que tinha um irmão gêmeo? – Ele conversava com ela, parecendo seu cúmplice, tomando meu lugar. Ela assentiu. – Ele quer ver você, se estiver tudo bem? – Do que ele está falando? É claro que está tudo bem!
  - Ok, – disse ela um pouco confusa. Eu caminhei até a cama.
  - Vocês são diferentes. – Ela riu e meu sorriso abria enquanto olhava para ela.
  - Você não faz idéia, – disse me aproximando.
  - Eu vou pegar um café, tá bom? – disse. – Eu volto daqui a pouco.
  Sentei-me ao seu lado, não sabia o que fazer, como devia agir, tudo que sabia é que queria abraçá-la e tirá-la daquele lugar o mais rápido possível. Tentei tocar sua mão, mas ela a puxou assim que a minha se aproximou.
  - Você não lembra mesmo de mim? – perguntei não conseguindo acreditar que aquilo de fato esteja acontecendo comigo.
  - Eu deveria? – Ela me encarou sem entender.
  - Você lembra dele? – Comecei a rir. – Acho que deveria lembrar de mim, já que é minha mulher. – Empurrei a porta com força e se encolheu na cama.
  - Vou chamar a enfermeira. – Ela tentou apertar o botão do seu lado esquerdo e eu o atirei longe.
  - Olha pra mim, – pedi me aproximando. – Por favor, olha pra mim, sou eu, tenta me reconhecer, por favor.
  - Você está me assustando, vá embora, por favor. – Ela começou a chorar e eu ouvi a porta abrir e correr até o seu lado.
  - O que pensa que está fazendo? – Ele me olhou. – Não entendeu nada do que eu disse, ou não quis entender? Vai pra casa, , vai se trocar, dormir um pouco, você está parecendo um louco.
  - Não vou sair daqui, você pode ir se quiser, o meu lugar é aqui, estou de volta e vou cuidar dela.
  - Não está cuidando dela assim, só está a apavorando mais ainda. – Meu irmão respirou fundo. – Volte amanhã, vou conversar com ela sobre o que aconteceu, eu prometo.
  Não tinha o que dizer, ela não me olhava, na verdade acho que estava mergulhada em um vazio, o mesmo em que ficava quando tinha suas crises e eu estava lá, pronto para salvá-la. Agora, de repente eu virei um estranho em seu mundo, e por mais que eu queira tentar, é difícil digerir isso de uma hora para outra.
  Voltei para a casa da minha mãe e olhei para o lado, observando nossa casa, que de fato sempre fora mais de do que minha, as roseiras que plantei estavam enormes e mal cuidadas, e a casa totalmente escura, praticamente abandonada.
  Entrei e encontrei minhas bolsas do exército perto do sofá, provavelmente Gordon as havia levado. A luz da cozinha estava acesa, e o cheiro do jantar fez meu estômago resmungar, de repente me dei conta de que não comi nada o dia todo.
  - Ela não sabe quem eu sou, – disse à minha mãe assim que entrei na cozinha. Por algum motivo, não conseguia chorar, estava seco e com raiva, por tudo, por , por mim e principalmente por nossa vida ter sido tão injusta. – Ela não quer me ver.
  - Vamos jantar, sim? – Ela puxou a cadeira para que eu me sentasse e colocou um prato em minha frente. – Ela vai se lembrar querido, ela vai lembrar…
  Olhei nos olhos de minha mãe, e pela primeira vez senti um pouco de esperança, talvez ela saiba mais do que eu.
  Depois do jantar tomei um banho e fui até o meu antigo quarto, tinha razão, precisava dormir um pouco. Sentei-me na cama e tirei uma camiseta qualquer de minha bolsa, deixando-a cair no chão. Quando a puxei de volta vi um envelope no chão, uma carta devolvida pelo exército a , isso só acontece quando um soldado está perdido em algum hospital clandestino ou morto.
  Rasguei o envelope e liguei a luz do abajur velho ao lado da cama, deitei-me no travesseiro e coloquei o papel em frente aos meus olhos, e então tudo ficou embaçado…

  “Dizem que o amor acaba com a distância, que ele termina, mas não é verdade... Ele continua e cresce a cada dia de uma forma nova.
  Há tanto tempo escrevo sem obter uma resposta sua. Sei que em nossa despedida me ouviu calado sem prometer escrever ou ligar de volta, mas durante o ano que passou não restou um dia, onde quer que eu esteja que eu não espere sua resposta.
  Então decidi que está seria minha última tentativa, como um último sopro de esperança, está será a última carta que escrevo a você. E como tal, dei-me a chance de deixar impressa na mesma, tudo aquilo que não confessei enquanto ainda estava aqui.
  Eu ainda sonho com você, ainda penso em você todos os dias quando acordo. E quando olho para o lado consigo imaginar todas as suas expressões faciais ao me dizer bom dia.   E eu me agarro a essas lembranças para seguir em frente, para me levantar todo dia nessa cidade que parece tão vazia sem você. Para enfrentar os jantares e reuniões entre amigos em que sua família está presente. Eu apenas sento lá e coloco um sorriso falso no rosto pensando em você e tentando não chorar. Eu me agarro em seus sorrisos, eu me conforto com eles, porque me lembram o seu.
  Eu sinto falta do seu beijo de adeus pela manhã, ou antes de você sair com os garotos. Eu gostaria de poder ter dito isso a você enquanto ainda estava aqui, que essa era a minha parte favorita do dia.
  Sinto falta de ouvir você constantemente me dizendo que eu era sua garota favorita, só porque tinha necessidade disso. Eu sinto falta de cantar no carro com você. Eu sinto falta de rir com você com tanta força até meu estômago doer. Eu sinto falta de vê-lo encolher os braços e solta-los pesadamente quando algo não deu certo. Eu sinto falta de fazer caminhadas com você e apreciar o silêncio a nossa volta. Eu sinto falta de falar sobre o nosso dia juntos. Sinto falta de não poder vê-lo descer do ônibus com seus companheiros fuzileiros nesta primavera.
  Eu sinto sua falta, apenas isso. E ninguém entende, não há nada que alguém possa dizer ou fazer para a dor ir embora. Eu quero meu marido de volta mais do que qualquer coisa, mesmo que eu não possa dizer a você o quanto o amo. Eu quero aqueles dias de volta, mas sei que isso não é uma possibilidade.
  Às vezes eu uso suas roupas, as uso na esperança que seu cheiro me leve até você. Fico olhando nossas fotos e tentando fazê-las ganhar vida.
  Mas de qualquer forma, eu sou abençoada por ter tido a oportunidade de ter alguém como você e ser verdadeiramente feliz por um momento, e também por conseguir manter essas memórias comigo.

Sempre, sempre e sempre sua garota favorita.
.

  É duas horas da madrugada, o ponteiro do relógio parado ao meu lado gira rapidamente fazendo um barulho irritante. Não consigo dormir, não lembro a hora que deitei, mas pela dor no meu corpo já parece uma eternidade, o exército me acostumou a isso, dormir pouco, ser alheio ao tempo.
  Caminho até a cozinha sentindo minha garganta seca, está lá sentado com uma xícara de café em sua frente, olhando para a geladeira, parece estar em transe, ou dormindo. Faço barulho e ele me olha.
  - Porque não foi pra cama? – pergunto enquanto procuro um copo. – Aconteceu alguma coisa?
  - Já faz algum tempo que durmo sentado naquela cadeira, acho que acostumei. – Ele está falando da cadeira ao lado da cama de naquele maldito hospital. - O que está pensando em fazer? Vai mesmo fugir?
  - Não sei. – Sento-me ao lado dele. – Não enquanto ela estiver assim, quer dizer, preciso convencê-la a ir comigo.
  Ele ri, mas não está se divertindo, é aquele típico sorriso de alguém que está debochando do que acabou de falar ou de ouvir.
  - Não sei como dizer isso a você, na verdade nunca sei o que dizer sem esperar que exploda comigo em resposta, mas... – Ele faz uma pausa e pega mais café na cafeteira ao meu lado. – Então é isso? O seu plano? Carregá-la daqui e dar a ela uma vida medíocre de fugitivos?
  - Desde quando você se tornou um especialista em desertores? – Sento-me ao seu lado, estou pronto para ouvir o que tem a me dizer, tentando contrariar o que espera de mim.
  - Não sou especialista em nada, só não quero vê-la sofrer mais. – Seu olhar paira sobre o linho da mesa, e neste momento minha certeza sobre o amor que ele sente por ela só cresce. – Ela acreditava que você voltaria, ia até a estação e esperava com tanta esperança que um daqueles fuzileiros no fundo do ônibus fosse você, mas nada acontecia então ela voltava para casa, olhava a foto do casamento, respirava fundo me olhando e dizia “Não posso desistir” E eu sabia que ela jamais faria isso, mais do que isso, eu entendi, ninguém jamais amou alguém como ela ama você.
  Meus olhos transbordam enquanto ouço as palavras de , não consigo imaginar sozinha naquele lugar, esperando por mim, tanto tempo, mesmo depois de tudo que a fiz passar. Toco meu rosto e olho para minha mão molhada de lágrimas que outrora teimavam em não cair, mas que agora carregavam o peso e a culpa do tempo perdido.
  - O que sugere que eu faça? – pergunto a ele e sei que está estranhando minha reação.
  - Eu não posso imaginar o que você passou naquele lugar, nem o que irá acontecer se decidir ser um desertor. – segura minha mão. – Mas se a segunda opção for a sua primeira, você deve ir sozinho. – Meu irmão se levanta de repente. – Vou dormir um pouco, – diz. – Fique com ela amanhã, estou muito cansado.
   some no corredor e tudo que ouço é o som de seus passos subindo a escada. Fico parado onde estou por vários minutos, são apenas três horas da manhã, mas minha vontade é de voar até o hospital e estar lá quando ela acordar.
  Subo e tomo um banho, meia hora depois estou parado em frente à máquina de café do hospital, puxando outro copo pela quinta vez na madrugada. Volto para o quarto e a vejo dormir profundamente agora sem aparelhos ligados a ela.
  Pego seu livro favorito que dei a ela quando começamos a namorar anos atrás e folheio-o por alguns segundos até encontrar a página marcada em seu poema favorito, eu o leio várias e várias vezes, e revejo as cenas em minha cabeça dos momentos em que estivemos juntos, em todos eles só me tornou uma pessoa melhor.
  - Oi. – Ouço sua voz rouca e levanto meus olhos, ajeitando-me na cadeira rapidamente.
  - Desculpa ter assustado você hoje, não era a minha intenção, – digo e ela sorri calmamente.
  - Desculpa não reconhecer você, eu vou tentar. – Uma lágrima escorre de seu olho esquerdo. – Eu prometo.
  - Você sempre cumpre suas promessas. – Tento acalmá-la. – Mas agora precisa descansar.
  - Eu não me lembro de você, mas o meu coração sim. – Ela puxa minha mão e coloca sobre o seu peito. – Pode sentir? É assim que me sinto quando vejo você. – sorri enquanto sinto seu coração acelerar. – Isso significa alguma coisa, não é?
  Ela está tentando, eu sinto, mas também sinto pena por estar fazendo-a se sentir assim, culpada.
  - Pode ler pra mim? – pede e volto a olhar o livro limpando minha garganta antes de começar a ler aquelas linhas que nunca foram apagadas de minha mente.
  - Violetas da Rua Plug Wood. É estranho que sejam azuis, azul, quando seu sangue encharcado era vermelho, porque elas cresceram em torno de sua cabeça;   É estranho que eles sejam azuis. Violetas da Rua Plug, pense no que elas significam para mim, vida e esperança e amor e você. Você não as viu crescer onde seu corpo mutilado jazia, ocultando o horror do dia, amor, foi melhor assim. Violetas de além mar, para sua terra querida, distante, esquecida, estas eu envio na memória, sabendo que você vai entender.
  - Ninguém lê esse poema tão bem quanto você, em algum lugar, nessa minha memória confusa eu ouço sua voz lendo pra mim, eu lembro... – Sua voz parece sonolenta e sei que está prestes a dormir, e também que esta se lembrando de mim, aos poucos. Devia sentir felicidade, mas sinto medo, logo ela vai me odiar por toda a dor que causei.
  - Lembra que eu quero te ver feliz. - É tudo que consigo dizer, porque talvez seja tudo o que tenha a dizer a ela.
  - Vai estar aqui quando eu acordar, não é? – Ela tenta abrir os olhos e eu beijo sua mão, encostando-a em meu rosto. – Você nunca está lá quando eu acordo. - Sinto suas palavras queimarem minha garganta.
  Ela me olha nos olhos, estamos perto demais, mas agora, diferente de toda aquela urgência típica da juventude, estou apenas feliz por ainda tê-la por perto. Eu a puxo para ainda mais perto de mim e então beijo o topo de sua cabeça e sussurro uma de suas canções favoritas próximo ao seu ouvido e a ouço rir fracamente. Lembro-me de nossa dança no dia em que tudo realmente começou a desmoronar à nossa volta. Lembro-me de suas mãos sobre as minhas e a forma como meu coração parecia querer saltar do peito a cada passo que dávamos. Lembro-me de vê-la feliz, e então me dou conta do que realmente importa.
  – And you can tell everybody this is your song – Sussurro, e ela ri apertando meu braço. – Não é a primeira, mas é a música que…
  – Dançamos no casamento, – ela diz sorrindo.
  – Você lembra... – digo surpreso olhando pra ela e então ela volta a cair em sono profundo. – Eu amo você e vou voltar, vou estar aqui quando acordar deste pesadelo, eu prometo. – Beijo seus lábios derramando uma lágrima grossa sobre eles, não posso mais ficar neste lugar, não posso mais continuar errando.
  O que eu havia feito, meu comportamento durante todo este tempo, era imperdoável. Eu tinha, em minha cabeça, destruído sua expectativa de vida comigo, destruído seu amor, sugado a alegria, felicidade e confiança até a última gota, mas isso não era verdade. Eu alienei meu próprio irmão com minha insanidade durante todo este tempo. Eu cedi aos meus pensamentos mais sombrios e, por não saber me controlar, acreditava ter perdido para sempre a primeira pessoa que amei de verdade. Mas que felizmente, mesmo com sua perda de memória repentina, ainda procurava um jeito de voltar para mim e me amar de volta.
  Eu a olho uma última vez e então, lentamente, caminho para fora do quarto, volto para casa quando a luz do dia já se faz presente e todos estão acordados em casa, subo para o quarto, arrumo minhas coisas na velha bolsa verde oliva tão conhecida e visto minha farda. Voltar para a guerra não era justo, mas o certo a fazer, para quem sabe, em um ano tentar novamente uma baixa, não provisória, mas definitiva e assim poder seguir finalmente minha vida ao lado de em paz.
  - Toma cuidado, filho. – Gordon me abraça. – Essa é a decisão certa, o tempo vai passar rápido, você vai ver. – Ele se afasta e posso ver minha mãe chorando.
  - Volte para casa, só volte para casa. – Ela me abraça e digo para não se preocupar.
  - Cuide dela pra mim. – Olho para . – E arrume uma namorada. – Brinco com ele tentando quebrar o clima pesado. Ele ri e me abraça, acho que nunca estivemos tão próximos em toda a vida. – É sério, cuide dela, – peço mais uma vez e sei que ele não precisa responder.

“Espera
No temporal
Me espera”

  Pego minha bolsa e jogo nas costas saindo de casa mais uma vez, olho a velha casa ao lado, ela nunca foi um lar, mas talvez venha a ser quando eu voltar. Jogo a bolsa dentro do carro de Alex e olho para a porta de casa sendo fechada por minha mãe ainda chorando. Eles não saem atrás de mim ou tão pouco me chamam, porque sabem que este é um momento daqueles que preciso ficar sozinho comigo mesmo. Um momento de encontro com meus erros e acertos e com o que farei daqui em diante…
  Alex entra ao meu lado no carro, também está de uniforme e sei que esta não foi uma decisão fácil pra ele também.
  - Um irmão nunca abandona o outro. – Ele diz e eu concordo. – Vamos acabar com isso logo, cadeia aí vamos nós.
  E ele estava certo, assim que colocamos nossos pés na base de Killen já estávamos sendo considerados possíveis desertores e sendo assim ficamos dois dias em prisão interna antes de embarcarmos de volta para a Alemanha e depois Iraque, ou seja, a vida que tanto conhecemos e tentamos evitar, estava lá nos sugando de volta.
  O verão se arrastou o quanto pode, e quando o outono finalmente chegou, novos soldados chegaram a base também, com sua eterna ilusão de heroísmo, eram caras ótimos, mas imaturos demais, não faziam parte do grupo que estava acostumado, e para ficar ainda pior Alex deu baixa definitiva no começo do inverno, quando eu entendi que estava sozinho outra vez.
  Depois de um tempo em combate ganhei uma licença de uma semana, mas não voltei para casa, mesmo falando com Alex sempre que podia, não mantinha contato com minha família da forma que deveria, a única coisa que sabia era que estava cuidando dela, e que sua memória havia voltado. Nestes dias, já não criava mais expectativas, já achava que o certo era ela ficar com ele e me conformava com isso, mesmo que às vezes acordasse no meio da noite implorando para uma força desconhecida que isso não acontecesse.
  Acordava de pesadelos com vestida de noiva, ou em meio à guerra com seu vestido de noiva ensangüentado. Isso me levou a procurar o psicólogo da base duas vezes seguidas e ouvir a sua sugestão de licenciamento médico, mas nunca achei que essa fosse a melhor escolha, um licenciamento médico me daria um ou dois meses em casa e mais um ano em meu contrato, isso estava fora de questão.
  Quando a primavera finalmente chegou e eu vi e ouvi o barulho do carimbo de baixa em meu contrato, tentei entender se essa era decisão certa, sair do exército e voltar para o inesperado.
  “Você fez uma promessa” Meu inconsciente me dizia toda vez que me olhava no espelho e então eu entendi que precisava voltar, mesmo a encontrando nos braços de outra pessoa, teria que conviver com isso, ou tentar.
  Enviei um email a meu irmão, informando o dia que voltaria e que estaria recebendo uma medalha de honra no desembarque por ter completado meu tempo de serviço. Uma parte de mim queria que eles aparecessem e ela que corresse para me abraçar como nos vídeos feitos pelo governo para comover as pessoas e tornar seus soldados dignos de heróis. Por outro lado estava apavorado.
  E como você sabe... Ninguém apareceu.

“Tenta não se acostumar
Eu volto já
Me espera”

  Peguei um taxi na rua Judht e ouvi o taxista conversar com interesse sobre o Iraque o caminho todo, ele me conhecia e avisou alguma coisa sobre uma festa na minha rua, mas não dei muita importância, tudo que queria era chegar logo e encarar o desconhecido.
  Quando o carro parou pude ver as novas cores nas casas, tudo parece infinitamente mais alegre do que quando parti há um ano. A velha bandeira americana ainda balançava na varanda da minha casa e a roseira no quintal não existia mais.
  A casa parece estar decorada para um casamento, e pessoas não param de chegar adentrando o quintal que um dia fora meu também.
  Observo as sombras na janela da antiga casa do pai de e a vejo sorrir para o espelho em sua frente, está de vestido branco, parece extremamente feliz e por um momento me pego rindo também, mesmo tendo certeza de que chegara exatamente no dia errado.   Quando ela olha para fora sei que fui pego enquanto a observava, ela congela parecendo não acreditar, e em um instante não está mais lá. E sei que o nosso encontro será inevitável, não há como fugir dele.
  Ela atravessa a rua calmamente e para em minha frente, não me abraça imediatamente como eu havia sonhado, mas quando o faz, sinto que estou em casa novamente e que não quero soltá-la nunca mais.
  - Você chegou, – diz e sinto sua respiração em meu pescoço. Ela não me solta por um longo tempo e eu não faço questão de apressá-la, por um segundo, era como se nada entre nós jamais tivesse mudado.
  - Vai se atrasar. – As palavras cruzam os meus lábios, rapidamente eu desvio o olhar.
  - Todo mundo está se arrumando, ainda temos tempo. – Ela me aperta outra vez e penso em meu irmão nos olhando assim na rua. – Precisa trocar de roupa. – Ela ri. – Ou não, sempre achei lindo o uniforme de passeio e você nunca usou. – Ela alisa meu terno e toca a medalha recém colocada em meu peito.
  - Bom... Nunca me ofereceram medalhas antes, então…
  - Parabéns, – diz parecendo orgulhosa de verdade.
  - O que está acontecendo? – Eu a corto de repente, porque quero entender logo onde estou pisando.
  - Agora?
  - Sim, aqui, com você, na nossa casa... Quer dizer…
  - Ela não é mais nossa casa , já faz algum tempo. – Suas palavras me atingem em cheio.
  - Eu entendo. – Tento me conformar e não sentir raiva – Você está tão linda nesse vestido, – digo e sinto uma vontade terrível de chorar, não posso acreditar que a perdi, parece não ser real.
  Duas garotas vestindo o mesmo atravessam a rua e me olham cochichando alguma coisa que não entendo.
  - O mesmo vestido, – digo a ela.
  - Não tivemos escolha. – Ela olha para o chão. – Sara sempre repete que somos exceções, não a regra.
  - Sara? – Fico confuso.
  - Você não recebe mesmo nenhuma carta? – Ela estranha.
  - Não onde eu estava, – afirmo, mentindo obviamente.
  - É o casamento dela hoje.
  O alívio toma conta de meu corpo imediatamente, como se eu tivesse tirado o peso de mil elefantes de cima dos meus ombros, que idiota, penso.
  - Com o seu irmão. – conclui e eu volto a olhá-la nos olhos. – O que você estava pensando? – Há uma mistura de curiosidade e hesitação em sua expressão.
  - Nada, – digo, ainda sem acreditar na sorte que a vida está me devolvendo. – Na verdade, você sabe... Sempre achei que acabaria ficando com ele, desculpe por dizer isso agora. – Fico com vergonha, não acredito no quão idiota estou sendo.
  Ela me olha por um longo tempo em silêncio, e por um segundo antes de outras pessoas a caminho da festa passarem por nós dois, sinto que o mundo fora do nosso espaço parece não existir.
  - Eu quis esquecer você, – ela diz. – Eu quis muito esquecer você. – Ela faz uma pausa e olha pra mim tentando avaliar minha reação. - Mas essa nunca foi uma possibilidade, eu perdi a memória no dia em que achei que estava morto, e então você voltou e foi embora outra vez, você não ficou comigo, e eu sei que não tinha escolha, mas se quer saber mesmo a minha opinião, – segura minha mão e a beija, chegando perto ela me abraça. – eu teria fugido com você, para onde quer que fosse, porque é isso que as pessoas que se amam fazem, , elas ficam juntas em qualquer circunstância e eu vou esperar você, sempre, mesmo que vá embora outras mil vezes, toda primavera eu estarei lá, esperando você descer daquele ônibus.
  Sei que deveria falar alguma coisa, mas como sempre, não sabia o que dizer. A única coisa que sabia é que ela ainda era a mesma garotinha por quem me apaixonei quando éramos crianças.
  Ela segura minha mão e me puxa, mas eu a seguro no lugar onde estamos e a prendo em meus braços, beijando seus lábios como há muito tempo ansiava, não quero soltá-la, não vou soltá-la nunca mais! Quero fugir desse lugar e carregá-la comigo, tê-la em meus braços outra vez. “Faz tanto tempo” penso olhando para ela e por um momento sei que ela sente o mesmo.
  - Vem! Estamos atrasados. – Ela sorri sem jeito.
  - Para quê?
  - Recomeçar, – diz e sei que está certa, tudo que precisamos é recomeçar.
  No dia seguinte quando o dia amanhece e olho para o seu rosto na cama ao meu lado, prendo a respiração sentindo-a se aconchegar em meus braços, tudo é como deveria ser. Começo a rir enquanto a observo, pensando que nem tudo está perdido e que desta vez posso fazer a coisa certa, como uma segunda chance que a vida acabara de me dar.
  Tento me levantar, mas paro assim que a vejo acordar e perguntar…
  - Aonde você vai? Fique aqui! – Ela me abraça.
  - Em lugar algum, ainda estou aqui... Ainda estou aqui! – Repito para que ela tenha certeza de que, a partir de agora, não sumirei novamente.
  Eu a observo e me perco pensando novamente no tempo e em suas formas de cura. Assim como nas estações, quando algo que morre no inverno acaba renascendo na primavera, acredito que, na vida, haverá um tempo pra tudo.
  Haverá principalmente um tempo certo para crescermos juntos novamente, , e eu... Talvez não sejamos velhos demais para acreditar nisso, recomeçar. Porque, ainda na noite passada, pensei que não teria mais motivos para viver, mas eu tenho e esse motivo é ela.

Fim



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