Henry Albarn



Escrito por Abby Niccals
Revisado por Natashia Kitamura

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Monólogo

  O NEVOEIRO ASSOMBRA OS HABITANTES DE SWAN LAKE. Desde que nasci, mal vejo o sol surgir aqui, o calor toca raramente a atmosfera. Só existe frio, chuva, silêncio e sofrimento. O ambiente é problemático... é vazio! Um lugar sombrio. Estive no inferno; causa-me aflição, desconforto, tudo está desmoronando.
  Nem todas as estrelas são visíveis. As flores murcham na primavera e renascem no verão. O lago permanece profundo e gelado o ano todo.
  Os habitantes nativos de Swan Lake são depravados e excêntricos, cometem crimes horrendos ou acreditam em teorias conspiratórias. É o reino dos assassinos em série, anteriormente verdadeiramente depressivo.
  No entanto, estava enganado naquela época. Meus olhos foram cativados por aquele maldito rapaz! Minha adolescência sutil e tola foi profundamente obscurecida.
  O encarei da janela do meu quarto, ainda morando na casa de minha mãe, ainda tão puro e inocente – era como se eu fosse sua distração.
  A beleza diabólica instalou-se nas suas íris azuladas, mantendo-me perdido nas linhas do seu sorriso. Lembro que Henry não havia revelado o intenso e vigoroso inferno da ultraviolência de imediato; entretanto, sua segurança e proteção acabaram fazendo-me crer em uma armadilha endiabrada como se as graciosas asas de Lúcifer bloqueassem meu caminho para o paraíso divino.
  Amava-o quase como um marido ama sua esposa, embora estivéssemos longe de ser um casal romântico.
  A mente monstruosa de Henry Albarn controlava meu maldito subconsciente... Nas noites em que seus gritos ecoavam no quarto após ter pesadelos.
  Ele alucinava comigo os eventos doentios e terríveis! Me ensinou a pertencer somente a ele.
  No primeiro encontro, percebi o quanto meu coração não cabia no peito.
  Meu irmão alertou, porém, recusei dar-lhe ouvidos. Já estava preenchido no breu das sombras, insertado em caos e trevas.
  Para mim, Henry era a reencarnação de Hades, enviado à Terra para perverter e roubar Eros de Afrodite.
  Seu abraço era como o submundo. Ele tinha o dom de sussurrar suavemente no ouvido até que finalmente você se acalmasse em seus longos braços. Ele trazia aquele desejo proibido de me entregar diretamente à morte.
  Lembro-me de suas roupas sombrias e de sua personalidade mórbida. Elas me envolveram! Peço perdão, mas me ajoelhei diante do próprio diabo.
  E esta é a história em que minha vida se desfez. Não é apenas sobre mim, mas também sobre todas as pessoas ao meu redor, todas vítimas da maldição. Foi escrita para minha mãe, meu irmão e vizinhos. É tudo sobre Henry Albarn e a cidade amaldiçoada.
  Assim como todas as vidas que se foram, também fui obrigado a me esconder, optando pelo meu sacrifício.
  Felizmente, pude encontrar a saída.

Prólogo

  NUM DIA QUALQUER DE OUTUBRO, BEM ANTES DA POPULARIZAÇÃO DO DIA DAS BRUXAS, surgiu a chegada de um jovem depreciado, natural do Utah. Ele deixou para trás dois lares que não mereciam sua presença, mas a compaixão parecia inútil quando sua saúde mental o forçava a relembrar os abusos psicológicos e agressões perpetrados pela esposa bastarda de seu patriarca.
  Os relacionamentos familiares se esgotaram, e durante dias e visitas constantes em psiquiatras e médicos especializados, nunca lhe deram um diagnóstico certo. Suspeitando claramente que o problema dele era insano, porque o garoto seria conhecido por eles como mais um monstro sádico e irado, prosperando caos inimaginável na cidade de Swan Lake — a cidade onde toda a fantasia de Tchaikovsky não tinha um final feliz, mas sim um final sangrento em danças de horror e gritos.
  Contudo, seres humanos tendem a saber na fase inicial da vida, enquanto crianças são forçadas a descobrirem o mundo; obrigadas a crescer, independente da idade adequada: mas e quanto ao um pequeno rapazinho Albarn? Este, o qual perdera a mãe — Lynda Robert Albarn —, assassinada misteriosamente após um acidente pela estrada enquanto viajava de férias de trabalho. Os traumas também seriam forçados ou facilmente superados sob uma mente inocente ainda em estado de desenvolvimento? Independente do ocorrido… Ninguém sequer foi capaz de salvá-lo, pois aquele lindo rostinho de coração puro se invalidou conforme a vida corria com o tempo.
  Apagando memórias de infância, agora predestinado a ser um jovem homem, a alma de Henry carregava um ódio imenso no peito; achava enigmático se desvencilhar dele, especialmente agora, em seus plenos dezoito anos, quando escolheu conviver em um lugar desconhecido, onde dificilmente teriam de lidar com ele em uma nova família, num outro lar. Albarn mentalmente estava despreparado, suas tias deveriam ter dado explicações melhores sobre a expulsão do sobrinho. Todavia, escrever uma carta legível para a moradora de seu novo recinto foi o suficiente, apesar dos maus comportamentos que o pálido recusava a pensar.
  Vamos esclarecer uma coisa, aquela passagem era a abertura de um novo futuro.
  Ademais, seu fodido passado sempre o enlouquecia, já que Edward Albarn nunca desempenhou o papel de um bom pai. Sua esposa, Carmen, além de rígida, soube manipulá-lo com maestria, seduzindo-o. Henry frequentemente se irritava ao vê-la mentindo, percebendo que a mulher estava casada com Edward interessada em sua riqueza, também roubava sua confiança. A madrasta achava que o marido era ingênuo demais.
  Graças à ignorância do homem, o filho mais velho começou a colecionar rancor mesclado em solidão, infelizmente sofrendo bullying e exclusão social durante o colégio ainda no ensino fundamental.
  O Albarn mais novo mantinha distância das pessoas, considerado pelos outros desde cedo, como “anormal” embora fingisse tomar seus medicamentos para depois cuspir para dentro do lixo.
  Enquanto a relação da madrasta e o afilhado era frequentemente tensa, marcada por broncas e até agressões físicas por parte do pai, quando ele a acusava de inventar uma "mentira", os filhos dela eram os preferidos deles – isso o machucava profundamente.
  Henry prejudicou demais acontecimentos pela imensidão de lares caóticos, evitava voltar para a casa do pai, jamais temeria suas tias novamente.
  O transtornado garoto viveu acostumado a observar seu negligente patriarca trazer prostitutas para casa todas as noites — antes de se casar com Carmen — assim, mudou sua perspectiva, hesitando em colocar os pés no colchão velho da cama de madeira, sentindo um embrulho repulsivo no fundo do estômago ao espiar pelo buraco da parede branca manchada e ver o progenitor transar agressivamente com as vadias que pagava: gemidos, puxões de cabelo, tapas. Ele era só uma criança, que porra de pai doente! Quem diria para o menino que mulheres não eram apenas vadias?!
  Um sentimento de repugnância e nojo o invadiu. O Albarn mais novo não queria uma nova mãe naquela época, nem queria imaginar a traição. Ele só desejava que Lynda retornasse depois de sua viagem de carro, mas ela nunca voltou. Como uma mãe poderia simplesmente desaparecer assim e morrer? Algo estava errado, Edward havia prometido cuidar dele, mas ao longo dos anos sua mãe nunca mais voltou.
  Foi nesse período que o adolescente ficou ainda mais perturbado, e uma entidade maligna pareceu tomar controle de sua mente. Seus pesadelos tumultuados se fundiram com sua própria identidade; de repente, ele não era mais o garotinho assustado de antes. Henry por um instante carregava uma profunda mágoa.

  Após o homem casar-se com Carmen — mulher esta com um vislumbre e aparência californiana, belos cabelos castanhos escuros, olhos verdes esmeraldas e seios fartos em torno dos trinta e cinco anos —, se tornou cúmplice das agressões lançando palavras ofensivas e apagando qualquer vestígio de bondade. Edward mantinha o mistério sobre a ex-mulher, alegando ao filho que ela estava morta e enterrada... nada mais.
  Lágrimas e gritos escaparam de Henry, sua cabeça balançando de um lado para o outro. Ao fundo, as risadas macabras da madrasta ecoavam. "Parabéns, Carmen, você fodeu com a minha vida!", ele murmurou, trancando-se para sempre em seu quarto. “Se eu tivesse a chance, queimaria esse hospício com você e os seus filhinhos de merda dentro!”, suspirou deitado em sua cama, cerrando os punhos nos travesseiros, com o pensamento maldoso batendo em seu cérebro junto a um martelo.
  Devido aos problemas em seu lar anterior e a um comportamento errático, Henry então mudou-se para Swan Lake City, uma pequena cidade minúscula em fronteira ao Michigan. Seu principal objetivo era se reabilitar e encontrar orientação. Suas tias eram devotas ao catolicismo, embora não fossem muito fervorosas entregando-se totalmente para um relacionamento amoroso entre ambas.
  As mulheres tentaram compartilhar suas crenças com o sobrinho, porém não tiveram sucesso, já que Swan Lake estava longe de ser uma cidade confiável ou religiosa.
  As tias dele tinham esperanças na capacidade de mudança, notaram o quão diferente Albarn tinha se tornado. Com sorrisos animados, sentiam orgulho de suas próprias lições; Henry parecia ter transformado drasticamente sua atitude hostil, embora não soubessem que tudo não passava de um fingimento.
  Nesse período, o pálido respirou fundo criando uma distração em pleno final de verão em meados de agosto, a fim de evitar rotina vazia para não ser pego desobedecendo suas tias. Henry averiguou cada canto da atmosfera gélida da cidade. Mesmo sob o brilho do sol, um clima frio e melancólico pairava no ar. Em dias chatos o garoto frequentava bares, revelando-se alcoólatra e fumante nas horas vagas, agravando ainda mais sua mente devido à abstinência compulsiva de lítio.

  Retornando finalmente ao presente, Henry relia a carta escrita por sua tia Gisele informando sobre seu novo lar; o motivo de ter sido retirado da casa anterior ainda era algo que demorava a recordar. Talvez o jovem estivesse ficando um pouco mais insano, quem poderia dizer? A única coisa que permanecia em suas memórias recentes eram suas mãos sujas de sangue e um cadáver frio em cima do colo do próprio plenamente morto em seu jardim. Henry só queria entender o porquê nunca terem o descoberto… Ele o matou? Acreditou que não.
  Marchando com seus coturnos pela calçada cinza, Henry atravessou a rua encontrando um táxi parado na calçada e finalmente chegando ao seu destino. Após pagar o taxista, ele se sentiu aliviado, segurando uma mala a tiracolo na mão direita, enfrentando a chuva que caía sobre sua boina xadrez e o vento congelante que levitou seu escuro casaco de camurça. Lá permaneceu, parado diante de um casarão de estilo gótico com um imenso portão. Metade da residência estava coberta por neblina. Mal conseguia ver os arbustos, que pareciam saídos de um livro vitoriano.
  Henry não teve escolha senão considerar morar com sua outra família, caso quisesse evitar isso. Assim, mostrou-se curioso, notando uma governanta idosa no meio do jardim, observando-o de longe.
  Batendo palmas junto ao portão, Henry a chamou, perguntando se a dona da casa estava presente. A governanta, então, caminhou até a entrada da residência e notou o jovem pálido de cabelos pretos-azulados, vestindo trajes diferentes do habitual – uma camisa branca coberta por um colete de lã preto-acinzentado, calças justas, coturnos militares, casaco de veludo e boina xadrez. As mãos enluvadas seguravam um dos ferros. Ela nunca havia visto um adolescente tão elegante e excêntrico ao mesmo tempo. No entanto, seu olhar cabisbaixo já indicava a descrição que as conhecidas de sua patroa haviam compartilhado.
  Ao perceber o olhar de desaprovação direcionado a ele, Albarn deu um passo à frente, esperando que ela o apresentasse ao seu novo lar.
  — Presumo que seja o senhor Albarn — a idosa automaticamente cruzou seus braços, de imediato, enquanto o jovem à sua frente respondeu com um aceno. — Vejo que andou perdido pelas ruas — comentou. — Entre, meu querido, senão vai acabar ficando doente.
  — Muito obrigado por me acolherem aqui — ambos deram um aperto de mão, finalmente abrindo passagem para o garoto. — Onde está a senhora Grant?
  — Melissa está a caminho — disse a mulher de terceira idade erguendo o cenho. — Me chamo June, sou a governanta!
  — Prazer em conhecê-la, June — Henry anuiu sorrindo ladino completamente cortês.
  A aura emanava uma sensação tranquila, amplificada pela cor neutra da casa. A calma traduzia-se nas gotas de orvalho que caíam sobre a roseira branca. O murmúrio suave da água escorrendo pela cascata de mármore proporcionava uma magnífica terapia, enquanto a escultura Vênus de Milo evocava equilíbrio e bem-estar, de forma intencional.
  A família Grant sabia como cuidar de seu jardim, algo que parecia saído de um conto de fadas. Um balanço de madeira pendia alto de uma árvore, enquanto os lírios demoravam a abrir. Contudo, a atenção de Henry foi capturada por uma voz doce e rouca entoando uma canção. Erguendo a cabeça em direção ao som do timbre rouco da voz pôde vislumbrar uma descoberta intrigante na janela.
  Os seus olhos oceânicos quase saltaram das órbitas. Explorar outros recintos da casa já havia sido uma surpresa genuína, mas sua curiosidade despertou ao deparar-se com um jovem de pele branca e cabelos dourados, sentado no parapeito da janela, fixo ao seu aspecto. As íris verdes do rapaz invadiram os tons azuis de Henry em uma maneira intrigante.
  Então esse era o dono da voz melancólica? Curioso era o encontro de ambos como se a mesma serpente que o diabo usou para manipular Eva enrolasse o pescoço do pálido de cabelos negros implorando para que mordesse o fruto proibido oferecido por aquela figura dourada, entretanto um coral celestial de anjos parecia impedir o pedido de satanás, atraindo Henry irresistivelmente.
  O loiro fitou-o e cessou sua melodia. A tal troca de olhares trouxe euforia, excitação e um desejo incontrolável. O corpo ansiava por avançar, no entanto, ele permaneceu imóvel, incapaz de se mover.
  Henry deduziu que aquele devia ser um dos filhos de Melissa Grant. As suspeitas foram confirmadas, e se perdeu em suas próprias fantasias... O dono da voz angelical parecia ser o alvo perfeito. Apenas um arquear de sobrancelhas seguido de uma risada irônica confirmou um flerte estranho com o rapaz.
  Repentinamente, uma mão delicada tocou o ombro direito do Albarn e o sacudiu levemente. Trazendo-o de volta à realidade, fazendo-o esquecer os pensamentos impuros.
  — Este é nosso jardim. Muito bonito, não acha? — June fez o pálido concordar com a cabeça. Então voltou-se rapidamente para a janela; o outro adolescente aparentemente misterioso havia saído.
  — Oh, sim! É formidável — o garoto, por dentro, questionava por que eram tão austeros e pacientes com seus hóspedes. Devia ter um motivo convincente para suas tias o entregarem para aquelas pessoas. — Há quanto tempo trabalha aqui?
  — Já se completaram dez anos.
  Henry se conduziu a entrar na sala quando deu um passo para trás – quase colidindo com dois rapazes que aparentavam ser irmãos gêmeos. Para sua surpresa, reconheceu o loiro da janela, trajando uma camiseta de banda desleixada. Suas calças rasgadas no joelho e os tênis conferiam um ar rebelde. Um brinco brilhava em sua orelha direita, seu rosto agora era mais perceptível pessoalmente. O outro gêmeo ao seu lado exibia um estilo idêntico, usando uma touca. Quando abriu a boca para falar, revelou um aparelho nos dentes tortos. Inacreditável, eles realmente eram gêmeos.
  Os irmãos demonstraram uma certa desaprovação ao confirmar que a notícia da matriarca ter acolhido mais um hóspede era verdadeira. A privacidade deles seria comprometida novamente. O loiro lançou um olhar temeroso para trás, evitando encontrar o olhar do pálido. Entretanto, a governanta June chamou o nome "Billy" para dar as boas-vindas.
  — Não seja mal-educado, Billy! — Repreendeu o segundo rapaz. — Cumprimente o senhor Albarn.
  — Como vai? — o garoto estendeu a mão para ele em saudação. Estava gelada, apesar das luvas de couro que cobriam suas mãos. — Somos os filhos de Melissa. Meu nome é Billy, e este é o Brian — ele indicou o loiro, com certa insegurança.
  — Prazer em conhecê-los — o tom seco de Henry causou um arrepio no outro gêmeo à esquerda. — Oh, Brian... Que belo nome!
  — Obrigado — Brian esboçou um leve sorriso devido ao embaraço. — Senhora Hopkins, então... Este é o rapaz que nossa mãe permitiu ficar aqui?
  — Exatamente.
  — Frequentamos o mesmo colégio — afirmou Henry — Na carta que recebi dizia claramente que eu estudaria com vocês na acadêmia Chesterfield.
  Foi nesse momento que Brian se mostrou mais intrigado:
  — Curioso. Nunca nos vimos antes — Grant expressou surpresa. — Enfim, vou te mostrar mais nosso espaço. Dividirei meu quarto com você.
  — Você tem certeza disso? — o outro Grant cochichou no ouvido do irmão, permanecendo cético em relação ao novo hóspede. — Ele não me parece alguém que você dividiria tão facilmente o seu quarto.
  O loiro deu uma cotovelada nas costas do irmão, que teve um espasmo pelo susto.
  — Agradeço pela sua hospitalidade.
  — Certo, então vamos entrar.
  Henry concluiu a observação dos arredores seguindo o trio até a sala de estar, encontrando um ambiente com um toque rústico. Ao atravessar a entrada, percebeu que estava pronto para se acomodar na casa — afinal era o esperado.


Capítulo 01

  A PACATA MORADIA, IMPREGNADA COM UM AROMA DE CINZAS E UMIDADE, revelava uma sala mobiliada com peças usadas, como se o tempo tivesse parado ali. Tapetes ciganos, desgastados e desbotados, cobriam o chão, enquanto um piano imenso, coberto de poeira, parecia guardar segredos de melodias esquecidas. Uma estante repleta de clássicos da literatura barroca erguia-se como um monumento ao passado, suas lombadas empoeiradas sussurrando histórias de horrores e paixões perdidas.
  Diante de uma pequena vitrola, que emitia um som suave e ansioso, uma seleção de discos famosos estava à disposição — clássicos do jazz e R&B, conservados em vinis, organizados em ordem alfabética, como se esperassem por um momento de glória que nunca chegaria.
  Para Henry, o nobre garoto de roupas soturnas, aquele ambiente proporcionava a sensação mais reconfortante que já experimentara. Antigamente, na casa de seu pai, as janelas e cortinas permaneciam trancadas, como se o mundo lá fora fosse um lugar a ser temido. Ele era mantido em cativeiro, sem nunca ter a chance de dar um curto passeio pelo bairro.
  Lugares esdrúxulos tornaram-se, para Henry, um abrigo familiar, onde o impacto de conforto e segurança aliviava suas ansiedades e alimentava seu ego ferido. Ele não se sentia um estranho ali; abraçava a paisagem da elegante vidraça da janela, que balançava sob o vento feroz e a tempestuosa chuva.
  A casa, um abrigo umbrífero e acolhedor, parecia moldada para ele, mesmo que os residentes não compreendessem sua serenidade.
  Os gêmeos Grant notaram quando Albarn retirou a boina da cabeça, junto com o casaco, ambos pendurados no cabideiro próximo aos guarda-chuvas. O gesto revelou um físico atlético, ombros largos e braços robustos, um detalhe que o gêmeo de cabelos loiros não deixou passar despercebido, sentindo um rubor visivelmente explícito nas maçãs de suas bochechas.
  Os irmãos evitavam interferir nos assuntos da mãe, cientes de seu trabalho como psicanalista. Reconheciam seu extenso histórico profissional e sua responsabilidade inabalável com pacientes marginalizados da sociedade.
  Melissa acolhia os desamparados da região, capaz de identificar mentes perturbadas não apenas por suas faces, mas pelas vozes maléficas que ecoavam em suas almas. Um método pouco convencional, mas eficaz, que ela usava em suas investigações. Entretanto, Brian não via aquele hóspede como uma ameaça a ser temida; ao contrário, sentia uma estranha atração pelo desconhecido, como se algo sombrio e fascinante estivesse prestes a se revelar.
  Um fato intrigante aguçou os pensamentos de Brian quando soube que Henry frequentava a Chesterfield, uma instituição conhecida por ser a mais negligente do estado. Como tinha extremo conhecimento da escola inteira, nunca ouvira falar da presença de novatos, inclusive no ensino médio. Chesterfield usufruía da fama de estudantes dominantes e revoltados, formando tribos urbanas que ultrapassavam a estrutura democrática da instituição acadêmica. Os subgrupos impunham suas autoridades, e nenhum adulto — os diretores a princípio — ousavam intervir.
  Após anos de estudo naquela escola, ninguém jamais mencionou ou falou sobre Henry. Brian cogitou que a ideia era ele ser apenas um aluno comum circulando pelo campus. E, graças às suas ações, tornara-se um líder, e como tal, era responsável por manter seus seguidores sob controle.
  Mesmo não gostando muito de se gabar e apresentar rígidas regras impostas, o fato de ser respeitado diariamente era uma consolação. Outrora excluído, aprendeu a ser dominante e voraz. Ainda assim, possuía também suas fraquezas… A dor da paixão.
  O loiro enfrentava dificuldades em manter relacionamentos devido a um medo que lhe faria entregar-se demais sem querer — Brian Grant não era heterossexual, pois seu coração e atração romântica só coexistiam com sua preferência por outros rapazes; isso explicava de maneira certeira sua personalidade contundente.
  Ele havia revelado sua orientação sexual no ano anterior, mas não o fizera abertamente perante a família. Seu irmão Billy descobriu o segredo ao flagrá-lo beijando um colega de classe do segundo ano nas arquibancadas, e prometeu para si mesmo guardar essa informação. A feição corada e as constantes reviradas de olhos mal disfarçavam seu interesse no hóspede.
  A vontade conturbada, com implícita tensão, continuava tomando conta das concepções do adolescente loiro. Será que realmente se apaixonou por Henry? Os dois provavelmente estariam mais próximos? Aquele semblante desesperado soubera detalhar perfeitamente sua reação.
  Sem dar muita atenção às palavras da governanta, Henry continuou a explorar os cômodos e os objetos raros e valiosos que preenchiam cada recanto. O lugar exibia elegância marcante em sua decoração. Ele apreciava as esculturas e retratos emoldurados nas paredes cinzentas, representando paisagens e a extensa árvore genealógica da família, composta por bisavós, tataravós, avós, avôs, tios e tias. A origem do sobrenome Grant era de uma família rica e culta, cercada por mulheres elegantemente retratadas. Cada uma com histórias notáveis. Por fim, o pálido sentou-se no sofá vermelho de couro, decidindo se acomodar ali, relaxando os braços e a cabeça.
  A senhora Hopkins ofereceu a Henry uma xícara de chá, que ele aceitou. Com as mãos nos bolsos, ele esperava a oportunidade de pegar um maço de cigarro e fumar no escuro, mas conseguiu conter seu vício. Albarn cruzou as pernas, pegou o controle remoto da mesa de centro e ligou a televisão em um programa jornalístico.
  Enquanto isso, nos fundos da cozinha, os gêmeos ajudavam as empregadas com as tarefas, mostrando que estavam longe de ser mimados. A dona da casa certamente aprovaria essa atitude. Os gêmeos ajudavam na louça, limpavam o chão, organizavam potes e, de vez em quando, serviam a sobremesa, como era o caso naquela ocasião especial.
  Billy finalizou suas últimas tarefas quando, de repente, observou seu irmão com uma expressão levemente perdida, cobiçando casualmente a suspeitosa figura pálida, atenta na solidão da imensa sala, totalmente hiperfocada no noticiário. Restaram talheres e pratos para serem guardados e secados, além das obrigações escolares que aguardavam. Melissa certamente ficaria descontente ao ver seu primogênito negligenciando suas principais responsabilidades.
  Lentamente, o outro Grant virou-se para a frente e esperou pacientemente até que as empregadas terminassem de guardar os pratos. Depois de secar a sua parte, o moreno se aproximou do irmão, que levou um susto com a expressão incrédula no rosto do outro. O loiro engoliu em seco, voltando à realidade e afastando-se dos devaneios, encarando o que estava acontecendo de fato.
  — O que está acontecendo contigo? Você está muito perdido. De repente parou e não falou durante o serviço inteiro! — Indagava impaciente, com as mãos na cintura e um sarcasmo deliberado. — Vai finalmente conversar com ele e apresentar o seu quarto? Porque sua atenção nele está muito grande. Isso explica os pratos secados pela metade.
  — Cala a boca… Eu só me distraí por um instante, nada demais — Virou-se para a direção do outro Grant, que esboçou uma risada amarga que saiu por seus lábios avermelhados. — Nem sempre me vejo dando de caras com um garoto bonito. Ainda mais… um tão diferente e instigante. — Suspirou levemente, chacoalhando a cabeça de um lado para o outro.
  Billy tentou disfarçar seu riso, mas falhou.
  — Que merda de desculpa é essa? — Falou desacreditado, boquiaberto, sem entender uma palavra sequer. — O cara nem chegou direito e já está secando ele.
  — Deixa de ser ignorante! — Brian rebateu a resposta do irmão rispidamente. — O Henry parece ser confiável. Sinto que vamos nos dar bem… Ou talvez não, sei lá. Ninguém é capaz de prever o futuro.
  — Gostou dele? — O moreno perguntou, franzindo o cenho em interrogação.
  — Não.
  — Para de mentir, Brian! Sei muito bem que está mentindo.
  A voz elevada assustou o loiro, que engoliu em seco.
  — Fala baixo! — Sussurrou com o dedo indicador encostado entre os lábios. — A senhora Hopkins pode ouvir.
  — Não fode. — Billy revirou os olhos indignado. — Você é mesmo um precoce do caralho, mal se conheceram e já está querendo segundas intenções com o pobre rapaz. Mas isso daí tem um cheiro de problema. — Entoou o tom da fala em deboche.
  — Desde quando começou a tomar conta da vida alheia? — Bateu os pés, nervoso e com a garganta seca, negando a troca de olhares com o moreno teimoso. — Achar bonito não quer dizer que quero imediatamente beijar ou namorar com ele.
  — Quem sou eu pra duvidar de algo, né?
  Billy deu de ombros e retirou-se, subindo até seu quarto. O loiro, por não ter cumprido suas tarefas, foi repreendido por June, que lhe entregou uma bandeja com um bule de chá e biscoitos de chocolate. O rapaz endireitou a postura e aguardou qualquer comentário relacionado à situação.
  — Entregue para o Senhor Albarn! — Ordenou a idosa ao garoto. — Lembre-se de que um convidado merece cortesia. Assim, eu não contarei à sua mãe que você deixou os pratos na pia.
  — Me distraí, peço desculpas pela falta de atenção — Murmurou ele.
  — Que isso não se repita! Sua mãe pode não estar aqui, mas eu estou! — Exclamou ela, com o queixo erguido. — Agora vá!
  — Sim, senhora Hopkins.
  Brian estendeu os braços, carregando a bandeja até a sala com uma certa relutância, mas seus passos se tornaram mais ágeis, como se ele quisesse manter uma postura sociável e elegante. Ao chegar à mesa de centro, colocou a bandeja sobre o vidro e encheu a xícara com chá verde, decidido a se sentar ao lado de Henry para tentar manter uma conversa mais civilizada.
  Ele permaneceu ali, observando-o, parado e atento ao noticiário, enquanto tentava imaginar sobre o que conversariam e quando o hóspede realmente notaria sua presença. Seus olhos percorriam as mãos longas de Henry, de cima a baixo. Elas eram bonitas, sem contar seus cabelos ligeiramente úmidos pela chuva. A seriedade que emanava dele no ambiente chamava a atenção de Brian, algo que ele achava admirável. Enquanto o silêncio pairava entre os dois, Brian deu uma olhada ao redor, reprimindo seu impulso amigável, até que algo em sua perna direita fez com que ele quase se arrependesse.
  Os olhares de ambos se cruzaram, e o coração de Brian disparou.
  — É muita gentileza sua me oferecer chá e biscoitos — disse Henry, sorrindo de forma animada enquanto tomava calmamente o chá adoçado. — Raramente sou bem recebido nos lugares que frequento.
  — Já esteve em casas como a nossa? — perguntou Brian.
  Albarn balançou a cabeça.
  — Diria que esta é a primeira residência onde realmente me senti livre e confortável. — Ele endireitou a postura. — Mas, de qualquer forma, obrigado, você é uma boa pessoa.
  — Não foi nada. — A maneira como Henry pegava a xícara era diferente, com o dedo indicador segurando o meio. O som de mastigação de Henry irritava um pouco os ouvidos de Brian. Ele era educado, antiquado, quieto. Que tipo de personalidade seria aquela? — Minha mãe tem uns costumes bem diferentes das famílias de classe alta tradicionais, sempre foi rígida e cautelosa. — Brian sorriu discretamente. — Quando Billy e eu éramos crianças, ficamos de castigo por uma semana e tivemos que limpar todo o jardim. Foi o momento mais chato do mundo.
  Henry soltou uma risada baixa ao ouvir.
  — Sua mãe tem uma personalidade forte, pelo que vejo. — Albarn cruzou uma das pernas com certa imponência. — Pena que estou ficando velho para entender a vida adulta, mesmo estando ainda na última fase da adolescência.
  — Quantos anos você tem? — quis saber Brian.
  — Dezoito, e você?
  — Também tenho dezoito. — Brian confirmou, rindo levemente. — Estamos realmente muito velhos.
  A partir dali, a conversa não parou mais.
  — Bom... mudando de assunto. — Interessado em saber mais sobre quem era Henry, Brian ponderou suas palavras por um momento, sem pressa de falar. — Você mencionou que estuda na Chesterfield. Fez alguma amizade? Ou quase ninguém se importa com você?
  Relacionamentos interpessoais eram cruciais para construir uma boa reputação, mas para Henry isso sempre foi algo complicado. O sistema de ensino público de Utah era conhecido pelos alunos caóticos e hostis, enquanto os moradores e responsáveis da cidade eram amigáveis. Contudo, devido à sua memória curta, Henry não se apegava a amizades de longa data, e no final todos pareciam repudiá-lo sem motivo algum.
  Henry sempre conviveu com parentes distantes e complicados. Seu medo de que algo desse errado o levasse à loucura tornava as pessoas interessantes, mas também perigosas. Ele se encaixava nesse ciclo.
  Quando iniciou o ano letivo na Chesterfield, não sentiu vontade de se envolver rapidamente. Limitava-se a estudar por horas, como todos os jovens, e sempre achava os deveres de casa irritantes e triviais. Enquanto morava com suas tias, os professores reclamavam de sua conduta hiperativa e desatenta na sala de aula — atrasos, notas baixas, desinteresse.
  Os primeiros dias em Swan Lake foram marcados por manhãs calmas e noites turbulentas. Henry era ausente, retornando para casa em horários alternados, ciente de que nenhum adolescente deveria sair à noite devido aos rumores sobre desaparecimentos na cidade.
  Três meses se passaram rapidamente, e Henry ainda estava deslocado, sem amigos e sem boas relações com os colegas. Um garoto de aparentemente dezessete anos, uniformizado com as cores escuras da instituição, se aproximou dele. Tinha olhos castanhos e cabelos vívidos, com uma expressão asiática marcante. Usava óculos com aro prateado e tênis brancos imaculados. Ele estendeu as mãos pequenas e finas para Henry, oferecendo-lhe amizade. Seu nome era Yoshida Takeshi Miller.
  Quando Brian ouviu aquilo, a desconfiança sobre Henry cresceu, e ele ficou calado por um momento, observando os sons vindos da televisão. Para quebrar o silêncio, Henry afastou sua xícara de chá e colocou-a ao lado do prato de biscoitos. Lentamente, sua mão direita fez um movimento involuntário, tocando o joelho de Brian.
  — Honestamente, posso te dizer que nenhum dos meus colegas queria ser meu amigo. Eu demorei muito para até tentar interagir — Henry continuou, mexendo suas mãos nervosamente. Foi quando Brian prestou mais atenção. — Mas, de repente... Conheci um garoto completamente diferente. Ele era gentil e educado. Nós dois conversamos muito, até que recebi a notícia de que ele desapareceu inesperadamente. — Ele murmurou, a ênfase no "desapareceu" fez os ombros de Brian se tensionarem. O loiro não era detetive, mas ele sentiu que Henry estava escondendo algo.
  — Você está falando de Yoshida Miller? O aluno do 3º ano A? — Brian perguntou, já começando a ligar os pontos. Embora ele não tivesse trocado palavras com o desaparecido, ele sabia de sua existência.
  Henry balançou a cabeça positivamente.
  — Ele... — Henry tossiu, tapando a boca com a palma da mão. Lembranças vívidas, imagens de sangue escorrendo em um piso familiar, pedidos de socorro... Ele queria afastar esses pensamentos, mas não conseguia. Ele teve de ser cauteloso. Afastando-se do engasgo, Henry agradeceu o apoio de Brian, e então voltou ao assunto. — Sim, é ele mesmo.
  — Esse garoto era da mesma turma que o meu irmão. Nunca faltava aula e até chegou a ser representante de classe. — Brian comentou, agora mais curioso. — O povo inventa muitas histórias sobre desaparecimentos por aqui. Ouvi dizer que a última aparição dele foi no bairro Odile. Não sei todos os detalhes, mas as investigações falam sobre uma pessoa gritando por socorro em uma tempestade. — Quando Brian mencionou o bairro, Henry se recolheu, mordiscando o lábio, e depois finalizou o tópico com uma expressão fechada. — Eu só quero ter a certeza de que ele está em algum lugar seguro.
  "Em algum lugar seguro? Pobre garoto. Eu queria poder lembrar o que aconteceu na noite em que ele desapareceu, e eu não o salvei... Se ao menos eu tivesse feito isso. Mas será que fui eu? Algo me diz que me arrependo de algo que fiz... ou será que alguém me controlou?" O segredo de Henry se espalhava como uma névoa, apenas compreendido pelos monstros sedentos por sangue e violência. Ele se perguntava, poderia ter sido ele quem matou Yoshida? Ou algo — ou alguém — o possuía naquelas noites? Henry se esforçava para crer que tudo aquilo não passava de um pesadelo.
  — Creio que esse caso não será resolvido rapidamente. — Henry suspirou. — Somos uma nação marcada por sangue, com guerras e crimes hediondos. A justiça nem sempre prevalece, e a sociedade glamouriza psicopatas e assassinos em série. — Ele falou sem hesitar, com um sorriso amargo. — Yoshida provavelmente está descansando em paz no paraíso, o único lugar onde eu acho que ele realmente poderia estar.
  — É assim que você pensa sobre seus amigos? Não está preocupado? — Brian perguntou, com uma expressão de surpresa.
  Henry sorriu de forma amarga, forçando uma risada que falhou.
  — Eu evito me preocupar. Eu perdi tantas pessoas boas nessa vida... — ele baixou a cabeça, seu semblante de dor era visível. — Infelizmente, poucas foram realmente especiais para mim.
  — Por quê? — Brian perguntou, se aproximando mais. Ele colocou a mão sobre o ombro de Henry, que estava claramente abatido. — Você pensa em algum caminho melhor daqui pra frente?
  — A vida é dolorosa e sem sentido quando vivemos em um mundo cheio de pessoas ruins que cometem atrocidades. Me ensinaram que não vale a pena procurar um caminho positivo, nem buscar vingança. O mal sempre é exaltado... Justificar um erro é só uma desculpa para renascer e destruir mais uma vez. — Henry parecia exausto. — Eu tento ignorar minhas fraquezas e me fortalecer. Quero ser melhor, mais forte, perfeito... uma imagem que não faz sentido em uma sociedade quebrada. Yoshida era meu melhor amigo. Mas sei que ele não conseguiu escapar de ser vítima.
  Brian olhou para ele, com uma sensação estranha de perda, mas também de compaixão.
  — Henry... Vai ficar tudo bem com ele. Eu prometo. — Brian tocou suavemente seus cabelos, sentindo as lágrimas de Henry começarem a cair. Ele o puxou para um abraço, oferecendo algum conforto, mesmo que ele próprio não soubesse o que fazer. — Vai dar tudo certo. Não se preocupe. O bem sempre prevalece, mesmo quando não parece.
  Henry, com a expressão cansada, esboçou um sorriso antes de falar, ainda chorando suavemente.
  — Obrigado... — Ele acariciou o rosto de Brian. — Desculpe se estou te assustando...
  — Vai dar tudo certo. Confie em mim. Não precisa ser tão negativo. As coisas podem melhorar. Desabafar faz bem. E, se precisar, estarei aqui para te ouvir. — Brian tentou ser o apoio que Henry precisava, mas sabia que as sombras que ele carregava seriam difíceis de dissipar.

••

  Na verdade, o garoto não sabia exatamente como aconselhar seu hóspede; ambos eram diferentes, mas, de alguma forma, conseguiam se conectar como almas distintas.
Brian e Henry deixaram de lado suas tristezas, permanecendo lado a lado em um silêncio confortável.
  As distrações dos garotos foram interrompidas quando a porta de entrada se abriu, revelando uma figura alta e loira no corredor. Era a senhora Grant. Melissa tinha longos cabelos dourados que quase alcançavam o final das costelas, uma silhueta fina, lábios em tom de cereja e uma aparência jovem e impressionante para sua idade.
  A beleza e os traços marcantes dos irmãos Grant eram, sem dúvida, hereditários, e a semelhança entre o filho de cabelos claros e a matriarca era evidente. Melissa tinha um estilo casualmente sofisticado: usava brincos de diamantes azuis, sapatos de salto alto e um vestido preto de mangas longas, claramente de uma loja de alta classe. Ela sabia ser elegante, mesmo que algumas sardas no rosto e o batom vermelho marcante chamassem atenção em seus lábios volumosos.
  Após guardar o guarda-chuva ao lado da porta, Melissa caminhou até a sala, onde observou o hóspede — também seu paciente — sentado ao lado de seu filho. Não esperava que aquilo acontecesse tão rápido. Embora as tias do rapaz alegassem que ele era manipulador e ameaçador, ela confiava em sua intuição e recusava-se a acreditar que ele fosse tão cruel quanto outros pacientes perturbados que já havia atendido.
  Mesmo segurando suas apreensões como psicanalista, Melissa o cumprimentou com cordialidade:
— Boa tarde, Henry! — disse, enquanto ambos trocavam um aperto de mão respeitoso. — Vejo que você e Brian estão se dando bem. Está gostando de nossa casa? Sei que teve uma boa recepção de June, ela sempre promete uma ótima hospitalidade.
  — Certamente estou gostando — respondeu Henry com um sorriso leve, inclinando-se para beijar delicadamente a mão da psicanalista. Contudo, sua conduta educada não a convenceu totalmente, como ele talvez tivesse imaginado. — As cozinheiras fizeram biscoitos deliciosos. Depois, Brian e eu conversamos um pouco.
  — Brian geralmente é introvertido — comentou Melissa, notando que o filho desviava o olhar, envergonhado de falar com a mãe. — Sobre o que conversaram?
  — Sobre o aluno desaparecido — revelou Henry. — Uma história que ainda não tem desfecho.
  — Oh… — Melissa revirou os olhos, como se já soubesse a verdade, mas evitou prolongar o assunto. — Entendi.
  — Mas notei como todos aqui são acolhedores. Estou ansioso para compartilhar minha vida com vocês.
  — Esta casa agora também é sua! — respondeu Melissa.
  — Er… Mamãe, onde a senhora estava? Trabalhando? — Brian interrompeu a conversa com uma pergunta casual.
  Melissa limpou a garganta, incomodada com a curiosidade do filho. Ele e o irmão acreditavam que Henry era apenas alguém sofrendo de depressão ou neurodivergência, sem saber que, na verdade, ele era um paciente com um histórico de instabilidade mental.
  — Querido, você sabe que minha vida profissional é particular — respondeu, com uma carranca austera, cruzando os braços enquanto jogava os cabelos para frente. — E quanto a você e seu irmão? Não vi Billy quando cheguei.
  — Billy foi para o quarto — respondeu Brian. — Henry e eu vamos dividir o mesmo quarto. Ele também mencionou que é estudante da Chesterfield.
  A informação surpreendeu Melissa, que pensava que Henry estivesse afastado dos estudos.
  — De qual cidade você é mesmo? — perguntou Brian, voltando-se para o hóspede.
  — Sou de Cottonwood West, em Utah — disse Henry, rindo orgulhosamente enquanto cruzava as pernas e endireitava a postura no sofá. — Morei lá por seis anos com meu pai e minha madrasta, para ser específico.
  — Seu pai é uma pessoa legal? — perguntou Brian.
  — Não me sinto confortável para falar sobre isso — respondeu Henry, seco, olhando diretamente para Melissa e Brian.
  Melissa arqueou as sobrancelhas, surpresa com a reação.
  — Desculpe.
  — Relaxa, você não tem culpa de nada.
  — Se é assim… — Brian passou a mão pelos cabelos, pegou um pano úmido para limpar a mesa de centro, e entregou a bandeja para uma empregada que arrumava a estante. — Vou subir. Apareço na hora do jantar.
  Henry levantou-se de imediato.
  — Posso ir com você? Preciso organizar minhas coisas.
  — Melhor irem logo — disse Melissa, olhando para o relógio de bolso de ouro que carregava. Já eram quase seis da tarde e o jantar estaria pronto em breve. — Espero que sejam pontuais e avise seu irmão.
  — Sim, senhora — respondeu Brian, subindo as escadas enquanto segurava o corrimão. — Vou avisar, fique tranquila.
  — Precisa de mais alguma coisa, senhora Grant? — Henry demonstrou atenção e responsabilidade, mesmo que ela não fosse sua mãe. — Fico honrado em ajudá-la.
  — Depois passe na minha sala, quando terminar o jantar — ordenou Melissa. — Estarei esperando pacientemente.
  — Certo.
  Os garotos trocaram olhares e suspiraram ao mesmo tempo. Subiram as escadas e percorreram um longo corredor com várias portas. Algumas estavam abertas, outras fechadas, e havia quartos com maçanetas quebradas. As paredes tinham um tom acinzentado, enquanto o teto branco era decorado com um lustre de cristais.
  Conduzindo sua mala, o novo hóspede acompanhava os passos de Brian, que apresentava cada dormitório com certo orgulho.
  O outro gêmeo, deitado em sua cama, usando fones de ouvido, lançando um olhar nervoso a Brian quando sentiu os passos do hóspede se aproximando, adentrando seu quarto. O ambiente tinha um ar suave e rústico, apesar dos cartazes que cobriam a parede. Havia duas camas de solteiro, um sistema de som, instrumentos musicais e um guarda-roupa antigo pintado de preto.
  — Pronto, aqui é onde vamos ficar. — o mais alto anunciou, as íris esmeraldas fixas nas oceânicas. — Saímos para a escola às oito, depois ajudamos na cozinha, e às seis jantamos. Essa é a nossa rotina diária.
  Brian passou as informações de forma simplificada, então caminharam juntos. O loiro abriu a janela sem demora, mostrando a tamanha beleza do céu com a forte rajada do vento. Henry encarou os demais objetos entretanto uma fotografia de uma modelo saída de alguma famosa revista erótica estava caída no tapete, se perguntando de quem a imagem pertencia.
  Cutucou as costas do rapaz, que virou-se ao hóspede rapidamente:
  — Isso é seu? — apontou para a foto borrada por sabe lá o que poderia ser — Não precisa se envergonhar, desculpe se estou sendo invasivo.
  — O quê? Mas que merda é essa? — olhou incrédulo para a mulher encorpada completamente nua deitada em um tapete felpudo. Deduziu que fosse coisa de Billy e sua mania de invadir o quarto do irmão para pegar algum instrumento emprestado. — Billy! Quantas vezes tenho que te dizer para parar de entrar no meu quarto e jogar suas putarias fora daqui?! — Gritou abrindo a porta do terceiro quarto jogando o pertence do moreno em cima dele com muita raiva e nojo.
  — Ei, como isso foi parar aí?! — inquiriu abaixando-se para pegar aquilo que havia perdido — Puta merda… Foi mal.
  — Seu punheteiro! — ergueu o dedo médio em forma de xingamento — Traga esse lixo pro meu quarto que vou contar para a mamãe que você tá comprando revista pornográfica com identidade falsa de novo! — O assustou, Billy rodopiou os olhos extremamente nervoso.
  — Eu não sou o único punheteiro daqui! — debochou em tom provocativo com as mãos nas cintura, vendo as bochechas do irmão tornarem-se rosadas, ele realmente não estava mentindo. Brian desfrutava manias de se masturbar quando passava dentro do banheiro após relembrar dos atletas sarados tomando banho quando acabavam seus treinos. — Toquei na ferida, né? Mas beleza, sei o quanto você odeia peitinhos! — Mostrou a língua.
  — Vai se foder!
  Como último gesto, Billy mostrou o dedo do meio e trancou a porta do quarto. A raiva passageira de Brian surpreendeu o hóspede, que ficou com as bochechas coradas após a menção íntima do loiro, mal conseguia respirar. Henry ouviu toda a conversa percebendo o quão aqueles irmãos agiam quando estavam juntos.
  — Tudo bem? — Albarn não mostrou muito interessante no que havia acontecido, contudo seria grosseria se não fosse compreensível.
  — Sim — relaxou os ombros — Billy é foda. Adora ficar me provocando, é um babaca quase repeti de ano por causa dele.
  — Estou acostumado com discussões. — Henry colocou a mala na cama ainda conversando com o loiro, enquanto organizava seus utensílios, colocando as roupas no lugar — Meus irmãos são crianças então nunca tive problemas com eles. Se eles fossem mais velhos entenderia que intimidade é algo relativamente normal.
  — Eu quase não falo sobre isso — Brian suspirou, sentando-se na cama macia com lençóis finos. — Sabe, eu posso parecer durão, mas pouca gente sabe quem eu sou de verdade.
  — Quer me insinuar que Billy é um cara bobo e imaturo, já você é responsável e sério? — deu uma risada divertida, o vendo sorrir discretamente.
  — Exato — riu em conjunto — Bem... O único problema com o qual eu me preocupo em falar é que... não sou heterossexual, por assim dizer.
  — Como assim? — Henry perguntou curioso. — Você é gay? Algo desse tipo?
  — Sim, eu gosto de garotos. — confessou, revelando um ponto fraco — No ensino fundamental, muitas garotas queriam namorar comigo, mas eu sempre recusei. Só percebi que era gay no ensino médio… Não tenho certeza se devo contar para minha família abertamente.
  — Acho que não precisa se envergonhar em relação a isso. Admito, também gosto de garotos — Albarn tirou o colete, ficando apenas com a camiseta branca, apoiando-a na cabeceira de sua cama. — Com garotas nem sempre me dou bem, mas elas são interessantes também.
  — Não escolhi totalmente ser gay, mas acho que ninguém mais me entende melhor do que os garotos — cruzou as pernas, meio desajeitado… Henry abria e fechava seus olhos, usando a posição de lótus ao se aconchegar no colchão. Grant fez o mesmo encostando o dorso da destra no rosto. — Minha mãe nunca falou de nosso pai e nem me interessa tanto para ser sincero.
  — Você é um cara tão bonito, não vejo por que se bloqueia tão emocionalmente — O elogio encantou o jovem, sentindo ainda mais batidas prolongadas em seu peito. Henry era muito intimidador — E sobre seu pai, ele que se foda.
  — Verdade, foda-se ele — concordou com Albarn. — E você? Como foi que sobreviveu para chegar até aqui?
  O pálido balançou a cabeça tentando negar a pergunta, porém encorajou-se por causa do rapaz.
  — Minha família simplesmente não se esforçava para me entender — deu de ombros — Na verdade, eu ouso dizer que sofri muito mais! Sabe, enfrentei muitas adversidades ao longo da vida: bullying no colégio, minha mãe que fugiu de casa e foi assassinada inesperadamente, e meu pai investiu a vida inteira por uma vadia egoísta. Ele me abandonou em Swan Lake com minhas tias. Elas eram chatas e rígidas, não sei por que me tratavam tão mal, fui obrigado a tomar remédios fortes e, por um tempo, os comprimidos deixaram de fazer efeito.
  — Ah, sinto muito pelo que você passou.
  — Relaxa, estou me sentindo melhor agora. Você me fez bem, adorei conhecer você — O sorriso dele ainda mais o saciava. Era tão puro e inocente, o oposto de Yoshida, ademais um rapaz perfeito.
  — Que tal ouvirmos alguma música? — apontou para o aparelho de som com alguns CDs empilhados — Gosta de ouvir o quê?
  — Tem algum álbum do The Smiths?
  — Não sou muito de escutar, mas posso abrir uma exceção — o loiro procurou em sua coleção bagunçada — Hatful of Hollow. Acho que este serve! — inseriu o CD no rádio, reproduzindo a melodia post-punk das canções que costumavam ter.
  O hóspede virou-se para janela de seu novo quarto através de passos côncavos, sentia uma nostalgia enquanto via o sol se pôr e fechava os olhos. A tranquilidade e a privacidade não o impediram de pegar um cigarro que estava guardado em seus bolsos, puxar o maço e, com um isqueiro em mãos, acender a chama e observar o sol desaparecer.
  Brian levantou-se da cama e também decidiu aproveitar a vista noturna perto da alma atormentada. Eles se acalmaram enquanto soltavam a fumaça. Tinham sentimentos semelhantes, a sensação de estarem juntos até o final, mesmo que não se conhecessem completamente. Observaram o céu escuro, fecharam os olhos e entrelaçaram os dedos das mãos, enquanto o vento frio entrava pela janela.
  Brian abraçava-o enquanto ambos dividiam seus cigarros, aquela personificação de um cisne negro se deparando com o caminho de um cisne branco. Eram quase feitos um para o outro.
  Ficaram ali juntos, como se suas vidas dependessem disso. A tempestade estava criando um turbilhão de tragédia de maneira enigmática.
  Brian infelizmente não sabia que seus braços enrolaram o corpo do próprio diabo.

Capítulo 02

  ERA HORA DO JANTAR, POR VOLTA DAS SEIS E QUARENTA E CINCO, quando a casa, antes silenciosa, começou a pulsar com a expectativa de um ritual macabro. Os membros da família, como sombras de um passado esquecido, tomaram seus lugares na mesa imensa, uma relíquia de madeira escura que parecia respirar, como se estivesse viva, absorvendo os segredos e os sussurros que ecoavam entre as paredes.
  June, com as mãos trêmulas, estendeu a toalha sobre a superfície rugosa, cada movimento um eco de um tempo em que a alegria ainda habitava aquele lar. As arrumadeiras, figuras fantasmagóricas, dispunham os garfos com precisão obsessiva: salada, carne, sobremesa, como se cada utensílio fosse uma arma em um jogo de poder.
  Os pratos de porcelana, adornados com detalhes que pareciam olhos observadores, aguardavam ansiosos pelo que estava por vir.
  O candelabro de cedro, imponente e ameaçador, erguia-se no centro da mesa, suas nove velas derretendo lentamente, como se chorassem a dor de um banquete que não era apenas uma refeição, mas um sacrifício.
  A fumaça dançava no ar, formando figuras grotescas que pareciam sussurrar segredos obscuros, enquanto a luz tremeluzente lançava sombras distorcidas nas faces dos presentes.
  A psicanalista Grant, com um sorriso que não alcançava os olhos, ofereceu-se para cortar a costela bovina assada, a carne suculenta exalando um aroma que misturava o prazer e o horror. Os gêmeos, com expressões de devoção, murmuravam suas orações, mas havia algo de errado em suas vozes, um tom de desespero que se escondia sob a superfície da gratidão.
  O hóspede, Albarn, observava tudo com um olhar faminto, como um predador à espreita, esperando o momento certo para atacar.
  Quando o último “amém” foi pronunciado, a tensão na sala se tornou palpável. Albarn, com um movimento rápido, agarrou as folhas de alface, as gotas de vinagre e o azeite escorrendo como lágrimas de um vegetal sacrificado. Os gêmeos, em um frenesi quase ritualístico, montaram seus pratos, cada garfada uma celebração do que estava por vir.
  A governanta, com um sorriso enigmático, trouxe a molheira de vidro, o conteúdo brilhando como um veneno tentador, enquanto os irmãos imploravam por mais, como se soubessem que aquele molho poderia ser a chave para um prazer indescritível ou a porta para um pesadelo sem fim.
  Naquela mesa, a linha entre o sagrado e o profano se desvanecia, e a verdadeira natureza do banquete começava a se revelar, como um eco distante de risadas que se transformavam em gritos.
  A noite prometia mais do que apenas uma refeição; prometia um banquete de horrores, onde cada garfada poderia ser a última.
  Brian e seu irmão fizeram seus pratos de comida com alimentos idênticos, tendo um acompanhamento de carne, salada, batatas coradas. Notando a governanta levar uma molheira de puro vidro para ambos. Cada irmão implorava por molho branco ser derramado nas batatas cozidas.
  Brian e seu irmão montaram seus pratos com uma precisão quase ritualística, cada um deles repleto de carne suculenta, salada fresca e batatas coradas, como se estivessem preparando-se para um banquete sagrado.
  A governanta, uma figura sombria e silenciosa, apareceu com uma molheira de vidro puro, seu conteúdo brilhando de forma inquietante sob a luz vacilante das velas.
  Os irmãos, com olhares famintos, imploravam por um generoso derrame do molho branco, como se aquele líquido cremoso fosse a chave para um prazer que transcenderia a refeição.
  — Jezebel, sirva-me mais vinho! — A voz da matriarca cortou o ar pesado, enquanto ela sacudia o sino em sua mão, um som agudo que parecia ecoar nas paredes, despertando ecos de algo que deveria permanecer adormecido.
  O primeiro a atender ao chamado foi um serviçal de pele parda, com barba branca e cabelos encaracolados que se movia como uma sombra, arrancando a rolha da garrafa com um movimento brusco. O vinho, um néctar europeu caríssimo, escorreu para a taça da mulher, um líquido rubro que parecia pulsar, como se estivesse vivo. Ele nunca permitiria que a taça de sua patroa ficasse vazia; cada garrafa era um sacrifício, um tributo à sua sede insaciável.
  — Obrigada! Agora podem se acomodar. — A ordem soou como um feitiço, e os demais serviçais se retiraram, deixando um silêncio opressivo no ar. Melissa, a matriarca, não queria ressacas no dia seguinte; ela era uma mulher responsável, mas havia algo em sua responsabilidade que parecia mais uma obsessão.
  — Carne deliciosa, senhora Grant — Henry, com a faca cravada na costela, mastigava lentamente, cada movimento calculado, como se estivesse saboreando não apenas a comida, mas o poder que ela representava. — Aposto que qualidade melhor que esta não há muito por aqui.
  — Cozinhar é uma das artimanhas dela — sussurrou o gêmeo de cabelos loiros, inclinando-se para mais perto do pálido, um sorriso ladino se formando em seus lábios. A convivência entre eles era fluida, mas havia uma tensão subjacente, como se cada palavra fosse uma dança em um campo minado. — Toda exagerada! — Ele fez uma expressão caricata, mostrando a ponta da língua, enquanto o irmão moreno, com dentes metálicos, grunhia insatisfeito, um olhar de desconfiança em seus olhos.
  Ele queria que Brian tivesse amizades melhores, mas algo em seu instinto lhe dizia que aquele rapaz era uma armadilha, uma serpente disfarçada de amigo. E, por alguma razão, ele estava determinado a descobrir a verdade.
  — Não precisa me agradecer, Henry, nossos cozinheiros da casa são os verdadeiros merecedores. — A matriarca falava com um desdém disfarçado, suas longas unhas pintadas de preto batucando na mesa de madeira, um som que ecoava como um aviso. Ao terminar sua refeição, esfregou o guardanapo nos lábios, manchando-o com seu batom carmesim, um sinal de que a beleza era uma máscara que ela não hesitaria em ajustar. — Ah, preciso retocar minha maquiagem antes de nossa sessão. Estou horrível! — Ela reclamou, observando os tons vermelhos que escapavam dos contornos de sua boca, como se a própria aparência estivesse se rebelando contra ela.
  Naquela mesa, a atmosfera estava carregada de assuntos descontraídos, e cada garfada parecia um passo mais profundo em um abismo de horror que se aproximava, como se a refeição fosse apenas o prelúdio sinistro.
  — Eu preciso tomar um banho, essa merda de dia inquietante me deixou estressado. Só fiquei fazendo dever de casa o tempo inteiro! — A indignação de Billy era palpável, suas palavras saindo como um grito de desespero em meio a um mar de frustração. Ele bocejava, seus braços se movendo em um ritmo frenético, como se tentasse espantar a exaustão que o consumia.
  — Mentiroso do caralho! — O primogênito de Melissa soltou uma gargalhada sarcástica, a risada ecoando como um eco de zombaria. Era evidente que o segundo Grant estava apenas fabricando inverdades. — Não sabia que escutar música trancado no quarto era uma atividade escolar! — A ironia cortou o ar, uma lâmina afiada que deixava marcas.
  — Uau… Também não sabia que despir visualmente o recente hóspede era algo legal para fazer enquanto não terminava de lavar as louças sujas! — Billy devolveu, a voz ríspida, os punhos cerrados sobre a mesa, as sobrancelhas erguidas em um protesto silencioso.
  — Idiota!
  — Você quem começou.
  — Obviamente fui honesto em dizer a verdade. Billy, você quase não estuda; só sabe entrar no meu quarto para roubar minha guitarra ou copiar os textos da lousa do meu caderno! — Ele deu de ombros, a frustração transbordando. — Sempre que acaba levando bronca dos professores, eu levo a porra da culpa.
  — Isso é sério? — A voz de Melissa cortou a tensão, um fio de preocupação em seu tom.
  — Ele está mentindo! Não ligue pra ele.
  — Eu mentindo? — Billy apontou o dedo indicador contra o peito do irmão, os olhos se abrindo e fechando inquietamente, como se estivesse prestes a explodir. — Você foi para a diretoria só umas três vezes essa semana!
  — Mas o que está aprontando tanto para ir na diretoria, garoto?! — Melissa contorcia as costas na cadeira, a fúria e a impaciência transbordando. — Me responda!
  — Argh, eu briguei com uma menina folgada da minha sala e xinguei o professor de matemática de “velho broxa”! — Billy admitiu, esgotando o resto de sua paciência. — Satisfeito agora, Brian?
  — Que falta de respeito… Esperava menos vindo de você. — A risada estridente de Brian assombrou o ambiente, e tanto Billy quanto Melissa suplicaram por silêncio. — É, acho que estou satisfeito.
  — Eu te odeio, babaca!
  — Nossa, me diga uma coisa que eu não saiba.
  Henry observava a briga familiar como se fosse um espetáculo grotesco, um entretenimento macabro.
  "Uh, que gente estúpida",pensou Henry, engolindo com dificuldade o último pedaço da carne que acabara de comer. Por sorte, ninguém prestou atenção em sua fala.
  — Só pra constar, lavei as louças, mesmo que tenha me distraído. Não deixei de cumprir minhas obrigações! — Os talheres de Billy caíram em seu prato, o som ecoando como um sinal de desespero. As serventes continuavam a trabalhar, ignorando as vozes barulhentas que preenchiam o ar.
  — Não te perguntei nada.
  — Já chega! Podem parar de brigar, vocês dois! — A psicanalista interveio, sua voz cortante silenciando os gêmeos instantaneamente. Ela se recusava a tolerar as discussões infantis, lembrando-se de que não eram mais crianças tolas. — Expliquei mais de mil vezes o quanto odeio esses linguajares infames. Irmãos precisam ter respeito e união uns com os outros. Não criei nenhum filho desobediente sob meu teto.
  “Só criou um moleque faltando uma parte do neurônio e outro que estou ansioso para ouvir gritar quando eu tiver a chance de fodê-lo de míseras formas. Nada fora do habitual.” Henry pensou, um sorriso malicioso se formando em seus lábios enquanto um suspiro lento escapava de seu peito, rejeitando qualquer possível estresse.
  A tensão na sala era palpável, como se o ar estivesse carregado de eletricidade, prestes a explodir em um caos ainda maior.
  — Peço perdão pela inconveniência — Brian murmurou, a voz trêmula, enquanto se recompunha, o semblante cabisbaixo como se carregasse o peso de um mundo sombrio. — Não vai acontecer novamente. Preciso me retirar. Boa noite.
  — Billy? Você não vai dizer nada? — A pergunta de Melissa cortou o ar, uma lâmina afiada em meio ao caos.
  — A única coisa que peço é respeito da parte dele — Billy rebateu, os braços cruzados, a exaustão estampada em seu rosto. — Vou tomar um banho e descansar. Acho que Henry também pensa o mesmo, certo?
  — Quem, eu? — Albarn, desatento ao alvoroço que acabara de ocorrer, fingiu se importar, mas a verdade era que pouco se fodia para aquela família nobre, suas intrigas e dramas.
  — Nosso convidado especial não precisa estar envolvido em suas brigas — Billy se virou para Henry, pedindo desculpas. O garoto apenas balançou a cabeça, um sorriso amargo nos lábios. Brigas eram música para seus ouvidos, uma sinfonia de violência psicológica que o acompanhara durante anos, orquestrada pela megera que era a companheira de seu pai. — Vocês não vão ficar para a sobremesa, meninos?
  — Estamos satisfeitos — os dois afirmaram em uníssono, a resposta ecoando como um mantra de desinteresse.
  — Então poderão comer o bolo de cerejas amanhã de manhã — disse Melissa, a voz carregada de uma autoridade que parecia sufocante. — E você, Henry? Precisa de mais alguma coisa? Daqui a pouco te chamarei para minha sala.
  — Acho que Billy e Brian estão certos; os dois merecem um repouso — Henry disse, a voz suave, mas com um subtexto de manipulação. Ele queria escapar da consulta terapêutica de Melissa, um jogo de xadrez psicológico que ele acreditava estar jogando com maestria. Mas a loira não cedeu aos seus encantos. Ele se achava esperto, mas sabia que não enganava uma mulher adulta. — A senhora também quer que eu me retire?
  — Lhe darei um tempo para se banhar e trocar de roupa — ela respondeu, a voz firme como aço. — Ficarei no aguardo. Nosso assunto pessoal é urgente.
  O ar na sala estava carregado de tensão, como se uma tempestade estivesse prestes a eclodir. As palavras flutuavam, pesadas e carregadas de significados ocultos, enquanto cada um dos presentes lutava contra seus próprios demônios.
  O caos se aproximava, uma sombra que se arrastava, pronta para engolir todos em sua voracidade. A noite prometia mais do que apenas um banho ou uma conversa; prometia revelações que poderiam rasgar a frágil tapeçaria nas vidas dos Grant, expondo os horrores que se escondiam sob a superfície.

••

  Sua mãe e irmão o exauriam completamente. Mesmo em uma família pequena, longe de qualquer parente, Brian aceitava a presença de Melissa como um fardo inevitável. Abandoná-los ou cortar os laços de união não fazia sentido, mas lidar com Billy, que se comportava como um adolescente infantil e provocador, tornava cada dia uma tortura.
  O irmão não parecia ter a idade que ostentava; aprontava no colégio, se embriagava com cerveja amarga, roubava bicicletas de valentões e frequentava shows em hideouts.
  Ele conhecia o verdadeiro significado de liberdade, uma liberdade tênue, aproveitando cada segundo da vida que lhe restava, como se soubesse que o tempo era um ladrão à espreita.
  Brian era o oposto de Billy. Odiava socializações, festas e fazer novas amizades. Respeitar quem não merecia respeito era uma merda para ele.
  Gostava de impor dominância e ordem na escola, mas raramente as pessoas queriam ser controladas por um bad boy de sobrenome Grant; seu chamado só valia a pena quando os jovens pagavam para ter acesso ao gabarito das provas bimestrais.
  No banheiro, o som avassalador de Asking Alexandria estourava na minúscula caixa de som, vibrando sobre o mármore da pia.
  A voz pesada de Danny Worsnop preenchia o espaço, transformando o banho em um ritual quase sagrado. Para ser franco, bandas de metalcore eram como um dogma religioso para ele.
  — You need a doctor, baby? You’re scared? — Brian batia a cabeça e dançava com o refrão, se divertindo sozinho, enquanto o sabão de cereja escorregava por sua pele, perfumando o ar com uma fragrância adocicada.
  Ele relaxava os músculos, as pernas afundando na água morna da banheira, mergulhando em um silêncio ensurdecedor após a última música da sua playlist, "Shades of Cool", de Lana Del Rey. As estrofes da canção, por algum motivo desconhecido, lembravam a personalidade fria e transtornada de Henry, um homem que parecia incapaz de ser consertado.
  Vivendo em tons de azul, impossibilitado de amar. Mas como explicar a generosidade que emanava de sua alma machucada? E por que, quando se juntavam, a compaixão entre eles mudava? Os pelos de seus braços se arrepiaram, a respiração enfraquecida.
  “Com licença, posso entrar? Encontrei uma toalha no chão. Acho que deve ser sua.”

  Batidas firmes e um empurrão demorado na porta revelaram a pele leitosa e pálida da mão de Henry escorada no batente. Ele segurava a toalha marrom que Brian deixara jogada no corredor, um lembrete de sua própria desordem.
  O coração de Brian disparou ao perceber que a toalha poderia ter escorregado de seus trajes. Acanhado, ele tolerou a entrada de Henry, mas decidiu não sair da banheira, fundindo-se um pouco mais na água esguia que cobria seu pescoço ossudo.
  Ele vestiu uma camiseta branca e preta, mas mesmo à distância, era impossível não notar os botões meio abertos da blusa de Henry, revelando um vislumbre tentador de um abdômen bem definido.
  O físico de Henry era robusto e atlético, resultado das corridas e exercícios impostos por Edward, seu pai. Não era culpa dele ser encorpado.
  Ao se aproximar do mármore da pia, Henry encontrou seu reflexo no espelho, a toalha dobrada ao meio em suas mãos. Mas era difícil desviar o olhar da nudez implícita do gêmeo. A água ensaboada refletia um tom róseo, e ele não conseguia evitar olhar para baixo, seus joelhos vermelhos emergindo da espuma.
  Um desejo insaciável o consumia; ele queria ver a estrutura física de Brian por completo, queria saber cada detalhe daquela anatomia que o intrigava e o aterrorizava ao mesmo tempo. A tensão no ar era instigante, como se a própria água estivesse carregada de segredos obscuros, prontos para serem revelados.
  — Er… obrigado — escapuliu um gaguejo, fazendo Brian rodopiar os olhos em constrangimento. Ele fixou o olhar no rosto de Henry, evitando a todo custo desviar para a blusa aberta, mesmo que fosse uma tarefa quase impossível. — Pode, por obséquio, virar para trás? Se não se importa, me sinto melhor tendo privacidade.
  — Claro! — Henry atendeu ao pedido, voltando-se em direção à porta.
  O Albarn virou-se para os azulejos incolores, os braços cruzados atrás das costas. Um desejo inexplicável começou a invadir sua mente, uma sede insaciável por algo sombrio.
  Ele sonhava com a possibilidade de afogar Brian na água, a vítima implorando por ajuda enquanto se afundava em sua própria desgraça.
  Ao mesmo tempo, sua imaginação tresloucada o levava a visualizar o loiro saindo da banheira, despido e coberto de sangue, tocando seus ombros e entregando-lhe um beijo.
  Mas essa inspiração “sonhadora” se transformou em um pesadelo quando risadas de uma velha enrugada e perturbada ecoaram em sua mente, asfixiando-o até a morte. A visão insana o puxou de volta à realidade, fazendo-o ignorar seus planos bizarros.
  Brian amarrava um nó no cordão da calça de moletom esportiva após vestir sua peça íntima, finalizando com uma justa camisa preta curta que expunha seu umbigo.
  Que estranho… Albarn ainda contava mentalmente quantos azulejos existiam, como se isso pudesse distraí-lo da confusão que o consumia.
  — Então… Posso olhar agora? — piscou impaciente, a ansiedade transparecendo em sua voz. — Já terminou?
  — Sim, você pode olhar.
  Henry virou-se, encarando-o frente a frente. Seus olhos brilhavam em admiração pelo garoto de estatura média, mas ele não entendia a natureza daquela interação.
  O rosto de Brian era tão puro e delicado, um semblante confuso, com as pupilas dilatadas como as de um cervo canadense preso em uma armadilha, vulnerável e à mercê de um caçador sanguinário prestes a disparar.
  — Brian.
  — Henry?
  O silêncio pairou entre eles, o pálido desejando se aproximar, mas seus pés pareciam colados ao chão.
  — Deixe pra lá, não é nada de importante. — Henry abriu a porta e saiu sem explicar, deixando um vácuo de confusão no ar.
  “O que acabou de acontecer agora?” O dedo indicador na ponta dos lábios, a respiração descompassada, Brian se sentia tomado por uma inquietante ansiedade.
  Brian decidiu seguir em frente, mas quanto mais se aprofundava em seus pensamentos sobre Henry, mais seu coração acelerava, como se estivesse prestes a ser engolido por um abismo de emoções que não conseguia compreender.

••

  O escritório de Melissa era uma sala escura e acolhedora. Sentada com os cotovelos sobre a mesa, segurando o caderno no colo, era perceptível que ela tinha fotos de Edward, de outros indivíduos ligados na ficha do garoto Albarn.
  Ela não pausou em momento algum sua leitura referente ao histórico clínico do jovem, ajeitando os óculos caídos pela ponte do nariz; folheando as cinco páginas alguma situação estava errada no diagnóstico, alegando que ele tinha depressão profunda e transtorno bipolar. Como Henry era depressivo sendo que sempre se alegrava com pequenas coisas? Bipolar? Ele não parece ser propenso a se irritar. Não acreditou nas análises dos psiquiatras, teorizou outras hipóteses sobre o comportamento dele.
  Atrapalhada por seu paciente, ajeitou sua postura na cadeira rotatória para recebê-lo na sala extensa recheada de vitrais coloridos e livros especializados em psicanálise — Sigmund Freud, Jacques Lacan, Clarissa Pinkola Estés — organizados na estante. O garoto não hesitou sentando-se no divã longe da mesa contra sua vontade.
  Dando as últimas verificadas no reflexo do espelho de bolso, deixou de se preocupar com a maquiagem voltando ao seu trabalho. Pegando um caderno para anotações retirado da gaveta, esperando que Albarn fosse reagir antes da sessão, no entanto nada disse ou declarou, assim iniciando finalmente a primeira consulta.
  — Seja bem vindo — A psicanalista cruzou as pernas suavemente enquanto abria o caderno e apertava uma das suas canetas pretas, possivelmente para tomar notas do possível novo histórico do paciente. — Antes de prosseguirmos, sabe me dizer quais remédios te medicaram?
  — Meu último profissional receitou haloperidol, fluoxetina e lítio. Tinha paranoias constantes e comportamentos agressivos. Já minhas tias me davam clonazepam para que eu pudesse dormir — medicamentos essencialmente tratados para esquizofrenia, depressão e crises de ansiedade. A descrição escrita nas fichas batiam muito com os relatos lidos.
  — Não consegue dormir? — Indagava preocupada, juntando as mãos umas nas outras. — Há quanto tempo parou com o tratamento?
  — Só existem indagações vindas de sua parte. Não quero ser o maior revelador e nem preciso dizer o quanto isso me irrita — Foi direto ao ponto, impaciente.
  — Meu trabalho se resume a isso, fui chamada para oficialmente iniciar seu novo tratamento — rebateu o pálido que calou-se instantaneamente, mesmo sabendo quantas vezes iria retrucar.
  — Parei com os medicamentos em julho por conta da validade — ele revelou, os cabelos emaranhados cobrindo um pouco da visão oceânica. — Meu sono não era regular, tive inúmeros pesadelos desde que pisei meus pés no chão desta cidade maldita.
  — Entendo — anuiu numa voz monótona, retornando a anotar mais descrições na folha em branco — Quais outros motivos o fizeram parar? Além da data de validade?
  — Meu organismo foi prejudicado, esses remédios secavam minha garganta, me deixando enjoado e tonto. — Acrescentou sem pausa — Eu tinha vontades incontroláveis de me masturbar, mas meu pênis não subia. Mesmo tentando pensar em nada que fosse prejudicial.
  — … Masturbação compulsiva, falhas no organismo. — escrevia em itálico com um lápis escuro. — Agora me diga. Sabe por que o mandei vir para minha sala, Henry?
  — Não. — Respondeu num tom tranquilo. Era previsível que ele, mais uma vez, se encontrava nas mãos de outra terapeuta, imaginando que ela talvez tentasse sedá-lo ou restringi-lo de alguma forma. — Imagino que seja sobre o rompimento familiar e meus supostos problemas mentais.
  Com uma voz articulada, doce e cativante, Melissa lidava com um adolescente peculiar. Sua postura relaxada no divã cor de areia, suas costas retas eram atípicas para alguém de sua idade.
  — Na verdade, te trouxe para minha casa para te entender melhor. — A mais velha notou a expressão abatida do jovem, absorvendo cada detalhe do escritório. — Quero que você fale o que vier à sua mente! Irei continuar com as perguntas mas também preciso que seja honesto e só me diga a verdade — Encorajou suavemente. — Faz parte do processo, e assumi a responsabilidade de cuidar de você por causa das suas tias.
  — Deixe-me adivinhar… Você também planeja me medicar, me amarrar na cama, senhora Grant? Pretende vestir uma camisa de força em mim? — Henry esboçou um sorriso malicioso, tentando fazer uma piada de mal gosto. Obviamente, a mulher não achou graça.
  — Negativo — Balançou a cabeça depois de suas perguntas desconfortáveis. Ela não conhecia-o totalmente, mas pelas palavras do hóspede, não era deveras zombaria. Suspeitou que outros doutores usaram métodos mais graves contra Albarn — Somos parceiros, nunca irei ser agressiva com você e nem o forçaria a dormir contra sua vontade.
  — Parceiros? Nós dois seremos parceiros? — Demandou sinuoso, ninguém havia dito algo daquele tipo para ele, porém tudo se remete à conquista, no entanto, tinha que fazer direito sem dar questionamentos e interrogações sigilosas.
  — Vamos nos ajudar mutuamente conforme o tratamento vai se iniciando — A psicanalista elucidou ajeitando os óculos quadrados do rosto atrevendo-se a cair. Uma carranca conspìcua e mal-encarada, focando sucintamente nas anotações pessoais — Eu diria que essa é minha forma de analisá-lo, basicamente o oposto dos outros terapeutas e psiquiatras que tiveram o prazer de atendê-lo.
  Henry sobrepôs o peso da cabeça no ombro esquerdo, um levantar de sobrancelhas junto ao sorriso desanimado no semblante contrariado. Melissa era intrometida o suficiente para cair em suas averiguações. Ela podia detectar alguma mentira sem precisar ver a cavidade bucal dele se movendo. Não a considerava ingênua como era seu primeiro primogênito, todavia seria facilmente eficaz ter aquele garoto sob seus encantos.
  Soube diretamente onde a mais velha queria chegar… Ela provavelmente tinha certeza que Yoshida Miller foi assassinado pelo Albarn; não podia deixar passar despercebido, teria que inventar a história toda. Se admitisse perderia todas as chances de estar abrigado no domicílio.
  Respirando duas vezes, ele então foi adiante:
  — Tudo bem... — Ele deu um suspiro prolongado. — Quais serão os assuntos que vamos debater de agora em diante?
  — A terapia é sua. Você decidirá sobre o que iremos debater, porém, como nosso caso é mais pessoal… Tenho uma pergunta para fazer.
  — Claro — anuiu mudando a posição, ficando de pernas dobradas umas nas outras com as mãos pousadas no joelho — O que exatamente está disposta a me perguntar?
  Melissa manteve-se em silêncio por um momento. Suas dúvidas sobre o desaparecimento de Yoshida Miller, e algo envolvido somente aos dois… Na carta que recebera dizia: “Nosso sobrinho matou uma pessoa e deitou-se no torso do cadáver. Estava acariciando, gritando em choradeiras acreditando que não tinha o atacado. Por favor, ajude-o! Estamos com medo. Não o queremos atrás das grades.” A imagem da cena perturbava só por imaginar como teria sido, encontrar o sobrinho abraçando um ser humano morto.
  — Quero que você comece me explicando... o que viu na noite em que Yoshida Miller foi encontrado morto no jardim da sua casa — Viu o rapaz hesitar num susto — Gisele e Miranda afirmaram corretamente o ocorrido, você foi encontrado chorando muito, entrando em pânico… Sabe me dizer o que houve nesse dia fatídico?
  — Oh, como você sabe disso? — Henry faltava estar trêmulo sem ar nos pulmões, o nervosismo lhe consumiu, hesitante em abordar o assunto. Uma performance teatral deveras encenada, a sinfonia de dentes branquíssimos rangendo dentro da boca, usava a lábia entristecida — Ele sofreu e não pude fazer nada. Fui um inútil.
  — Não importa como sei sobre isso — Melissa exclamou com aspereza. — Só quero a verdade e que assuma o ocorrido, Yoshida está desaparecido, o único quem sabe é você mesmo. Como ele foi atacado? Alguém entrou em sua casa?
  — Não me lembro — Rejeitou dar resposta, omitindo todo o acontecimento — Só consigo pensar no estado dele: hematomas por todo rosto e aquele sangue vermelho vibrante.

  — Sua encenação não está me convencendo do contrário.
  — E o que ganho dizendo a verdade? — O Albarn fazia uma expressão medrosa, disfarçando estar lastimado com o assunto — Como estarei provando para a senhora que não estou inventando nada?
  — A minha confiança será o seu amparo.
  — Não sei o que aconteceu! Nós dois bebemos, jogamos videogame, estudamos. E quando percebi, ele estava sem vida em meu jardim. Fiquei em choque! — Ele adotava drasticamente um desespero, que claramente levantava ainda mais tamanhas suspeitas. Porque pessoas diagnosticadas com psicose e psicopatia são experientes em enganar. Henry, por mais que não fosse confirmado seu diagnóstico, Melissa tinha certeza sobre o paciente se enquadrar perfeitamente nas características.
  — Qual a sensação de ver um cadáver pessoalmente?
  — Uma sensação horrível.
  “A sensação? Essa sensação… Oh, se eu fosse incapaz e burro o suficiente, como estou sendo agora, senhora Grant, não falaria abertamente que fora a sensação mais linda e cruel que já presenciei em toda minha vida! O corpo enfraquece, fica mais pesado e torna-se mais gelado. É como uma pintura renascentista mórbida de Jesus Cristo crucificado; onde o destaque é o sangue derramado na coroa espinhenta, entre lágrimas de piedade. Se Yoshida estivesse num quadro deste estilo, a pintura clássica seria dele deitado comigo, perdendo a vida em um jardim de corvos negros agitados, crocitando ao redor de plantas secas pela falta de água. Enquanto um punhal perfura bem fundo seu peito.”

  Henry tocou as bochechas com as duas mãos, soprando para o alto fingindo um choro. Porém queria dar um riso caótico dizendo orgulhosamente seu grande feito — o demônio que regressava em sua intenção homicida.
  — E quanto às suas tias? Elas disseram que não foi assim realmente como está contando para mim — Melissa alfinetou cruzando as pernas e braços, largando o caderno pois tinha anotado o suficiente — Vocês dois chegaram no domicílio após as aulas. Tenho a teoria que ambos estavam presentes no momento do homicídio. Parece que não se lembra por que teve um apagão? Quando acordou, notou seu uniforme sujo de sangue humano com seus dedos da destra feridos e roxos. Talvez queria protegê-lo do criminoso que adentrou em seu lar, acha que pode ser isso?
  — Faz sentido — Olhava para frente e para trás — Ele era um garoto muito magro e indefeso, talvez o criminoso que o golpeou fosse mais forte e também tenha conseguido me atacar.
  — Conte-me desde o começo! Não se preocupe, esse segredo ficará entre nós.
  — Mesmo não lembrando vai acreditar em mim?
  — Desses seus lábios não quero que saíam inverdades, Henry. Porque tenho a mera sensação de que está escondendo os reais acontecimentos, estou certa?
  — Já disse que não o matei — O Albarn se incomodou com a teimosia da mulher, visto sua atitude ele se recompôs relaxando os braços no divã — Não sei se fui eu realmente… Por favor, quero me abrigar aqui. Não sou um monstro! — implorou quase saindo de onde se localizava para ajoelhar no chão.
  — Não estou pedindo para confessar — Ela confrontou — Apenas fale, diga o que está preso dentro de seu subconsciente.
  — Certo… Eu vou contar.

  Sete de outubro de 2017
  Von Rothbart St.

  No álacre daquela tarde o sinal do último horário tocou pontualmente às duas horas e trinta minutos, permitindo que todos os estudantes descansassem após um dia cansativo e longas explicações de professores rígidos. Para surpresa do recém-chegado Henry, o relacionamento amigável com Yoshida se desenvolvia muito bem. O mais novo lia um mangá dark fantasy — Berserk do autor Kentaro Miura —, acompanhado pelo rapaz alto.
  Os dois voltariam juntos para a casa das tias de Albarn. Observador, o asiático parecia gostar tanto de leitura quanto a mãe do novato, relembrando da época que Lynda lia os livros de contos de fadas dos irmãos Grimm e poemas brasileiros. Henry sentia saudades de quando era pequeno e dormia sempre quando a falecida matriarca contava boas histórias.
  O longo tecido negro do casaco guiava Miller atentamente, como se Henry interpretasse um flautista de Hamelin, levando-o longe com seu caminhar, desaparecendo para sempre trancado numa caverna distante da civilização. Os outros estudantes circulavam nas ruas com suas bicicletas atentados pelo anseio de não voltarem para seus lares no horário.
  Sentados no beco à beira da praça, de frente para o amplo lago da cidade onde os cisnes planavam após voarem pelo céu acinzentado: a concentração de Yoshida e Henry fizeram-os contemplarem o horizonte nebuloso habitual de Swan Lake.
  A rua Von Rothbart era relativamente movimentada e agitada. Diversos cidadãos se reuniam diariamente para alimentar os pombos que pousavam nas calçadas ou nos postes. Ao verem migalhas caídas no chão — qualquer tipo de alimento — eles competiam freneticamente por elas. Um efeito vórtice surreal, famintos pelas sobras jogadas; deparando-se com humanos sem pingo de educação quando se tratava de jogar lixo ou desperdiçar comida no meio da rua
  Yoshida fechou seu mangá, decidindo iniciar uma conversa com o novato. Os dois se encararam completamente. Henry batucava os dedos na madeira do banco, demonstrando agitação demasiadamente inquieto, remexendo os sapatênis de couro. Era agradável saber o quão era importante ter uma nova amizade, porém algo a mais estava por vir — e não era nada relacionado ao um clima amoroso entre eles.
  — Como foi o seu dia na escola? — Yoshida iniciou a conversa, simpatizado com seu novo colega. Um sorriso feliz esticado em seu rosto, semelhante aos de um bonequinho fabricado por pano, com olhos, nariz, boca; costurados por linha e agulha.
  — Nada fora do comum. — O garoto transtornado inquiriu tranquilamente, fixando o céu ao mesmo tempo, voltando a interagir com o japonês — Alguns professores não foram simpáticos comigo. E o seu? Seu dia foi bacana hoje?
  — Diria que foi menos entediante como sempre todos costumam ser cada semana que passa — comentava Yoshida. Com os cotovelos sob seus joelhos devido a posição torta e desleixada. — Sou péssimo em matemática, acabei levando broncas do senhor Clyde… Quase perco minha responsabilidade de representante também, algumas coisas na escola me chateiam profundamente.
  — Imagine eu, que sou péssimo em história americana. Não me importo nem um pouco nessa porcaria de país — Albarn empolgava-se ao seu lado, em meio a risadas comprometedoras — Me interesso por literatura e arte. Normalmente costumo estudar buscando conhecimento geral de todos os artistas e quadros, quem sabe um dia eu possa te desenhar? — Uma reação tímida foi notada pelo novato da Chesterfield, o Miller não esperava intimidade tão rápido.
  — Acho que seria legal, nunca fui desenhado por ninguém — Aquela última alegria expressiva, lembrando um jovem orgulhoso jovial no meio da solitude intrínseca. — Quando morava em Kyoto, na grande maioria das vezes, meus antigos colegas pintavam quadros ou criavam origamis de papel. — Yoshida era nativo do Japão, embora seu pai fosse norte-americano oficialmente casado com sua mãe. Henry achava aquele garoto surpreendentemente esperto e interessante, gostaria de descobrir mais sobre ele cada vez mais.
  — Que legal! — soltou um riso jocoso que havia aperfeiçoado em deslizes — Daqui para frente seremos uma dupla e tanto.
  — Uma dupla de alunos excluídos? Por que não, né? — brincou o Miller de mãos na cintura em uma pose blasé. — Estou cansado desses valentões e brutamontes por aí! Odeio estar aglomerado com muita gente.
  — Soube que o maior grupo de pessoas maldosas é composto pelos atletas.
  — Com certeza, é. — Yoshida franzia a testa, coçando sua nuca por conta da gola alta de sua camisa — Chesterfield está um caos ultimamente, cada novato que pisa os pés naquela escola tudo se transforma em situações piores. Alguém precisa pôr um fim a esses problemas no campus.
  — Fico imaginando onde os adultos estão ou fazem dentro da secretaria. Será que nenhuma autoridade vai amenizar o sistema? — Albarn estreitou o olhar para baixo, visualizando o chão áspero rachado — Aposto que a secretária dá várias trepadas com o diretor depois de servir duas xícaras de café quente. — gargalhou com sua própria piada, o colega ao seu lado não esboçou reação positiva, desentendendo seu humor negro e ácido.
  — Bom… Eles são pagos para saber sobre os outros estudantes. — as palavras mínimas do adolescente denominavam certamente um desconforto e agonia enquanto ouvia Henry conversar, estava gostando de sua companhia, em contrapartida, desejava que ele não falasse muito. — Eu prefiro me importar menos com os responsáveis da escolas, são todos insuportáveis e inconvenientes.
  — É… Vou ter que concordar com você. — Henry no entanto teve uma ideia, ambos estavam sozinhos na praça. Inspecionando o lago frio e escuro, sabendo quais cisnes brancos apareciam levitando as asas penosas. — Gostaria de estudar na minha casa? — O convite levaria a consequências de um desfecho miserável… Seduzir sua primeira vítima nunca pareceu tão simples para Henry.
  — Pode ser — Automaticamente saiu de onde estava sentado, o colega mais velho fez o mesmo — Vamos antes que fique muito tarde. Preciso retornar para casa antes que eu leve uma bronca dos meus pais.
  — Ela não gosta que você saia com estranhos?
  — Você não é estranho, Henry! Estamos no mesmo colégio, vai estar tudo bem.
  “Posso não ser estranho agora, mas se nos conhecessemos antes… Você teria muito mais medo de mim. Queria poder confessar para você que este provavelmente poderá ser seu último dia na terra.” Desejou para si mesmo um adeus para Yoshida… Ele queria que fosse embora para sua casa, contudo, não foi o que aconteceu.
  — Obrigado por confiar em mim.

••

  Percorrendo o bairro Odile enquanto descontraidamente atravessam calçadas, com as mãos nos bolsos, o rapaz ao seu lado olhava para o chão, parecendo confuso e perplexo. A fobia social costumava assombrá-lo quando saía da instituição. Ao contrário de Henry, ele não era extrovertido. Estava bem familiarizado com os rostos notórios da cidade — os imaturos garotos que o humilhavam e atacavam-o verbalmente. Apesar de apenas duas semanas terem se passado, Yoshida e Henry já haviam estabelecido uma boa relação.
  Naquela altura, nada era controverso no ponto de vista do menino mais novo, ademais, o segundo rapidamente compreendeu a personalidade do asiático, afinal, ele era inteligente, atraente e carismático. No entanto, certos contratempos surgiram mesmo sem aviso, e o olhar hesitante de Yoshida em direção ao portão da casa pitoresca onde Henry morava era um deles.
  O bairro Odile possuía inúmeras residências simples e coloridas, uma vizinhança harmônica sem brigas entre os moradores. Famílias de baixa renda pairavam frequentemente nas avenidas, todos os domiciliados eram: padres, deputados, idosos, arquitetos e cristãos. Muitos nativos de outras cidades do estado de Michigan passavam por lá pelo fato das casas serem apenas de fins de semana ou férias de verão.
  Henry parou de carregar sua mochila nas costas e ofereceu-se para segurar a do colega, que parecia esgotado. Sua coluna mal estava reta sob o peso dos livros didáticos. Albarn pegou a chave do bolso e permitiu que o convidado entrasse primeiro. O casarão neutro tranquilo atrás dos portões trouxe a Yoshida um certo conforto e paz. Além de tudo, o novato foi amável ao carregar sua mochila.
  Chegando pelo jardim, pisando na grama esverdeada molhada, uma mulher de meia-idade, sua cabeleira volumosa avermelhada — envelhecendo a coloração por conta dos fios brancos — longa até o final dos ombros, pele exatamente branca e oleosa. Um ar austero, usando um sobretudo preto com seus crucifixos branco e vermelho ornavam-lhe o pescoço. Nomeada de Gisele Albarn, a irmã de família paterna, que também era uma das guardiãs legais do sobrinho embaraçoso, avistou um garoto mais novo que o pálido, ela expressou surpresa com a visita. Era algo completamente novo, nunca antes imaginado pelo garoto Albarn.
  — Olá, tia Gisele — cumprimentou a senhora cordialmente — Precisa de algo?
  — Quem é esse garoto, Henry? — apontando em direção ao jovem fitando-a confuso, resolveu virar o rosto para a esquerda — Você não nos avisou que teríamos visita.
  — Este é Yoshida, ele é meu novo amigo. — O apresentou tocando os ombros largos do visitante querendo não dar atenção para os dois — Nós vamos estudar lá em cima e nos divertir um pouco. Meu dia na escola não foi dos melhores, e a senhora e a tia Miranda estão ocupadas.
  Miranda era a esposa de Gisele, a convivência de ambas mulheres no internato construíram um relacionamento, o que era algo repudiado na comunidade religiosa. Se o lar de Deus acolhe todos seus filhos, por que não aceitariam seu amor e devoção?
  — É um prazer conhecê-la. — O Miller fez uma leve reverência à mulher mais velha. — Nós estamos no mesmo colégio, vou embora em breve. Então ficarei apenas alguns minutos.
  — Você vai mesmo embora? — Henry sentiu-se traído. — Tem certeza que deve ir cedo?
  — Sim, minha família não sabe que estou aqui. — Disse o visitante por fim. — Aceitei o convite, mas como tinha dito, preciso ir embora antes do anoitecer.
  — Bom, espero que se divirta comigo antes de sua saída — falsamente despreocupado, recusava querer que ele fosse partir. Seu sangue fervia entre suas veias. Não, não estava nada bem, na verdade para ele, as coisas iriam terminar em uma catástrofe se o deixasse ir invés de executá-lo. — Respeito seu espaço.
  Gisele, sem saber o que falar, deu de costas para os dois rapazes e saiu, deixando-os sozinhos, sumindo para longe.
  — Ela é sempre assim? — Yoshida ficou intrigado com a atitude da ruiva, que sequer os cumprimentou. — Puxa… Não queria causar nenhuma má impressão.
  — Ela é assim desde que eu era pequeno, você não tem culpa de nada — O pálido gesticulava de maneira teatral suas mãos… Cansado em esperar pelas tias decidiu sair da entrada — De qualquer forma, vamos entrando? Quero mostrar para você o meu quarto.
  — Claro, vamos. Afinal, temos que estudar.
  Na realidade, a senhora estava preocupada com as intenções do sobrinho. Ele nunca tinha trazido visitas para casa em todos esses anos. De acordo com o argumento de seu irmão, o menino mudava completamente de comportamento quando alguém além da família aparecia.
  Edward censurava os detalhes para a irmã, pois falar sobre o filho era seu assunto menos favorito, mal tinha consideração por ele então por qual motivo se preocuparia, não é mesmo? Não estragaria seu casamento por um merdinha bastardo.
  O visitante estava se destacando nessa situação como um simples jovem comum, entretanto, para Albarn, Yoshida era muito mais do que isso. Ele tinha a chance de tê-lo como um troféu, exclusivamente seu, e ninguém mais estaria presente. Nenhum ser humano além de Henry.
  Ao explorarem seus reflexos na água escura da piscina de relance, houve uma breve pausa entre os dois. As folhas alaranjadas do outono caíam e flutuavam sobre a imagem de seus rostos, criando uma visão um tanto distorcida. Era intenso e profundo encarar os olhos azuis dele, mesmo em um reflexo, mostrando ainda mais tensão.
  Balançando os carvalhos das árvores devido à bruta ventania do céu, diversas folhas corriam contra a brisa amargurada. Era sinal de que uma tempestade surgiria na terra; sob um chuvisco ìntegro.
  Henry não virou-se para conversar com Yoshida. Em vez disso, permaneceu formalmente sentado na borda da piscina profunda, enquanto o visitante imitava sua ação, sentando-se inquieto ao seu lado. O asiático seguiu seu ritmo, mesmo sabendo que não podia perder muito tempo, afinal, tinha um horário para chegar em casa.
  Ele ficou paralisado, sem saber o que dizer, sem iniciativa alguma. Parecia que a vida estava apática, nada se movia ou mudava de lugar. Sua feição estava congelada em uma expressão claramente desanimada, piscando sem parar.
  Não obstante, o pálido automaticamente foi guiado até a porta da entrada, onde a imagem de São João Neumann havia sido colocada. Albarn se ajoelhou fazendo uma oração: “Deus de amor e de bondade, cuja graça renova a vida humana a cada dia, concedei-nos, pela intercessão de São João Neumann, as forças necessárias para enfrentar os desafios que pretendem enfraquecer nossa fé. Por Cristo nosso Senhor. Amém. São João Nepomuceno Neumann, rogai por nós.” Após sua prece, o sinal da cruz entre duas a quatro vezes foram feitos. Finalmente adentrando para dentro do domicílio permitindo a entrada do convidado. Porém seu colega demonstrou hesitação ao explorar o local.
  O adolescente ignorava a existência de certos lugares, inclusive a sala escura repleta de velas, santos, crucifixos, quadros com orações escritas. Pois eram os principais cenários religiosos, o japonês deduziu que os familiares do recinto eram radicalmente devotos ao cristianismo tradicional.
  As janelas estavam cerradas, não havia televisão ou qualquer aparelho eletrônico. Duas poltronas de couro bege e um vaso acima da mesa da sala de jantar caríssimo com esvoaçantes orquídeas se abrindo.
  "Como alguém consegue viver sem isso nos dias de hoje?"O mais novo questionou, os lábios trêmulos e as sobrancelhas franzidas de agonia.
  Esquecendo-se dos cômodos e detalhes daquela casa austera, o estudante, no entanto, sentiu sua boca e garganta secarem rapidamente. Precisava beber água — a ansiedade fez sua garganta secar.
  Antes de subirem para o quarto, como Henry sugeriu, Yoshida perguntou sem delongas:
  — Será que eu posso tomar um pouco de água ou qualquer refrigerante?
  — Está com sede?
  — Sim, por favor, me dê algo para beber.
  Enfurecido com a demora e hesitação de Miller, o Albarn lhe observou de cima a baixo, gesticulando murmúrios e batendo o calcanhar do pé no chão impacientemente. Abandonou o casaco calorento no sofá, vestindo a camiseta branca com o tecido do emblema do instituto estudantil costurado no peito.
  — Achei um refrigerante de laranja. — anunciou, abrindo a geladeira ao mesmo tempo. O ar frio soprando em seus braços desnudos. — Você gosta?
  — Sim, gosto! — o pequeno sorriso deixou transparecer uma intenção maliciosa, mesmo que de forma sutil. — Vai matar minha sede, disso tenho certeza.
  — Ótimo! — exclamou satisfeito — Agora, você se importa de me dar licença? Vou pegar os copos do armário e servir as bebidas para nós.
  — Claro, mas... Você não quer ajuda?
  — Pegue a garrafa para mim, por favor.
  — Certo
  Yoshida se aproximou do armário, pegou um dos copos de vidro com cuidado sobrepondo na pia. Com a ajuda de seu colega, ele retirou as duas garrafas de Crush da geladeira, o deixando sozinho, sentando-se no sofá conforme Henry indicara.
  Era uma estratégia tentadora encontrar veneno de rato na gaveta para envenená-lo ou querer adulterar a bebida com soníferos e substâncias químicas. No entanto, o jovem resistiu em ceder às ordens de sua mente perturbada. Assim, contentou-se em fechar a gaveta, mas escondeu uma faca de cozinha atrás das costas.
  “Ele é tolo o suficiente em acreditar que vou realmente servir de consolo.” Ao encher os dois copos com o refrigerante, o garoto estava com as mãos ocupadas enquanto se aproximava de onde Yoshida estava sentado. A bebida foi entregue, mas não foi sabotada.
  O casal de mulheres religiosas havia saído para o mercado do outro lado da cidade, concedendo ao visitante se acomodar em companhia com o sobrinho. Não queria levantar suspeitas do que faria, o fogo ardendo seu instinto assassino.
  Henry era habilidoso, fazia parte de seu modus operandi: chamar um indivíduo para seus encantos, ele o convence de fazê-lo o que quer; manipulando através de sua lábia fatal, sedutora e inocente. Para realizar seus desejos nocivos.
  Ao encher os dois copos com o refrigerante, o garoto estava com as mãos ocupadas enquanto se aproximava de onde Yoshida estava sentado. A bebida foi entregue, mas não foi sabotada. Ambos fizeram um brinde tomando o refrigerante em sequência.
  — Puxa, estava sedento! — dissera o asiático, satisfeito, depois de matar a secura em sua boca. — Esse é o melhor refrigerante que já tomei em toda a minha vida. Nunca vi nenhum desses com o gosto parecido.
  — Deu para perceber — Henry balançou a cabeça de um lado para o outro, fixando-o com um olhar intencional — Achou refrescante, não é mesmo? — escorregava os dedos lentamente até a ponta fina da lâmina de sua faca escondida.
  — Com certeza. — Yoshida sorria contente enquanto colocava o copo de volta na mesa de centro. — Sua casa é bem diferente, você sabe? Essa decoração é meio abstrata.
  Albarn parava de segurar o objeto afiado debaixo de sua camisa, surpreendido com a curiosidade do adolescente.
  — Como você define abstrato?
  — Bem... — Yoshida semicerrou os olhos para as paredes decoradas. — Acho que são essas velas e cruzes ao redor da estante. Suas tias são muito religiosas!
  — O catolicismo é a estética da casa inteira. Sim, ambas sempre foram idólatras fiéis — sua voz baixa ganhou um tom mais amargo. — Desde que cheguei, elas aumentaram as orações. Acreditam que um demônio ronda essa cidade — Um riso zombeteiro saiu por impulso — Coisa de maluco, né?
  — Oh… — Yoshida estava sem saber o que comentar. — Isso é bastante mórbido, tenho que admitir.
  — Eu só acho que nada disso tem a ver comigo — o pálido enfiou as mãos nos bolsos. Yoshida ainda parecia desconfortável. — Mas também... Quem não é meio louco nos dias de hoje? Swan Lake pelos boatos, é uma cidade cheia de lendas sobre assassinos implacáveis ou demônios sobrenaturais, sei lá o que isso significa.
  Miller engolia em seco.
  — As lendas aumentam a cada época do ano, para viver aqui, é preciso ter a mente aberta — Avisou diretamente — Quer dizer, não diria que essa cidade fosse semelhante a uma Sin City.
  — Sin City?
  — É uma história em quadrinhos do Frank Miller — começou a explicar o título mencionado de uma das obras na qual havia lido nas férias — Sobre uma cidade onde só criminosos, cidadãos desamparados e personagens imperfeitos vivem. Ela é repleta de violência, sexo, morte e totalmente fascista, porque o autor insere elementos meio criminosos por assim dizer.
  — Interessante — fingiu estar entusiasmado pelos assuntos intelectuais do rapaz — Talvez eu procure um dia para ler.
  — Você tem cara de que gosta desse tipo de conteúdo — em seguida decidiu mudar o assunto — Sinceramente, acho que às vezes fico assustado com as pessoas, sabe?
  — Por quê? Quais são seus medos?
  A tensão malfeitora aumentava sucessivamente.
  — Os meus medos? — ele gaguejou, sendo intimidado — Eu não sei... Acho que meu maior medo é perder minha família. E também não poder sair de casa, odeio me sentir preso. Ah, e eu também tenho medo do escuro.
  "Escuro, perda, solidão", Henry repetia essas três palavras-chave em sua mente. Ele virou o pescoço para os lados, causando estalos. O silêncio pesado tomando conta do corredor.
  Antes que Henry pudesse seguir com seu plano, ele sugeriu que subissem para o quarto depois da breve conversa e beberagem.
  Concordando com Albarn, Yoshida pegou um de seus livros de história para estudar enquanto o outro garoto puxava a cadeira e deixava a porta do quarto aberta. Henry observava enquanto Yoshida se acomodava na cama, ligava a televisão de 22 polegadas para jogar videogame depois dos estudos.
  A matéria sobre a Revolução Francesa era entediante. Eles leram textos, responderam perguntas e assistiram a alguns documentários em um canal educativo achado pelo YouTube, maioria sendo vídeos de professores formados ou influenciadores especializados nas matérias.
  Devido a muitas horas cansativas de estudo, o céu começava a escurecer na janela, algo que não agradou o pálido. Ele estava aguardando a frustração do colega, que começou a falar sobre sua mãe ficar preocupada. Depois de uma partida rápida de Smash Bros, risadas e comentários sobre o jogo, e discussões sobre qual personagem era o melhor, a diversão teve um fim terrível, trágico e perturbador.
  Yoshida sentia seu bolso vibrar, era o seu celular com nove chamadas perdidas de sua mãe. Pedindo um momento, o japonês se levantou da onde estava sentado finalmente atendendendo à ligação.
  — Onde você está? Por que ainda não voltou para casa? — A mãe estava visivelmente preocupada do outro lado da linha.
  — M-Mãe? Espera, que horas são? — Ele havia se esquecido completamente do tempo.
  — Já são quase 20:00 da noite!
  — Desculpa, eu deveria ter avisado a senhora — suspirou, sentindo-se chateado. — Um amigo me chamou para estudar com ele.
  — Amigo?
  — Enfim, estou indo agora mesmo — concluiu.
  — Estarei te esperando. Quero uma explicação quando você chegar.
  — Vou explicar tudo para a senhora!
  Yoshida encerrou a ligação e voltou sua atenção para o colega, percebendo que por um instante Henry não estava mais no quarto.
  — Henry? — chamou. — Você ainda está aqui? — chamou novamente: — Acho que deve estar embaixo. Preciso ir embora, minha mãe está preocupada.
  Coitado do garoto... Ele nem imaginava que Henry estava se escondendo, preparando-se para ameaçá-lo. Não queria deixá-lo ir embora, precisava mantê-lo ali como isca, senão suas tias descobririam, trancafiando-o na capela dos fundos e o enchendo de medicamentos.
  Henry queria poder relembrar daquele ocorrido. Aquela noite havia sido mortal.
  Yoshida, então, pegou seus livros e os segurou nos braços, ajeitou os óculos que haviam escorregado pelo rosto, calçou seus tênis e desligou a televisão. Por fim, abriu a porta do quarto. E quando percebeu, a casa estava tão escura que mal conseguia enxergar a palma de sua mão.
  Segurando o corrimão da escada, impulsionado pelo medo que estava tomando conta de seu subconsciente, ele virou-se abruptamente para trás, achando que estava sendo seguido. No entanto, não ouviu nenhum passo. Continuou chamando por Henry, mas ele não respondeu de volta. Teria ele saído? Não fazia ideia!
  — Henry, por favor, apareça! — suplicou, descendo os degraus um por um. — Me mostre o caminho para fora!
  Yoshida estava encurralado, preso como um rato na armadilha. Não tinha a menor noção de que o amigo gentil que havia conhecido momentos atrás estava parado atrás dele com uma faca afiada pronta para perfurar suas costelas se avançasse um pouco mais.
  Henry, como um anjo da morte, tinha o rosto oculto pelas sombras e um sorriso sinistro estampado, enquanto lutava contra seus próprios demônios. Ele segurou as lágrimas. Não queria sentir pena se tivesse que matar Yoshida. Ele não tinha escolha... Não queria vê-lo partir, estava implorando para que o colega não ultrapassasse aquela porta.
  “Por favor, não vá, Yoshida”, ele arfou involuntariamente, respirando ofegante.
  — Henry… É você que está atrás de mim?
  O medo era tão evidente que Yoshida virou-se rapidamente para ambos os lados para verificar se Albarn realmente estava por perto. Seu coração batia acelerado e suas mãos tremiam quando deu um passo à frente, quase cambaleando depois de tropeçar involuntariamente.
  Ele andou, continuou a andar e parou abruptamente quando percebeu que havia alguém seguindo seus passos.
  Ao virar o rosto para trás, Yoshida foi bruscamente agarrado pela gola de sua camisa e soltou um grito estridente.
  A agressividade de Henry o pegou de surpresa. A ponta da lâmina tocou suas costas. Seus dedos gelados sufocaram seus gritos, impedindo-o de escapar.
  Yoshida lutava para se libertar, mas suas tentativas eram inúteis. O metal frio deslizava para cima e para baixo em suas costas, dominando-o completamente. Ele estava encurralado, sem opções, sem saber o que fazer.
  No entanto, um sussurro ameaçador em seu ouvido o atormentou ainda mais.
  — Fique parado — Henry avisou com aspereza, retirando uma das mãos de seus lábios para que ele pudesse respirar. — Se você se mexer, vou te rasgar aqui mesmo!
  — H-Henry? O que está fazendo? Me solta! Eu quero ir embora! Deixe-me em paz! — Yoshida falava com voz trêmula, mas o grito foi abafado pela mão de Albarn, que continuou a cobrir seus lábios. — Me solta, por favor!
  — Não há escapatória, estou fazendo isso porque quero te manter comigo… Até a morte — O pálido em tamanha agressividade desceu as escadas, de degrau em degrau com o garoto rendido, mantendo-o estático em seus braços. Eles se dirigiram até o final da sala. — Se quiser procurar um lugar para correr ou se esconder, saiba que estarei atrás de você.
  — Você não entende, eu quero ir para casa. Agradeço pelo convite! Nós nos divertimos muito, mas tenho obrigações! Juro que não vou contar para ninguém sobre nós dois, nem para suas tias, mas, por favor... Me solte, mostre-me a saída.
  — Mostrar a saída? — Henry virou o rosto de Yoshida para encará-lo, apontando a faca de cozinha sob seu queixo. Uma lágrima se formou nos olhos do garoto, que levantou suas mãos em direção ao rosto de Henry, tentando impedir o ataque. — Quem me garante que você está falando a verdade?
  Enquanto olhava para o chão, Yoshida tentou pegar sua mochila e escapar, mas foi interrompido:
  — Olhe para mim! — Henry gritou, erguendo ainda mais a faca. Seus cabelos caíam sobre suas têmporas, e seu olhar estava cheio de raiva. — Quero que você olhe para mim!
  — Estou olhando! — O asiático respondeu com voz chorosa. — Por favor, não me machuque… Tenha piedade, pare!
  Albarn abaixou a faca à medida que a tensão aumentava junto com os batimentos cardíacos. Um riso sinistro escapou de seus lábios e ele limpou as lágrimas do rosto de sua vítima, usando isso como uma forma de manipulação.
  Uma beleza inexplicável, todavia amedrontada e insalubre, a presa aos prantos implorando para ser livre. Tremendo perdendo o ar de seus pulmões, quase perdendo as cores da carne de seu corpo indefeso e maculado.
  — Você chorando… É tão maravilhoso presenciar seu desespero — Articulava em um tom autêntico e sedutor. Henry continuou a se comportar de forma perturbadora, tocando os cabelos negros do visitante tentando beijar a testa do rapaz, que se afastava gradualmente. — Preciso ter você... Você é tão excepcional. Quero preenchê-lo de dor.
  — Do que você está falando?
  — Uau, isso não está óbvio para você? — ele questionou, aproximando seu rosto do rosto assustado do outro. — Cada segundo que passei com você foi incrível.
  — Isso não justifica nada! — Yoshida o empurrou. — Henry, estou falando sério! Se você não me soltar... vou chamar a polícia! — soltou uma ameaça embora balbuciando pelo medo, apontando raivosamente.
  Yoshida cerrou os punhos e rapidamente os levou em direção ao rosto pálido de Henry, que conseguiu se esquivar. Antes que ele pudesse escapar, o sociopata atacou seu joelho. Miller gemia de dor e lágrimas continuavam a cair. Socos foram direcionados ao seu rosto. Henry estava fora de controle, sem nenhuma consideração por suas ações.
  Quando o japonês caiu para trás no chão frio, o peso do corpo de Henry o impediu de se levantar. Mais gritos ecoaram quando ele pegou sua faca ensanguentada, com a lâmina tingida de vermelho vibrante.
  Isso o excitava, o deixava em êxtase.
  Yoshida tentava reagir, mas evitava mover qualquer músculo. Henry olhava para a lâmina e depois para o jovem, tentando descobrir como se livrar do corpo. Yoshida teve as lentes de seus óculos quebradas, sua visão estava turva e seu corpo estava fraco, gravemente ferido. A visão do rapaz problemático e pálido não o deixava.
  O curioso foi Henry perceber que Yoshida ainda estava consciente e reagindo. Foi quando ele se aproximou mais do ouvido dele e declarou:
  — Yoshida... Ainda consigo ouvir sua respiração — riu com um tom nasal. — E sentir as batidas do seu coração.
  — Por favor, me deixe ir embora.
  — Fique calmo... — Henry o levantou. — Vou te mostrar a saída, vou deixar você ir embora — segurou a mão esquerda do estudante. — Você estará seguro na capela. — era onde pretendia o matar.
  Sem entender completamente o que estava acontecendo, Yoshida decidiu seguir as instruções, apoiando-se nas pernas trêmulas e com um braço apoiado nos ombros de Henry. Sentiu o toque do rapaz em seu couro cabeludo, enquanto ele segurava sua cintura fina.
  Saíram da casa, deixando a faca cair no chão da sala, e chegaram ao jardim, mesmo com Yoshida lutando para enxergar devido à sua fraqueza.
  Percebendo que Henry estava distraído, Yoshida aproveitou para reagir, dando-lhe uma cabeçada e empurrando-o ao chão.
  Ele correu, correu o mais rápido que pôde. Tentou pedir ajuda, mas perdeu muito sangue, e acabou falecendo quando um galho de árvore caiu sobre sua cabeça durante a tempestade.
  Era isso que Henry se lembrava… após desmaiar.

••

  — E quando acordei… Ele estava lá gravemente ferido, dei um grito alto e comecei a querer um mandato de socorro, mas ninguém deu ouvidos — Confessava sua história distorcida para Melissa, baseado em detalhes fabulados. Na versão dele, Yoshida havia sido morto e o assassino responsável pelo crime sumiu, no entanto… A verdadeira versão ele sabia que não tinha nenhuma ligação com o que contava, porque soube fielmente o quanto Yoshida era fraco e não resistiu por muito tempo. — isso foi tudo que aconteceu — respirava por um segundo para poder ir adiante — É tudo que consigo me lembrar.
  — …O paciente alega que, ao despertar, entrou em pânico com a visão do cadáver, ele acredita que tenha sido assaltado. Mas algo está definitivamente errado: “era um sangue vermelho vibrante.” O que isso pode significar? — Melissa ficou chocada com tantos detalhes descritos por Henry e demorou um tempo para se recompor. Ela estava fazendo suas anotações finais, listando cada relato. Era estranho pensar que alguém tão bonito e educado poderia ser mentalmente doente, em todo decorrer da história inventada por Henry… Dava para notar seu choro fingido, mas cada narrativa descritiva mostrava admiração pelo ocorrido, achando ser uma aventura.
  Diferente de assassinos em série famosos — a psicanalista Grant já atendeu: predadores sexuais, homicidas, canibais, aniquiladores, todo o tipo de criminoso que possa imaginar — o garoto Albarn não parecia ser particularmente inteligente. Era uma situação única para ela. Melissa tinha esperança de que ele pudesse mudar, pensava que talvez tudo fosse um tipo de encenação. É impossível curar um louco assim como é difícil tirar o podre de uma laranja, Henry poderia estar livre e curado, em contrapartida, a ultra violência consumiria cada fibra de seu ser.
  — Se Yoshida não tivesse sido encontrado pelas suas tias, o que você faria com ele? — Questionava a loira, enquanto o hóspede cruzava as pernas ansiosamente.
  — Como assim? — Não entendeu.
  — Você o salvaria?
  — ...Sim, deveria ter o salvado das mãos daquele desconhecido, se eu não tivesse um apagão.
  — E se o culpado for realmente você?
  — Senhora Grant, por favor, não me subestime — ajustou sua postura. Limpando a garganta — Eu nunca faria mal ao Yoshida. Acredito que ele apenas sofreu e eu não tive a oportunidade de ajudar.
  — Entendi! — A psicanalista concordou. — E como você descreveria o culpado?
  — Tenho a impressão de que ele seja um homem alto, pálido, perigoso… — Enumerou as características com os dedos — Ele o golpeou com facadas e punhos, correu para matá-lo, mas no mesmo instante uma árvore derrubou contra ele. — anunciou seu ato.
  — Uma árvore caiu sobre ele, é isso?
  — Sim. Isso é outra coisa de que me lembro.
  — Certo — ela respirou fundo. — Então, resumindo: a faca encontrada na sua sala estava com sangue, você não se lembra de todos os detalhes e estava deitado ao lado do corpo.
  — Isso mesmo — confirmou. — Eu comecei a chorar e tentei ligar para a polícia, mas minhas duas tias me impediram. Então fui mandado para cá.
  — Hum... — A terapeuta se levantou abruptamente da cadeira. — Henry, qual era a cor do sangue, de novo?
  — Vermelho vibrante.
  — Por que "vibrante"?
  — É estranho dizer, mas acho admirável e bonito. Ele estava parecendo uma pintura renascentista mórbida deitado, eu gostaria de ter tido a oportunidade de desenhá-lo. Se eu tivesse o protegido daquele acidente horrível — ele cruzava os braços. — Não me interprete mal, senhora Grant.
  — Está bem, você pode ir embora da minha sala... — Ela balançou a cabeça, ainda processando as informações. — Vamos conversar mais amanhã à noite. Você tem aula amanhã.
  — Claro, claro! — despediu-se. — Boa noite!
  — Boa noite!
  Melissa saiu da sala e se deparou com Billy, seu segundo filho. Ela observou enquanto June acompanhava o rapaz pálido até o quarto, sentindo um alívio. Decidiu chamar o segundo filho para alertá-lo sobre Henry:
  — Billy, quero que você me faça um favor a partir de agora.
  — O que foi, mãe?
  — Fique longe do Henry! — apontou o dedo para ele. — Entendeu? Longe.
  — Claro! Eu já estava pensando nisso. Estou mais preocupado com o Brian. Eles estão sempre juntos.
  — Fique de olho no seu irmão! É só isso que eu peço! — falou, preocupada. — Este rapaz está em tratamento. Você pode fazer isso?
  — Claro, mãe! A partir de amanhã vou ficar de olho neles.
  Quando Billy desejou boa noite para sua mãe e saiu, viu o outro garoto subindo as escadas. Pelo menos eles estariam seguros - pelo menos, era o que Melissa mais desejava.

Capítulo 03

  O MUNDO CONSPIRAVA CONTRA A GAROTA IMPERFEITA DA FAMÍLIA PATERNA, nascida e retirada de um lar desordenado, composto por um homem alcoólatra e uma mulher irresponsável. Após ligações para o conselho tutelar serem feitas, aos quinze anos foi obrigada a abrigar-se com seu pai, mas todo o amor e respeito eram reservados exclusivamente para a filha de seu segundo casamento — desavenças familiares… será que todos nós realmente temos? Ou somos só seres humanos quebrados em um círculo inserido em narcisismo e controle excessivo? Ela várias vezes se questionava.
  Esta era a vida de Cassandra Silverstone Rutherford, a ovelha negra da família, uma típica moça complicada e traumática, transcendendo o início da pré vida adulta embora não conseguisse ter um minuto de paz. Assim como qualquer ser humano, Cassie possuía seus defeitos. Não que odiar a socialização seja exatamente um defeito, mas aos olhos de seu pai — William Wilbur Silverstone —, era sim um problema preocupante aos seus olhos.
  Silverstone queria morar com sua avó materna, pois era a única que dava ouvidos para ela. Quando se é uma filha de pai ausente nenhum diálogo se tem, nenhum mínimo de amor e sentimentalismo é facilmente encontrado. O pai nunca demonstrou qualquer tipo de atenção na tentativa de fazê-la se enturmar com sua entediada ou a madrasta; Cassie preferia trancar a porta do quarto ouvindo música com os fones do iPod no último volume.
  A convivência com os adultos era, no mínimo, incompreendida. Permaneceu dez anos ouvindo gritos, na tentativa de a educarem, recebia puxões de orelha do padrasto depravado, chegando até a lhe bater com um cinto de couro marcando feridas cicatrizantes em suas pernas. Ele a trancava em seu quarto até que Cassie resolvesse obedecer. A matriarca, por sua vez, era o estereótipo de mulher megera, que parecia ignorar o sofrimento da filha para dar atenção exclusivamente ao seu marido — por mais estúpido que fosse.
  No entanto, sua avó era aquela que se destacava. Sempre acolhendo a neta dentro de sua casa e se esforçando para entender o ponto de vista da menina, ela era a única pessoa da família com quem Cassie conseguia se abrir e conversar sobre suas dores — pelo menos o que passava em sua cabeça.
  O tempo passou e a jovem de pele branca repleta por olheiras fundas e pinta no nariz, radiantes íris castanho-escuros e longos cabelos loiros perolados repartidos ao meio havia crescido. Seu colégio comunicou-se imediatamente para a justiça devido aos abusos domésticos e negligência familiar; infelizmente, a guarda não era permitida para sua avó, fazendo então o juiz permitir legalmente a guarda de Cassandra para William.
  Ela implorou para que pudesse viver com sua avó, mas a mulher mais velha não pôde fazer nada. As duas mandavam mensagens e ligavam frequentemente, porém Cassie teve a notícia de que ela havia falecido de infarto fulminante. Isso gerou uma profunda depressão na loira, ao longo dos anos ela enfim superou.
  Quanto a família paterna, era realmente harmônica. Uma segunda garota jovem adulta e uma esposa de aparentemente quarenta e três anos, ambas ruivas, com olhos azuis brilhantes mesmo sem a presença da luz solar, as feições salpicadas por sardas se destacavam devido ao tom de cenoura de seus cabelos. O marido possuía: curtos cabelos cor de mel crespos; barba espetada, olhos acinzentados. No entanto, a personalidade deles era fútil e desagradável uma vez ou outra.
  Lauren Wilbur trouxe sua filha, Ashley, para morar com William, e esnobava a garota loira sempre que ele saía para trabalhar. Cassie era sempre obrigada a cumprir rotinas desgastantes e responsável pela limpeza do lar, e, posteriormente; ouvia repreensões da madrasta pela “péssima” limpeza — a mãe biológica de Silverstone também pedia para que fosse organizada todavia estava mais para um trabalho escravo do que uma rotina doméstica comum. —, Ashley era a única que recebia liberdade e respeito. Cassandra terminava os afazeres domésticos sem reclamar. No entanto, Ashley achava que a meia-irmã precisava de descanso e fazia questão de ajudá-la a arrumar os quartos e lavar as peças de porcelana. Cassie sequer agradecia pois para ela, a ruiva era chata e superficial.
  As circunstâncias naquela época eram bastante peculiares. Cassie Silverstone havia sido vítima de assédio sexual por um colega de classe e o chutou nas partes íntimas numa tentativa de defesa. Ao tentar relatar o incidente ao diretor da escola, recebeu uma resposta machista diretamente do século passado: "Você é uma jovem atraente para a sua idade e garotos na puberdade não têm culpa de se comportarem assim. Quer um conselho? Você deveria se vestir de maneira mais decente se quiser evitar que isso aconteça novamente." O mais irônico é que ela estava usando o uniforme padrão da escola. Não era a primeira vez que isso acontecia; Cassie frequentemente tinha que se esquivar dos garotos, alguns pediam para que ela fosse ao banheiro com eles — frases rabiscadas em canetão permanente nas paredes: “Cassie Silverstone me deve um boquete”. “A loirinha fogosa senta muito”. “Cassie Silverstone é uma vadia tímida”. —, ou a insultavam com termos misóginos e grotescos.
  Ela relembra cada vez sobre o dia em que sua finada avó disse para ela: “Os homens não são como nós mulheres. Eles foram feitos para serem predadores e constituírem famílias, mas ao mesmo tempo são frios e podem até se tornarem egoístas quando uma mulher diz um “não” para eles. Se algum moleque merdinha te azucrinar, desça o cacete nele ou chute-o bem no saco com toda força! Assim ele não vai ter filho nenhum e não vai pagar pensão, afinal, todos os homens temem pagar pensões de filhos que não querem assumir.” Ela acreditava na filosofia dela e fazia muito sentido, através da vivência com o padrasto Cassie cresceu entendendo quão era tenebroso compreender a mente de um homem quebrado e tóxico.
  Infelizmente o garoto saiu impune e Cassie, com toda a indignação do mundo, não poupou palavras e xingou imediatamente aquele homem incompetente. O resultado foi passar mais algumas horas de sua adolescência na detenção — que já era conhecida como sua segunda sala.
  A era estudantil nunca mudou, era eternamente infernal. Não surpreendia o fato de Cassandra odiar a escola. Devido ao seu comportamento hiperativo que fugia do padrão esperado; ela era um alvo constante de bullying e piadas tolas. Contudo, engana-se quem pensa que era uma loira frágil. Diferentemente de muitas pessoas antissociais, para se defender dos assédios que sofria, Silverstone deixava emergir seu instinto agressivo e usava de xingamentos a agressões físicas para proteger sua integridade.
  Ela sequer teve bom relacionamento com os alunos. A natureza de seu comportamento agressivo teve início no quinto ano, quando Cassie precisou enfrentar sua maior pesadelo: Debra Fletcher. Foi o pior ano escolar de sua vida — devido às péssimas notas no boletim, e à contagem excessiva de faltas. — já que a mimada de doze anos se divertia humilhando crianças sob quais não faziam parte de sua classe social e Cassandra foi sua primeira e favorita vítima. Puxões de cabelo, roubo de materiais e empurrá-la da escada eram apenas alguns dos tormentos que ela infligia. Os professores não tomavam medidas cabíveis naquelas situações, se os Fletcher abrissem parcerias com verbas escolares, eles apoiavam uma boa educação liberando sua única garotinha a ter inúmeros direitos dentro da instituição.
  A loira chorava todos os dias no banheiro feminino, não aguentando mais sofrer sem motivo. Era impossível desabafar com a matriarca pois se chegasse machucada por causa dos empurrões da escada, apanhava mais injustamente. Cassie não revidava; mal tinha coragem de encarar Debra nos olhos, e por isso Debra a rebaixava. “Neste mundo, os diferentes caem, e os melhores alcançam o sucesso.” Após essa tortura psicológica, a loira passou anos planejando uma maneira de pôr um fim a tudo isso — ela não era insana o suficiente para cometer massacres e tiroteios iguais aos casos que apareciam na televisão, pobre menina, ela foi uma criança inofensiva na época.
  Foi então que Cassandra quis elaborar uma pegadinha de mau-gosto. Pegou tinta spray da garagem de sua antiga casa, comprou sangue falso — daqueles usados em maquiagens de Halloween — e esperou estar sozinha para guardar todos esses "materiais ilegais" em sua mochila.
  Sua mãe havia perguntado: “Que merda você vai fazer, garota? Saiba que se eu for convocada na direção por sua causa; vai apanhar dobrado ficando de castigo por duas semanas” Avisava apontando o dedo raivosamente, com vozes roucas pertencidas a uma fumante compulsiva.
  A filha virou-se para o campo de visão da mulher replicando o seguinte: “Estou buscando vingança! Não aguento mais ser humilhada pela filhinha de papai… Vovó Georgia me disse que quando somos destinados a sofrer, não podemos ficar calados. As meninas se defendem. Então também vou criar atitude para finalmente derrotar quem quer me destruir”. Sem reações vindas da mais velha, viu a menina sair pela porta dando adeus sem nenhum contato visual.
  A matriarca Chloe Rutherford deu de ombros, fechando a porta do domicílio numa indiferença compactada em seu semblante.

  No dia seguinte, em um surto de coragem, Cassandra pichou o armário de Debra com palavras como: “escrotinha mimada”, arrombou o armário da garota deixando lá uma cabeça de manequim com uma peruca das mesmas cores de suas madeixas, ensanguentada, rindo só de imaginar o pavor que causaria na Fletcher.
  O plano havia sido concluído, Cassie aguardou pacientemente até a chegada de Debra gargalhando com o berro agudo que ouviu em seguida. De súbito, sentiu seu corpo ser empurrado diretamente ao chão áspero do corredor, fora nesse momento que Silverstone levou o soco mais agressivo de sua vida. Todavia, não foi Debra quem ganhou a briga.
  Cassandra foi convocada para a sala do diretor, onde sua expulsão foi anunciada. Em seu rosto era possível notar lágrimas caindo lentamente, começando a chorar; estressada por aguentar o diretor gritando com ela — implorando para ele não chamar sua mãe —, mesmo após seu desabafo sobre as inúmeras vezes que havia sido vítima de bullying pela colega. Ademais nada surtiu efeitos, Chole abordava a filha desnecessariamente, opinando cruelmente que Cassie não passava de uma criança manipuladora defendendo a outra garota.
  Seu pai, obrigado a sair do emprego para também participar do conflito que sua filha mais velha causou, não testemunhou a cena naquela época. Diferente da ex-mulher, William reconhecia várias falhas em Cassie, nem sempre sendo culpa da pequena moça. Cassandra não tinha idade o suficiente para argumentar fluidamente, mas também não admitia ter errado ao sabotar e aterrorizar sua colega.
  William, que era um advogado responsável, processou a escola e estava ciente dos direitos dos alunos, sabendo que a instituição deveria prestar assistência a cada um.
  Chloe não perdeu seu tempo com toda a picuinha, saindo da sala do diretor sem pestanejar. Dava muita pena vê-la viver com uma mulher grosseira e negligente, foi naquele momento onde a mente destruída de Cassandra decidiu abrir, ela diria para os professores e autoridades que a vagabunda hipócrita de sua mãe estava fodendo com a porra de sua vida.
  Pensava naqueles longínquos anos que se encorajaria em dizer o quanto aquela família estava a maltratando, querendo ter a certeza de morar com sua avó — infelizmente seu maior desejo não aconteceu, contando a verdade tarde demais.
  Infelizmente, todas essas ações resultaram em vão. Ao final dessa história, ninguém saiu como inocente, mas também ninguém foi punido. Cassie sentiu remorso logo em seguida, no entanto, isso não foi o suficiente para provocar uma mudança em suas atitudes.
  Teve que se adaptar em diversas escolas diferentes; depois do ataque com Debra Fletcher, Cassie ouvia mais sermões de seu padrasto, forçaram-na a trabalhar aos treze anos em uma oficina de automóveis. Trabalho infantil era crime, porém ninguém queria resgatar uma adolescente, pois sua antiga vizinhança cuida da própria vida.
  Essas lembranças jamais iria esquecer.
  “Vovó… se estivesse comigo agora, me diria exatamente o que estou passando.” Releu sua última mensagem encaminhada de seu telefone, desligando o aparelho sob o peito, caindo lentamente ao colchão, um estrondo leve pelas molas fora escutado.

••

  A família Silverstone estava feliz dentro do carro, aguardando a garota mais velha se despedir de sua antiga casa. Estariam se mudando para outra cidade, William havia sido transferido, era estranho para Cassie perceber que estaria abandonado sua vida anterior; marcada por tamanhas chatices e babaquices compostas em passeios chinfrins e festas de parentes que ela não teve nenhum interesse em ver novamente.
  Tragédias e ruínas ocorreram nas últimas semanas, muitas das quais causadas pela própria Cassandra. Ainda brigava na escola ou ia para detenção, acabou de fazer dezenove anos e ainda não havia aprendido que já era uma jovem adulta.
  Lauren não suportava mais lidar com as reclamações do marido sobre sua enteada tão intensa e fechada, que só trazia inconveniência.
  Ao mesmo tempo em que a jovem se sentia apavorada com essa ideia, não sentia medo de encará-la. De acordo com Lauren, ninguém mais suportava o temperamento anormal de Silverstone. Contudo, as emoções são difíceis de serem colocadas em ordem. Ashley nunca dava preocupações, ela era sociável e a mais linda animadora de torcida do colégio.
  Deixar para trás Golden Oaks era um alívio para seu subconsciente; ela não teria mais a obrigação de encontrar as mesmas pessoas chatas. Existe algo melhor do que isso? Cassie faltava para abrir um sorriso brilhante com tudo aquilo.
  A loira usava um moletom com o capuz puxado, dando uma aura melancólica, como se estivesse em um videoclipe triste. A calça jeans exibia alguns rasgos nos joelhos combinando com seus coturnos táticos, o que não lhe conferia uma aparência muito amigável. Agora ela se conduzia ao Cadillac DeVille preto que a aguardava para levá-la para longe dali. Era um alívio se despedir, no entanto, lembranças da noite anterior a deixavam entristecida e atordoada de alguma forma.

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  Cassandra fumava tranquilamente na varanda de seu quarto, que agora estava desocupado devido aos móveis terem sido levados pelo caminhão de mudanças. Enquanto aproveitava o som apático de Radiohead que refletia suas emoções a cada estrofe, a sensação de solidão e culpa facilmente a sufocava, apertando seu coração no peito fazendo lágrimas rolarem por seu rosto. Pensando que se voltasse no tempo faria tudo diferente e ajudaria sua avó com os tratamentos médicos; ela nunca mais teve notícias de sua mãe — apagando sua existência de vez.
  William continuava agindo desinteressado pela filha, tentava chamá-la para conversar, mas Cassie sempre rejeitava seus assuntos. Ele cobrava e insistia que fosse compreensiva e entendesse que seu amor por ela era real, embora não demonstrasse. Se abandonou sem dar nenhum sinal de vida… por que caralhos ele queria aproximação dela? Ou por que não a deixou morar com sua sogra?
  No meio das entrelinhas das suas concepções, batidas na porta de seu quarto chamaram sua atenção. A loira amassou o maço de cigarros no cinzeiro, desligando seu rádio logo em seguida. Ela perguntou quem estava lá, e William pediu gentilmente para entrar. “Novamente mais uma chatice pra lidar.” Cassie fechou a janela logo rapidamente arrumando os lençóis do colchão estirado no chão, procurando uma posição confortável para se sentar e permitir que o patriarca entrasse.
  Quando o viu adentrar na quietude do dormitório, a primeira coisa que ela notou foi a expressão de desapontamento no semblante do mais velho, todavia, tudo o que conseguiu responder foi um sorriso fechado, sem humor; nenhum pingo de alegria. Evitando mostrar os dentes como de praxe. Vê-la inconformada não era mais novidade para os membros da família Silverstone.
  — O que você quer pai? — suspirou levemente favorecendo desinteresse pela discussão, sem embargo ela resolveu prosseguir — Não precisa me olhar com cara de paisagem, eu já me sinto um lixo de qualquer maneira. Desculpa por não ser igual a sua ruivinha maravilhosa.
  — A “ruivinha” é sua irmã… francamente, Cassandra — desapontado o homem falava com os braços cruzados. Will tinha ouvido vários motivos da filha por suas ações, mas ainda assim, sentia mais vergonha dela do que do diretor. Ela estava crescida o suficiente — Está se tornando cada dia mais difícil te defender. Sem contar essas suas birras infantis quando peço humildemente para ser educada e mais amorosa com a sua irmã e com minha mulher.
  — Quero que a sua velha intrometida se foda — Cassie retrucou com um tom de voz elevado. Não soube dizer se estava irritada ou apenas enfezada. — Agora, quando se trata de eu ter sido assediada e de como me sinto com essa mudança, ninguém parece se importar, não é? Eu não quis fazer isso, mas não tive escolha, já que ninguém quis me ouvir.
  — Pare de usar palavrões, menina! Pelo amor de Deus, Cassie, não se faça de vítima! Assuma seus erros e valorize o que tem! — O advogado também elevou o tom de voz e endireitou sua postura para parecer mais autoritário. — Você desafiou a autoridade, pichou um armário, danificou propriedade pública e agrediu dois meninos que são dois anos mais novos! Como quer que eu te defenda quando você não age como uma pessoa decente em nenhum momento? — Ele respirou fundo. — Você passou sua infância inteira com a vagabunda da sua mãe: te espancando, te menosprezando e deixando sozinha com um padrasto alcoólatra só ensinando o que não presta. Olhe como está segura agora…
  Foi interrompido quando a filha levantou a cabeça, os tons acastanhados das íris dilatadas, criando uma visão furiosa como se averiguasse fogueira na brasa:
  — Você me abandonou quando nasci só para não cuidar de mim. Não lembro de nenhum momento feliz ao seu lado, nunca recebi sequer um abraço seu… me deixou com aquela puta da Chole e só aparecia ou ligava para saber de mim quando ela te chamava. — A voz amena da garota calou-se dando brechas para um tom dominante, aquilo que havia contado era veementemente verídico. — Infelizmente minha avó não está aqui, sabe quanto dói não ir mais na casa de quem ama? É claro que não sabe! Amor pra você é seu trabalho e a porra do seu dinheiro porco.
  — Justificar meus erros do passado não vai tranquilizar o problema — Ignorou o desabafo da jovem, pois achava perda de tempo. Ele queria demonstrar que realmente amava sua primogênita, mas o silêncio não era exatamente um método para excluir o assunto preocupante que Cassandra propagou — Passaram-se anos, acabou. Viva o presente… droga, não faz sentido estarmos aqui. Graças às suas petulâncias, quase perdi minha esposa.
  Cassandra sentiu vontade de se encolher de vergonha. Ela não era alguém que agia como violência gratuita, isso ia contra seus princípios. Ela prezava por liberdade e um pouco de paz, queria a oportunidade de não mais repetir de ano e estudar em casa quando for se graduar numa faculdade. As repreensões sufocavam-na sem motivo.
  — Interessante, então se nós mudarmos para essa cidadezinha: Swan Lake. Fará alguma diferença? — Questionou com a sobrancelha direita erguida. Ela sabia o quão Will ficava sem argumentos, quando tratava-se de Lauren. — Sua companheira histérica vai deixá-lo? Essa decisão se baseia nas regras dela?
  — Não, essa mudança é por conta do meu trabalho, não é por conta da Lauren.
  — Tô entendendo — pôs as mãos na cintura saindo da beira do colchão que estava sentada escorada na parede fria — Acredito em você… quer dizer, em partes.
  O patriarca queria ajudá-la, dar uma chance de torná-la uma pessoa educada e completamente diferente de sua ex-esposa. Era irônico; na perspectiva de Cassie, já que sua meia irmã, apesar de ser vista como educada e doce por seus pais, escondia algo descaradamente.
  — Se não fizer diferença… teremos que abrir mão de você. Está atrasada, deveria ter finalizado o ensino médio, mas repetiu novamente — Era a vez de William ser sincero. A camisa branca o incomodando devido ao calor escaldante — já que gosta de mostrar essa sua rebeldia, sinto muito em dizer que: se não terminar a escola e não conseguir nenhum emprego, terá que morar nas ruas igual a um vira-lata sarnento.
  — Queria morar com a vovó Georgia.
  — Cassandra, sua avó está morta.
  — Ah, tá bom! Me desculpe, pai! Eu não aguento mais viver assim — vociferou. Desistindo de argumentar o que pensava a respeito — Eu odeio ter que acordar cedo e aguentar um monte de idiotas me cercando. E quanto a essa nova casa, as coisas irão continuar sendo iguais e vou me defender! Se alguém for atrevido o suficiente para me provocar, vai levar um soco por ser um safado covarde! É isso!
  — Então é esse o motivo pelo qual você continua agredindo os outros?
  — Claro que não é por esse motivo, pai! Fui criada assim, tive a obrigação de me defender sozinha, sem deixar que nenhum cretino encostasse mãos sujas no meu corpo.
  — Você pode me mostrar isso de maneira sincera e sem gritar como uma criança?
  — Não preciso mostrar para o senhor! Você parece que nunca vai entender, esses merdas só me diminuem e espalham fofocas absurdas sem sequer me conhecer! — Apesar de sua agitação, Silverstone se controlou para não gritar, gesticulando ambas mãos enquanto falava.
  — Veja só! Você está novamente se fazendo de vítima! Eu não acredito em você, garota. Assuma logo seus erros e deixe de lado um pouco as emoções.
  — Mas…
  — Já chega, Cassie. Não adianta me convencer do contrário.
  Cassandra então rendeu-se a discussão:
  — Esqueça! Vocês só sabem falar das coisas que eu apronto e nunca adianta explicar o motivo. Sempre vão tocar na mesma tecla…
  — Talvez então seja melhor não mais discutirmos sobre isso. — O advogado virou as costas. William no fundo acreditava nas palavras da jovem, mas sabia que tinha que fazer o que precisava ser feito. Embora sendo um patriarca ausente: — Lauren está sobrecarregada por causa desse seu mau comportamento.
  — Não ligo para ela. Pai, por favor, acredite em mim! — Silverstone até juntou as mãos como se estivesse implorando pela sua vida — Por que não posso terminar o terceiro ano e estudar em casa quando chegarmos lá? Não consigo suportar a ideia de sofrer diariamente em um lugar novo. Estou cansada de ter que me encaixar em cada escola!
  — Você precisa ter contato social.
  — E por que isso é tão importante?
  — Garota… você precisa de amizades, pois no futuro elas podem te garantir um bom emprego, irão entregar as melhores memórias e passeios. Amizades, nenhum ser humano sobrevive sem bom convívio com as pessoas.
  — Estamos em dois mil e dezessete — seu pai realmente não entendia mais sobre a atualidade. Após tantas transferências de colégios diferentes, ninguém gostava dela. O que era estranho, pois Cassie era branca, loira e atraente. Talvez possa ser seu estilo divergente? — As pessoas não são mais amorosas como você pensa que são.
  — Eu quero o melhor para você, Cassandra. Quero que jogue fora essa amargura guardada no peito — William se aproximava para abraçar sua filha quando percebeu a confusão em suas orbes. Cassie deu um passo para trás afastando os braços do advogado nos seus, recusando o abraço — Eu gosto de você, você é minha filha. Sei o quanto luta pelo que quer, apesar de ter vários defeitos e por não ter tido mais a minha companhia no momento em que precisava. Nossa decisão está tomada. Vamos nos mudar amanhã de manhã para Swan Lake. Você e sua irmã estarão matriculadas na melhor escola da cidade, discussões encerradas.
  O coração de William era demasiadamente mole para odiar sua primogênita — todavia, não justifica inteiramente o abandono paternal — mesmo tenha passado-se anos; acolher décadas de rancor era sempre complicado.
  Cassie infelizmente nunca chegou a saber realmente como era o primeiro casamento de seu pai, mas, de acordo com as palavras de Georgia, eles eram um casal feliz até Chole engravidar de Cassandra e entrar em profundo ódio e depressão. Ela não queria filhos. William também não queria assumir uma filha… portanto, ambos tiveram a chance de se divorciarem. Ela nasceu apenas tendo amor da falecida avó. Disso ela não pôde esquecer.
  Ashley era completamente o oposto da meia-irmã; ela adorava aprender quanto ser o centro das atenções. Nunca havia sido reprovada e raramente tinha mau desempenho ou se envolvia em discussões pelos corredores.
  Em contrapartida, estava longe de ser perfeita sempre, e era Cassie quem sabia disso melhor do que ninguém. Além de ser uma estudante linda e desejada, Ashley fazia questão de cheirar pó de cocaína no quarto e trazer o namorado atleta — agora ex-namorado — escondido para transar com ele. Provavelmente para aumentar suas chances de ser escolhida como capitã das líderes de torcida. Mas em certas situações sob quais não falava; a ruiva corria para o quarto chorando ou com manchas escuras envolta de sua clavícula. Não eram marcas de beijos, eram marcas de agressões — algum filho da puta consequentemente batia nela? Ou era apenas o quarterback em carícias selvagens exageradas?
  Após aquela conversa na qual não levou a lugar nenhum, o patriarca se afastou da filha, a encarou e relaxou os ombros. William estava inseguro, e com razão, já que sua filha no fundo nunca o perdoaria.
  — Enfim, boa noite. — Disse ele, por fim. Saindo do quarto, ecoando frases devido ao vazio do ambiente — Traga suas malas amanhã.
  — Sim, senhor!
  A conversa terminou ali, e sem perceber, a loira começou a chorar. Possivelmente estava magoada consigo mesma.

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  A claridade do amanhecer surgia lentamente no horizonte. No banco da frente, Lauren e William ouviam o rádio ligado numa estação de dark country em um volume moderado, enquanto as duas jovens dormiam no banco de trás. Cinco horas de viagem bastaram de Golden Oaks para Swan Lake, exceto carros bloqueando as vias e policiais rodoviários fazendo blitz em alguns caminhos da estrada, Lauren parava parava às vezes para ir ao banheiro ou comprar um sanduíche. William abastecia o Cadillac.
  Cassie e Ashley adormeceram no percurso inteiro, ao menos tiveram como se despedir do antigo bairro.
  Quando finalmente chegaram à pequena cidade de Swan Lake, Cassandra foi a primeira a acordar, notando a placa rústica com uma imensa escultura de pedra escura acinzentada da bailarina Odette dançando ao lado do letreiro. Através do vidro de sua janela, ela fitou: diversas lojas, cisnes voando em direção ao lago, feirantes de tralhas, árvores e arbustos.
  A maioria dos habitantes usavam longos casacos e chapéus. Policiais patrulhavam os perímetros das ruas, criando uma atmosfera sombria e sinistra na região. Cassie imaginou cenários terríveis e as sete viaturas em cada esquina explicava isso, contudo a vantagem seria poder de vez em quando matar aulas para andar de skate — melhor estar acompanhada antes.
  Durante sua exploração amálgama, Cassie, em uma fração de segundos, foi levemente interrompida pela madrasta:
  — Acordou, bela adormecida? — Lauren encarou a enteada ajeitando sua postura torta no banco. — Dê um sorriso, menina! Aqui será o nosso novo lar, olha que coisa boa? Deveria estar feliz, já que odiava a nossa antiga cidade, não? — puxava assunto gentilmente embora não gostasse de falar com a Silverstone.
  Em resposta a loira sorriu rapidamente e continuou com seu semblante sério.
  — Feliz? É… posso dizer que estou satisfeita — Cassie deu de ombros e continuou com sarcasmo: — Estou tão feliz em saber que posso me livrar de vocês por algumas horas e sair andando despreocupada com as mãos no bolso.
  — Tá certo — As madeixas curtas e cacheadas balançavam enquanto ela chacoalhava a cabeça para os lados — Só lembre-se de que ainda está vivendo sob o meu teto! Ainda está conosco e terá que ajudar em casa e me respeitar.
  Cassie notou os lábios cor de rubi de Lauren sorrindo de um modo mais perturbador do que o normal. Como de costume, ela tinha um cigarro Marlboro entre os dedos.
  A garota continuou a dar de ombros ficando calada, pegando seu iPod e fones de ouvido.
  — Fique tranquila, amor... — William tranquilizou a esposa. — Ela sabe disso.
  — A propósito… que tipo de cidade é esta? Parece que estamos morando naquela cidade fantasma: Centralia. — indagou Cassandra sem compreender absolutamente nada sobre seu novo lar — Esses policiais rondando igual formigas pelos cantos, esse céu cinza mesmo sem a presença da chuva… Não tenho certeza de que estaremos seguros vivendo nesse lugar.
  — Aqui é onde o seu pai morou quando era criança — William começou a explicar suas lembranças mínimas, os dedos batendo no volante — Meu bisavô e eu costumávamos pescar aqui no verão. De repente… uma época drástica dominou aqui. Muitos crimes e assassinatos aconteciam sem soluções, não acredito muito nessas histórias que costumam contar, mas é bom ficar atento.
  — Crimes? Então aqui não é nada seguro — criticou a garota mais velha, embora sua música estivesse muito alta em seus ouvidos — Nem fodendo que vou andar sozinha por aqui! E o “verão” simplesmente não existe, né? Já sei que estarei presa em mais um inferno estadunidense.
  — Bom… os últimos crimes que ocorreram por aqui tiveram soluções e os criminosos foram presos. Não sei dizer se haverá problemas ou alguém vai te atacar desesperadamente, como eu disse: melhor ter cuidado e sempre desconfiar.— O advogado virou o volante para a rua à direita, onde uma bela vizinhança de casas tradicionais com jardins embelezava o bairro. — Estamos no outono, então... o sol nem sempre estará brilhando.
  — Verdade, se vier algum protótipo de Edmund Kemper sair correndo com um machado ensanguentado atrás de mim e me decapitar, provavelmente vão me achar. Claro que vou confiar pra caralho! Vou mesmo pai — Ironizando sardônica, Cassie ria sem parar, mas em um instante é interrompida pela madrasta a mandando ficar calada — Beleza, parei. — cruzava as pernas. Em um sobressalto, a garota ruiva acordou agitada. Outro pesadelo? Pensava Cassandra, impaciente. Mexendo na franja comprida atrapalhando sua visão pois caía frequentemente.
  — Ash? Está tudo bem? — A primeira a notar a expressão de choque da garota foi a matriarca. — Bom dia, querida.
  — Está sim, mãe… só tive um pesadelo bobo nada preocupante — os olhos azuis piscavam incessantemente. — Oi Cassie, bom dia. Ah, e bom dia para vocês, William e mamãe — a voz fina e cordial, encantava o casal de adultos.
  — Bom dia — Cassandra revirou os olhos com certo desgosto — Aposto que deve estar sonhando com aquele ex-namorado medíocre de pau pequeno — murmurou o mais baixo possível, para que a meia-irmã mais nova não ouvisse.
  — Ignorante — Ash olhou rapidamente para Cassie antes de voltar sua atenção para o padrasto e a matriarca — Onde nós estamos?
  — Em nossa nova casa. — William estacionou o carro próximo ao portão da nova residência.
  Os Silverstone saíram do carro, aguardando enquanto Ashley e Lauren retiravam os pertences do porta-malas. O frio da cidadezinha penetrava nos rasgos das calças de Cassandra; enquanto Ashley evitava que sua saia plissada azul se levantasse. Ambas observaram um belíssimo casarão de pedra pintado de preto, com teto alto, com nove janelas quadradas e duas cadeiras de madeira no alpendre. Uma visão intrigante apesar da aparência antiquada que se comparava por casas assombradas.
  Com o molho de chaves em mãos, o homem abriu os portões de ferro conforme instruído por William. Cassie levava suas malas de roupas para dentro, enquanto Ash, ainda sonolenta, optou por sentar-se nos degraus da primeira escada, causando incômodo à loira. Esta onde apertava as mãos delicadas nas alças.
  Não teria o trabalho de levar tudo sozinha.
  — Ei, será que pode levantar a bunda daí e me ajudar? — Absteve-se por um segundo cerrando o olhar indignado para a Wilbur — Infelizmente não tenho quatro braços igual a um alienígena do Ben 10, se eu tivesse, com certeza carregava as malas de todo mundo daqui.
  — Deixe sua irmã em paz, Cassandra! — suplicou a madrasta, batendo o salto de seu scarpin de couro marrom, combinando com as peças sociais que vestia — Você não percebeu que ela acabou de acordar? Está exausta!
  — Exausta? Ela não faz merda nenhuma o dia inteiro. Sou a única que é obrigada a prestar os serviços da casa — reclamou, bufando novamente gesticulando uma das mãos com o objetivo de se expressar — Ah, espera aí? Ashley deve estar muito sobrecarregada e exausta porque não vai mais poder quicar no taco de baseball do namorado dela, né? — após soltar uma piada obscena de mau-gosto, resultou em um tapa raivoso da madrasta em seu rosto. Lauren odiava que sua enteada difamasse sua filha — Tá, tudo bem… desculpa! Porra, parece que tudo recai sobre mim, que gente insuportável.
  — Mal criada, inconveniente! — a mulher repreendeu, ordenando a enteada adentrar imediatamente na casa — Parece que quanto mais cresce vira uma moleca da sarjeta. Se dê ao respeito!
  — Lauren tem toda razão! Você é adulta, Cassie! Não é hora para brincadeiras — O patriarca se intrometeu, com as mãos na cintura. Seu relógio de pulso Rolex era visivelmente prateado — Continue seu trabalho e pare de reclamar.
  — Já aviso de antemão que não sou obrigada a carregar as coisas dela — Cassandra declarou por fim — Vou estar ajeitando meu quarto e ninguém vai me perturbar.
  — Faça o que quiser, contanto que não desrespeite sua madrasta — O homem saiu do espaço, voltando a abrir a porta de vidro da entrada, Cassie o acompanhou.
  — Céus… esse William me estressa de vez em quando — Wilbur deu um suspiro prolongado, em seguida virando a cabeça, verificando mais malas de roupas para pedir que a enteada levasse. — Ashley, querida, que tal explorar um pouco o bairro? Conhecer os vizinhos? Vai te fazer muito bem. O que você acha da ideia? — voltou para sua filha ainda cabisbaixa, a destra escorada nos seus ombros.
  — Talvez mais tarde, mamãe. — replicou a ruiva, balançando os tênis esportivos — Estou ansiosa para conhecer tudo, mas vou dar um tempinho agora.
  — Ótimo, querida — beijou a testa de sua filha, por fim conduzindo-se para dentro da casa — Continue assim. Mudanças são complicadas mas logo logo estará com novos amigos.
  Ashley teve uma noite de sono agitada. Semanas atrás começou a sonhar com uma figura desconhecida; alguém que ela nunca viu ou soubera sua verdadeira origem. A formosa esbelta líder de torcida atraía diversos olhares devido à pele leitosa e sardenta, até os seus quadris chamavam muito mais a atenção dos outros.
  A rotina dela sempre foi especial, já que costumava receber vários reconhecimentos e elogios no antigo colégio. Assim é a vida de uma celebridade colegial comum, onde a beleza muitas vezes é construída por: um corpo atlético, pílulas dietéticas e revistas de moda. Diariamente praticava atividades físicas antes dos ensaios, bebia água gelada ou quando tinha uma pausa, comia uma maçã. Para que seu organismo fosse saudável, frutas eram essenciais para começar um dia agitado.
  No entanto, Ash começou a reparar uma mudança significativa após ter sonhos enigmáticos. Geralmente se sentia fora de controle ou pirando quando essas coisas apareciam sem nem ao menos pensar sobre.
  A vida da ruiva costumava ser maravilhosa, despertando inveja em garotas inseguras de baixa autoestima. Ela tinha plena consciência disso, especificamente porque sua irmã mais velha também se encaixa nesse padrão. Contudo, essa não era a realidade quando sua popularidade começou a crescer.
  O que sua família nunca soube era os sexismos, misoginias e abusos sexuais rondando sobre ela. Sim, ela amava seu namorado da época, mas não era recíproco. Ashley infelizmente escondeu isso dos familiares desde 2015.
  Outrora efetuou-se em um dia normal escolar, quando o zagueiro e capitão do time dos Dark Eagles: Ralph Lewis. Avistou uma bela e virgem moça solitária de 16 anos sentada na arquibancada escrevendo em seu diário, mas de supetão ele a puxava pela raiz sensível de seus cabelos — sem que ninguém soubesse —, arrastando-a para dentro da cabine de auditório; tirando suas roupas, abafando os gritos de pavor, a estuprando mesmo ouvindo sua vítima implorando para que o monstro cruel parasse. Infelizmente não pôde ser salva. Aquela menina linda e feliz havia morrido, graças a um cretino que se achava o boa pinta, pensando que todas as mulheres fossem dele.
  Ela acreditava que sua primeira experiência sexual fosse romântica, especial com um cara que a amasse profundamente. Mas seus sonhos foram detonados por alguém que ela nem conhecia. Ashley correu para seu quarto chorando e gritando, arranhando seus braços com as unhas afiadas. Estava com medo de denunciá-lo para as autoridades, queria se vingar, desejava que ele fosse morto. Torturado assim como ela foi por aquele nojento imundo e pervertido.
  Após um ano ter passado rapidamente, foi perseguida por um maníaco a caminho de casa, por sorte, conseguiu despistá-lo. Todavia o espírito vingativo de vez em quando renascia nela. Ela mostraria para os homens que se um dia fossem machucá-la veriam como ela seria totalmente capaz de atacá-los sem pena.
  O relacionamento com seu ex-namorado demorou para ser saudável, não sabia realmente como era beijar alguém que gostasse dela; em sua mente ele também faria algo horrível se ela negasse. Mas o jovem tratava a namorada com amor e carinho, porém Ashley não o amava de verdade… só queria aproveitar momentos.
  Sua história também não é feliz como os outros idealizavam. Todos os dias sentia-se suja por dentro e após esconder ter sido violentada pelo zagueiro, reagiu e foi prestar queixa para as autoridades.
  Em um dia fatídico onde denunciou o predador juvenil na delegacia, os policiais pediram provas contra isso. O rapaz deu seu depoimento alegando que era inocente, dizendo que Ashley havia inventado aquela acusação séria para chamar atenção. Embora a ruiva tenha dito detalhadamente o episódio, não deram ouvidos a ela. Assim, inocentando Lewis. Um dos homens então perguntou: Contou para algum parente seu? Ela respondeu que não tinha contado, aquele policial negava com a cabeça pedindo então para que ela saísse, aconselhando-a para não dar depoimento falso, senão acabaria sendo presa em um reformatório.
  Por que era obrigatório ter uma prova? Foi uma acusação séria! Isso tudo é para inocentar um adolescente repugnante só por ser homem; e não ter culpa de ser “atraído” por alguém que não quis dar seu consentimento para ele?
  Não adiantou batalhar pelos seus direitos, queria ter contado aos seus pais, William não se importou ou perguntou do porquê ela estava chorando. Cadê a porra dos adultos? Eles não reparam nas lágrimas de uma filha ferida? Só pensavam nos empregos e como Cassandra era complicada, só se importando com eles mesmos. E quanto a Ashley? Sempre será taxada de garotinha exemplar mesmo não tendo a coragem de justificar a fodida história dolorosa que suportava nas costas?
  Ashley então preferiu seguir em frente, recorrendo a receitas para emagrecer, visitas frequentes ao salão de beleza e trocando boas notas por vício em cocaína. Todos adoravam Wilbur, mas alguém percebia seu sofrimento? Suas amigas já intervieram quando alguém a importunava?
  Wilbur estava prestes a completar dezenove anos, quase na mesma idade que sua irmã. Portanto Ash era mais madura do que Cassie, pois ela estava longe de amadurecer.
  Felizmente teve uma infância normal, nunca conheceu seu pai biológico e não estava preocupada em saber quem ele era. Mesmo assim, tinha muita pena do que Cassandra havia passado… ela lembra vagamente do dia em que a garota mostrou suas cicatrizes em algumas regiões das pernas. Dizendo que seu antigo padrasto batia nela com uma cinta.
  Ashley tentava compartilhar suas angústias com Silverstone, querendo que entendesse mais o seu lado, mas ela sabia que encontraria palavras grosseiras pois afinal continha uma raiva incontrolável pelo pai dela.
  Sentindo alívio pelo fim de sua vida tumultuada, Ashley respirou fundo enquanto recordava erguendo a cabeça, contando os carros na nova vizinhança. Seus cabelos cor de cenoura esvoaçavam ao vento, libertos do prendedor que danificava suas mechas.
  Ao falar sobre seus sonhos, Ashley não tinha conhecimento da origem deles. Ao abrir e fechar os olhos, a imagem de um rapaz alto, pálido e magro, parcialmente obscurecida por nuvens de fumaça emergia de seu subconsciente. Garotas bonitinhas como a ruiva costumam se interessar por famosos ou caras latinos, lábios rubros, sorriso branco e olhos claros; Wilbur sempre foi uma exceção. Nos seus sonhos, visualizava um garoto distinto, alguém perigoso e protetor na mesma sintonia. Onde sua sanidade fosse entregue ao um purgatório.
  Como assim? Ela gostaria de passar outro evento desagradável? Na verdade, não. Ash estava profundamente confusa em relação a isso. Ela realmente desejava um amigo, ansiava saber o significado por trás dos pesadelos e encontrar razões para sua atração por essa figura desconhecida.
  Cansada de ficar inerte, a animadora de torcida se moveu, abandonou seu local decidindo explorar a casa, pegando suas malas. Na sala, a garota sentia-se intrigada e animada ao se deparar com diversas pinturas que coloriram a decoração. Os antigos moradores da casa pareciam ter sido artistas ou algo do tipo, já que as cores escuras das paletas mal permitiam decifrar as origens das imagens. Cada canto a deixou pasma. A mobília tradicional de sua mãe estava disposta de forma espaçosa e bem organizada. Realmente, 95 pratas fizeram uma grande diferença na mudança.
  William descia os degraus da escada notando sua filha e esposa com expressões nada amigáveis à mesa. Não precisou de muito esforço para deduzir que tinham brigado novamente devido ao comportamento de Cassandra.
  No entanto, em algum momento, um sorriso escapou dos lábios do advogado ao ver Ashley, confiante de que finalmente estava livre das complicações trazidas pelos cabelos loiros. Afinal, eles tinham um futuro brilhante pela frente.
  A caçula se acomodou no sofá com a maleta no colo, suspirando e batendo os tênis no assoalho bege, resultado de sua ansiedade e da falta de ocupação no momento. Para ela, sair sozinha em uma rua que mal conhecia estava fora de cogitação. Esse comportamento contrastava com o habitual da garota, e a mãe não pôde deixar de estranhar.
  Quando Ashley se aproximou das duas para conferir o que estava acontecendo, não ficou surpresa e também não ignorou o clima tenso da família.
  Ela e suas sardas no rosto entenderam o que estava acontecendo ali, mas não viu problema em esperar um pouco antes de cumprimentar os pais. Lauren sorriu com orgulho para a filha. No entanto, ao ouvir Cassie falar novamente, o sorriso da mulher se transformou em um sorriso sarcástico. Silverstone revirou os olhos impacientemente.
  — Certo, o que vocês estão planejando fazer aqui? Vamos, desembuchem. Estou esperando. — A impaciência da loira rapidamente se transformou em desespero quando Lauren simplesmente lhe mostrou a foto da escola onde estudariam junto com uma lista de tarefas e regras. — Que diabos é isso? Vamos estudar nesse lugar estranho?
  — Vocês duas terão horários alternados! — A mulher respondeu. Cassie ameaçou se levantar, mas um olhar de Lauren a fez recuar imediatamente. — O ônibus escolar passa em frente de casa. Você estudará em período integral e depois procurará um emprego nos fins de semana. Ashley estudará de manhã e me ajudará com os serviços da casa.
  — É sério, mãe? Não poderei trabalhar?
  — Se quiser, você também poderá conseguir algum emprego — Lauren mudou o tom de voz de maneira condescendente, o que às vezes a fazia ultrapassar limites sem perceber — Mas não escapará do colégio. Disciplina em primeiro lugar, profissionalismo em segundo.
  — Então é assim com ela? — As pernas da loira saracoteiam embaixo da mesa rústica — Ashley terá vida fácil e eu ficarei na pior? Legal, estamos todos quites.
  — Nos dê boas razões para acreditarmos que você será menos delinquente daqui para frente invés de trazer mais confusões dentro do nosso lar.
  — Eu posso ter xingado o diretor naquele dia porque ele era irresponsável, mas o que aconteceu foi verdade! Um cara me assediou! — Cassie retrucou. O olhar reprovador de sua madrasta só a deixava mais irritada.
  — Não sou o seu pai, garota! — Lauren gritou impaciente — Isso não significa que você vai parar de ser a irresponsável de sempre. Estou tentando te ajudar, isso é o que posso oferecer. Se não quer aceitar, problema seu.
  — Também não precisa agir com hostilidade, querida. — William a alertou.
  — William está certo, vocês duas deveriam chegar a um acordo em vez de brigarem. Nos mudamos para cá, teremos vidas e costumes diferentes a partir de agora — a ruiva argumentou. As brigas entre as duas lhe davam dor de cabeça. — Eu também posso trabalhar nos fins de semana e reconstruir minha vida. Pensar dessa maneira é mais justo e honesto.
  A irmã mais velha ficou surpresa com o que Ashley acabara de dizer. Nunca antes na vida a ruiva havia defendido Silverstone diretamente. O que ela estava querendo? Cassie questionava consigo mesma.
  — Verdade. Então a conversa está encerrada — Cassie se levantou e enxugou as poucas lágrimas que teimavam em seus olhos. — Estou exausta, acho que vou dar uma volta pelo bairro para espairecer. Se algum babaca vier com gracinha, vou arrebentar o rosto dele.
  — Passar bem — a mulher ruiva disse por fim, ajeitando mais os cachos da cabeça.
  — Cassandra, tome cuidado. A cidade ainda é desconhecida para nós. E não ouse compartilhar informações pessoais sobre nossa família com estranhos — o pai a advertiu, repentinamente tendo uma ideia melhor. — Ashley pode ir com você.
  — Eu? — Ashley apontou para si mesma, surpresa. — Mas por quê?
  — As duas precisam ficar unidas.
  — Desde que ela não fique em cima de mim igual um carrapato, por mim não faz nenhuma diferença — a loira revirou os olhos amarrando sua blusa na cintura, revelando uma camiseta da cantora Joan Jett. — Vamos nessa?
  — Eu não estava planejando sair, mas… — ela riu sem mostrar os dentes. — Podem me dar um minuto? Preciso pegar minha jaqueta no quarto.
  A ruiva não esperava que a irmã concordasse em caminhar pelo bairro com ela. Em sua mente, esse era um começo para desabafar sobre as coisas terríveis que aconteceram. As brigas entre Cassie e Lauren eram desgastantes.
  Ela subiu os degraus e entrou no novo quarto, adoravelmente decorado em tons de rosa. A cama ampla com lençóis macios e travesseiros delicados estava exatamente onde ela esperava. O tapete felpudo também estava lá. A estética rosa dos cômodos a acalmava.
  Dobrando suas roupas e organizando tudo no devido lugar, a ruiva pegou uma jaqueta jeans preta com lantejoulas no bolso. O frio estava aumentando, e não fazia sentido sair com regata e minissaia sem um casaco elegante para lhe fazer companhia.

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  Marchando solitárias pela calçada, seguiram em direções opostas, mas fizeram um pacto para se encontrarem novamente quando se perdessem. A ruiva, com as mãos nos bolsos, informou à irmã que havia memorizado a cor da casa. Cassandra virou as costas e continuou a ouvir músicas altas em seus fones de ouvido.
  O bairro Siegfried era composto por mansões e casas de estilo gótico. Famílias de alta sociedade e as de baixa renda compartilhavam o mesmo canto, a vizinhança não era exatamente barulhenta. Enquanto andava, Ashley averiguou janelas meio abertas e cães latindo. Os vizinhos raramente saíam para o quintal, exceto para encarar as ruas.
  Naquela tranquila manhã, a garota não se sentia assustada ou receosa enquanto caminhava sozinha. No entanto, o medo dos homens permanecia desde o incidente de abuso por um dos alunos. Ela sabia se proteger e não confiava em estranhos facilmente.
  De acordo com sua experiência, homens fragilizados pela heterossexualidade compulsiva mereciam ser evitados. Ela nunca teve expectativas de tê-los e amá-los. Entretanto, achar um cara decente não estava em seus planos, especialmente porque tinha sonhos com um fantasma exatamente desconhecido.
  Com os olhos fechados, Ashley parou de andar por alguns segundos até ouvir vozes de dois rapazes. Seu medo a fez se esconder, mas logo percebeu que eram apenas dois gêmeos conversando enquanto iam para a escola. Um suspiro de alívio escapou de seus lábios, permitindo que ela continuasse sua caminhada em paz.
  A garota de dezoito anos desejava se libertar do cansaço e do peso que carregava. Sempre notou o quão exaustivo era lidar com conflitos familiares e ser considerada perfeita por sua mãe. Ela se encaixava naquele mundo e buscava a popularidade a todo custo.
  — Aí, branquinha — um molequinho de aparentemente oito anos abordou a ruiva. Quando parou para encará-lo. Percebeu um jovenzinho afro-americano, de regata azul do Lakers, calças de moletom, olhos escuros e cabelos trançados para trás — Tù é nova aqui? Cê toma cuidado, hein?
  — Oh… sou sim — sorriu educadamente — Como vai, amiguinho?
  — Tudo de boa! — Cruzou os braços contra o peito olhando-a de cima para baixo — Caramba. Você é mais alta que meu primo.
  — Richard! Pare de incomodar a moça — A atenção dela foi atrapalhada por um homem idoso sentado em uma cadeira de balanço segurando uma bengala. Ele remexia constantemente. Sobrancelhas e cabelos grisalhos, pele parda e uma voz extremamente rouca e asmática — Seja bem-vinda ao nosso bairro, meu bem, sou Alfred Smith. E esse garotinho fedelho é meu neto Richard.
  — Prazer em conhecê-los. Me chamo Ashley Wilbur, me mudei hoje para cá.
  — O prazer é todo nosso, difícil ver vizinhos brancos que sejam sociáveis com os pobres — O velho revirou os olhos de tédio. Embora sua esposa seja governanta de uma família, nem sempre os bem sucedidos do bairro os cumprimentava — Geralmente uma cambada de racistas burros só aparecem aqui, pra dizerem que o maior ídolo de futebol deles é aquele vagabundo safado do OJ Simpson.
  — Que horror — Exclamou Ashley indignada — O senhor mora aqui há muito tempo?
  — Desde meus doze anos de idade. Época dura, menina. — limpava a garganta, pois Albert tossia muito — Ah, minha esposa está chegando. June, querida! Ganhamos uma nova vizinha.
  Uma mulher uniformizada em um conjunto preto e branco com sandálias antigas se aproximava segurando duas sacolas de papelão. Um aspecto de cabelos brancos se mesclava, suas madeixas estavam amarradas em um coque desgrenhado. Sua pele era meio enrugada. Ela não perdia a classe com seu andar teatral.
  Ashley deduziu que aquela senhora fosse trabalhar em alguma residência muito nobre, seus brincos apresentavam certa beleza. Assim como suas unhas pintadas.
  — Vim trazer umas roupas que o filho da minha patroa não quer mais para o Nicholas — sobrepôs as sacolas no chão, chegando para beijar a testa de seu marido. — Ele já está na escola?
  — Nick, acabou de sair. Moleque teimoso — Resmungou. June então olhou para a nova vizinha… achando-a perfeitamente bonita.
  — Você me lembra quando tinha sua idade — Falava Hopkins para a garota — Espero que goste de nossa cidade, embora esses casos não solucionados apareçam.
  — Oh vó, cê soube que tem um cara desaparecido? Ele é da escola do Nicholas! — Richard comentava sobre o desaparecimento de Yoshida para sua avó — Tô achando que esse mano aí morreu!
  — Nada de gírias, Richard! — O avô repreendeu as falas do neto — Vá, já pra dentro. Vá.
  — Espera? Alguém desapareceu aqui? — perguntou Ashley, sem entender nada.
  — Longa história, garota. — respondeu June — Bom, vou preparar o café da manhã deles antes de voltar para o trabalho. Foi um prazer conhecê-la.
  — Certo… nos vemos por aí.
  Ashley então se retirou daquela casa, atravessando outra calçada.
  Voltando aonde esteve atenta. Quando virou a cabeça para a frente e observou a direção em que os gêmeos estavam, de repente sentiu um olhar sobre si, como se estivesse sendo observada e perseguida. No entanto, era apenas paranoia, o caminho estava deserto.
  Ao chegar a uma entrada que levava à cidade, Ashley percebeu que estava longe do caminho de casa e precisava voltar para encontrar sua irmã. Ao retornar, algo a chocou. Essa descoberta dissipou a sensação de perseguição. Uma figura distante capturou sua atenção, uma pessoa que ela não esperava ver. Ele estava do outro lado da calçada, e a revelação do rosto dela pela primeira vez foi uma surpresa.
  A garota vasculhava em busca de qualquer movimento suspeito, uma sensação pairava no ar. Continuou a andar pela calçada, ponderando se tudo não passava de uma ilusão de ótica. Logo, porém, Ashley avistou um rapaz parado nas proximidades. A personificação de seus sonhos estava diante dela.
  O rapaz enviou um arrepio por sua espinha, franzindo o rosto. A coincidência era tão aguardada que ele, de pele pálida e vestes escuras, parecia um retrato dos seus devaneios. A fumaça do cigarro que ele fumava aumentava conforme tragava, e assim eles se cruzavam à distância. O pálido de olhos azuis e rosto diabólico notou a aparência angelical daquela ruiva sardenta, com cabelos flamejantes. Tão feminina, tão delicada e, no entanto, tão confusa… seus globos azulados procurando outra imensidão azul.
  O céu estava escuro. Matizes de azul e cinza se misturavam. Enquanto seus olhares se encontravam, ela se sentiu confusa por vê-lo ali; por esse rosto familiar e desejado que preenchia sua mente. Por que essa mistura de intensidade e aflição? Poderia ele ser seu novo vizinho? E por que ele surgiu? Nunca antes Ashley havia visto um garoto tão sinistro e, ao mesmo tempo, tão belo quanto aquele estranho.
  Do outro lado, Henry também ficou impressionado ao cruzar seu olhar com o dela. A ruiva lembrava uma elfa mitológica, uma deusa insaciável. Seus lábios eram graciosos, revelando uma malícia incontrolável. Para ele, ela era a mulher mais interessante que já tinha encontrado. Embora aparentasse solidão e tristeza. O Albarn esmagou o cigarro com a sola de suas botas, avançando em direção à garota.
  Ela ansiava por falar com ele, por confirmar que ele não era apenas um furto de sua imaginação. Entretanto, movida pelo alarme, Ashley fugiu sem olhar para trás. Seu coração batia incômodo em seu peito. Ele a seguiu, mas, com sorte, ela conseguiu se esconder. Tapando a boca e mantendo-se quieta, testemunhando o garoto desistir da busca. Ele seguiu seu caminho em direção à escola, para encontrar Billy e Brian Grant.
  "Ele é real? Esse garoto não pode ser real." Ela se culpava, abraçando suas próprias pernas, tentando não chorar.
  — Ah, por que você não atendeu minhas ligações, idiota? — Cassie apareceu por trás dela, notando o cabelo da irmã entre os arbustos. — Ashley? Você está chorando? — Ao ouvir a voz de Cassandra e olhar para ela, um alívio a inundou.
  — Não estou — levantou-se, ajeitando suas roupas. — E que eu saiba, não estava te atrapalhando.
  — Certo... — A loira suspirou. — Uns garotos idiotas esbarraram em mim, um deles loiro e outro meio estranho. Quase dei uma surra neles.
  — Espere... que garotos eram esses? — Wilbur ergueu as sobrancelhas.
  — Ah, era um gêmeo e um cara esquisitão todo de preto parecendo um personagem do Tim Burton — ela descreveu os rapazes de sua forma. — Não sei, mas acho que eles estudam na escola para onde Lauren nos matriculou. — As duas irmãs então seguiram em direção à casa.
  — Entendi.
  Cassie e Ashley não trocaram muitas palavras, pois era cedo para um entendimento mais profundo. No entanto, os sentimentos da mais nova floresceram junto com seu desejo pelo desconhecido. Ela ansiava falar com o rapaz e descobrir suas intenções, torcendo para que fossem compatíveis com as que seus sonhos revelavam. No entanto, um medo latente a atormentava: o medo de estar enganada.
  Enquanto isso, Henry saiu acompanhado por Brian, seu olhar percorrendo os arredores. A figura ruiva parecia tão real... a oportunidade de conhecê-la e descobrir sua história era intrigante para ele. No entanto, ele compreendia que tudo tem seu tempo. E os encantos de Brian eram os primeiros que ele pretendia explorar.

Capítulo 04

  UMA INQUIETAÇÃO CHUVOSA E GRITANTE NO TEMPORAL NUBLADO PROVINHA DESTRUIÇÃO NA NATUREZA LÚGUBRE DE SWAN LAKE. Inicialmente entardecia-se pela amplitude do céu encoberta por turvações cinzentas que se aglomeravam no horizonte; intensificando a escuridão vespertina do nevoeiro, comovendo os moradores.
  Habitualmente, feirantes e comerciários voltavam à ativa. No entanto, os agentes começaram as deduções do sumiço de Yoshida Miller, essas sob as quais sequer foram achadas nem cinco por cento das possíveis certezas. No mínimo processo deste caso não houve pistas adequadas, afinal, a vizinhança do bairro Odile era negativamente enxerida com as histórias de outras casas de outros residentes.
  Porém, a residência Albarn Vincent esconde um mistério desde o dia fatídico do desaparecimento. Aquelas mulheres mal saíam para a rua; elas não abriram mais as janelas ou cumprimentavam as pessoas dizendo: “Deus te abençoe” quando finalizavam curtas conversas. Na realidade, Miranda e Gisele queriam privar suas vidas silenciando as provas do crime.
  A primeira tia de Henry se questionava: “por que o deixei sozinho com aquele menino?” O garotinho parecia ser muito respeitoso e amado por sua família. Ela achava que Henry não matou inesperadamente — mesmo tendo causado um homicídio por espontânea vontade — de propósito. Gisele se recusava a aceitar que seu sobrinho feriu aquele garoto. Henry sussurrava entre lágrimas; soluçando e engasgando sempre que tentava explicar. Dizendo para elas sobre um homem ter invadido a casa e matado Yoshida. Será que também saberia explicar o assoalho avermelhado por sangue humano? Esse vermelho que era exatamente igual ao manchado nas roupas do sobrinho? Gisele não era burra, pois em sã consciência soubera que se continuasse a esconder isso, sua mulher e ela contariam como cúmplices do assassinato.
  Ela se arrependia constantemente por não ter supervisionado, estabeleceu poucas regras, mas esqueceu de ter sido mais atenta, assim saberia o que realmente ocorreu. À medida que os dias corriam, o receio de saírem para as ruas aumentava. Ela não conseguia admitir que o garoto fosse um monstro.
  Melissa havia telefonado — avisando que sua análise iria fundo, suas notícias viriam em breve — contudo nenhuma novidade foi anunciada, já que a psicanalista só disse para Gisele o quão ele estava se adaptando aos poucos, sendo benevolente e intimidador.
  20 de outubro fora marcado no calendário pendurado na parede da cozinha, os dias seguiram-se adiante, entretanto, as mulheres verificavam determinados lados do jardim para que ninguém suspeitasse do odor fétido — onde o corpo da primeira vítima mantinha oculto debaixo de uma terra, circulado por vermes sugando todas as expansões de um cadáver sem cor.
  Em cada rotina matinal que seguiam, ainda clamavam o nome do sobrinho mesmo sem querer, pedindo-lhe para rezar antes das refeições, mas devido a tamanha sorte… Gisele e Miranda pensavam estar livres da perturbação.
  Investigações desenvolveram entre cada local interligado com a última aparição de Yoshida, e, desta vez, a situação se agravou para os envolvidos. Miranda auxiliou sua esposa a limpar toda a poça sangrenta unificada no assoalho; usando detergente neutro, vinagre e água oxigenada. Castigando Henry em sua capela até o momento que usariam uma pá para cavar terra para fora e enterrar o garoto inocente juntamente onde as roseiras brancas ficavam numa “tentativa” de livrar-se do corpo.
  Queimaram as vestimentas sujas do rapaz na lareira. Esconderam a arma branca que Henry utilizou, deixando os principais vestígios longe da moradia. Após soltarem o pálido, no qual fabulava preocupação e fingimento, as tias dele resolveram crer em sua mentira, assim solicitando ajuda da melhor psicanalista da região.
  Todavia, uma denúncia feita por um dos vizinhos próximo ao casal religioso veio à tona; confirmaram terem ouvido altos e histéricos pedidos de socorro naquela tempestade do anoitecer. Pistas seriam finalmente reunidas e, como contrapartida, o caso foi aberto de forma custosa, onde nada poderia ser desmentido.
  Espertando-se da cama de casal king size, Miranda e Gisele perceberam terem adormecido por muito tempo, um cochilo pesado que não dava nem para ouvir o tilintar do relógio acima do criado-mudo. De súbito, a dos cabelos avermelhados chamava por sua esposa. Miranda Vincent enfim atendeu o chamado de Albarn; ambas percebendo ter passado quase ao meio-dia.
  Atônita, a mulher de 58 anos — Miranda era dona de um obsoleto aspecto branco enevoado, nariz fino com a ponte não muito visível, sobrancelhas pretas alinhadas. O comprimento de seus cabelos negros-azulados repleto por fios ondulados que chegavam quase no final de suas largas costas; tonalidades marrons claríssimas deslumbrando as íris dos seus olhos. Seu corpo envolto por uma longa camisola vermelha carmesim — correra para a imensa janela do quarto, arrastando tais portas de madeira que atrapalhavam a visão da sacada.
  Miranda avistara minuciosamente uma dupla de detetives do FBI, acompanhados pelos policiais: paralisados em frente ao portão da residência. Miranda, inteiramente relutante naquela situação, queria poder não abordá-los. Elas não imaginaram fielmente do que já se tratava, no entanto, certamente era nítido sobre a descoberta da cena real do crime que fora acontecido.
  — Acho melhor você sair desta cama e dar uma olhada lá fora — aconselhou em meio a um pedido grosseiro, sua mulher não entendeu de primeira sobre qual era o problema —, a polícia e o FBI estão aqui!
  — O quê? Não é possível — Gisele empalidecera, tentando procurar respirar descompassada, uma… duas… três vezes! Alguém testemunhou o homicídio? Quais seriam seus destinos? — Tomara que não tenham vindo aqui por causa de Henry… maldição! Maldição! O que faremos agora, Miranda? — ofegante num frenesi desolado. Batendo os calcanhares no chão acompanhados por tremedeiras sob as largas mãos. Albarn entrava em desespero, prezando para que Deus lhe salvasse para não serem incriminadas.
  — Por favor, não se desespere! — limitava os andares circulados da parceira, num instante tornou-se estática. Vendo a outra mulher ser agarrada e sacudida levemente querendo tranquilizá-la — Querida, eles não irão desconfiar. Antes precisaremos saber mesmo se Henry estará seguro. Melissa nos proporcionou segurança, ela também pensa em nossa inocência.
  — Qual é sua ideia? A polícia vai perceber!
  — Seja inconspícua. Diga para eles que nenhuma de nós está sabendo. Assim irão embora, garanto para você. — juntou as camadas de seus lábios selando um beijo rapidamente na testa da esposa, em seguida lhe dera pequenos tapas em suas bochechas — Confie em meu plano, vai dar certo!
  Quando prestou atenção nos conselhos de Miranda, finalmente resolveu agir por conta própria, apressadamente conduziu ao seu guarda-roupas: despindo sua veste para dormir, pegando um vestido marrom longo até o fim dos joelhos encoberto por um sobretudo branco de lapela. Penteando os cabelos avermelhados, os amarrando notando os fios caídos por suas têmporas; transformando-o num coque desgrenhado.
  A mulher lavava sua face instintivamente, mentalmente suplicando por seus espíritos santos que lhe perdoassem pelo feito inadmissível — elas não eram capazes de receberem uma alternativa, a famigerada malevolência de Henry cercaram-nas através de uma enferma sepultura. Mais cedo ou mais tarde suas cúmplices não prevaleceriam, assim como o pecado pelo qual pagavam residindo em seu lar.
  Gisele encontrou sua escadaria descendo pressurosa. Entre andares barulhentos ecoando no corredor escuro outrora iluminado por velas acendidas sob a imagem sagrada da santíssima santa Maria, ela interpelou genuinamente em como teriam as denunciado, embora querendo uma chance de ocultar as informações. Obtusa, saiu da casa para o jardim, semicerrando os olhos no portão revelando a vista de dois homens atrás de uma viatura enfaixada por cores preta e branca, reconhecendo o distintivo do departamento policial de Swan Lake nas portas do veículo.
  Não precisou sanar dúvidas sobre o motivo da visita, às ações de seu único sobrinho responderam sem precisar de um amparo. O “acidente” cometido pelo desconhecido assassino — sendo de fato o pálido inegavelmente sociopata e transtornado — houvera camadas emaranhadas numa maldição. A felicidade do belo jardim florido agora encarcerado em uma alma injustamente tirada sob o subsolo da terra… a carcaça de Yoshida Miller até fora sepultada, contudo, ali ele não descansava em paz.
  Albarn tocava na textura da cruz prateada cujo os terços ônix formosamente enfeitavam os arredores de seu pescoço com o pingente cálido até a abertura de seu decote em “v”, posteriormente rezava continuando sua súplica diante ao pai, ao filho e o espírito santo. Implorando para que suas divindades atendessem seu pedido; caminhando devagar pelo cenário íngreme da residência, pressentindo as gotas d’água daquela fraca chuvarada despencando por seus ombros.
  Brevemente o zéfiro cortante levitava fios, pertencido à juba ruiva volumosa com singeleza, refletindo seu universo nefasto. Gisele era uma camponesa da idade média lutando contra maus indícios em seu jardim queimado pelas chamas: onde Lúcifer e seus outros anjos caídos rondam, seus olhos vêem a presença de Cristo afastar-se simultaneamente. Agora pertencia aos hereges selecionados em seus pecados violentos alimentados por sangue. Concluindo não ser diferente dos quais ela abordava como demônios humanos.
  Os ensinamentos do cristianismo protestante a cercavam como uma armadura de condenação, retratando o lesbianismo como uma abominação, uma expressão de amor que deveria ser silenciada.
  A Bíblia, em suas páginas manchadas de hipocrisia, gritava: “os efeminados não herdarão o reino dos céus”. Mas essa mesma Bíblia havia sido reescrita e editada tantas vezes que suas palavras se tornaram um eco distante.
  Os verdadeiros cristãos não julgam ou renunciam aos pecadores; eles buscam salvá-los.
  O casal havia renunciado a seus desejos carnais em nome de Cristo, entregando-se à castidade. No entanto, ninguém poderia disfarçar sua heresia, especialmente ao cometer o horrendo ato de enterrar um dos filhos divinos, cuja vida fora brutalmente ceifada.
  Escondendo um sobrinho perigoso, Gisele e Miranda se tornaram cúmplices de um crime que as consumia.
  Tudo para protegê-lo do horror das prisões perpétuas e das injeções letais, alimentando a ilusão de que Henry era apenas um doente mental, um ser a ser mantido aprisionado no sanatório Boulevard.
  Mas, no fundo, Gisele sabia que continuava a ser uma pecadora, tão culpada quanto aqueles que julgava.
  Deus poderia salvar os imperfeitos, mas certamente não salvaria os cúmplices de um brutal assassinato.
  Avançando atrás das grades do portão, pôde conseguir a visão dos homens para si. Ela deu abertura para ambos os detetives; rangendo um pequeno som ligeiramente perturbador do portão velho da residência, no entanto, a dupla masculina solicitou a Gisele para permanecer parada.
  — Pois não?
  — Boa tarde, senhora Albarn — O primeiro homem a se apresentar era de terceira idade, emoldurado por uma fisionomia de rosto quadrado, pele negra, uma branquíssima barba acompanhadas por bigode raso e lábios carnudos rosados. Trajando jaqueta de couro que ia quase sob o fim das coxas, uma camisa social cor vinho era visível e um redondo chapéu fedora em sua cabeça.
  Era magro, mas imensamente alto; usando uma armação Ray Ban estilo aviador de óculos escuros, não permitindo discernir a cor de seus olhos.
  — Sou o oficial Jason Carter. Faço parte da investigação estadual — Na palma de sua destra ele revelava o emblema do FBI, algo inesperado para Gisele, atenta por todos os detalhes — Fomos convocados através de uma denúncia nesse endereço. O caso Miller está em aberto… viemos com o objetivo de interrogá-la e gostaríamos que fosse breve.
  — Aquele garoto desaparecido? — O maxilar trincado denominava uma conduta aterrorizada, Miranda avisou friamente para que sua esposa fosse inconspícua com o assunto. Engoliu em seco, voltando adiante — Por quais circunstâncias esse desaparecimento os fizeram vir aqui?
  — Essa é nossa última casa para ser verificada — Anunciou Carter em uma postura ereta e autoritária, cruzando os braços involuntariamente. — Rondamos os outros domicílios, mas ninguém soube verdadeiramente onde Yoshida poderia estar.
  — Oh… sim.
  — Inesperadamente, uma testemunha alegou ter ouvido pedidos de socorro exatamente nesta casa no mesmo dia da última aparição da vítima. — O segundo homem tinha estatura baixa, acima do peso, vestindo terno preto e ostentando um bigode. Sua pele era cor de mel e seu hálito exalava aroma de café e cigarros. Ele coçava a barba incessantemente, quase não tendo cabelo algum na cabeça. — Neste exato dia, um adolescente sumiu. A família Takeshi Miller nos pediu ajuda nessa investigação, a nossa única evidência é sobre ele ter estado na casa de um “amigo”, após isso, Yoshida não retornou para casa.
  — Lamento muito por isso ter acontecido — Mesmo censurando sua opinião para os detetives, ela explicitamente negava saber mais do assunto. Querendo vê-los partirem — Esse amigo era muito próximo?
  — Não sabemos dizer senhora, pois nem a família da vítima o conhecia pessoalmente. — Disse Jason com as mãos abanadas, seu parceiro desconfiava claramente que a mulher estava mentindo descaradamente, tinha certeza que era a principal envolvida — Sinceramente, é possível que a senhora também tenha alguma informação sobre isso.
  “Oh senhor… por favor, mandem-nos irem embora daqui!” Uma onda de tremores percorreu seu organismo, torcendo para que eles fossem para longe de sua casa, nada justificaria uma tensão crucialmente intrincada.
  No anoitecer de 7 de outubro Gisele ficou cara-a-cara com o falecido rapaz jovial, agarrado aos braços do alucinado sobrinho. Ela atualmente recusou esquecer nenhum detalhe do que testemunhou — gravando na memória cada particularidade da peripécia em um turbulento vendaval; folhas outonais sobrevoando no cenário mórbido excessivamente.
  As tias de Henry voltaram para casa encharcadas tremendo pela friagem, segurando sacolas penduradas sobre os ombros, aguentando cargas pesadas devido às compras do supermercado. Todavia, Miranda e sua audição apurada pudera avistar sob distância, sombras cercadas no centro das roseiras: um coro ensurdecedor de lacrimação e dor, na medida que seus passos iam se aproximando, pôde mostrar a figura pálida em um vínculo pavoroso. Abraçando um defunto, ilustrado por feridas, o sangue espirrado em seus joelhos. O brilho das orbes sumiram tornando as pálpebras claras, além de machucados e cortes… era possível minuciosamente observar os braços frágeis agarrarem o colarinho da blusa de Henry. Um retrato figurativo de Hades admirando mais uma alma eliminada prestes a queimar no tártaro.
  Miranda pousou sua mão na de Gisele, enquanto ambas corriam aceleradamente, querendo verificar pessoalmente o motivo da choradeira alta. Encontraram o menino gravemente ferido — o crânio esmagado, costas, pescoço, pernas quebradas —, a princípio os espinhos compridos de plantas ante a garganta perfuraram bem no fundo. Metamorfoseando uma pele alva em tons frios, o aspecto sem vida! Sem o rosado das bochechas e o espontâneo sorriso, a expressão era refletida em um horror entorpecido.
  Cortes fatais adornavam sob a perna, nuca, na área do joelho; provavelmente uma artéria completamente estourada. Os ossos quebrados e flácidos. A camiseta ainda envolta do corpo defunto em farrapos, mas o espantoso era como o sociopata jovial esboçava reação de espanto porém negando largar sua vítima. Um sentimento vagarosamente funesto.
  Não obstante, a figura de aparência pálida ajoelhou-se ao lado do corpo, deitado no imenso espaço do gramado. As longas mãos leitosas sobrepostas em ambas coxas, lágrimas rolavam por seu rosto ao mesmo tempo que afagava os fios de cabelo do rapaz outrora cheio de vida.
  Henry suportava o hircismo exalando do recém cadáver, as roupas de Albarn manchadas de sangue, seus dedos magros levemente arroxeados evidentemente pelos golpes. Ele agressivamente empurrou os espinhos cortantes para fora da goela de Yoshida para longe; apenas admirando melhor o garoto repousando eternamente.
  Antes de deitar sua cabeça no dorso de um finado Miller, ele ponderou, cuidadosamente, todas suas concepções alucinógenas e dementes. Henry beijava a testa incolor, entretanto, murmúrios e gemidos amenos conseguiram se fazer ouvir: “Eu vou atrás do homem que te machucou. O importante é que estaremos juntos agora, te prometo Yoshida, eu te prometo.” A voz, inicialmente baixa e confusa, se transformou num timbre irreconhecível. Quem assistia aquele ato mais crescia um medo resplandescente. Gisele recusou a se compactuar com aquela situação, pensando como lidaria.
  Era complicado deduzir se o sobrinho delirava ou realmente imaginava conforto e alívio em algo que não possuía vida. Mais os dígitos enredam os fios castanhos, numa cena tão repulsiva e chocante que mal se podia conceber.
  A mulher Albarn hesitou por um momento relembrando do insalubre devaneio, antes de voltar à realidade e continuar respondendo os agentes. Querendo ou não, assumir a verdade nem sempre era um erro. Contudo desistiu desta alternativa, novamente voltando a mentir.
  — Henry… por que você fez aquilo? — murmurou, olhando de um lado para o outro, paralisada e embasbacada — O meu sobrinho, ele… ele foi quem…
  — Está tudo bem? — preocupado com o estado da mulher, Jason pousou as mãos nos ombros dela. Notou uma respiração dificultada, quase em meio a uma crise de ansiedade. — Por favor, senhora, um garotinho deve estar em perigo e precisamos que nos responda. Por acaso o seu sobrinho também conhecia Yoshida?
  — Não, não mesmo — sacudiu a cabeça negativamente.
  — Tem certeza?
  — Absoluta, meu sobrinho não está mais conosco.
  — Quem está morando com você, atualmente?
  — Minha esposa.
  — Posso estar sendo hipócrita mas… nos disseram que eram cristãs. Pelo que sei, vocês abominam relações homoafetivas — Embora a hipocrisia infame em sua fala, Jason não estava errado. Os religiosos de Swan Lake sempre foram extremistas e radicalistas, desde épocas notórias — Estou certo?
  — Não acho isso um assunto relevante para se discutir — argumentou Albarn — Miranda e eu nos apaixonamos antes de nos conhecermos diante de Deus.
  — O seu sobrinho esteve morando com vocês, por quê? — O outro detetive, continha-se impaciente. Não confiava naquela pessoa — Qual o nome dele?
  — Christian, não precisa ser tão incisivo — Jason interveio. Repreendendo seu parceiro.
  — Meu irmão estava com problemas de saúde, não tendo condições de cuidar dele. Então fomos obrigadas a mantê-lo em nosso lar — inventou a primeira história que passou por sua cabeça. Voltando a responder Christian — Meu sobrinho se chama Henry. Ele tem dezoito anos, cuidamos dele por muito tempo.
  — Certo — Os detetives ergueram os cenhos, finalmente indo direto ao ponto — Gostaríamos de verificar sua residência por um momento. Nos concederia a permissão?
  Gisele engoliu em seco, o maxilar trincado e os lábios sendo mordiscados.
  — Podem entrar, vou servir café.
  — Prometo que não iremos causar transtornos — Decretou Carter, avançando um passo à frente. — Queremos obter mais informações sobre esta casa.
  — Acredito que temos muito para discutir — os portões foram totalmente abertos, e Albarn solicitou a entrada dos detetives, teorizava mentalmente o que diria para eles.
  — Você pode confiar em nós — Os dois disseram em uníssono. — Compreenderemos seu ponto de vista.
  Guiando os homens em direção ao alpendre de seu casarão, entre eles certas análises foram feitas. Christian rondava os olhares para diferentes lados do recinto, em contrapartida; teve uma atenção focada sob a piscina do quintal com a água podre há dias, sequer fora feita uma limpeza. Os restos das plantas cercavam metade do espaço, tornando um vislumbre abstrato assim como uma pintura feita por criança. Onde o papel era escuro mas riscado por um giz de cera.
  Jason manteve o semblante entusiasta no canteiro de rosas brancas e vermelhas, porém por um instante arfou quando subiu um cheiro desagradável: foi tossindo consecutivamente, portanto, não teve muito sucesso no momento que procurava por ar. E pelas suas experiências, aquele odor não era comum… era um odor de algo morto, análogo como carne estragada fora do congelador.
  — Céus! — exclamava a mulher, tentando impedir que os visitantes examinassem da onde estava vindo o cheiro — Deixe-me ajudar o senhor — rápida como um pulo felino, Gisele afastava Jason do ambiente.
  — Oficial Carter? — O detetive prodígio reconheceu a falta de ar vinda pelo mais velho. Ignorando a dona da casa resolveu amparar seu parceiro de investigação — Puta que pariu! Que cheiro é esse? — pigarreou tampando as narinas, afastando-se também do local.
  Após quatro segundos, o afro-americano voltou a respirar.
  — Estou bem, estou bem — Arfava dificultado, quase lhe dando refluxo. Os óculos querendo cair do rosto, revelando olhos castanhos-escuros.
  — Nosso cãozinho recentemente se foi… — Gisele arrumava um clássico pretexto para que nenhum deles desconfiasse, os cotovelos juntamente colados na barriga — Ainda não fizemos um enterro decente para ele.
  “Isso não é cheiro de animal… É cheiro de um ser humano” Christian Braxton pensou aflito, obviamente naquela casa jazia um corpo enterrado.
  — Meus pêsames pelo seu cachorro — Jason queria novamente investigar aquela área, estava intrigado e suspeitando claramente que Yoshida estava lá — Enfim, vamos iniciar o interrogatório.
  Logo em seguida o outro investigador reagiu de uma maneira diferente:
  — Espera? Nenhum vizinho reclamou de mau-cheiro vindo de seu quintal? — indagando em uma postura séria. Christian esperava aquela religiosa confessar, mas foi em vão. — Que eu saiba existe um cemitério de animais por aqui.
  — Bom, nós… não tínhamos dinheiro para um funeral decente. — olhou para o lugar, voltando a conversar com Jason e Christian — Então decidimos enterrá-lo aqui. Para que sua alma viva conosco.
  — Certo… — É, realmente nada estava bem, ambos os detetives saíram para fora do quintal. Christian ainda cabisbaixo, teria muitas pistas contra Gisele Albarn — Vamos logo dar início ao seu depoimento.
  Horas depois todas as perguntas foram respondidas, Gisele acreditou na possibilidade de sua prece ter sido escutada. Contudo, teria que ser mais cautelosa. Eles certamente tinham razão, algum vizinho reclamaria do cheiro.
  Jason e Christian entraram na viatura questionando e arrependidos por não terem ido examinar aquela área, Braxton precisou novamente dar uma analisada profunda nas perguntas que foram gravadas no toca-fitas.
  “Neste dia estava fora de casa… Só minha mulher e meu sobrinho estavam presentes. Não ouvimos gritos, espero que esse garoto esteja bem. Obrigada pela atenção.” A reprodução da fita rodando no walkman, o prodígio Braxton voltava e pausava repetidamente. Ela não estava falando a verdade — descobriria futuramente.

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  Quando as aulas maçantes finalmente acabaram, todos os alunos de Chesterfield iam aproveitar um tempo livre nos dormitórios. O ambiente masculino da instituição não diferia muito do feminino.
  A principal exceção era a disposição desorganizada dos quartos e a falta de limpeza nos banheiros. Tudo estava desordenado, e o cheiro desagradável era ainda mais intenso do que se poderia imaginar. Muitos estudantes — exceto os habitantes da cidade — eram novatos elitistas e filhos delinquentes de famílias negligentes, sendo o único e pior colégio rígido dos Estados Unidos.
  Felizmente os estudantes eram permitidos a passar noites no campus. Tendo benefícios de reforços e aulas extracurriculares, no entanto, ninguém era capaz de impedir festas clandestinas que rolavam entre o grupo de jogadores e líderes de torcida: alcoolismo, drogas ilícitas, música alta e contatos sexuais. Só transmitiam problemas estressantes.
  No mundo privado dos garotos muitas brigas e sons estridentes de televisores ecoavam pelos corredores, enquanto os grupos tribais reuniam-se para dividir cigarros e lanches comprados da lanchonete local. Às vezes jogavam conversa fora e zombavam uns com os outros, algo relativamente normal em sua natureza.
  Em um dos penúltimos quartos do corredor, Henry estava deitado no colchão macio de uma cama feita de madeira, observando o teto claro. Sentia-se entediado apenas focando seus pensamentos mais impuros em Brian; para ser mais específico, relembrava dos breves momentos juntos e da descoberta feita naquela pacata manhã. No entanto, outra parte de sua mente estava fixada na garota ruiva que havia cruzado mais cedo.
  Henry lembrava vividamente dos olhos assustados dela, como um coelho introspectivo perdido numa floresta. A moça aparentava ser fascinante e sensível. Era a peça que faltava para que seus planos finalmente se desenrolassem e saíssem de sua mente. Além disso, ele acreditava que seria interessante ver seu rosto inocente transformar-se em uma ameaça, algo que ele sentiu ao ser tornado pela violência.
  Apesar do gêmeo louro ser belíssimo e atraente, seu corpo frágil e delicado era comparado ao de um personagem de livro arcaico. O Albarn facilmente era hipnotizado no movimento dos quadris de Brian, querendo ansiosamente tê-lo sob seus domínios de insalubridade.
  — Oi, Henry! — Os devaneios do pálido foram interrompidos quando Grant entrava no dormitório esdrúxulo. Era tarde e justamente na hora de ir para casa — Não tenho atividades extras hoje, então voltarei para casa. Iremos embora juntos.
  — Onde está seu irmão? — O hóspede perguntou pelo paradeiro do outro gêmeo.
  — Não faço a menor ideia — replicou suspirando, pois Billy lhe dava dor de cabeça — Ele me veio com uns papos sobre eu não confiar em você, além de ser um crianção… quer mandar em mim! Vê se pode uma coisa dessas — De fato, Billy tentou obedecer a sua mãe, ela sabia de algo que os irmãos não estavam cientes em saber. O segundo Grant alertou Brian, alegando sobre Henry não ser uma figura confiável; porém o loiro sequer deu ouvidos.
  — Deve estar com ciúmes — mudando a posição na cama, sentou-se desleixado fixamente perdido na imensidão esverdeada quase fluorescente das íris do rapaz em sua frente — Te garanto que sempre estará seguro comigo. — obviamente aquela frase estava carregada de falácias.
  — Me sinto melhor conversando com você — Brian foi sincero — Só não entendi uma coisa ontem a noite.
  — Como assim?
  — Enquanto estávamos no banheiro, senti que iria me dizer algo… daí saiu de lá, foi estranho não vou mentir.
  — Ah, sobre isso — Murmurou coçando atrás da cabeça, como se tivesse uma pulga atrás da orelha — Sei lá, queria puxar assunto, mas estava tão perdido que não soube mais do que falaria.
  — Entendi — foi se acomodando, vendo o hóspede dar um pequeno espaço para que ele sentasse ao seu lado. Ao sentar mudou brevemente de assunto — Caramba estou recordando agora daquela esquisita que tentou bater na gente. Você viu como era maluca? Provavelmente é nova no bairro. — Se referiu à Cassandra, sua recente vizinha. Ela andou pelo bairro se chocando com os garotos, Brian teve o prazer de zombar dela e tomar sua atitude dominante para repreendê-la. Imaginou que estaria dando trabalho em Chesterfield.
  — Vizinhos são loucos por natureza — Opinou, Henry. — Além dela… também acabei cruzando com outra garota. Muito diferente daquela.
  — Como ela era? — perguntou sem entender realmente qual a impressão que o garoto pálido teve ao encontrar as novas vizinhas — Vocês se depararam inesperadamente?
  — Era ruiva, tinha olhos claros, estatura alta… — ele fornecia os detalhes enquanto contava nos dedos cada característica da garota misteriosa — Também tinha uma feição peculiar, sabe? Era sardenta e de alguma forma me parecia tímida. Ela andava sozinha na rua, quando tentei falar com ela, saiu correndo. Acho que ficou assustada.
  Lendo os lábios de Henry, era possível se conectar com suas palavras. Em tamanhas características específicas sobre a pessoa que lhe olhava; o loiro não parecia sentir-se confortável em saber que o hóspede olhava para garotas. Brian não entendia exatamente se inicialmente suas atrações por ele serem algum tipo ciúmes ou alguma dependência emocional não desenvolvida.
  O rapaz de madeixas douradas acreditava estar submerso na voz doce e rouca do pálido, agitada como as ondas do mar e silenciosa como as profundezas do oceano. Ele voltou a usar suas luvas pretas de couro lindamente combinando com seu estilo vitoriano e gótico: uma blusa com um tecido de lã escuro e mangas compridas, costurada nela o emblema da serpente ardilosa e ácida da instituição. As calças sociais quase coladas, os sapatênis simples brilhosos.
  Grant achava-se menos estiloso, não gostava de usar as peças do uniforme. Para ele a camiseta de gravata encoberta por sua jaqueta preta fabricada em couro bastava. Assim como seus tênis converse e calças folgadas e rasgadas nos joelhos. Ademais, era inevitável não dizer que Henry possuía um charme exótico e antiquado juntamente ao vocabulário.
  — Independente de quem seja, espero ser uma boa pessoa — jogava a cabeça para os lados, ajeitando sua franja emaranhada — Será que ela estudará em nosso colégio?
  — Talvez sim.
  — Bom… Henry — mudava a posição chegando um pouco distante do campo de visão do pálido, estando no meio do colchão. Enquanto dobrava as pernas em um “Z”, mantendo as costas sob um travesseiro — Você não me acha estranho, acha?
  — Por que está me perguntando isso? — a sobrancelha erguida em interrogação, os tons azulados e confusos de seus olhos.
  — Nós dois estamos mantendo uma amizade muito fluida e legal. Mas… sinto que estou atrapalhando, sei lá, fazendo alguma merda sem que eu fizesse indiretamente — avoado e inseguro, não queria estragar o vínculo que ambos prestavam. Billy pôde até ter dito sobre ele ser perigoso, contudo quem duvidaria de algo que sequer conhece? Queria não estar errado, mas mesmo assim… uma flecha parecia impedir que ambos tivessem algo a mais.
  “Eu não sou homem para você, garoto. Tudo que desejo é manipular e te controlar. Nunca estarei apaixonado por uma pessoa… apenas quero meu bel-prazer. Uma aura de sedução percorre em minhas veias quando estou próximo a você, porém os demônios sádicos gritam e sopram em meu ouvido. Meu plano está quase se concluindo, ele poderá saber a minha verdadeira intuição, posso não ser seu companheiro, mas irei agir como tal.”
  — Para mim você não é assim — disse sincero, cruzando os braços — Você é um garoto comum.
  A dúvida que Brian expôs fez com que Albarn tivesse uma ideia maliciosa. Ele sabia totalmente compreender alguém de coração puro e torná-lo frio e tendencioso.
  O loiro não era sua vítima, era sua marionete. Então, quanto mais controlasse e iludisse seu aliado, mais o enfeitiçaria com sua lavagem cerebral, iria reproduzir os mesmos atos carnais que seu pai fazia com aquelas mulheres, com ele. Só para satisfazê-lo; enquanto procuraria mais vítimas “insolentes” para caçar.
  Em um minuto de silêncio devolveu a mesma pergunta:
  — Você também me acha estranho? — Albarn sorriu levemente, chegando mais um pouco para frente, o polegar tateando no queixo do garoto — Tem medo de mim?
  Mantendo aconchego intimidante, condescendia uma disposição gostosa e relaxante na textura macia do aspecto de Brian; fixamente compenetrado em seu carinho sem esticar qualquer músculo.
  Seu companheiro remexia as retinas para os lados, preso em uma sensação quase emocionalmente perfeita, mas pelos toques, Grant achava estranhamente abstraída porque Henry parecia enfeitiçá-lo — um obscuro feitiço tóxico e obsessor mentalmente perfurando seu psicológico e o coração com pregos e alfinetes.
  Brian por sua vez retorquiu:
  — Claro que não — falava ruborizado, enquanto os dedos compridos continuavam a afagarem os contornos de suas bochechas. Inusitadamente lhe confortando — Você só me intimida, bastante. — de repente um arfar saiu de sua boca intensamente, enquanto o couro das mãos enluvadas descia até seu pescoço — Como está fazendo agora.
  — E como você está se sentindo? — demandou seriamente apontando para o meio do pomo de Adão, fechando o polegar e indicador ambos puxando e soltando um pouco da pele da laringe causando estalos… o loiro rangia os dentes, levemente incomodado com os apertos. Albarn cansou de explorar ali e foi chegando ao fim de sua nuca, coçando a parte de trás — Ao meu ver… me parece tenso.
  — Tenso? — Revirou o olhar, sob um gaguejo impensado. Não alcançava uma descoberta plausível sobre qual era o tipo de ternura que seu hóspede trouxera. Mal sabia dizer se aquele contato causava-lhe medo ou confiança — Estou só… — durante um toque nos ombros acompanhados por um apertão em sua carne, obteve um espasmo e de golpe voltou para o campo de visão do pálido, atônito ao notar seu gemido doloroso — Porra, isso é muito gostoso, mas… — sem palavras, possuído por um instinto desconhecido Brian engolia em seco. — Sinto que está querendo me perturbar… Mas ainda assim uma parte de mim quer mais, mesmo não cedendo totalmente. — outro aperto o calou sobrando novamente arfares o encrespando, sucumbindo frente a ele.
  — Gosta de ser tocado assim? — sorrindo sem a presença de seus dentes, chegou ainda mais perto, progredindo em jocosos sussurros sob a audição da figura dourada, provocando tentação extrema — Você gosta?
  Definitivamente o Albarn queria esmaecer pureza no desorientado rapaz, reconheceu sua adrenalina querendo se manifestar; embora impossibilitando essa vontade — despretensiosamente atentado —, mais ele procedia autonomia para o pálido explorá-lo. Tocadas repentinas e abruptas que furtavam murmúrios de seus lábios, nascendo emoções sequer conhecidas.
  — Você… — Desconexo e moderado por Henry, o loiro deixava tudo acontecer lentamente. A lâmpada do teto ofuscava ao seu redor e o quarto diminuía, apenas corpos em cima do colchão, um sob o reflexo do outro — Você está… me deixando perplexo. Eu não sei, acho que só quero sentir.
  — Diga para mim que não está com medo — dominante e astuto o pálido ergueu o queixo do loiro, observando de relance seus olhos preguiçosos e salientes. — Deixe seu medo sair. Eu estou aqui para você, Brian… Me conceda seu medo.
  — O quê? — Não havia entendido.
  — Vamos… diga pra mim.
  Henry conteve as cinesias, posicionando a destra e canhota em ambas linhas dos ombros largos de Brian, nenhum dos jovens mais conversavam sobre as interações. No entanto, o hóspede oscilava procurando mais espaço na cama estreita, ficando meio apartado do gêmeo: Grant estava no lado esquerdo e Albarn no direito, inspirando os mesmos ares. Serpenteando com a cabeça para os dois lados e dobrando suas pernas; o dono da voz articulada esbarrava quase no peitoral do garoto de cabelos claros, mantendo-o fascinado e inerte na vastidão mediterrânea ocular azulada.
  A complexidade da tensão sexual fora anunciada. Quando um gêmeo submergido fitava a boca do hóspede implorando para que fosse beijado, ele impulsivamente esticou e abriu suas duas pernas colocadas ante os quadris dele, sendo fortemente puxado ainda mais perto, tendo somente sua espreita disponível.
  Abaixando o olhar em sua direção, Henry notara a implícita súplica de livrá-lo da jaqueta calorenta — onde atrapalhava sua primeira e curiosa exploração corporal —, e camiseta clara. Brian não precisava adivinhar que o êxito tomaria conta do motivo de seus pelos e mamilos eriçados dentro das vestes enquanto acontecia uma sintonia de deslizes e apertos pela sua bunda. Queria segurar sua ereção, mas era impossibilitado de ficar parado, quanto mais se mexia, piorava.
  Ele não queria só ser apalpado, por mais intrínseco o contato fosse. Brian sentia-se demasiadamente perdido nele, porém tudo mudou quando Henry finalmente resolveu pressionar seu rosto em direção ao dele.
  A atmosfera daquele momento fez o loiro sentir-se de alguma forma inquieto, intensificando seu entrosamento para algo relativamente inspirador na mesma medida. Antes de selarem os lábios grossos nos macios, o pálido então teve uma pausa brevemente antes de estrear seu ato:
  — Olhe só! — impressionado pela nítida formosura e brilhante vista esverdeada, vigorosamente comovia o psiquismo de seu companheiro que avistava totalmente aquela passagem libertina pronta para ser afamada — Você está louco para me beijar, não é? — Henry riu malicioso, notando um balanço positivo como resposta — Quer ser beijado justamente por alguém que possa fazer muito mais.
  — Sim — balbuciou enroscando seus braços pela nuca do hóspede, sentando mais em seu colo. — Por favor, Henry… me beije! — o pálido erguia o pescoço ossudo, impedindo com que seus lábios cruzassem nos dele. Era só isso que ele precisava um beijo, sentir a capacidade temerosa e eletrizante que imaginava.
  — Quem garante que isso valerá a pena? — inquiria testando os limites de sua mente — Se você mesmo disse em ter medo de que faça alguma merda? — Ele não estava errado. Brian havia deixado claro que daria algum problema entre a relação deles, no entanto, a dissertação literalmente interferia inúmeros de seus sentidos — Então provavelmente este é um dos seus principais medos — Henry peremptório dera seu ultimato.
  — Talvez… — sibilou, deitando sua cabeça no meio do peito do hóspede, Brian continuava a insistir — Quero que me faça sentir vivo! Me mostre sua capacidade de envolver-me nos seus lábios. — um vislumbre desesperador, friccionando contra ele — Eu quero um beijo, nada mais. — foi direto ao ponto, porém na interpretação do hóspede as coisas eram muito diferentes. Sinceramente irritou-se esperando que Brian ficasse logo calado.
  — Tem certeza? Quer mesmo isso? — Albarn distanciou alguns centímetros da proximidade do loiro, não perdendo a intuição sôfrega de querê-lo para si… era nítido perceber sua excitação, o aumento de sua libido certamente iria enlouquecê-lo — Acha mesmo que isso será necessário? Ou vai querer me aguentar até o fim? — duvidou, o cenho estendido e o semblante suspeito.
  — Até o fim? Bom, eu não sei — De acordo com suas convivências no dormitório masculino de Chesterfield, as paredes tinham ouvidos e boatos vinham como um raio. Ele não estava pronto para um amasso fervoroso, por mais que seu corpo quisesse. — Vão nos ouvir, se nos ouvirem, ficaremos encrencados — O loiro sequer pensava nas palavras ditas. Henry continha um diabólico dom de desligá-lo da realidade tendo em vista apenas seu controle sob ele.
  Batuques vertiginosos lesionaram o tórax, enfrentando a hesitação interior tentando liberar ocitocina anestesiando os seus problemas de aflição. Convidado para um refúgio fúnebre… Encontrando sua alma gêmea em uma floresta nebulosa, Henry era Incubus e Brian Chamuel — o arcanjo guardião de seu coração que protegia sua alma imaculada foi derrotado pela luxúria da criatura demoníaca do sexo.
  — Saiba que você só está assustado — Instigava o jovem de cabelos claros, dando a entender que era tolo o suficiente para reconhecê-lo. Albarn não se interessava em saber no que Brian fielmente supunha sobre ele. — Ninguém existe agora… aqui seremos você e eu.
  — Mas eu acho que nós… — foi interrompido pelo hóspede, virando o rosto do loiro com agilidade novamente para o dele.
  — Oh, por favor, Brian — pousando o indicador em seu lábio em um pedido de silencioso, automaticamente o pálido fechava seus globos oculares, retornando para frente do loiro, numa voz terapêutica e monótona ele alcançava sua destra nas maçãs da feição. Levando os lábios nos dele, finalmente encostando em sua boca aberta, selando pausadamente um beijo — Estará tudo bem… — o dedo médio girando um dos fios dourados, causando uma atração descomunal entre os dois. Grant subliminarmente quis mais seus beijos, Albarn por sua vez, empurrava o companheiro para si: — Deixe-me cuidar… — puxara a jaqueta para baixo, livrando-a do corpo dele, jogada para algum canto do lugar. Visualizando o tecido claro da camiseta que Brian usava. O loiro notou uma de suas roupas arrancadas, começando-a não mais sentir falta delas — De você.
  Após mais um contato íntimo, o gêmeo sem esboçar reações; simultaneamente abria a boca e fechava seus olhos confusos: estando contornado nas garras do monstruoso homem disfarçado por sua aparência fria e jovial, sentindo o frescor do hálito gelado sob suas narinas, enquanto ele fazia miseravelmente o subconsciente do Grant acostumar-se com suas ilusões.
  — Eu sei que você me quer. — ele trilhava em beijos: a sua testa, o seu nariz, suas orelhas e canto da boca. O semblante outrora perverso metamorfoseou em uma expressão fantasmagórica — Você me quer não é, Brian? Quer ser surpreendido por mim? — desafiou, as sobrancelhas levitadas de modo categórico.
  — Henry… sim, eu quero, te quero comigo — desengonçado ele balbuciou, cansado de olhar para seu rosto, dando atenção para outra direção, pavorosamente ofegante, Brian claramente recusou admirar sua expressão para que não fossem descobertos. Queria desistir, queria sair dali… todavia era dificilmente insano não tolerar seus instintos minuciosos — Eu quero, mas… isso está acontecendo tão rápido que mal pude ver o tempo passar — sobrepondo sua canhota macia nas costas da mão de Albarn, jogava o peso da cabeça em seu ombro. Fungando o perfume afrodisíaco, viu que o hóspede cheirava a azaleias e dama-da-noite. — Tudo ao nosso redor é estranhamente bonito e enigmático.
  — Você acha nossa conexão enigmática então? — O viu assentir com a cabeça, olhando para baixo, sentindo mais toques invadirem seu interior — Quer que ela seja especial, mas está bloqueada nela, certo?
  — Isso mesmo.
  — Então, volte a olhar para mim — murmurava simplesmente, dado ao mandato assim fez — Olhe para mim, Grant! — exclamando predominante o sobrenome de seu companheiro, ele manteve a dominância atingida em seu âmago.
  A voz suave combinada em manejo deram sinais de submissão instaladas no garoto loiro. Grant avistava Albarn; surtindo um efeito surreal amplificando nas radiantes pupilas, em contrapartida, o rapaz ajoelhou-se perante ao seu hóspede, favorecendo a dádiva enquanto paralisou pelos burburinhos saídos de uma figura orate e soturna.
  — Neste quarto restará você e eu… os outros nunca saberão ou dirão sobre nós dois — segurando as mãos pequenas, foi apoiando ambas em seu pescoço. — Eu não passo de um garoto estranho e instável, tenho uma personalidade louca para essas pessoas — perplexamente motivado em sentenças descontraídas, Brian só escolhia concordar positivamente. Nenhum sinal de outras vozes estavam presentes no corredor — exceto os chiados da televisão de tubo. Henry e Brian compareceram solitários por um repugnante alcova adolescente.
  — Você está certo… ninguém está aqui.
  — Viu? Isso é só mais uma miragem vinda de sua mente. — promovendo sua segurança em Brian, o viu inspirando tranquilo.
  Incontrolavelmente o gêmeo foi puxado pelo cós da camiseta mais pregado contra o corpo de Henry, prestando atenção em seu rosto, os lábios do pálido voltaram aos do loiro — pernas erguidas e colocadas sob o quadril —, contudo sua cavidade bucal foi dando abertura para a língua áspera atravessar a sua, ambas dançando numa erótica melancolia.
  Henry era significativamente mais alto; e Brian com sua falta de altura, teve que segurar o hóspede inclinando-o para baixo e facilmente alcançar seus lábios. Ele movia sua cabeça entre esquerda e direita, enquanto massageava os cabelos escuros.
  O jovem Albarn recuperou sua expressão cética quando o garoto acanhado parava de beijá-lo por alguns segundos, encontrando seu semblante fantasmagórico. Grant impulsionou aquele rapaz alto, causando um estrondo no estrato de ripa, seus cabelos negros-azulados jogados no colchão de vez em quando encarando o teto. Engatinhando até sua direção, Brian chegava próximo ao hóspede, sentando-se em seus quadris e abaixando o olhar sob o dele; sentindo as mãos passando por suas costas e bunda. Esfregando em seu colo, conseguia notar seus íntimos pulsarem.
  Os fios das madeixas douradas eram puxados por ele — uma sensação controladora na qual fizera o gêmeo arfar e emitir um gemido dolorido, fazendo Henry rir. — Embora mentalmente recusasse o calor e a imprevisibilidade da ternura bestial de Henry, o corpo ansiava por contato completo, no entanto, Brian só queria um beijo, intensificando um respiro suave e friorento percorrendo suas narinas.
  Desenvolvendo o beijo para algo mais intenso, ambos os rapazes moviam-se para os lados, enquanto sons de saliva e gemidos mínimos chegavam. Brian estava envolvido por suas fortes carícias; mais alucinado que o normal. Num instante os braços da figura pálida permaneceram inativos ao lado do corpo. O Grant teve que finalizar, pois estava evitando perder completamente seu ar, tirando o hóspede de um transe ele mordia a ponta de seu lábio lentamente depois soltando-a após quase ultrapassar os limites do clímax.
  O hóspede queria mais, não entendendo o porquê dele estar parado sem avisar. Ele ficou insatisfeito, tendo a vista do loiro ofegante ficando com os joelhos dobrados meio em pé entre suas pernas.
  Brian parava por alguns segundos, arfando e desconfortável pela protuberância visível em sua região íntima. Isso fez Henry perceber sua excitação, sem dizer nada, atreveu sobrepor sua destra nele. Subindo em lentidão nas coxas chegando até o órgão sexual, porém foi impedido quando o gêmeo retirou a mão do local, incrédulo e boquiaberto. Pois nunca foi tocado por alguém além dele mesmo.
  — Não, melhor não. — negava com a cabeça, inseguro — Nunca fiz isso…
  — Como é?
  — Nunca na minha vida deixei alguém me masturbar — entrelaçou seus dedos nos das mãos do pálido. Voltando sua insegurança, realmente não sabia que teria sua virgindade roubada por alguém que não o amava — Eu nunca fiz sexo, com ninguém… e não sei se podemos chegar a esse ponto.
  — Você é virgem? — perguntando surpreso, queria terminar de testar aquela mente, adivinhou certamente que ele era inexperiente — Nunca pensei que você fosse.
  — Sim… eu sou — suspirou cabisbaixo. — Meu irmão fica me caçoando por isso.
  — Tem certeza que não quer experimentar sua curiosidade um pouco comigo? — Henry encontrou-se em uma situação indesejada, era difícil possuí-lo.
  Ele lembrava das vezes que uma garota de sua antiga turma do ensino médio o tinha convidado para uma atividade sexual, mas no começo havia se atrapalhado e ficado com as lembranças de seu pai fodendo prostitutas, até que não aguentou e foi direto ao ponto. Indo embora sem se despedir, percebeu que a jovem não acordava. Ele não lembrava de seu rosto ou em qual bairro morava — porém depois daquele dia ela não havia retornado mais ao colégio.
  — Estaremos indo longe demais — argumentou sem pensar — É arriscado.
  — Você não precisa pensar assim. — se ergueu da cama girando o loiro para sua direção — Só será arriscado se você deixar.
  — O que quer dizer com isso?
  — Só relaxe — Lentamente soltava os dedos de suas mãos, invertendo as posições Brian deferiu um ofego ao ser jogado na direção que Henry se colocou, sua cabeça caída pelo travesseiro — Você agora pertencerá a mim… farei você estremecer — inclinou em cima do gêmeo imóvel, beijando sua testa, algo que ele não havia gostado.
  — Mas…
  — Confie em mim.
  Mais beijos foram selados percorrendo toda a região do pescoço, o loiro novamente estando hipnotizado pelos encantos de um jovial Incubus repleto de desejos ardentes. Henry comandava Brian, assim como um marionetista comanda seus fantoches.
  Brian não sabia exatamente como aquilo tinha acontecido, ele queria parar, mas o controle dele não era facilmente possível de impedir. O momento era prazeroso, no entanto acabaria de uma maneira ruim se ele não fizesse nada; no minuto seguinte estava paralisado entre as pernas de Albarn, suando frio e desconfortável.
  Reparando o quão as coisas iam longe demais, Grant suava frio observando seu hóspede brutalmente pressionar o tecido de sua camiseta erguendo calmamente aos poucos apresentando sua carne desnuda, o loiro arqueou automaticamente suas costas enquanto a peça ultrapassou os braços e cabeça — jogada no mesmo canto que sua jaqueta — relevando para o pálido; uma visão de poucos tufos dourados em suas axilas, os eriçados mamilos róseos, um peitoral e abdômen perfeitamente voluptuoso na concepção de sua quimera desproporcionada.
  — Que corpo admirável — elogiava apreciando os traços e linhas de sua descoberta, assim como um colonizador aterrissando em uma vasta ilha — Você parece uma pintura rica em detalhes.
  — Pareço? — Indagava sem fôlego.
  — Vai ser um prazer revigorar você. — dizia no momento que se livrava das luvas, colocando-as em um criado-mudo.
  Henry sequer hesitava, guiou a ponta da língua ferina subindo e descendo por sua musculatura; deixando Brian arquear pela segunda vez por conta dos arrepios que causavam nele alicerçando os chupões em seus mamilos e lambidas repentinas no rosto. Resultando em gemidos roucos desesperadores, visualizando gotas de suor cálidas na nuca do hóspede, os cabelos negros dele quase jogados por suas têmporas.
  O gêmeo rangia mais os dentes quando unhas arranhavam o meio de sua barriga, torturado e riscado por um artista sádico. Não obstante, Henry livrou-se de sua blusa de lã, mostrando seu físico atlético e trincado, ao levantar um de seus braços era possível notar as axilas depiladas e limpas. Um corpo quase semelhante ao de atleta, onde os músculos eram destaque.
  Voltava a contraí-lo — cansado das preliminares quase avançando o próximo passo —, metendo toda sua destra no pescoço do gêmeo, não o fazendo se mexer, depois foi deslizando sua canhota que violentamente desafivelou o cinto, dando liberdade para Henry abrir o botão da entrada e descer o seu zíper de sua calça.
  Numa fração de segundos adentrou por dentro de suas peças íntimas, pegando no pau escorregadio e molhado; na medida que forçadamente apertava a garganta do loiro, começou lentamente os ritmos de uma masturbação, estremecendo o rapaz inteiramente confuso e vulnerável.
  O dormitório preenchia-se de sons lúbricos escapando do gêmeo durante os deslizes em sua glande transformados em toques agressivos, só restava de opção aceitar torcendo para que acabasse no sigilo, era diferente conter uma mão que não fosse sua em áreas individuais, porém o tempo desperdiçado naquele lugar lhe fez inesperadamente quase chegar ao ápice de seu orgasmo. Seu ar faltava e mais gemeu alto, no entanto, Henry se surpreendeu com algo:
  — Você já está gozando? — tirando por alguns segundos a canhota de dentro das calças xadrez, surpreendeu-se com seu feito. — Eu mal estou tocando você… isso é bem raro, sabia? — seus dedos estavam úmidos… falava e ao mesmo tempo notava o efeito causado.
  — Você é o primeiro — gesticulava com a cabeça para os lados, numa dificuldade de respirar afastou o pulso da destra, porque Henry segurava com muita agressividade — O primeiro que está me trazendo isso.
  — Isso está cada vez mais interessante — Aquilo de algum modo o empolgava, era esplêndido dominar e manipular um jovem homem imaculado, como se estivesse manipulando suas fraquezas — Estou cada vez mais impressionado.
  — Não acha isso um empecilho pra você?
  — Você nunca será um empecilho para mim.
  — Mas Henry… eu não acho bom fazer isso aqui — voltando ao assunto, o pálido lhe calou. — Estou te dizendo para mantermos o controle, mas você não obedece.
  — Quem precisa obedecer os controles é você — Afirmou novamente em seus murmúrios mortais — Se não quiser mais, é só me dizer. Você não está me dizendo nada!
  Retornando a enforcar sua garganta e roçar o membro rijo, brincava nos seus testículos e comprimento largo, sendo respondido com mais outros gemidos embora não sabendo como era o tamanho de seu órgão, ele imaginava que fosse médio. Sentindo a palma da mão sendo melada pelo pré-gozo, enquanto o jovem loiro balançava suas pernas para os lados.
  Brian não esteve mais perplexo naquele momento, ele queria que estivesse pronto para perder sua virgindade, mas não naquele quarto esdrúxulo. Ele tossia com dificuldade e sua visão começava a ficar turva e embaçada, sentindo que desmaiaria.
  Foi se adaptando na masturbação, porém ao notar as situações complicando-se, puxava a franja do pálido em protesto ouvindo um arfar sair dele — Albarn continha uma vontade avassaladora em querer asfixiá-lo.
  Vozes em sua mente ordenavam que ele se entregasse ao desejo destrutivo: "Estrangule-o, corte-lhe a garganta." A sensação amalgamada de horror e morte crescia, no entanto, seria burrice matar o filho de sua psicanalista.
  Todavia foi abaixando um pouco as calças de Grant, querendo tirar sua peça íntima escura, parecendo implorar para ser abaixada. Antes de fazer tal ato, notou que Brian estava saracoteando e faltando respirar por conta dos apertos, suplicando pela última vez:
  — Henry… você está me machucando — tossindo e quase perdendo sua visão, ele insistia com que o pálido deixasse-o inspirar, contendo seus gemidos e organismo definitivamente enfraquecido — Por favor, é melhor… melhor pararmos — as unhas cravando e incomodando sua laringe — Eu preciso… preciso de ar!
  — Acalme-se Grant — ignorando seu pedido em torno de sua imaginação tresloucada, ele mordiscava a pele de seu pescoço ouvindo-o perder seu fôlego, já quase faltando todo seu ar — Você vai se acostumar — soltou sua garganta, quase descendo a peça íntima dele que atrapalhava sua exploração.
  — Henry, para! — berrou, o empurrando para trás com suas mãos livres. Tossindo constantemente e esperando que sua visão voltasse ao normal, Brian vestiu suas roupas tremendo e assustado com o que acabara de ocorrer.
  O plano maléfico realmente não faria sentido, se o enforcasse durante a relação sexual testemunhariam um ataque dentro da instituição.
  Henry não esperava aquela reação, resolveu inspirar profundamente e por um lado o companheiro sequer processou sua realidade, Brian claramente iria saber que o pálido no qual beijou lhe mataria por ser legalmente insano e perigoso.
  Ao tirar sua destra de seu órgão, notava o brilho de um pouco do sêmem grudados em seus dedos, lambendo-os propositalmente, assim deixando com que Grant ajeitasse sua postura, voltando a realidade.
  Brian não era experiente o suficiente quando o assunto era sexo, nunca foi tocado ou beijado ferozmente alguém. Algo em Henry era singular: o sussurro era perturbador, os toques eram mortais e seus beijos eram turbulentos, amargos, apressados e sem ritmo. Porém uma enigmática atração nutria internamente.
  Impaciente o Albarn decidiu consolar a alma ferida, se queria impactar medo não seria o forçando dar seu consentimento.
  “Se ele fosse como o Yoshida, seria mais simples.” pensava irritado, planejando encontrar outra oportunidade. Brian não lhe aceitaria de primeira, esse processo demoraria.
  — O que passou na sua cabeça pra fazer isso?! — Alarmado, o gêmeo cruzava as pernas se afastando um pouco, querendo choramingar. Felizmente estava livre das garras demoníacas do hóspede sob qual suportava, absorvendo tudo que acontecia no espaço. O êxtase se partiu — Eu só queria te beijar, mesmo te beijando… é impossível não imaginar alguma catástrofe.
  — Me perdoe, acabei me empolgando — fingia remorso, querendo abraçá-lo — Eu nunca quis te machucar, venha aqui.
  — Não — ia se distanciando — Eu não posso ficar próximo de você, eu não…
  — Me desculpe, está tudo bem — estendeu seus braços o puxando para si. — Está tudo bem agora… esqueça tudo.
  O Grant subiu o zíper de sua roupa e procurou seu cinto, sentindo com que o aconchego do hóspede o acalmasse porém não surtiu efeito. Quanto mais ficava ao seu lado uma parte desaparecia, ficava sonolento e preso numa fantasia instável.
  Uma combinação de dourado e negro, eram como se fosse o sol entregando-se a lua formando um eclipse na terra, evaporando a última luz que se restaurava do céu, Brian era a claridade sendo apagada pela penumbra que pertencia ao instigante e venturoso: Henry Albarn.
  Ele não sabia seus reais sentimentos, mas naquele momento íntimo havia descoberto tamanha aflição em regozijo psicótico; Era um fascínio mórbido, pois Henry usufruía de dinâmicas espontâneas e amaldiçoadas, instalando trevas e ferocidade em suas vítimas.
  — Você está melhor? — Albarn quis entender como aquilo lhe afetou, seus olhos pareciam transbordar de lágrimas, fechando-os cansadamente. Só querendo dormir e processar os efeitos causados pelo seu corpo e alma. Manipular alguém nunca foi tão fácil para ele — Brian?
  — Oh… sim, acho que estou — sacudiu a cabeça para os lados, ignorando seus devaneios. Por um instante se afastou dos braços de Henry para conseguir se acalmar — Eu só preciso respirar um pouco… na verdade, eu sinto um merda e acho que nem consigo olhar pra você.
  — Não fale assim — tocou seu ombro, querendo serena-lo, obviamente não era burro em querer contar para ele sobre o seu temperamento anormal — Sei que fui impulsivo e estraguei as coisas, mas foi porque estou gostando de você. — omitindo e sorrindo para ele, averiguava imprecisão sobre o semblante triste.
  — Se gosta de mim, então por que é tão intenso? Por que me disse para o fazer parar, mas não me escutou? — indagava choroso — Eu não tenho medo de você… Mas às vezes sinto que nosso convívio vai acabar dando errado. Algo vindo de você me deixa confuso, cansado, descontrolado.
  — Eu sei — concordou, limpando as lágrimas do rosto de Grant. Sério e quieto, Henry acariciava sua nuca deixando que novamente ficasse consigo — Esse sou eu. Mas juro que irei consertar minhas atitudes, ouvirei da próxima vez.
  — Promete?
  — …Prometo — mesmo mentindo ele beijava sua testa — Vou esperar pelo momento certo… quando quiser, estarei por você.
  Terminando o assunto, de repente, Henry se repreendia internamente. Murmurando palavras de recusa somente para si, levantando e saindo da cama. Grant encontrou sua camiseta podendo vesti-la, o pálido fez o mesmo colocando suas luvas em seguida. De súbito sua atenção foi atrapalhada:
  — Merda! — o loiro pigarreou, vendo uma pequena mancha branca de sêmen manchada pelo meio de suas calças — Como vou explicar isso pra minha mãe? — Uma risada saiu de Henry, foi inevitável não olhar mais para baixo — Ei! Não ria disso.
  — Oh… foi mal — conteve-se, voltando a sua personalidade séria — Talvez, tenha algum uniforme no achados e perdidos.
  — Verdade. Nem morto, vou dizer pra minha mãe que quase transamos no dormitório masculino.
  No fundo, algo fez com que o loiro sentisse compaixão pelo pálido. Era uma situação complexa e ignorar o que viveram seria imprudente. Brian queria animar Henry para evitar que ele sofresse mais ou pensasse em algo pior, embora não soubesse o verdadeiro passado dele e que havia matado uma pessoa.
  Ele precisava ser confiante para conseguir um aliado para protegê-lo e depois eliminá-lo para sempre. Henry instiga Brian, o semblante alegre dele ainda se tornaria fechado. Imaginou várias vezes aquelas cenas no quarto, como seria se ele estivesse mais arranhado e cheio de marcas. Em algum momento teria aquela chance — só precisava ser paciente.
  Olhares cruzaram-se e trajetos separados seguiram. Os estudantes ignoraram pensamentos fictícios e concentraram-se no caminho de casa. Os dois rapazes permaneceram juntos, o motorista da família havia chegado para buscá-los. Ele abriu a porta para que ambos entrassem.
  Albarn ficou em silêncio, nervoso e arrependido. Sua mente doía como se um caco de vidro estivesse nela, não era amor ou desejo, apenas desgosto por ser atrapalhado não terminando seu plano violento quase prestes a começar naquela hora.
  Encostou a cabeça repetidamente no banco, semicerrando os olhos em direção ao loiro. Finalmente, acalmou-se quando sentiu um toque suave nas costas da mão. Virou-se para olhar o rosto de Brian e deitou sua cabeça em seus ombros, focado no rádio do veículo, onde a estação noticiaria anunciava casos de assaltos e o desaparecimento de Miller, por enquanto o caso não tinha novidades.
  Henry acreditava não ser capturado algum dia, portanto, ninguém saberia quais ações e crimes estaria cometendo por Swan Lake. Aquela belíssima ruiva seria essencial para uma vítima perfeita, no entanto, teria que conhecê-la abertamente e investigar suas principais fraquezas.
  Mas será que ele realmente errou em ter parado o ato com Brian? Ele faria aquilo novamente? Consequentemente as coisas estavam destinadas a piorar.

Capítulo 05

  BILLY ANDAVA DE BICICLETA PELAS RUAS, sondando pacífico os cidadãos passearem na praça local; ele abanava a cabeça para os lados, podendo refletir quantas pessoas já haviam estado por lá. Para sua surpresa encontrou uma garota incógnita fumando em pé de frente para o lago, aparentando estar solitária, fatigada e chorosa.
  Apertando as mãos no guidão, o garoto procurava estar atento em observar um bicicletário para estacionar sua BMX azul-marinho, movendo seus pés em ambos pedais, foi direcionado a um ponto de encontro mais próximo. Estacionando no lugar paralelo de frente a outras bikes, não se importou se roubarem seu pertence, já que Billy costumava praticar aquilo ocasionalmente.
  Excursionistas de outras cidades norte-americanas surgiam em busca de distração e férias curtas, geralmente os hotéis da cidade esgotavam vagas. Billy e outros adolescentes de Swan Lake marcavam encontros frequentemente naquela área, tampouco conheciam os turistas — todos os bancos de madeira eram reservados para muitos casais, famílias, idosos e crianças.
  Pela claridade solar sucinta dos céus; as luzes fustigavam com força na feição da garota de madeixas peroladas, ela não deu importância para os turistas e nativos, contudo, tomando atenção aos cisnes da serenidade e profunda lagoa, imaginando as lágrimas da mãe de Odette representando jus ao nome daquela localidade que estava sendo obrigada a morar.
  Continuou com os olhos nela, irritava-se em tamanha curiosidade. Desde quando uma novata desconhecida conseguia instigá-lo? Independente de quem ela poderia ser, Billy entendia que a garota com certeza participaria de sua vida — em alguma situação ela estaria presente.
  Cassie observava o gêmeo de cabelos castanhos andando por sua direção e consequentemente torcia para não ser alguém inconveniente ou esnobe, estava maçante aguentar sua madrasta anunciando regras ou William pedindo respeito de sua parte. Decidiu explorar — mesmo assustada pelos crimes que a nova cidadania provinha —, localidades afoitas. Superando adultos e idosos fedelhos querendo saber qual era a origem da Silverstone.
  Não foi surpresa que outros adolescentes começassem a rondar por ali. À medida que mais cidadãos circulavam, o lago se enchia de espectadores. Cassie andou para longe da área sentindo-se incomodada; foi quando o gêmeo de cabelos castanhos seguiu os passos dela.
  A loira já estava ficando impaciente com as novas pessoas em seu cotidiano. No entanto, ela reparou no indivíduo que a seguiu. Billy, antes de conversar, lançara um contagiante sorriso metálico, a garota reconheceu seu rosto sem esforço. Cassie resmungou sentando-se num banco vago, tendo a figura extrovertida em sua visão.
  — Está querendo levar outra surra de novo? — Ameaçava o garoto, ríspido e erguendo o punho direito — Você estava me seguindo, né? Deu pra reconhecer sua cara de lerdão. — Logo, cruzou os braços indignada.
  — Calma aí, bonitinha — tentava tranquiliza-la mesmo que fosse impaciente, Billy estava interessado nela de alguma forma —, você não parece bem. O que andou fazendo por aqui?
  Silverstone recusava descrever as confusões entediantes de sua vida pessoal. No entanto, aquele garoto era interessante de se conversar. Billy sorria entre cada diálogo momentâneo, não era chato ou intrometido, podendo então deixar Cassandra simpática e confortável.
  Will e Lauren ordenaram a primogênita não sair novamente escondida de casa; entretanto, desobedeceu — como o habitual. Apesar dos perigos e crimes que o advogado anunciou no fim da viagem, a garota sentia-se extremamente desconfiada: assassinos, blitz, lendas e temporais nebulosos. Isso era assustador pra caralho, o inverno em Golden Oaks aparentemente considerava-se somente gelado, enquanto outras estações tendo seus climas normais nas épocas do ano.
  — Me mudei pra cá hoje, o meu pai é insuportável e minha madrasta também — enunciou ao revirar os olhos contando nos dedos seus eventos recentes —, fui obrigada a sair do colégio. Segunda-feira estarei numa instituição… Pelo meu histórico de bullying e agressões físicas, estou vendo que estarei fodida de qualquer forma.
  Cassie deu espaço para que Grant pudesse sentar-se ao seu lado, o garoto andou até o banco e assim sentou. Ambos escutando suas reclamações diárias. Billy observava a loira erguendo o pescoço soltando a fumaça impregnada nos seus pulmões — após largar e pisotear na bituca do Marlboro com os sapatos no chão áspero, sibilando profundamente.
  — Entendo… Também não suporto minha mãe e irmão! — desabafava o gêmeo, sacudindo seus tênis, os braços cruzados e cabelos desgrenhados — Eles sempre me subestimam ou jogam na cara que sou um infantil. Realmente gosto de ser provocador e engraçado, mas nem sempre irão entender minhas piadas — riu sem humor, notando a Silverstone fazer o mesmo — Você estará em Chesterfield então? Ih, coitada! Matriculou na pior época e na pior escola dessa cidade.
  — Você estuda naquele lugar?
  — Desde o fundamental — balançava a cabeça positivamente —, antigamente era legal… Só que no ensino médio, mudaram inúmeras coisas. Um aluno muito querido pelos professores desapareceu, e ninguém sabe como.
  — Puta merda! — Cassie se espantou, por fim concluindo que os boatos ditos pelo patriarca sobre desaparecimentos eram infelizmente verdadeiros — Mas ‘cê desconfia de algo pelo menos? Tipo, acha que isso foi obra de maníacos ou entidade maligna?
  — Entidade maligna é impossível ser.
  Na realidade, Billy suspeitava quem poderia ser o responsável pelo sumiço de Yoshida Miller: seu novo hóspede. Embora tenha advertido o irmão para não se envolver com Henry, definitivamente entendia qual situação plausível teria feito Melissa avisar o segundo filho. A mulher era especializada em psicologia criminal, se Albarn mantinha-se dentro da moradia, de fato houvera alguma justificativa para acolherem o rapaz — cometeu um crime, obrigado a sair de casa para conviver em uma família desconhecida.
  Os irmãos Grant, assim como as irmandades tradicionais, até discutiam e brigavam entre ambos, portanto, isso não era demasiadamente justo. Brian achava ser maduro e inteligente; tampouco queria ouvir as palavras de seu irmão — alertando os perigos que o hóspede era capaz de instalar no loiro — futuramente iria se arrepender, esse dia chegaria.
  “O suposto diabo está tomando conta de minha casa… Tenho certeza que Henry sabe do Yoshida e inventa mentiras para o Brian.” Cogitava silenciosamente, teorizando quais as intenções de Henry com seu irmão. Ele fingia não se importar, todavia, aquela merda era inevitável esquecer.
  — Tá brincando, né? — Indagava Silverstone, jogando o cabelo para trás — Esse lugar é frio até no verão! Deve existir alguma maldição… Não é possível ser normal. Aposto que pessoas somem inesperadamente ou são mortas, sei lá.
  — Nisso você está certa — anuiu, franzindo uma das sobrancelhas, entretido pelo desespero da novata — Swan Lake está longe de ser pacífica, quem vem pra cá imagina um local sossegado, mas sabem que existem lendas e crimes doentes, e loucos pra caralho.
  — Realmente é “lago dos cisnes”, porém mancharam as lágrimas da mãe de Odette com sangue e a maldição de vários Von Rothbarts; transformaram uma cidade de música e dança, em um memorial sombrio e frio. Odette morreu na história, mas garanto para você que, pelo menos, se libertou e foi feliz.
  — Exatamente isso… Você é foda, nunca imaginei encontrar uma garota que pensasse fora da curva — A elogiou com carisma, fazendo Cassandra revelar um sorriso para o gêmeo de cabelos castanhos — Voltando ao assunto do Yoshida: sim, desconfio muito desta história. Tu lembra do cara alto quando tentou me enfrentar junto ao meu irmão, né?
  — O esquisitão branquelo? Ou o loiro revoltado? — Questionou sarcástica, vendo a expressão do moreno dos olhos esverdeados mudar em reprovação, abanando as mãos — Qual é?! Eles são uns folgados! — sobrepôs a destra na cintura. Orgulhosa do que havia dito.
  — Só eu posso criticar meu irmão, beleza? — avisou, dando um soquinho leve no ombro esquerdo da jovem — E, não… Não é o Brian, estou falando do novo “amigo” dele: Henry. — apontava para cima, mostrando sua análise do assunto.
  — O Henry é o branquelo?
  — Sim, o “branquelo”.
  — Mas por que está incluindo ele nisso?
  — Bom… Como posso explicar pra você? — Respirando suavemente antes de iniciar o assunto. Billy, desejava que não estivesse certo naquelas acusações que mentalmente fazia sobre o hóspede — Aquele garoto simplesmente foi obrigado a passar um mês em nossa casa. Não sei qual motivo teria feito ele morar conosco, sabe?
  — Nossa, sua mãe está abrigando um desconhecido? — Cassie quis saber — Vocês dividem quarto? Jantam e almoçam com ele? — Billy afirmou positivamente em um breve menear — E como é isso?
  — Estranho pra caralho, eu admito.
  — Se fosse algum parente da família, até entenderia — Foi sincera — Nesse caso é loucura! Tipo assim… Qual foi o real motivo, no qual te fez realmente desconfiar dele?
  — Ontem à noite… Aconteceu algo muito estranho. Minha mãe é psicanalista, então além de estar abrigando esse cara, está tratando ele. — relatava breves ocorridos sobre o dia anterior — De repente, ela veio me pedir o seguinte: “avise o seu irmão e não o deixe próximo de Henry.”

  — E depois? — A loira pediu implicitamente para que o gêmeo prosseguisse.
  — Eu tenho a impressão de ele ser muito perigoso! — Comentava espantado, as mãos indo de um lado para o outro e lábios parados, retornando ao outro assunto instantaneamente — Quando ela me avisou, diretamente cheguei até o Brian. Ele não me ouviu… Me xingou e disse que sequer conhecia verdadeiramente o Henry. Sendo que os dois se conheceram em apenas um dia!
  — Bizarro.
  — Pois é!
  — Se esse maluco tá sendo tratado e acabou sendo retirado do lar… Realmente há uma tremenda merda e justificativa para ele estar convivendo com sua família.
  Os novos vizinhos de Cassandra — embora não soubesse de fato detalhes da história toda —, intensificaram mistérios rapidamente. De certo modo, a garota deveria precipitar e proteger-se dos males violentos, sucumbindo ao terror e caos; ela atacara e lutara contra diversos hipócritas ao longo de sua infância e adolescência. No entanto, era inusitado pensar na existência de um indivíduo mentalmente instável, habitando em uma família que provavelmente ele mesmo destruiria.
  Algum dia uma presença nociva iria se impregnar em Brian Grant, ela não o conhece pessoalmente, mas através dos relatos de Billy, a história iria piorar mais.
  — Fielmente acredito nele estar dentro desse caso. O Yoshida não ligava se os amigos e colegas do núcleo escolar de Chesterfield o odiavam e o humilhavam… Era um menino bondoso, aceitava quem estivesse próximo a ele. Tenho certeza que Henry uniu-se ao Yoshida em um instante de tristeza e solidão. — Virou o olhar para Cassie, enquanto a loira reparava um semblante pesadamente triste aparecer em Billy — Henry é como aquela história do flautista que amaldiçoava crianças com sua música.
  — Agora essa música está envenenando o seu irmão — Silverstone concluiu.
  — Talvez, sim, talvez não.
  Gotículas de garoa sobressaíram dos céus acinzentados, pingando no tecido da camiseta que Cassandra vestia, levantando para verificar as mudanças repentinas do temporal; não esperava que fosse aparecer. A loira xingava por esquecer um guarda-chuva, suportando a chuva transbordar. Billy precisava voltar para casa — assim como Cassie.
  — Droga! Não imaginava que ia chover — reclamou batendo os calçados no chão, vestindo o moletom amarrado pela cintura, subindo o capuz —, preciso voltar pro meu quarto antes que minha madrasta acorde.
  — Te dou uma carona, vim de bike — Ofereceu o gêmeo, estendendo a destra para a jovem — Relaxa, gata, não quero que se molhe! Você é bonita demais pra ficar doente — sorriu de canto, voltando ao seu comportamento galanteador.
  — Estava premeditado, né? — Ergueu a sobrancelha, desconfiada — Foi me procurar, puxar conversa e me convidar pra sair com você. É… Você é previsível.
  — Claro que não — omitiu, rindo para ela abraçando si própria por conta do frio —, vim resgatar uma vizinha melancólica que tentou brigar comigo mais cedo e me chamou de lerdão — fez reverência, assim como um cavaleiro concede sua dama para dançar nos arredores de um castelo.
  — Beleza, não tenho escolha! Vamos!

••

  O piano da residência Grant era invadido por longas mãos enquanto os dígitos trabalhavam em conjunto por suas teclas. Igualmente as classudas apresentações de ópera actéon, um instrumentista coloria o deslumbrante espetáculo no teatro greco-romano — todo o público sentado em cadeiras aveludadas, um show onde espectadores aplaudem lastimados pela sinfonia dos violinos, enquanto a cantora vai tremendo perfeitamente as cordas vocais, fauce sob tremores expressando gritos vibrantes e melodiosos.
  A inspiração da penumbra, visivelmente chuvosa na majestosa janela, era severamente distópica na perspectiva do moreno da carne leitosa e luzeiros azulados.
  Sentia-se na dramática companhia individualmente solitário: sobrancelhas grossas levitando, língua seca e coordenação motora agilizada. Pois o sucesso de amaldiçoar um homem inocente dificilmente era subjetivo, mas sim abrangente, o que incomodava Henry.
  Brian não era relativamente vulnerável como pensava ser; as perversões dolorosas entregues ao querubim de Vênus surtiam um efeito lentamente tóxico no âmago imaculado, bastava uma ponta de maldade instalada nele… Hades finalmente iria alastrar obsessão e adrenalina em Eros.
  Dançando nas partituras de Bach, encontrava-se de olhos fechados. Atentamente penetrado nos arredores da sala, querendo apenas investigar os prazeres da música clássica. No entanto, o delicado rapaz pousara os sapatos nos primeiros degraus da escadaria que descera — ansiosamente lacrimeja diante ao pianista macabro — ficando atrás de Albarn, estático, sem fôlego, demonstrando reação sequer.
  Avançava os passos, enxergando o pálido concentrado. Um sentimento culposo preenchia subconscientemente no Grant; assim como Henry não aguentava mais ficar sozinho, também sonhava na possibilidade de tornar o vazio de ambos — emitindo obsessão unilateral — numa aventura ilimitada. O mundo do gêmeo loiro mais adentrou no encantamento intolerável, erguendo propositalmente o braço chegando nas costas de seu hóspede demoradamente; subindo e tocando na textura de seus trajes.
  Quando automaticamente os levava nas teclas, passando os quatro dedos carinhosamente no pulso até alcançar finalmente nas costas das mãos dele. De supetão, Albarn teve um espasmo. Parando de tocar no mesmo segundo que abriu seus olhos, debatendo-se com Brian, atônito pelo choque. O loiro dera um passo atrás, levemente assustado. Henry não esperava ser interrompido daquele jeito; certamente o irritou — Brian era quem mais o irritava por estar aterrorizado por si, a consequência daria muita dor de cabeça.
  Suspirando pesadamente, o pálido redarguiu virando em torno do campo de visão de Grant, cruzando as pernas elegantemente na confortável banqueta, apresentando um dificulto e largo sorriso desalinhado:
  — Você ter me assustado desta forma inesperada não foi convincente o bastante.
  — Desculpa. Não foi minha intenção assustá-lo — O demasiado sentimento ansioso mudou para um sentimento de pavor, no entanto, lhe despertava caminhos nunca explorados.
  Querendo descobrir acerca das camadas. Quais nuances eram significativas quando se tratava de um relacionamento nunca tido? Embora ambos tenham intimidade descontroladamente… Brian estava viajando em quimeras nocivas sem perceber. Isso é fodidamente tendencioso, com certeza. Sinceramente, isso não era bom para ele e nem para nenhum ser humano.
  — Adorei a música que estava tocando, achei linda! Nunca imaginei que tocasse piano. — Elogiava ameno, constrangido e batendo os dedos de ambas mãos nas coxas.
  — Oh… as variações de Bach Goldberg te agradaram — enfatizando ufano, Henry docemente riu. O loiro desentendido apenas escolhia anuir balançando a cabeça, o brilho prateado de seu brinco adornado em uma das orelhas reluzia —, eu tocaria várias músicas clássicas, se fosse possível, porventura te fazem esquecer as aflições que o importunam.
  — Mas… não estou querendo me sentir aflito.
  — O medo se manifesta inesperadamente, Brian — decretava, abaixando os três dedos de sua não, contendo polegar para cima e indicador horizontalmente no rosto do loiro, simulando uma arma. — Mesmo você não o deixando sair… Ele se torna um pânico ainda mais letal; se você o deixar emitir: bang! — uma estranheza saindo dos lábios, arfares.
  A simulação fizera o gêmeo de cabelos loiros ficar temeroso, entendia o fato de Henry ativar sua coragem. Mas que merda de analogia! Jamais ninguém em sã consciência… Faria um tratamento de choque no mesmo sentido dele!
  — Percebeu? Você continua se assustando, homens corajosos precisam lutar contra seus demônios ocasionalmente. Eu não sou o demônio? Ou sou? — Sim, achava não ser, contudo era… ele não era o anjo caído do cristianismo, era o demônio da mente de um garoto inseguro, embora não sendo culpa de Grant estar naquela situação, mantivera envolvido na influência esquizoide dele.
  — Tudo bem… Confesso não ter gostado do que fizemos naquele quarto — de fato as marcas de arranhões cicatrizados em sua pele e aquela mão sufocando fortemente seu pescoço eram imperdoáveis —, aquilo foi perturbador! Estou me achando um merda! E mesmo que sua intenção tenha sido diferente, não sou capaz de concretizar isso. Não adianta também fingir apontar uma arma na minha cabeça, como se isso fosse algo natural — o criticou, desapontado. — Henry… Você nunca será um demônio, mas quero saber porque age assim e entender você, mas não desta forma. Nossa adaptação há nuances errôneas, essa porra toda tá muito estranha.
  — Ótimo ter opinado sobre isso… Realmente passei dos limites. — o pálido por mais que não quisesse desenvolver empatia, em contrapartida, soubera fielmente quão suas atitudes com aquele ser foram inconvenientes e perigosas.
  Seu antigo lar e vivências contrastadas sem amor materno — e amor paterno — envenenaram tanto seu cérebro que precisava tomar conta de outro indivíduo para destacar sob sua altura. Brian ambiciosamente trouxe um preenchimento na sua solidão, ademais não seria justo ou suportável perder futuramente a chance útil de possuir alguém. Albarn abdicaria pelo sofrimento emocional afetado, assim optando pela utilização de uma agressividade extrema num podre sadismo utópico.
  Na concepção de Brian, ser tratado com agressividade em um quase sexo ainda assim lhe deixava sem reação ou pensaria seriamente quaisquer, normalização quando se falava de um assunto daqueles. O pálido alcançava as pequenas mãos do loiro, o trazendo para si, lidando e respirando pela segunda vez o mesmo ar. Enquanto a chuva brutalmente destacava no lado de fora da janela, as trovoadas barulhentas e a friagem surgia. O Grant fechava os dedos nas mãos longas dele, apenas correspondendo sua presença.
  — Seus limites precisam de controle — levantou a cabeça, antes diretamente focada no visor do assoalho, reparando no semblante melancólico do garoto. Ele estava fabulando um choro? — Você esta chorando? Ei… Não fique assim! Sei que decidi revelar isso, mas está complicado aceitar.
  "Brian… Eu matei alguém (na verdade, Yoshida não fora o primeiro a ser executado), acha mesmo que vou sentir pena se você sofrer? Ainda mais por alguém que está sinceramente pouco se fodendo para a bondade de pessoas que irão abandoná-la no futuro? Você entenderá quem sou eu… Primeiramente preciso de testar o máximo possível e evitar sua ira… Pois não passa de um tolo cordeirinho"Ele, em suas lágrimas fabricadas de falsidade, saiu da banqueta abraçando o gêmeo. Brian não mexia nenhum músculo — condescendo seu calor — os globos oculares rodopiavam sem pausas.
  — Me desculpa… Desculpa por machucar você — Os sussurros diretamente na audição do rapaz — Quero apenas te proteger… Por favor, entenda que nesse mundo, você e eu somos importantes. Você precisa entender que seus medos precisam ser combatidos, e sou unicamente a favor de fazê-los sumir.
  — Henry… Eu não sei mais o que dizer — Ele não sabia aonde seu hóspede queria chegar — Eu…
  Um interrupção os atrapalhou, quando a porta da entrada do casarão fortemente se abriu, ambos por uma fração de segundos, acabaram se separando quando Billy chegara tarde e ensopado pela chuva; tremendo de frio e roupas coladas em seu corpo. Henry e Brian pararam para olhar, todavia o outro Grant estranhou a curiosidade do casal:
  — O que estavam fazendo?
  — Não interessa! Eu é quem me pergunto, o que você estava fazendo para ter chegado só agora. — O irmão batia os pés indignado, já estava acostumado com Billy chegando tarde em casa; no entanto, era genuinamente irritante escutar reclamações de Melissa quando o garoto não ia diretamente para a casa quando saía do colégio — Enfim, isso nunca foi novidade. Acho melhor subir para meu quarto, estou levemente exausto.
  Billy deixara a nova vizinha em sua casa, felizmente ninguém os viu. Ela havia sido uma boa companhia; entretanto o gêmeo de cabelos castanhos não podia negar que Cassie provavelmente estava certa sobre Henry — de algum modo o pálido estava planejando uma lavagem cerebral no irmão.
  Brian cruzou os braços, levantando uma das sobrancelhas. Ombro direito sendo tocado pelo Albarn, também encarando o outro Grant com desgosto. Novamente um fedelho interrompendo seus planos.
  — Tá certo… Eu tentei ser legal, mas estou vendo que não adianta — Incomodado pelo garoto de roupas escuras, resolveu não calar-se — O que você está olhando, hein? Esquisito!
  — Me chamou de quê? — Indagou contendo-se para não agredir ou mostrar que ele o deixava furioso — Não pode chegar e me xingar assim! Brian e eu não estávamos fazendo nada demais.
  — Foda-se, não acredito em nenhuma palavra sua. Sei muito bem que está destruindo a cabeça dele…
  — Cala a porra da boca, Billy! — Esbravejava o irmão, dando cobertura para o hóspede. — Estou cansado dessa sua teimosia, estou bem e não preciso da sua opinião.
  "Puta merda, olha como você esta reagindo… Mesmo tendo se conhecido ontem; parece que conseguiu espontaneamente se entregar pra esse cara. Brian, sei que você irá se arrepender." A familia Grant corria perigo nas mãos daquele maldito rapaz desconhecido, era nítido a maldição setenciada no lar.
  — Olhe para você, Brian, esse cara tá fazendo sua cabeça.
  — Ninguém está fazendo nada, pare de apresentar suas paranóias. — O loiro redarguiu enfurecido e chateado — Vou procurar o que fazer… Tchau! — Deu as costas para os dois, chegando até a escadaria.
  — Como eu disse… Isso não passa de um ciúmes inseguro — Provocava implicitamente o gêmeo de cabelos castanhos, querendo mais raiva e ódio no ambiente. Billy mordiscava a ponta do lábio inferior, fechando o punho e segurando-se para não esmurrar o rosto de Henry — Desculpe, mas… O seu irmão não é apenas seu e de sua mãe. Se você não tem uma companhia, isso claramente é culpa sua.
  — Vou provar para todos quem você é! — garantiu o rapaz, trincando os dentes na mesma medida em que apontava o dedo raivosamente para Albarn — Só aguarde.
  — … Isso é só o começo — uma voz maquiavélica juntamente ao um riso de escárnio, arrepiaram o moreno da cabeça aos pés —, bom… preciso continuar as sessões com Melissa, me dê licença.
  Um ódio e adrenalina percorridos nas veias dele quase emergiram um ataque, Billy tinha certeza que isso não seria a primeira vez.
  Precisava lutar contra aquilo, mas antes deveria trocar de roupas e tomar um banho quente, senão ficaria gripado.

••

  A mulher desconfiava de que seu paciente estava com algum tipo de transtorno relacionado a sua personalidade; ligeiramente decifrando pistas. Desde o "suposto" assassinato de Yoshida, Henry iniciou um contato mais amigável com seus filhos — exceto Billy — e a governanta. Batidas na porta do escritório chamaram sua atenção: era June servindo uma xícara de café e croissant. No entanto, um anúncio sobre o trio de garotos lhe deixara chocada, sem entender absolutamente nada.
  June não costumava se interromper na vida particular da família que trabalhava, mas os gritos foram difíceis de ignorar. Ela também convivia com jovens em seu lar humilde; diferente de Melissa, a matriarca de Richard e Nicholas os abandonou, obrigada a cuidar de seus netos e marido contra sua vontade.
  Embora tenha-se passado dez anos, Billy e Brian até se desentendiam, mas não daquela forma que acabara de ocorrer na sala. Também era impossível não notar a aproximação do hóspede com o garoto loiro, ambos intimamente unificados… Porém não quis dizer realmente se ambos estavam sendo mais que amigos, afinal, não sabia cem por cento da verdade.
  Grant passava as mãos no rosto, massageando suas têmporas completamente exausta.
  — June? Como disse? — perguntou uma única vez.
  — Eu vi, Billy e Henry quase discutindo — Afirmou a governanta seriamente —, quase um confronto entre os dois.
  — Minha nossa… — disse chocada.
  — Vou ficar mais atenta na próxima vez — enunciou a mais velha, separando o pedido da patroa em sua mesa — Agora irei me retirar, boa noite!
  — Certo, boa noite e obrigada por me avisar — logo à frente da entrada do escritório, seu paciente apareceu, extremamente cansado e respirando descompassado — Olá, Henry. Por favor, sente-se.
  O Albarn se sentou no divã afastado da psicanalista, colocando uma perna dobrando-a horizontalmente em cima da coxa:
  — A senhora me parece tensa — comentava o óbvio, umedecendo os lábios. — Aconteceu algo?
  — Me diga você. Por que você e Billy discutiram? — curiosamente inquiriu.
  — Ele sinceramente me irrita.
  — Por qual motivo aparente?
  "O motivo de que se ele novamente se intrometer… garanto que vai se arrepender por mexer comigo."Pensava ameaçador, semicerrando as íris oceânicas para lados opostos do cenário.
  — Ele gosta muito de ser intrometido, minucioso e imaturo — suspirou relaxado — Brian e eu somos melhores amigos agora, quero muito protegê-lo. Sei que nós nos conhecemos apenas em um dia… Mas de alguma forma, ele é um garoto muito especial para mim.
  — Brian também gosta de você, percebi o quanto vocês se deram bem — Aquela frase "ele é um garoto muito especial para mim" tornava-se preocupante para Melissa, algo que não esperava de imediato. Com certeza iria tornar-se uma natureza nunca imaginada.
  Albarn também provavelmente queria ter compaixão — falsa — pelo seu filho; um vislumbre brilhante e significativo de incertezas. Ela teorizou que o motivo da briga: quiçá era por causa de Billy estar tentando separá-los. Uma amizade não bastava entre eles, porque o pálido não conseguia ter relações normais. Foi agredido, xingado e negligenciado. Aprisionado por uma vida tolerante, cercado na insanidade.
  — Me diga uma coisa: Yoshida também era alguém especial? Se aquele homem no qual disse na sessão anterior não tivesse o matado, você sentiria alguma felicidade ao lado dele?
  — Er… Não sei — "Yoshida está morto, senhora Grant, acha mesmo que ele gostaria de ficar comigo? Ele nunca foi digno o suficiente". Negativamente balançava a cabeça, querendo atuar uma confusão. — Acho que… Yoshida foi minha inspiração para meus desenhos, nada mais além disso.
  Outra evidência interessante fora decretada. Melissa teria mais o prazer de adentrar na arte soturna de seu paciente, alguns assassinos em série desenhavam e pintavam quadros na prisão — Richard Ramirez, John Wayne Gacy e Dennis Nilsen —, e infelizmente presenciou várias artes macabras do falecido cruel assassino das tesouras: Dwight Campbell. Enquanto terminava seu doutorado, aquele homem podre que perseguia mulheres indefesas por Swan Lake ilustrava seus crimes e vendia-os para membros de bandas do gênero black-metal. Se Henry deixasse-a explorar seu caderno, saberia mais.
  Foi então que fez a seguinte pergunta:
  — Um dia terei a oportunidade de ver sua arte?
  — Talvez sim, você ficaria impressionada — riu sôfrego — Eu costumo desenhar tudo o que vier em minha mente, uma forma de evaporar traumas e problemas, admito.
  — Ah… iremos trabalhar com esta questão em breve — Melissa bebericava seu café amargo, delicadamente esticando o mindinho no apoio da xícara. Sentindo o líquido descer pela superfície da garganta — Como seu dia foi hoje? — Quis saber, os cotovelos perfeitamente sob a mesa, enquanto o dorso da destra escorava em sua bochecha. — Bom ou ruim?
  — Medíocre, entretanto… Algo chamou minha atenção: uma garota. — Contava sem pausas, fabulando e disfarçando as reais histórias, piscava as retinas ansioso; torcendo para que o tempo durasse pouco — Ela parecia uma raposa vagando sem rumo nas ruas, mas não uma raposa ameaçadora. A garota tinha medo instalado em seus olhos, parecendo conhecer os lugares e levemente apavorada. Não faço ideia de onde ela veio, creio que seja nova nesse bairro.
  Muitos ciclos aparentemente tomariam conta de Swan Lake. A chegada de vizinhos e mais novidades sobre Henry eram relativamente chocantes; uma noite de lua cheia viria, assombrando a região. O que aguardavam? Quais sensações os cidadãos teriam agora? Nada justificava futuras tragédias — por enquanto.
  O pálido relembrava da ninfa dos cabelos flamejantes encurralada no bairro Odette, análoga como uma vítima sob qual sofrera diversos horrendos eventos, ela precisava correr dos homens que iriam perturbar sua alma — contudo suplicava em ser resgatada —, procurando seguir uma luz demasiadamente magistral. Ela fixamente contemplava sua imagem ofuscante, Henry viu nela… Seu próprio reflexo.
  — Essa garota nova na cidade pelo visto deve ter intrigado bastante, não?
  — Sim… — revirou os olhos, batendo os dedos no encosto do divã — Foi estranho, mas… acabei me deparando quase com uma figura da mitologia grega.
  — Qual figura? — A psicanalista se interessou no assunto, embora seu paciente lhe causasse desconforto.
  — Perséfone — sorriu ladino, mas não de um jeito carinhoso e gentil.
  “Estou acreditando fielmente que essa garota não estará em boas intenções com ele. Preciso telefonar para Gisele e Miranda.” Engoliu em seco, vendo que o tempo da consulta tinha finalmente acabado. Melissa pediu para que Henry se retirasse.
  — Nossa sessão infelizmente acabou — descruzou as pernas —, não trabalho nos fins de semanas. Entretanto, meus filhos e você irão para o parque de atrações da cidade amanhã. Espero vê-lo mais animado, Henry.
  — Certo… Obrigado, senhora Grant.
  Quando o Albarn livrou-se da sala, a mulher esperou distância dele. Ao observá-lo, rapidamente ia até o telefone fixo de sua parede, discando o número da residência, desesperadamente aflita.
  Precisava marcar um encontro com as tias do rapaz, estava preocupada:
  — Gisele… por favor, o seu sobrinho está necessitando de ajuda. Estou preocupada com ele! — falava para a mulher, enquanto pensava em seus filhos — Peço que me encontre amanhã me encontre no parque: Black Swan! É urgente.
  Desligou a chamada sobrepondo o telefone no gancho, olhando de relance sua janela embaçada. Era apenas o início, a família Grant circulava em um grande perigo.

Capítulo 06

  SUA FRAGILIDADE ERA MARCADA POR UMA CICATRIZ DOLOROSA. Mesmo sendo respeitada por eles, a família continuava na mesmice habitual, vivendo em um lar recente — o que não era algo relevante para se preocupar naquele momento.
  Ashley evocava um desejo intenso e anormal, que nem ela mesma reconhecia a origem. Determinadas características incomuns frequentemente se uniam quando sua sanidade diminuía; inconsciente, ela sentia os dedos grossos e unhas afiadas agarrando seu pescoço.
  Em seguida, tais garras monstruosas abafavam seus gritos… Ela derretia, evaporando no kafkiano, metamorfoseando-se numa mariposa sufocada pela fumaça e brasa. Pousava em um limbo, onde era sacrificada pelas criaturas dos traumas.
  Cientificamente, dizem que os sonhos contêm simbolismos abundantes, e que nosso entendimento humano processa lembranças independentemente das situações vividas pelo indivíduo. Contudo, nenhum indício conclusivo explicava o caso de Ashley acordando com a respiração pesada, sentindo as lágrimas escorrendo em seu rosto — um alívio, um lembrete típico de que ainda permanecia viva. Quem vivesse na pele da garota entenderia fielmente o sentido de sua visão distorcida da realidade.
  Wilbur mal conseguia se distrair com outra coisa; ferozmente, roubaram uma parte importante dela. Para ela, era inadmissível aceitar que isso não teve a justiça que merecia. Todavia, quando seu caminho cruzou o do fantasmagórico homem alto de seus pesadelos, hesitou em admitir que ele fosse verdadeiramente um ser humano. Terrivelmente, aquela aparência intimidava diante do semblante cruento, que singularmente acendera uma luminosidade reverberando a mortalidade.
  Ela, tresloucada e imersa no vórtice de sua psique arruinada, ansiosamente esperava ser uma reencarnação de Perséfone: a deusa da primavera. Cansada de "encantar" homens sujos da humanidade, que injustamente roubaram sua pureza e castidade, ela desejava finalmente ser arrastada por Hades para o submundo, retribuindo um amor incompreendido e transcendentalmente intenso.
  Sua meio-irmã não deixaria, de fato, que fizesse uma maluquice daquelas. Porém, Ashley acreditava que eram apenas sonhos… Então, não custava nada romper aos poucos os males da realidade.
  Acontece que Hades conteve a flecha fulminante e retirou-a de seu peito, porque Eros, infelizmente, entregou-se ao senhor do Tártaro. E assim, como ela… Permaneceu nos encantos dele de forma inusitada.
  Naquele luar radiante, bloqueado pela escuridão do céu estrelado, a beleza da lua crescente a fascinava. Ashley esquecia os breves repousos em seu colchão, inclinando-se sobre o peitoril da janela aberta, apoiando os cotovelos repetidamente, com o objetivo de admirar a paisagem noturna, querendo tê-la só para si.
  Enquanto dedos delgados massageavam os contornos de sua face preguiçosa, o zéfiro erguia gradualmente os sedosos fios de cabelo em tons de cenoura. A ruiva experimentava sensações terapêuticas e, com o corpo semi-nu sensibilizado, encarava brutalmente a intensidade outonal e fria do horizonte.
  Sobrecarregada pelo fim do dia, atolada na desilusão e desconectada do mundo real, o vislumbre de seu quarto para a vizinhança — mesmo sendo amplo — facilitava a visão de cada residência. Porém, algo surpreendente foi contemplado: as cortinas balançavam na janela da casa à frente, instigadas pela sombra estática de uma altíssima silhueta, coincidindo descritivamente com o rapaz que ela encontrara muitas horas antes.
  Correndo até o closet para vestir o penhoar, Ashley saiu brutalmente pela fresta da janela, mas, ao retornar, não viu mais nada; nenhuma brecha havia. Era certamente um vulto, produto específico de sua imaginação. O lugar observado era um enorme e gótico lar, sem vistas para os moradores da casa. Seus lumes azuis-acinzentados estavam decepcionados.
  Emitindo um bocejo rouco, a jovem adulta decidiu finalmente adormecer. Silenciosamente, agradeceu por Lauren não invadir sua privacidade como costumava fazer; a matriarca costumava lhe dar beijos de boa noite, embora sua faixa etária não fosse mais adequada para isso. No entanto, pela pressa e organização dos quartos e da cozinha… O advogado e sua filha mais velha certamente haviam dado grandes enxaquecas à mulher durante o processo.
Lauren dormia feito pedra, e Cassandra saiu do quarto — ao voltar do curto passeio encharcada de chuva — para se banhar.
  Mordiscando as camadas de seus lábios rosados, desamarrou o laço do penhoar, que caiu abaixo de seus pés descalços, no assoalho. Jogava moderadamente os longos cabelos para a direita, sobrepondo-os à canhota em suas feridas, pesadamente inspirando. Odiava segurar o pranto nas vezes em que se deparava com o reflexo de seu corpo inteiro, pois ele não pertencia mais a ela… Filhos da puta marcaram-no.
  Revirava-se ornamentalmente aos lados. Na puberdade feminina, sempre fora tabu a exploração do próprio corpo. Sentia falta da época em que ninguém cobiçava seu físico, quando era uma menina sorridente e feliz, que brincava no escorregador do parque e levantava os braços. Agora, era uma Wilbur infeliz e crescida, nunca vista como um erro, mas sempre uma perfeição.
  Desde o amadurecimento dos hormônios, tudo parecia estranho: alma, rosto, seios, pensamentos. Eles não apenas revelaram a vida em um todo, mas também mostraram o quão as meninas perfeitas contêm segredos e frustrações, como qualquer outra.
  Desistindo de encarar sua aparência inteiramente, resolveu se aconchegar no colchão enfeitado com edredons cor-de-rosa, antes de realizar suas preciosas horas de sono. Rapidamente, fechou os vidros da janela e puxou ambas as cortinas para os lados.
  Apagando a lâmpada forte da cúpula do abajur, buscando a melhor posição, Ashley foi se jogando lentamente na cama, escorando a cabeça no travesseiro. Por fim, verticalmente caída, notou uma dupla visão do lustre pendurado no forro do teto florido. Censurado era o busto médio arredondado pelas inúmeras camadas da ondulada juba avermelhada, e finíssimas pernas dobravam-se contra o rosto, entrelaçadas por minúsculas mãos delicadas.
  Ash estava confortável agora, nua sob a escuridão, rente à calmaria da madrugada. Piscara as retinas, suportando os cílios naturais preenchidos, repousando. No entanto, complexados pesadelos se despertam, invadindo seu ser vital e arrastando-o ao inferno quimérico.
  A silhueta desacordada murmurava enquanto dedos de unhas compridas traçavam regiões corporais, muito semelhantes a um navegador girando o compasso em um mapa. Os dígitos alcançaram o rosto ninado, desenrolando uma carícia que vinha do pescoço e chegava na testa visivelmente sardenta — as sardas desenhadas na feição leitosa.
  Vagarosamente, o irreconhecível das enormes mãos assoprava perto dos lábios fechados e passava os dedos nas curvas do corpo, alcançando quase a virilha. Contudo, Ashley despertou abruptamente, o ventre tremendo e adquirindo um aspecto fantasmagórico. Tocando o meio de seu coração, que batia apressadamente em seu peito, ela preferiu recusar o susto, deitando-se novamente em sua cama.
  Se enganou quem pensou que o fim de pesadelos tenebrosos já havia chegado. Na outra realidade, embasada e desproporcional, seu rosto caiu em um território áspero e, quando levantou com dificuldade… O suor escorria em sua nuca e as maçãs da face incomodavam-na em meio à atmosfera vazia e abafada. Visualizando de cima para baixo, ela trajava um sobretudo branco, mas o tecido estava ensanguentado. Seus pés pisotearam o chão, rastreado por hemolinfa — abelhas mortas.
Certamente, não estava mais em seu quarto.
  Processava abertamente a dimensão classificada como um “lugar nenhum”. Possivelmente, era fácil entender o nascimento de sua criação: paredes invisíveis num vazio negro. Era uma lástima de fato; ela buscava esperança e viagens harmônicas dentro de sua psique. Contextualizando: a viagem de uma garota emocionalmente ferida, cujos sentimentos nunca haviam sido expostos, que desejava ser purificada.
  Todavia, a purificação que os seres humanos procuram não é especialmente em busca dos bens do universo. Por isso, escolhem mergulhar na sujeira e podridão do mundo.
  Zumbidos de abelhas e vespas cercavam-na. A entomofobia se desenvolveu, sobrando para a garota engolir em seco, chacoalhando de um lado para o outro. Os insetos aumentavam de tamanho, querendo feri-la e perseguindo seu principal alvo, como um simbolismo ameaçador. Gritando desesperada, ela optou por correr, apagando o medo, embora fosse complicado. Os bichos voadores se multiplicavam, e quanto mais ela pisava no chão de origem duvidosa, mais sentia ferrões grudados nas superfícies dos pés. Quanto mais esmagava, mais se multiplicavam.
  Vespas atacavam em conjunto, mas Ashley caiu em uma poça d'água e jogou nela. Quando deu um passo para trás, a ruiva se defendeu enchendo ambas as mãos com a água gosmenta e jogando nos insetos.
  Correndo, se ajoelhava quando um obstáculo era incapaz de ser superado. Foi engatinhando apressadamente, mas enormes baratas passaram em suas canelas, e mais gritos de horror saíram dela. Restava, por fim, a opção de tirá-las de si, mas de repente, o cenário desapareceu, girando em sentido anti-horário, fazendo com que sentisse enjoo e náuseas.
  Os cabelos ergueram-se para cima, e ela foi caindo de cabeça para baixo em um salão com pouca claridade, enxergando paredes com diversos olhos, enquanto manchas sangrentas permaneciam em sua roupa. Ao lado, na estranheza, ela imaginava aqueles olhos frequentemente piscando para ela. Suplicando para acordar, batia os punhos na testa, e a parede se aproximava, fazendo o cenário se tornar cada vez mais minimalista.
  “Quero acordar, por favor… Acaba esse sonho, eu quero acordar…” Ela esticou os braços contra os olhos das paredes, e uma luz branca começou a surgir no ambiente. E foi chegando… Chegando… E chegando.
  Encarando outra mudança, tudo parecia tranquilo e nada distorcido. Não havia mais perseguição, apenas a dona do pesadelo acordando em um jardim de margaridas, sob um belíssimo clima ensolarado. Onde as nuvens eram mais felizes e branquíssimas, como algodão. Entretanto, Ash tossiu após sentir o cheiro de algo deteriorado e podre vindo do outro lado.
  Chocando-se com si mesma, na mesma posição sem vida, sua versão alternativa estava morta em um “paraíso”. Qual seria o real significado? Ela com certeza não sabia onde seus pensamentos mais dolorosos e obscuros queriam chegar! Quiçá, os olhos das paredes fossem os espectadores que assistem e não fazem nada, e as abelhas e vespas eram as violências contra a garota, multiplicando os perigos na medida em que ela os confrontava.
  >Um canteiro de margaridas brancas eram revelações ambíguas de sua pureza e esperança no amor. Fazia sentido que uma versão dela não possuísse mais vida — finada assim como a pureza.
  Então, nitidamente, os sonhos tinham simbolismos e menções às inseguranças que a prendem ao mundo real. Torcia para que seu inferno acabasse, mas seu antebraço esquerdo foi puxado fortemente; costelas saindo das flores e, na visão do paraíso...
  Renunciando às trevas da personificação jovial, sua longa capa trouxe à vítima uma angústia deliberada. De costas, o pálido mantinha-se submerso no obscurecimento, entrelaçando seus dedos nas mãos da adolescente maculada e levando-a à floresta nebulosa.
  O nevoeiro aumentava a cada passo, e Wilbur tinha dificuldade em discernir sua presença. Era impossível enxergar saídas no ambiente, pois a névoa cegava e incomodava suas pupilas azuladas, que constantemente lacrimejavam devido ao ar desconfortável e poluído da floresta.
  Quando a criatura fantasiosa parou de andar, Ashley e ele se cruzaram... Entretanto, estavam em um território onde cisnes brancos e negros estavam presos em um lago densamente notável. Ele apresentou o rosto que ela já havia familiarizado em seus pesadelos anteriores: o garoto estranho que a livrava de seus inimigos, aqueles que só serviam para vulnerabilizá-la e testar os limites de sua sanidade. Ele parou diante dela, e as batidas de seu coração se intensificaram. Ela o viu repuxar um sorriso afável.
  Ashley não correspondeu à sua intenção. Revirou o contato visual enquanto a enorme mão leitosa, de unhas afiadas, limpava suas lágrimas. Ela então jogou a cabeça na região onde deveria estar o coração do garoto—mas sequer era audível qualquer batida. Semicerrando os olhos, voltou seu olhar para as majestosas asas negras de um dos cisnes dali.
  Ali era outro inferno? Ou seria uma alternativa explícita para evitar uma drástica mudança nos futuros sinais? Independentemente do que fosse... não era comum, muito menos natural.
  — Por que me trouxe aqui? — questionou baixinho, sentindo a ternura áspera. — Você quer me salvar? — Levantou o semblante confuso para encontrar o olhar do mais alto. — Me resgatar da maldade?
  — Não sei… Sou apenas um fruto da sua imaginação, nada mais. — A voz serena da figura penetrou seus ouvidos. O pálido cravou sua visão profundamente nela, tocando o indicador nos lábios de Ashley. — Acho que é você quem está me guiando sem perceber. Quero estar à sua altura, sendo a única capaz de me controlar.
  Realmente, ele tinha razão. Aquele estranho garoto era uma ilusão pertencente apenas às dimensões dela.
  Diante do homem das sombras, a criadora refletia sob os efeitos sonoros do lago. Qualquer elemento trazido dela era notório. O ambiente cinza era seu próprio País das Maravilhas. Ashley era a versão da Rainha Vermelha, exilada de seu castelo pela Rainha Branca, enquanto seu "protetor" era um mero valete de paus, obrigado a servi-la em uma parte ignorada da fantasia de Alice. Os cisnes negros representavam impacto; os brancos, um caminho de luz.
  A respiração irregular da ruiva fazia com que ela abrisse e fechasse os olhos lacrimejantes. Wilbur começava a apreciar a proteção dela, mas, internamente, ansiava para que o pesadelo acabasse.
  — Eu pude te encontrar na vida real. Nossos universos se fundiram sem que eu percebesse! — falou melancólica e confusa, piscando os olhos. Era espantoso descobrir que sonhos podem ser portas para um futuro nunca imaginado. Contudo, naquele contexto, era um futuro desesperador. — Ele era você por inteiro: a mesma pele leitosa, os mesmos olhos e as mesmas vestimentas.
  — Então… sou alguém na vida real? — indagou, surpreso, afastando-se aos poucos da criadora, que acenou positivamente.
  — Sim — confirmou sinceramente, desviando o olhar para os cisnes e sentando-se próxima ao lago. — Mas não acredito que sejamos dois condenados. Ele parece estável e despreocupado. Quanto a mim… sou apenas uma garota que nunca terá o amor de ninguém.
  — Acha que minha versão humana possui um coração?
  — O coração dele… — Mergulhou os dedos na água gelada, brincando com seu reflexo, que mudava de expressão enquanto fazia caretas singulares. Os efeitos circulares na água fria... — parecia ser de ouro.
  — Mas, Ashley… monstros não são propensos à compaixão.
  — Ele não é um monstro… pelo menos, acho que não.
  Era nítido que ela dividia a ficção com a realidade. O homem pálido, envolto em penumbra, impressionava-se com a personalidade que sua criadora ostentava: uma aparência entristecida, porém ambiciosa. Ela sorria ao observar aquelas espécies de anatídeos, tocando carinhosamente seus longos pescoços, como se fosse uma elfa florestal conhecendo sua terra natal e se familiarizando com os animais.
  Polido e amistoso, o ser de cabelos negro-azulados ajoelhou-se ao seu lado, inspirando o aroma de sua juba avermelhada. Ashley o observava silenciosamente. Os dois continuaram juntos, enquanto ela ansiava para que o rapaz compreendesse suas repentinas frustrações.
  As possibilidades de a figura pálida de sua utopia ser oposta à da realidade tornavam-se mínimas. O clima do sonho inesperadamente voltou a se tornar turbulento. As nuvens daquela dimensão escureceram conforme a velocidade temporal avançava. O homem levantou-se e soltou um riso malévolo, franzindo as sobrancelhas.
  A partir daí, ele não disse mais nada. Apenas segurou as mãos dela e puxou seu corpo para perto da entrada do lago.
  Ele deu o recado:
  — O perigo te consumirá. A partir de agora, seu sofrimento irá prevalecer — declarou, sádico, arrancando um leve desgosto da ruiva quando sua língua roçou em sua bochecha. — Mesmo acordando… O pesadelo te seguirá. Garanto que esta minha versão não é segura. É necessário aprender a sacrificar… e lembrar que a morte não existe apenas nos sonhos.
  Então, ele a empurrou para a profundidade do lago, e Ashley soltou um grito.
  — Espere! O que você está fazendo comigo?!
  Tentando nadar e respirar, ela apenas afundava mais. Ashley insistiu para que ele voltasse, mas ele desaparecia, abandonando-a com os cisnes, que se agitavam, nervosos. O balançar das asas e das penas caindo ao seu redor indicavam que não havia escapatória.
  — Por favor… me diga! — gritava, saltando na ponta dos pés. — Volte aqui!
  Seu fôlego se perdeu, e algo embaixo d’água a puxava ainda mais para o fundo. Uma enorme planta de origem desconhecida a arrastava para outro local. Não havia saída. Ashley conseguia ouvir ruídos, mas seus olhos permaneciam abertos, apesar da falta de ar. Tudo era escasso.
  No instante em que morreria ali, Wilbur retornou ao mundo real, acordando sobressaltado. Ao perceber que havia entrado em um estado de loucura temporária, Ashley implorou internamente para não se deparar com aquele garoto novamente. Acreditava que ele estava determinado a matá-la, como sua visão indicava—embora fosse apenas fruto de sua imaginação.
  A ruiva despertou sob os raios solares, que fustigavam seu rosto. Com uma mecha de cabelo atrapalhando sua visão, suspirou pesadamente. Sua caixa torácica subia e descia em um ritmo frenético. O quarto cor-de-rosa permanecia organizado. Ela empurrou sua cabeleira para trás e ficou em posição de lótus, sustentando o impacto de seu quinto pesadelo bizarro.
  Ignorando o que presenciou em outra realidade, Ashley desejava que seu fim de semana fosse bom.
  Mas logo percebeu que sua manhã não seria tranquila. Cassandra já estava lá.
  — Cassie! — Bateu na porta com força, revelando sua impaciência e tensão. — Eu também preciso usar o banheiro. Saia logo daí!
  Depois de esperar por nove minutos, a loira destrancou a porta, saindo do cômodo com um semblante fechado e indisposto. A companhia de seu novo vizinho acabara lhe dando um tremendo resfriado e dores nas pernas — sentada no quadro enquanto Billy acelerava os passos na bike —, nunca mais se submeteria a um passeio na chuva.
  — Oi. — Abanava os braços, fazendo uma cara desgostosa e demonstrando péssimo humor. — Tá livre, pode usar.
  — Obrigada. — Revirou os olhos, mas decidiu questionar a loira em seguida: — Desculpa ser intrometida, mas… onde você esteve à noite? — Sobrepôs uma das mãos na cintura.
  — Fui perambular nessa cidade chata e, no final do caminho, peguei chuva. — Silverstone cruzou os braços, evitando mencionar outros acontecimentos da noite anterior. — Você está ciente de que odeio quando pergunta sobre mim, né?
  — Sim, eu sei. — Assentiu, caminhando até a porta escancarada. — Bom… a programação pra hoje certamente vai ser uma merda. — Reclamou, com um semblante triste. — Mal chegamos e minha mãe já quer proclamar regras.
  — Ora, ela sempre foi assim. — Cassie não se impressionou, dando de ombros. — Enfim, vou tomar café… Nada melhor do que Lauren e meu indigníssimo pai enchendo a porra do saco. — Ironizou, saindo do lugar e indo em direção à escadaria.
  "Se William também fosse mais atencioso comigo… não teria medo de falar quão loucos são meus sonhos e do quanto me assusta a desconfiança de que meus segredos, futuramente, irão me afetar." Sibilou após seu pensamento, iniciando sua higiene matinal.

•••

  Ambas as irmãs seguiram para a cozinha americana, sentando-se nas cadeiras em lados opostos da mesa, onde o advogado navegava em seu smartphone enquanto sua esposa preparava cappuccino e ovos mexidos em frente ao fogão.
  O bule fumegava conforme o leite borbulhava, espalhando um cheiro que incomodava Cassandra, pois ela odiava laticínios. Ashley observou sua mãe afrouxar o laço do avental, deixando-o pendurado em um prego da parede. Logo em seguida, a mulher serviu ovos e panquecas em diferentes pratos; o marido desligou o aparelho, cumprimentando as garotas e a esposa.
  — Estava viajando no mundo da lua, querido? — Lauren brincou com o marido, servindo-lhe uma xícara de café quente. O homem aproveitou para beijar rapidamente sua bochecha. — Bom… parece que está animado o suficiente para um primeiro dia de trabalho estressante.
  — Satisfeito é a palavra certa. — Sua voz soou rouca e cansada enquanto ele bebericava o líquido adocicado. — Quero nem imaginar os casos insalubres que essa cidade possui. Tenho medo… muito medo.
  A Silverstone mais nova resmungou algo enquanto saboreava o banquete à sua frente.
  Lauren logo se incomodou:
  — O que foi agora?
  — Ora… nada! — exclamou, mastigando o alimento de forma ruidosa e irritante. Afinal, Cassie adorava provocar sua madrasta. — Se enunciar minha opinião, sou xingada.
  — Pelo menos, coma devagar! Nenhum de nós precisa dizer que isso é falta de educação. — Suplicou o óbvio, encarando a afilhada cortar a massa e preencher o garfo com três pedaços dela. — Ah, não adianta falar…
  — Cassandra… mal amanheceu e já está perturbando? — Indagou o patriarca, nervoso.
  O advogado não suportava a maneira como sua filha provocava os adultos da casa. Devido à sua indagação, a loira não demonstrou remorso sequer. Will, ocasionalmente, optava por interagir com a filha e esperar alguma reação dela. No entanto, os revirares de olhos e resmungos já denunciavam seu desinteresse. Sua relação com Ashley, por outro lado, era natural e respeitosa — o oposto do que ocorria com sua filha biológica, que praguejava muitos palavrões e soltava risadas estridentes em tom sarcástico.
  Revigorar os sabores de uma refeição matinal era terapêutico, embora desavenças surgissem no ambiente familiar.
  Lauren aprimorava suas habilidades culinárias desde o tempo de seu primeiro marido — o pai de sua única primogênita — e profissionalizou-se na confeitaria no longínquo ano de 2008.
  Quem olhava para os cachos arredondados da sua curta madeixa ruiva automaticamente a associava a uma icônica mulher saída da antiga Hollywood, com trajes femininos arcaicos, vestidos longos e farfalhantes, além de sapatos elegantes de grifes californianas e nova-iorquinas.
  William conhecera Lauren em uma acalorada primavera brasileira, quando ambos, turistas, haviam se deslocado do interior do estado de São Paulo para uma cidade chamada São Roque (terra das flores e do vinho). A mulher viajava pelo Brasil e pelo Chile acompanhada do ex-marido, pois os doces e bebidas do continente sul-americano eram novidades em seus comércios. O advogado nunca soube exatamente por que aquela nativa estadunidense, outrora misteriosa, havia se encantado por ele.
  Muitas histórias foram inventadas, mas Silverstone acreditava que Lauren estava com um homem de quem precisava apenas para aproveitar o dinheiro e o status. Por isso, teria se divorciado do outro e levado sua filha de volta aos Estados Unidos, antes de se relacionar com Will. Mas essa história é mesmo verídica? Bom, na perspectiva do advogado… algo era ambíguo e não totalmente explicável.
  O pequeno comércio da Wilbur mais velha se manteve estável por um tempo, apesar de Golden Oaks ter sido uma boa cidade para trabalhar. Contudo, sua loja foi forçada à falência, e ela precisou abdicar dos negócios presenciais para investir em vendas online.
  Tradicionalmente, criou receitas de brigadeiros de licor, bolos de frutas e doces de leite conservados — algo impopular nas regiões estadunidenses. Devido à mudança de localidade, suas vendas foram pausadas enquanto ela tentava se estabelecer na nova moradia.
  Cassie, quando ainda morava com sua mãe, adorava experimentar os doces feitos por sua madrasta. Todavia, era apenas uma criança. Naquela idade, amava-se tudo.
  Voltando para o presente, os familiares conversavam entre si, mas Ashley permanecia quieta e lúgubre, repensando sobre o misterioso garoto de sua rua; as mãos que a empurravam para dentro da lagoa, enquanto os cisnes de seu sonho a rodeavam. O manto preto levitava — como uma bandeira em um mastro — na ventania bruta, e a figura partia. Ela, por sua vez, marejava os olhos azulados em lágrimas ao se afogar, clamando para que o homem a acudisse.
  Embora tentasse gostar do café da manhã, a atmosfera harmoniosa e os risos descontraídos pareciam irreais.
  — …Eu sei, preciso arrumar um emprego. — A loira replicava a madrasta, que dissera as obrigações pela sétima vez, batendo suas unhas ritmicamente na mesa. — Ei, Ashley? Você está bem?
  Claro que sua meio-irmã não mostrava preocupação genuína, mas fora impossível não notar a estranheza na ruiva.
  — Ash? Terra chamando, Ash! — gesticulou com a destra, tentando chamar sua atenção.
  — Oh… O quê? — reagiu, juntamente a um espasmo. Sua cadeira rangeu e, num instante, seus punhos bateram na mesa. Todos a encararam, assustados. — O que houve? Não prestei atenção. — Balbuciou, envergonhada, afastando os cotovelos da mesa de madeira.
  — Querida? — Lauren, com um semblante chocado, não esperava que Ashley fizesse algo daquele tipo.
  — ‘Tava viajando, sabia! — disse Cassandra, sem emoção na voz.
  — Ah… Desculpem, não dormi bem essa noite — mentiu, olhando para baixo. — Tive insônia, nada demais.
  O advogado pronunciou-se logo em seguida:
  — São os efeitos de Swan Lake, logo você se acostuma.
  — Engraçado que eu dormi tranquila — comentou Lauren, sentando-se ao lado da filha. — Deve ser falta de costume. Garanto que iremos nos adaptar. Indiana e Golden Oaks precisavam acabar de qualquer forma.
  — Tudo isso porque era uma civilização, diferente deste inferno gelado — reclamou a garota loira, impaciente. Apesar de todos os lugares serem chatos para ela, era inevitável dizer que Swan Lake também não fosse. — Seria mais aceitável irmos para Michigan.
  — Nossas condições financeiras não permitem. Vamos morar aqui, quer você queira ou não, Cassie — argumentou William, retirando-se da cozinha. — Bom, estou saindo para trabalhar. Vejo as senhoritas à noite.
  Procurou sua pasta e despediu-se do trio.
  Quando William saiu de casa e dirigiu-se ao automóvel, uma alta e esbelta mulher cruzou-se no local onde o carro estava estacionado. Era sua vizinha — Melissa. Primeiramente, ela o cumprimentou, e Will fez o mesmo, contemplando detalhadamente a figura elegante da psicanalista, embora não conhecesse sua índole.
  Melissa reconhecia aquela residência, mas nunca pensaria que teria novos moradores. Geralmente, ninguém comprava imóveis no bairro Siegfried devido ao altíssimo custo de despesas e quitações. Em contrapartida, era excelente receber novas pessoas em Swan Lake.
  A névoa, por algum milagre, havia diminuído naquele sábado e não aparentava esfriar mais do que o normal. Contudo, o clima às vezes enganava. Era visível a quantidade de folhas caídas das árvores devido à brutalidade da chuvarada anterior, além de pequenas poças d’água nas calçadas.
  Intrigada, Melissa puxou conversa com o novo vizinho:
  — Nunca te vi antes. Quando veio para cá?
  — Ontem pela manhã — respondeu ele. — Qual o seu nome?
  — Melissa Grant. — Ambos deram um aperto de mão. Os olhos acinzentados de William se fixaram nos esmeraldas da mulher, definitivamente encantado pelo timbre aveludado de sua voz. — E o seu?
  — William Silverstone.
  — Prazer em conhecê-lo oficialmente. — Melissa sorriu simpaticamente, balançando os cabelos dourados para ambos os lados. — Caso você ou sua família precisem de ajuda, estou disponível. Moro ao lado.
  Ela apontou para o casarão gótico do outro lado da calçada.
  — Er… Certo, obrigado, Melissa — disse ele, virando-se para o Cadillac e abrindo a porta do motorista. — Se não se importa, poderia me dizer por que me abordou? Sei que há muitos conflitos neste lugar. Não quero achar que você seja um deles.
  — Não sou um conflito, garanto a você — confessou. — Estaremos no mesmo patamar. Trabalho com psicologia: tanto clínica quanto forense. Facilmente reconheço um advogado criminal.
  O perfil de Silverstone era intimidador para a mulher. Ela queria saber mais sobre ele e entender suas habilidades no campo jurídico.
  William adentrou na advocacia criminal quando sua filha mais velha causou intrigas no passado. Fazia sentido, pois, em sua antiga cidade, tampouco havia crimes. No entanto, recusar um emprego bem-sucedido era algo inaceitável para ele.
  Melissa já intuía que, futuramente, ambos trabalhariam no mesmo caso: Henry. O garoto mencionou uma recém-chegada, provavelmente uma moradora daquela casa.
  Ela rezava para que ele e seu paciente não se encontrassem, mas sabia que isso aconteceria de qualquer forma.
  — Interessante, para você. Então, seremos bons companheiros — anunciou William, sentando-se no banco e ligando a ignição. Interessado nela, contrapôs logo em seguida: — Quer carona?
  — Ia chamar meu motorista, mas já que está gentilmente me convidando… Vou aceitar de bom grado. — Melissa apoiou-se na janela do Cadillac. — Tenho muitos afazeres e compromissos. Prometi que acompanharia meus filhos… embora eles não tenham mais idade para serem vigiados.
  — Estou na mesma — falou o advogado. — Minha mulher e minhas duas filhas às vezes me deixam exausto. Mal cheguei aqui e já sinto um fardo nas costas.
  — Filhos são complicados, normal. Tenho dois rapazes gêmeos.
  — Nossa.
  Will evitava olhar para o decote da vizinha, embora ela fosse muito atraente. Ele sinalizou com a cabeça para que Melissa fosse à frente. Ao entender, a loira caminhou até a outra porta. Suas coxas grossas destacavam-se pelo curto tecido da saia godê, e, ao sentar-se no banco do passageiro, seus sapatos marrons Yves Saint Laurent reluziam.
  "Deus me perdoe, mas… que mulher é essa? Parece ser mais interessante do que aparenta."
  Maliciosamente, cobiçou as pernas cruzadas da vizinha enquanto ela tirava um batom vermelho matte da bolsa e puxava o espelho do carro para admirar seu reflexo.
  "Oh, Lauren… se eu não fosse casado com você…"
William moveu o volante enquanto as rodas percorriam o caminho, esquecendo-se por um instante da passageira.

•••

  O som holístico da água derramando na esplêndida cascata do jardim Grant enaltece o pacifismo e a magnitude no belíssimo canteiro de lírios brancos e orquídeas flecha-do-cupido. A escultura Vênus de Milo abstrai o habitat: silencioso e fundamentado, compatível com a natureza desdenhosa do lar.
  A governanta Hopkins fora autorizada a trazer o neto mais velho, Nicholas Smith. Graças à união do rapaz e dos gêmeos, quase todos os fins de semana os visitavam, pois eram muito amigos.
  Nicholas era um humilde jovem negro de dezenove anos que possuía ascendência moçambicana por parte da família paterna, embora a matriarca fosse norte-americana e ele nunca tivesse realmente conhecido outros parentes. O garoto era dono de uma juba encaracolada castanho-claro, olhos azul-esverdeados ampliados, cílios naturalmente volumosos, rosto fino e queixo relativamente oval. A pele era salpicada por minúsculas pintas sobre o nariz arrebitado e nas bochechas. Devido ao seu astigmatismo, Nick usava uma armação de lentes quadradas com hastes douradas.
  Diferente do irmão mais novo, costumava ser imponente e educado, contribuindo com os serviços de seu pobre lar e sonhando com uma carreira de escritor. Nicholas adorava literatura e se empenhava fielmente em um padrão de alta classe — vestindo marcas de roupas importadas e suéteres Louis Vuitton, peças estas doadas por Melissa.
  Minuciosamente, reparava em sua avó e em outras trabalhadoras da casa regando as flores dos arbustos. Querendo amparar a mulher de terceira idade, caminhou, destacando os brancos tênis Adidas na grama molhada. June recusou sua ajuda, mas ele queria ser útil e não apenas uma visita dos ricos.
  — Ver as senhoras trabalhando me deixa nervoso — afirmou o rapaz. — Participar é importante.
  — Como gostaria que meus netos fossem assim — comentava Evelyn, uma idosa branca e ruiva, responsável pela lavanderia e pelo jardim. — E você nos diz que eles devem ser jovens.
  Respondendo diretamente a June, agarrava um dos lençóis fabricados por linha egípcia, estendendo-o em seguida no varal.
  — Os tempos são outros — disse a governanta, retirando as luvas manchadas de terra. — Nick nem parece ser deste século, por isso, quando vem aqui… ajuda e ouve nossas conversas.
  — Isso são inverdades, vovó — Nick riu sôfrego, também retirando os cobertores e lençóis de determinadas cestas. — Eu sou antiquado, mas isso não me restringe a ser como os outros garotos.
  — Falando em outros garotos… ouviram as brigas de ontem à noite? — perguntou uma terceira mulher, Angeline, de curtos cabelos negros amarrados em um coque alto. Ela possuía olhos verdes, pele cor de mel e auxiliava na faxina, organização dos móveis e sobremesas.
  — Depois da chegada desse Henry, muitas coisas tornaram-se estranhas — falou Hopkins, apontando ao neto que um pregador estava abaixo de seus pés. Nicholas se agachou para pegar.
  — Henry? Quem é Henry? — O afro-americano desconhecia o nome mencionado. — Ainda não o conheci.
  June queria relatar ao neto que manter distância do hóspede dos Grant era necessário. Ela não tinha informações suficientes sobre Albarn e temia completamente os membros de sua família próximos ao garoto. No entanto, era desesperador adivinhar que os dias sombrios viriam excessivamente a Swan Lake.
  O Smith perguntou novamente:
  — Ele é algum parente dos Grant?
  — Não, meu bem. Ele é um paciente que chegou nesta quinta-feira — informou Evelyn no lugar de sua avó. Nicholas, cada vez mais, queria conhecê-lo.
  — Oh… os garotos estão indo para os fundos — apontou discretamente para a dupla de gêmeos paralisada na porta inicial, indo até onde se localizava a piscina.
  — Acho melhor dar companhia, Nick — pediu a governanta ao neto. — Você ajudou o bastante.
  — Sim, senhora — decidiu obedecê-la, batendo as mãos uma na outra e ajeitando os óculos meio caídos na ponta do nariz. — Conversaremos mais tarde.
  Aparentemente, incertezas jaziam nas empregadas e, a princípio, em Nicholas. Uma preocupação incomodava o peito de Hopkins, contudo, ela sabia fielmente que, porventura, delirava. Henry não era capaz de intimidar o neto assim como intimidou Billy na noite anterior. Afinal, Nick continha juízo.

•••

  O Grant de cabelos castanhos tampava as narinas seguidamente, correndo e pulando estupidamente dentro d’água, causando um estrondo gigantesco. Flutuava para cima na profundeza, outrora mergulhado nela, conseguindo abrir os olhos e cuspir a pouca água que engolira. Nadava de costas, respirando acertadamente.
  No meio da diversão, cabisbaixo, sentava-se o jovial rapaz de cabelos dourados no balanço pendurado, movendo-se para lá e para cá, concentrado nas músicas de sua playlist: "Are You Afraid of the Dark?", selecionada por instrumentais e bandas com canções fáceis de tocar em sua guitarra. Ele tentava apaziguar pensamentos incoerentes relacionados a Henry. O episódio ocorrido na noite anterior lhe perturbava. No entanto, após as discussões, Brian avistou sua imagem desacordada na cama ao lado e, gentilmente, depositou um beijo estalado na testa do pálido, virando-se para trás.
  Henry não havia comentado sobre o assunto, aderindo à ideia de sigilo para argumentar o necessário quando houvesse motivos convincentes. Ao amanhecer, sequer cumprimentou os moradores ou dirigiu palavras a Billy; não se desculparam, criando inimizade e barreiras entre ambos. O efeito sonoro dos fones de ouvido e os guturais de Venom intensificaram fortemente sua aptidão para bater os dedos na madeira do balanço e entrar no próprio ritmo bagunçado de sua cabeça.
  Atrapalhado em cenários falsos, imerso na intensidade e sonoridade do >black metal que ouvia, sentiu alguém cutucá-lo. Olhando para cima, o Grant de cabelos loiros retirou os fones — pausando o tocador de músicas no celular — e manteve sua atenção em seu melhor amigo, unindo as sobrancelhas, confuso.
  — Estava distraído, né? — Nick sobrepôs uma das mãos na cintura, abaixando um pouco a cabeça por ser mais alto que Brian. — Por que não foi dar um mergulho igual ao Billy? Raramente faz sol aqui.
  — Ah… Mais tarde pretendo ir — disse sem entusiasmo e com mínima alegria na voz. — Não quero muito papo com o Billy, quase arrumamos encrenca ontem à noite.
  — Desde que os conheço por gente, vocês sempre brigam por qualquer babaquice.
  Então, Nicholas concluiu que a turbulência psicológica fora causada pelo hóspede que as domésticas haviam citado.
  — O que houve dessa vez?
  — Ele se intrometeu em um assunto particular e quis arrumar briga com Henry.
  — O Henry, no caso, é o hóspede? — quis saber a fundo.
  — Sim.
  Brian assentiu positivamente, notando a chegada do pálido, que tragava um cigarro e erguia o pescoço, soprando a fumaça. O garoto apontou para seu amigo, que enxergava a figura soturna com desconfiança.
  Albarn usava uma boina, encobrindo os cabelos negros, e vestia uma camisa polo de botões acompanhada de um short curto, preto e branco. Um estilo digno de um jogador profissional de golfe. Andava em direção ao balanço, explicitamente comovido por outra presença ao lado de Brian. Não era um ciúme significativo, mas um anseio de que destruíssem seus planos. Na perspectiva de Henry, quanto mais envolvidos no ciclo, mais problemáticas nasceriam. As pessoas continuavam previsíveis e intrometidas — o que, na maioria das vezes, era satisfatório, pois Smith decerto não abaixaria sua cabeça para um sociopata.
  Estreitando o olhar para Brian e seu amigo, o rapaz, por fim, sentou-se na grama com os joelhos dobrados.
  — Quem é você?
  — Prazer, meu nome é Nicholas — afavelmente cumprimentou, negando contato visual. — Brian estava me falando sobre você.
  — Digo o mesmo — retorquiu amargo, encaixando o filtro do cigarro nos lábios, sentindo a nicotina preencher seu estresse e soprando a pouca fumaça restante. — Confesso que tudo está mudando facilmente. Não esperava saber que teríamos visitas.
  — Ele é neto da senhora Hopkins — admitiu o loiro. — Pensei que estivesse magoado comigo.
  Uma intimidade progrediu no ar, e Nicholas honestamente ficou desconfortável, já que o gêmeo e seu hóspede interpretavam relações complexas e amorosas entre eles. Mesmo não contendo aproximação com o garoto pálido, Henry era interessado apenas em lavagem cerebral composta por desejos sexuais e manipulação. Cravando os olhos no afro-americano, Albarn demonstrava indiferença.
  Reagindo singularmente, Brian esperava algum pronunciamento de Henry. O pálido, entretanto, absorvia suas palavras devagar, voltando à realidade a que estava acostumado.
  — Estou avoado, só isso. Nunca ficaria magoado com você. Quem fez e se intrometeu foi o Billy.
  Amassou o maço usado na esverdeada grama, ocultando-o discretamente. O loiro estendeu a mão para alcançar um dos cigarros no bolso da frente de seu short. Atendendo ao pedido de Grant, Henry lhe entregou um e acendeu com a faísca do isqueiro.
  — Você fuma, Nicholas? — ofereceu ao outro rapaz.
  — Obrigado, mas devo recusar, para o bem dos meus pulmões — gesticulou negativamente, vendo o pálido guardar seu pertence.
"Frouxo. Tinha mesmo que ser amigo dessa gente mesquinha", pensou amargo, ajeitando o chapéu e tampando a boca para tossir.
  — Se não está magoado comigo… vou ficar despreocupado então. — O gêmeo de cabelos loiros deu um riso de satisfação, saindo do local onde estava e indo para junto do hóspede. Assentou-se no mesmo espaço e deitou-se, visualizando o céu. — Ah, Nick? Pode nos dar licença?
  — Er… Claro! — Levantou-se sem graça. Já era nítido que ambos iriam falar sobre um assunto particular. — Vou olhar o Billy nadando, até daqui a pouco.
  O casal alinhadamente deitou-se na grama, juntos na toxicidade dividida entre cigarros e um avassalador silêncio repentino, amalgamados em conjuntos enigmáticos. Henry revirou o corpo, numa postura supina, encantadoramente focando em Brian, retinas piscantes e suspiros emanados. Cansado de ficarem sem assunto, o Grant levou o pescoço de Albarn para si, querendo consignar um beijo suave nos lábios dele. Mas, no instante em que iriam selá-los, Henry jogou o rosto para trás, negando a conexão.
  — Não vai querer fazer isso em público, vai? — Indagou, novamente ficando sentado. A companhia imitava sua ação. — A propósito… Seu amigo e seu irmão olharam para nós dois.
  Era uma omissão. Os beijos e carícias de Brian atrapalhavam o que lhe concernia.
  — Pensei que gostasse de consertar as coisas.
  — Dessa forma, não vai ajudar — afirmou, diretamente artificioso e pretensioso. Pensando bem… tive uma ideia! — Levantou-se, estendendo as longas mãos para o loiro, sussurrando em seu ouvido: — Venha comigo.
  — Pra onde? — Questionou ingênuo, atraindo os dedos nos dele.
  — Se contar, não tem graça.
  — Tudo bem.
  Dirigindo-se a um espaço remoto do jardim, andavam vexados. Brian, apenas com seus lumes ocultos pelas enormes garras diabólicas, caminhava lentamente, sentindo um sentimento claustrofóbico e inquietante. Henry, pervertidamente, empurrou Brian contra seu corpo. Arfando, entre medo e desespero, ambos selaram os lábios.
  Brian nunca entendia por que as atrações inusitadas de Henry se manifestavam daquele jeito. O semblante antipático de repente tornava-se malicioso.
  "Merda, o que estou fazendo? Ele me machucou e ainda quero isso? Será que estou sendo afetado?"
  O relacionamento partia para uma sintonia precária e nebulosa. A ultraviolência de Henry contaminou Brian.
  — Certo… Então, acontecerá hoje à noite.

CONTINUA...



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