Ghost Tale
Escrito por Sial | Editado por Lelen
Capítulo 1 – Início
"Quando não houver mais espaço no inferno, os mortos caminharão sobre a terra.”
— Despertar dos Mortos
Eles estavam atrás de mim.
E não era só por uma ou duas horas. Na verdade, eles estavam atrás de mim o tempo todo. Não importava onde eu estivesse, eles apareciam sem cerimônia, como se o conceito de tempo e espaço não fizesse diferença para eles. Quando eu estava em casa, dava para ignorar. Ou se estivesse sozinho em outro lugar, tudo bem também. Mas aí eles decidiam dar as caras na cafeteria ou no meio de uma aula, e aí não havia nada que eu pudesse fazer. Porque se eles quisessem me chutar ou puxar o cabelo, podiam. E faziam isso, com frequência.
Posso vê-los desde que me entendo por gente. Não só ver. Podia senti-los, ouvi-los e até tocá-los. Eles eram tão reais para mim quanto qualquer pessoa viva, e por isso, não era nenhuma surpresa o rótulo de “esquisitão” que ganhei dos outros. Afinal, o que você faria se alguém, aparentemente normal, começasse a conversar sozinho no meio da rua? Pois é.
Por sorte, distinguir os mortos era fácil. Eles tinham uma aura... bem, mórbida. Estavam sempre pálidos e perdidos, perambulando pelas multidões. Os novatos eram os piores; gritavam aos quatro ventos, exigindo saber por que ninguém podia vê-los. Esses eram os que mais atrapalhavam a minha paz.
Basicamente, os mortos vinham até mim para resolver suas pendências aqui na Terra, como se eu fosse uma espécie de atendente de SAC do Além. Se isso te parece legal, recomendo uma consulta psiquiátrica. Porque não tem nada de legal em ser perseguido por um fantasma que quer que você leve um pedido de desculpas a alguém do outro lado do Estado, ou que implora para que você encontre um bom lar para o cachorro que deixou para trás. Ou, pior ainda, quando uma adolescente morta resolve que você vai ser o substituto do namorado que ela nunca teve.
Nunca considerei essa habilidade como um dom. Na verdade, ajudar os mortos só me dava dor de cabeça e distanciamento social. Hoseok, meu melhor amigo, era a exceção. Ele era o único que nunca se importou com meu hábito de falar sozinho e desaparecer do nada. Nos conhecemos no ensino médio, e acabamos indo para a mesma universidade, o que foi um alívio. Fazer novos amigos nunca foi o meu forte. Fora o Hoseok, as únicas pessoas vivas com quem eu mantinha contato recorrente eram meus pais, Naomi e... minha avó. Tá, talvez essa última não estivesse tão viva assim.
Eu estava no quarto ano de Medicina na Universidade de Columbia. Escolhi o curso e o campus por motivos práticos. Queria me especializar na Oncologia, o que significava trabalhar com pacientes que provavelmente encarariam a morte de frente. Eu poderia, quem sabe, ajudá-los a resolver suas pendências em vida, evitando que se tornassem mais uma voz na minha cabeça depois que partissem. Egoísta? Talvez. Mas parecia uma solução eficiente. E Nova York, uma cidade cheia de gente, me dava a esperança de que haveria outros como eu por perto. Nunca entendi bem como os mortos nos "escolhiam", mas torcia para que fossem distribuídos de forma justa. Era mais um plano para mantê-los longe.
A faculdade de Medicina pelo menos deixava meus pais felizes. Desde que me adotaram no Orfanato Melbourne, sempre fizeram questão de demonstrar o quanto se orgulhavam de mim, mesmo quando meus "sumiços" e acessos de rebeldia eram constantes. Ou quando precisavam me buscar na delegacia por invasão de propriedade ou desacato. Mesmo nos piores momentos, quando tentavam fazer com que eu me abrisse e eu respondia com o silêncio indiferente que aprendi a reproduzir quando era confrontado sobre os fantasmas e as consequências que causavam, eles se vestiam de uma paciência inacreditável e raramente me criticavam. Minha mãe chorava baixinho à noite, e meu pai bebia mais whiskey do que o habitual, mas sem gritos ou caras feias. Sempre me perguntei se eles se arrependiam de ter adotado um garoto tão... estranho. Mas no fundo, sabia que a frustração deles era por não conseguirem se conectar comigo, e admito que aquilo era totalmente culpa minha.
A família Jeon possuía uma próspera firma de advocacia em São Francisco, onde o nome do meu pai, Jordan Jeon, aparecia em toda cerimônia de premiação empresarial da Califórnia. Ele era o tipo de exemplo de liderança que outras empresas usavam como referência em qualquer lugar do país. Mas, para mim, tudo aquilo — os flashes dos eventos de gala, os jantares executivos que invadiam a sala de jantar e até as empregadas escolhendo minhas roupas — era um lembrete constante de que eu não pertencia àquele mundo. Mesmo com o novo sobrenome, novos documentos e um quarto irado com espaço para os meus pôsteres dos Lakers, eu era o peixe fora d'água. A solução? Me esconder atrás do estereótipo de garoto prodígio que estava sempre estudando, correndo contra o tempo para se preparar para a próxima olimpíada de matemática ou um novo prêmio da feira de ciências.
Funcionou. Meus pais ficaram mais que satisfeitos com a ideia de ter um filho tão dedicado em passar longe de uma nota vermelha. No entanto, convencê-los a me deixar ir para uma universidade do outro lado do país foi outra história. Passei semanas ouvindo os soluços da minha mãe antes que eles finalmente cedessem, com a condição de que me visitariam regularmente e que eu teria que ligar com frequência. A distância também fazia parte do plano — era muito mais difícil frustrar seus pais com suas atitudes quando se está a quase 5 mil quilômetros de distância.
Mesmo assim, a superproteção deles se manteve firme e forte. Insistiram que eu não poderia ficar em um alojamento universitário qualquer, cercado por desconhecidos. Então, graças à obsessão da minha mãe por segurança (e também um pouco de conforto), acabei em um apartamento nada estudantil em Manhattan. Quinto andar, janelas enormes do chão ao teto, com uma vista deslumbrante da cidade que nunca dorme. Ela escolheu cada detalhe, e eu não me atrevi a opinar. Afinal, apesar de todo o drama, eu gostava do meu espaço próprio. E, dado o meu... probleminha com os mortos, talvez ter um lugar só meu tenha sido a melhor decisão que deixei que eles tomassem por mim.
Era mais uma quinta-feira qualquer quando saí da biblioteca Augustus, equilibrando o telefone entre o ombro e a orelha enquanto colocava alguns livros na mochila.
— O que é agora, Hoseok? — perguntei, sem muito ânimo. Estava tentando fazer com que a borda do exemplar de Brain Metastases não arranhasse a tela do iPad.
— Onde você se meteu? Eu tô faminto e você ainda não deu as caras para o almoço. E hoje tem hambúrguer de costela!
— Você não tem membros ou dinheiro? Caso tenha membros, acho que você pode comer sem mim.
— Ah, qual é, JK? Minha grana foi dizimada no Queens semana passada. Pelo menos me diz onde você tá.
Suspirei e olhei ao redor.
— Bem aqui.
Ele estava de pé bem no meio do refeitório, o rosto iluminado pelo alívio.
— Por que demorou tanto? Achei que você não tinha aula agora. — disse ele, enquanto eu me aproximava.
— Estava na biblioteca, trabalhando num artigo novo.
— Ah, é? Sobre o quê dessa vez? Bactérias que produzem plástico? — Hoseok perguntou, digitando algo no celular.
— Isso é super empolgante. Mas não, é só um artigo sobre saúde pública. O Natal e a Influenza são a dupla de dezembro, e o Citizen se interessa por esse tipo de coisa. Agora vamos te alimentar.
Entramos na fila semi organizada ao lado das estações de comida, que estava mais longa do que de costume. Não sabia que o hambúrguer de costela tinha toda essa magia para alguém além de Hoseok e eu. Talvez porque a gente não se importava muito com o que colocava pra dentro do estômago — ele menos ainda. Tudo que fosse comestível, era minimamente aceitável.
— Você viu o ranking semestral? Saiu hoje. — ele comentou, sem tirar os olhos do telefone. — Parabéns, você está no top 5 de novo.
Revirei os olhos em resposta. Todo semestre, a Columbia divulgava o ranking dos alunos mais bem-sucedidos, com base no semestre anterior. Havia um para cada departamento e um geral da universidade. Eu fazia parte dos cinco primeiros desde o 1º ano, então aquilo já tinha perdido o impacto. Na verdade, só de pensar no inevitável telefonema de parabéns dos meus pais mais tarde, eu já me sentia exausto.
Estar entre os cinco primeiros significava receber elogios incansáveis de professores e colegas, embora eu não me importasse nem um pouco. Ainda assim, tinha suas vantagens: meus artigos eram reconhecidos pelos acadêmicos mais respeitados, e até o reitor já havia me convidado para jantar, colocando o meu nome na sua provável “lista dourada”. Aparentemente, meu desempenho era inspirador para todos. Todos, menos eu.
Não era legal receber tanta atenção quando seu plano de vida era ser completamente invisível. Principalmente, se você estivesse suscetível a passar por situações como a que eu iria passar… agora.
Enquanto Hoseok estava distraído, rolando o feed do celular, senti um vento gelado percorrendo a minha nuca, arrepiando na hora. Antes mesmo de entender o que era, uma voz rouca sussurrou bem perto do meu ouvido:
— Oi!
Continuei olhando para frente, fingindo que não tinha ouvido nada. Talvez se eu a ignorasse, ela se tocasse e fosse embora. Abri o celular e comecei a zapear por qualquer coisa, deixando o tempo passar. Ela ia perceber o que todos percebem: que ninguém podia vê-la. E enquanto eu não desse a primeira mordida naquele hambúrguer duvidoso com bastante ketchup, faria parte da maioria sim, com muito prazer. Não era uma boa hora para lidar com fantasmas.
Mas é claro que ela não desanimou. Saiu do meu lado e começou a tentar tocar Hoseok e tudo o que estivesse ao seu alcance. Só para esclarecer, quando fantasmas tocam pessoas comuns, o máximo que elas sentem é um arrepio ou um frio súbito que logo passa. Para os mortos, não era muito diferente; é como tentar pegar uma massa cinzenta e pegajosa que escapa pelos dedos. Já com objetos, eles são bem mais habilidosos — meus hematomas podem confirmar isso.
Pessoas como eu, no entanto, conseguiam senti-los completamente. Não me pergunte por quê. Isso fazia com que os fantasmas nos achassem com facilidade e nos usassem para resolver suas pendências, como se fôssemos seus assistentes pessoais. Por isso, apesar da minha postura indiferente, eu estava aterrorizado com a ideia de que aquela garota decidisse me tocar naquele momento.
Vi Hoseok se encolher com os calafrios causados pelo toque da fantasma e reclamar do frio. Continuei fingindo que nada estava acontecendo, enquanto nos aproximávamos das bancadas. Mas, no momento seguinte, quando Hoseok deu um passo à frente e eu o segui, o fantasma não se moveu, o que fez com que nossos braços roçassem um no outro por um breve segundo.
Como um amador, acabei olhando para ela e, no mesmo instante, desviei o olhar. Tarde demais. Senti os dedos dela apertando meu braço direito.
— Você consegue me ver! Ei! Você tá me vendo, né?
Balancei o braço, tentando me livrar do aperto, mas ela ignorou o recado. Fechei os olhos, tentando manter a calma, e implorei mentalmente para que ela não começasse a fazer um escândalo.
— Por favor, me ajuda! Eu não sei o que aconteceu... Ninguém consegue me ver... Parece que eu, e-eu… morri…
Os olhos dela estavam arregalados e perdidos, o rosto pálido como um papel, e os cabelos ruivos desgrenhados caíam sobre o moletom com o brasão da faculdade de Direito da Columbia. A garota parecia ter uns vinte e poucos anos. E, por mais que estivesse desesperada no momento, não podia dar atenção pra ela. Tentei sinalizar discretamente com a cabeça para que desse o fora, mas, em vez disso, ela apertou meu braço ainda mais forte.
— Por favor, eu te imploro! Me ajuda! Eu estava no meu quarto no alojamento e, de repente... — a voz dela falhou, os olhos mais esbugalhados, e senti o pânico crescendo dentro de mim. Ela parecia prestes a surtar. Surtar de um jeito nada legal.
A fila avançava e ela não soltava meu braço de jeito nenhum. Eu podia sentir as unhas dela cravando na minha pele, com uma força que só os mortos pareciam ter. Ao nosso redor, as pessoas riam e conversavam, sem fazer ideia do caos invisível que estava se desenrolando ali. Mas, se ela continuasse assim, todo mundo logo perceberia. Eles sempre percebiam.
— Agora não... — murmurei, o mais baixo que consegui, sem sequer olhar para ela, torcendo para que ninguém tivesse notado. Mas a coisa só piorou.
Ao perceber que eu realmente podia vê-la e ouvi-la, ela cravou as unhas ainda mais fundo, e senti o sangue começar a escorrer. Em seguida, fui puxado com força para o lado, bem na direção das pessoas que seguravam suas bandejas já prontas e cheias. Quando me dei conta, vi suco de laranja se espalhar pela minha camiseta, seguido pelo impacto dos meus joelhos no chão. Ouvi o grito agudo de uma garota que caiu diante de mim, com molho de tomate e abobrinha grudada na roupa.
Todos os olhares se voltaram para nós. Hoseok estava imóvel, com uma expressão que variava entre o riso e o choque. Eu, por outro lado, sentia uma mistura de raiva e incredulidade. Girei a cabeça para procurar a maldita que tinha causado isso, mas, claro, ela já havia desaparecido.
Senti um empurrão no peito e caí para o lado, o caos ao meu redor voltando como um balde de água fria.
— Você é maluco? — a garota à minha frente grunhiu, tentando se levantar sem escorregar nos restos de macarrão e torta de legumes espalhados pelo chão. — Tem ideia do que acabou de fazer? Isso não pode ser sério...
Ela bufou com indignação, e algumas garotas se juntaram ao redor dela, estendendo guardanapos como se fossem paramédicos em um campo de batalha. Suas mãos tatearam o piso até puxarem uma pasta cheia de suco e o que parecia ser babaganush. Todas me olhavam com aquele olhar típico de “meu Deus, qual é o problema desse cara?” Levantei rápido, desejando que, por algum milagre, todo mundo seguisse em frente e esquecesse o espetáculo que eu acabara de proporcionar.
— Me desculpa, foi totalmente minha culpa. — Na verdade, não foi. — Deixa que eu te pago outro almoço, ou…
— Você é epilético? Ou simplesmente decidiu me atropelar? Isso foi de propósito? — ela ia aumentando o tom a cada pergunta, as bochechas ficando cada vez mais vermelhas. Ótimo, porque o que eu precisava agora, além de estar coberto de suco e brócolis, era de problemas com desconhecidos na única parte do meu dia onde eu tentava manter minha vida minimamente normal: o almoço.
— Claro que não! Foi um acidente, sinto muito, mas eu posso pagar…
— Pelo amor de Deus, não quero seu dinheiro. — ela fez uma careta antes que eu levasse a mão para o bolso da carteira. — Tenho uma apresentação importante hoje e você pode ter acabado de estragar tudo com essa sua… síndrome de Tourette, sei lá. Olha, se eu nunca mais te encontrar na minha vida, vai ser um favor. Agora me dá licença.
Ela passou por mim com um empurrão no ombro e foi embora, seguida por pelo menos três amigas, que me lançaram olhares ligeiramente menos hostis. Fiquei ali parado por um segundo até ser expulso pelas funcionárias da limpeza, que já começavam a limpar a bagunça ao meu redor. De repente, percebi o quão exposto eu estava, com todos os olhares fixos em mim, buscando entender a mesma coisa que aquela garota: como eu tinha feito aquilo? Como caí do nada sem explicação?
Quando senti Hoseok me puxar pelo ombro em direção à saída, agradeci em silêncio. Minha fome já tinha desaparecido há muito tempo.