Fear

Escrito por Soldada | Revisado por Lelen

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00 - O Idiota

DIVORCED | AGORA
Graz, Áustria.

  Vladimir estava tendo um péssimo dia.
  Primeiro, ele havia acordado atrasado após seu celular ter descarregado no meio da noite, ainda preso no loop de um vídeo pornô, já que ele tinha praticamente apagado na noite anterior, cansado demais para bater uma. Então ele se confundiu com suas roupas, na pressa de se vestir, e só percebeu que estava usando as roupas sujas quando foi erguer seu braço para pegar o maldito pó de café na prateleira de cima do armário da copa ao lado da sala de segurança em que trabalhava, e sentiu o cheiro pungente de suor de sua axila. Mas foi só trinta minutos depois, após ouvir uma longa reclamação de seu chefe, Leonid, e finalmente colocar seu celular para carregar, que seu mundo efetivamente desabou. Uma mensagem apenas do advogado de Martha, sua esposa: os papeis de divórcio.
  Assinados.
  Merda! Porra! Vladimir desejou chorar no mesmo segundo, mas se orgulhou ao conseguir ocultar dos olhares curiosos de seus outros colegas. A verdade era que Vladimir sequer se importava com Martha em si. Claro, ele deveria ter se apaixonado por ela em algum dos seis primeiros meses, mas puta merda, ela falava tanto! E sempre havia alguma coisa nova para resolver, alguma merda que ele tinha feito e a deixava mal humorada. Ou então era simplesmente tão grudenta, tão ciumenta, tão irracional! Mas quer dizer, ela era uma puta gostosa quando eles se conheceram, e tinha uma bunda incrível, além disso, os amigos de Vladimir adoravam dizer como ele era sortudo por ter conseguido fisgar alguém como Martha. Vladimir era a porra de um herói. E não importava o que ele fizesse, Martha sempre voltava. Ela era segura. Estável. Foi por isso que ele havia se casado com ela. E por uns seis meses, ele realmente achou que estava com a mulher de sua vida, mas bem... ele tinha necessidades, e detestava a ideia de ficar limitado. Seus amigos enfatizavam que Vladimir era muito novo para ficar limitado a apenas uma mulher, e muito bonito para descartar suas outras opções.
  E bem, não era como se as mulheres fossem inocentes também.
  Mas ele havia sido fiel. O tempo inteiro. Durante todo aquele tempo, ele não havia se apaixonado por nenhuma outra mulher: nem mesmo Lydia, Carol, Nilce, Ksenya... não! E olha que haviam melhores, muito melhores do que Martha! Vladimir só queria variedade, era uma coisa de homem! Só isso, ele não queria fazer! Mas Martha ainda descobriu, e Vladimir tinha completa certeza de que a mulher o perdoaria, que eles iriam superar aquela fase ruim do casamento deles, até agora.
  Depois de tudo o que ele havia feito por ela! Como ela podia fazer aquilo com ele? Como podia ser tão baixa e mesquinha ao ponto de largá-lo assim? De assinar aqueles malditos papeis! Era uma puta mesmo, deveria o estar traindo também, e estava usando o erro dele para conseguir a desculpa perfeita para sair como vítima, mas ele sabia a víbora que ela era. E se Martha achava que ele deixaria barato...
  — Para a porra de um autointitulado segurança, eu não faço ideia do que mantém seu emprego aqui, Vorobyov, mas definitivamente não é a inteligência — resmungou Leonid Novokov com um tom de voz afiado, ameaçador.
  Vladimir se tencionou, praguejando baixo ao perceber que não havia ouvido, outra vez, Leonid se aproximar. Ele bloqueou a tela de seu celular, se endireitando, assumindo sua postura mais profissional e durona ao encarar o moreno, mas algo no fundo de sua mente o deteve. Que Vladimir adoraria cortar a garganta de Leonid, isso não era dúvida, mas puta que pariu, se Vladimir não tinha medo do desgraçado, no fim das contas.
  Leonid estreitou o olhar, observando-o em completo silêncio. Havia algo perigoso em Leonid, algo que soava... insano. Os olhos escuros como a noite pareciam sempre alertas, observando, absorvendo, como se ele fosse capaz de ler a todos, mas ninguém, simplesmente ninguém sabia o que se passava por sua mente. Até onde Vladimir sabia, Leonid era um completo mistério. Não falava muito. Não tinha amigos ali. Passava a maior parte do tempo calado, e ninguém sabia se ele tinha família, pais, irmãos, inferno, nem uma stripper o filho da puta havia sido capaz de foder como qualquer outro homem normal. A única coisa que ele dizia, era que havia sido casado antes, mas a esposa havia morrido há alguns anos. A maioria do Departamento especulava que Leonid provavelmente a havia matado, era a ideia mais lógica e provável considerando que o cara parecia ter saído de uma página policial de procurados. Leonid tinha aquele tipo de olhar. Mas Vladimir acreditava piamente que a esposa morta dele deveria ter se suicidado. Porra, ele também se suicidaria se tivesse que conviver vinte e quatro horas com Leonid.
  — Vou precisar dizer mais devagar para que você entenda, Vorobyov?
  Vladimir tencionou a mandíbula com força, negando lentamente com a cabeça antes de voltar sua atenção para as pastas nas mãos de Novokov. Uma sensação de incerteza atingiu o fundo de seu estômago, mas ele habilidosamente conseguiu mascarar suas emoções antes que o olhar cortante de Leonid pudesse perceber mais do que deveria.
  Por um breve segundo, Vladimir sentiu uma confusão de emoções. Ele sabia que ele estava ali para fazer o trabalho, não era uma questão, e durante todo aquele tempo ele tinha feito. Sem questionar, sem tremer ou hesitar. Mas sempre que Vladimir via as pastas novas que chegavam – e sempre chegavam pastas novas – e ele lia os nomes impressos no material, sempre que ele via as fichas, algo dentro de seu peito apodrecia mais e mais. Era impossível não se sentir sujo ao observar as fotografias. Elas eram tão pequenas... tão frágeis... algumas sequer tinham mais do que 4 anos!
  Mas antes elas do que ele.
  No fim do dia, infelizmente, ele não tinha escolha. Não havia muita coisa que Vladimir pudesse fazer, havia? Estavam condenadas. Era o que era. Quer dizer, é claro que ele se sentia culpado. Ele não era um monstro! Seu coração doía por elas, mas era assim que o Departamento X funcionava. Era assim que as coisas ali funcionavam. O laboratório demandava novas cobaias, e as meninas eram trazidas conforme a demanda pedia. Havia sempre mais de onde aquelas vinham. Ele sentia muito pelas garotinhas, mas era melhor elas pagarem o preço do que ele. Ninguém merecia ser tratado daquela forma! Absolutamente ninguém.
  — Quantas dessa vez? — questionou Vladimir, tentando mascarar o tremor em seu tom de voz e manter a postura profissional e indiferente que Leonid sempre exibia.
  Vladimir soltou um pigarro, unindo as sobrancelhas, enquanto tomava das mãos de Leonid Novokov as pastas, erguendo preguiçosamente uma sobrancelha para convir desinteresse. Vinte e nove pastas. Vinte e nove garotinhas. As idades variavam entre 6 anos a 13 anos.
  — Dezessete. Lyudmila deixou claro que não quer nenhuma maior de 8 anos. São mais difíceis de controlar, maior o risco de resistência — respondeu Novokov com um tom de voz baixo, sua voz, gutural, raspando os ouvidos de Vladimir como unhas agressivas. Mas era clara. Estupidamente clara, desprovida de quaisquer espaços para dúvidas. Direta, como sempre. E assustadora. Puta que pariu... os dedos de Vladimir seguraram com mais intensidade as pastas, engolindo em seco.
  Merda, porra, cacete! Ele não consegue olhar, ele não consegue olhar, ele não consegue olhar...
  Vladimir obrigou-se a voltar seu olhar para as pastas, assentindo sem dizer mais nenhuma palavra a Novokov enquanto repousava as pastas sobre as mesas. Sentia-se travado. Como se seus músculos estivessem se transformando lentamente em meras placas de metal, enferrujadas e enroscadas entre si, que o impossibilitavam de se mover. Como se houvesse gelo percorrendo sua corrente sanguínea, prendendo-o no lugar. Mas ele precisa se mover. Demonstrar franqueza na frente de Leonid seria pior. Demonstrar que estava sendo afetado por tudo aquilo seria condenar a si mesmo a um destino cruel. Um destino o qual ele não merecia. Aquelas garotinhas estavam condenadas. Fizeram por onde, deveriam culpar a si mesmas. Elas haviam confiado nas pessoas erradas. Elas estavam vulneráveis. Elas estavam no lugar erado, na hora errada! Não era culpa dele. Não era culpa dele. Não era culpa dele! Não era culpa dele! Não. Era. Culpa. Dele! Não era culpa dele!
  NÃO ERA CULPA DELE!!
  Dezessete. Dezessete garotinhas entre 6 a 8 anos foram selecionadas por Vladimir. O restante é descartado em uma pilha e entregue a Leonid novamente. Leonid sequer parecia reagir às pastas, eram como nada mais do que apenas trabalho tedioso. O que era esperado. Ele sequer piscou ou hesitou. Não. Leonid Novokov era incapaz de exibir quaisquer sinais de humanidade em sua expressão, mesmo se fosse necessário. Mesmo se sua vida dependesse disso.
  Um arrepio desconfortável percorreu a espinha de Vladimir que percebia, pela primeira vez em toda sua vida, que a implacabilidade de Leonid não era, exatamente, algo a que deveria se admirar, mas sim, ser observada com atenção. Se ele era tão insensível assim àquelas pastas, então, o quão fácil seria para ele...
  Click, clack.
  Leonid engatilhou sua arma, estreitando o olhar enquanto se aproximava das pastas descartadas, os olhos escuros percorrendo-as rapidamente. Não estava lendo as fichas, muito menos os nomes, estava memorizando as fotografias. Os rostos das garotinhas que haviam sido trazidas para a base e que em breve seriam descartadas. Não era culpa dele. Não era culpa dele. Não era culpa dele. Não era culpa dele...
  — Convoque o restante do esquadrão. Feche os portões no Leste e Norte, avise que a ordem é para que nenhuma escape. Se tiver que caçar, irá caçá-las. Fui claro? — A voz de Leonid era autoritária, mas estranhamente neutra, e por um segundo Vladimir não souve dizer se era capaz de respondê-lo ou não.
  Era fácil deixar-se levar pela raiva e frustração quando se tratava de Novokov. Era fácil deixar-se convencer de que ele era apenas um esquisitão que não se encaixava em nenhum espaço, que tinha aquele maldito olhar de Vale da Estranheza. Mas então, em pequenos momentos, momentos como aquele, Vladimir era relembrado dolorosamente que de fato: ele não sabia nada de Leonid. Leonid era a porra de um livro codificado e Vladimir mal sabia ler. Era sempre um choque ser lembrado disso.
  Vladimir forçou um pigarro, endireitando-se, desesperado para manter sua postura de profissional, desesperado para manter as rachaduras ocultadas dos olhos de Novokov, então ele apenas assentiu lentamente.
  — Onde está a porra da sua arma, Vorobyov?
  Vladimir arregalou os olhos praguejando entre dentes, e assentindo para Novokov outra vez, incapaz de dizer quaisquer palavras. Ele tocou o rádio preso em seu uniforme, esperando ouvir a resposta de Kuznetsov ou Sokolov antes de repassar as ordens de Novokov, avisando o restante dos esquadrões do comando “Código Azul”.
  Vladimir se aproximou das mesas um pouco mais ao fundo da sala de segurança, onde alguns servidores estavam, junto com geradores de energia reservas que funcionavam como uma terceira assistência caso a energia principal e os primeiros geradores fossem cortados durante a algum ataque ou incidente. Ele havia deixado sua arma ali quando havia chegado aquela manhã. Merda, onde ele havia colocado? Porra, era por isso que ele tinha que deixar sua arma dentro do coldre, toda vez ele se esquecia de colocá-la de volta no lugar!
  Os olhos dele percorreram as mesas um pouco mais ao fundo da sala, prendendo, instintivamente, a própria respiração, sem sequer perceber o que fazia. Havia algo de estranho dentro de seu peito. Uma agitação que ele costumava decodificar como reação à Martha, toda vez que sua esposa – bem, ex-esposa agora – parecia estar perto de clicar no botão errado de seu celular e abrir acidentalmente alguma conversa com alguma das outras mulheres com que Vladimir a havia traído.
  Sua garganta estava estranhamente seca, fazendo com que o gesto de engolir sua própria saliva se tornasse desconfortável. Sua respiração parecia curta e superficial, visivelmente controlada, escapava por suas narinas, mas o oxigênio nunca parecia entrar, como se ele estivesse em algum tipo de estado permanente de falta de ar – e crescente.
  Então, Vladimir encontrou a merda de sua arma no canto que ele havia deixado, como sempre, mas havia se esquecido porque estava mais desesperado para carregar o celular do que prestar atenção em alguma outra coisa. Vladimir avançou para pegar a arma, destravando-a e retirando o pente com a munição, verificando quantas balas tinha disponíveis. Doze. Um pente inteiro. Engolindo em seco, Vladimir se obrigou a retornar o pente de novo na arma, engatilhando-a, mas suas mãos estavam trêmulas demais.
  Ele não sabia por que estava tremendo, mas era impossível conter.
  Tinha a estranha sensação de suas mãos estarem começando a formigar, amortecidas, por algum motivo, quando Vladimir conseguiu, finalmente, destravar e engatilhar sua arma. Seu coração nunca esteve tão acelerado. Sua pulsação nunca esteve tão alta aos seus próprios ouvidos. Não, não era medo, não podia ser medo. E, todavia, era inegável. O martelar intenso de seu coração contra sua caixa torácica começava a se tornar desconfortável, doloroso ao seu peito, enquanto sua corrente sanguínea estava afundando-se em adrenalina e mais adrenalina.
  Vladimir se voltou, hesitante, na direção de Novokov, como se estivesse determinado a perguntar se ele também estava sentido aquela estranha sensação. Como um sussurro, suave e convidativo na nuca, como se seu sangue estivesse começando a queimar dentro das veias, como um oceano agitando-se em frente à tempestade. Mas da boca de Vladimir, não saiu nada.
  Novokov não parecia estar prestando atenção. Porra, sequer parecia estar ouvindo alguma coisa. Os olhos escuros estavam fixos no chão, com aquele maldito ar de Vale da Estranheza que ele sempre adquiria quando ficava muito tempo em completo silêncio. Como se estivesse fora de seu corpo ou fosse a porra de um boneco e nada mais. Nunca nada mais humano que isso.
  Por um breve momento, Vladimir se permitiu observar Leonid Novokov sem preocupação alguma de acionar o lado perigoso ou ser intimidado pelo homem. Os dedos de Vladimir agarraram o punho da arma com tamanha força que o metal gélido machucou a palma da mão dele. Leonid Novokov era estupidamente bom no que fazia. Ele era o melhor entre todos que tinha ali. Ninguém sabia de onde ele vinha, claro, sequer poderiam dizer se ele era humano, mas havia algo que eles não poderiam negar, era a eficiência de Novokov em quaisquer situações. Um super soldado – talvez, melhor.
  Leonid Novokov era um soldado estoico, impossível de ser lido, mas naquele momento, os olhos dele cintilavam com alguma coisa incompreensível. Leonid virou-se instintivamente na direção de uma das telas de monitoramento, como se tivesse alguém e não a porra de um dos laboratórios. Ele pareceu estar prestes a fazer algo, os músculos de seu corpo se tencionando enquanto as mãos se fecharam em punhos firmes. As sobrancelhas se arquearam em uma expressão que não era vulnerável, mas explicitava uma dúvida, uma mínima, quase imperceptível, hesitação. Os olhos dele buscando alguém... alguma coisa... do outro lado da tela. As mãos de Leonid começaram a sangrar, as unhas entrando nas palmas e as cortando.
  Vladimir se tencionou. Não, não estava com medo, longe disso! Vladimir não sentia medo de nada, era apenas... apenas precaução. Pura e somente precaução. Eles não podiam falhar em seus trabalhos e Leonid claramente não estava concentrado no que estava fazendo, encarando a porra de tela como se estivesse em algum tipo de transe, acabando de se lembrar de alguém amado que estava esperando-o do outro lado, ou seja lá o que aquela porra de homem poderia ter em sua mente que fosse assim tão digno de nota. Mas então, os olhos de Vladimir registraram algo esquisito, grotesco, começar a acontecer. Da narina direita, uma grossa gota de sangue escorreu, deslizando por entre o lábio superior de Novokov e desabando de seu queixo, pingando sobre a mesa de metal à frente das telas de monitoramento. O brilho azul das telas deixou o sangue de Novokov mais escuro do que de fato era.
  Vladimir engoliu em seco. Nunca em sua vida havia acreditado que Leonid Novokov era sobre-humano, longe disso. O cara era o mais esquisito que ele já havia conhecido, mas com toda certeza era humano. Mas para Vladimir, Novokov sempre havia sido intocável. Impenetrável. Até agora... o coração de Vladimir se acelerou ainda mais, e ele se questionava se iria infartar a qualquer momento, ao mesmo tempo que a outra parte de sua mente, uma parte traiçoeira e desesperada, começava a espiralar a ideia que tinha em mãos. A oportunidade. Novokov estava vulnerável agora. Completamente e indubitavelmente vulnerável. Leonid Novokov nunca veria o que o havia acertado, tudo o que Vladimir precisava ter era coragem o suficiente para erguer seu braço e puxar o gatilho. Tudo o que ele precisava fazer era erguer sua arma e disparar, e ele nunca mais precisaria se preocupar com Leonid Novokov outra vez. Ele estaria seguro e tranquilo, talvez até ganhasse uma promoção. Com Leonid Novokov fora de seu caminho, Vladimir era o único que sabia como lidar com toda a merda daquele lugar, talvez Vladimir soubesse mais. Tudo o que ele precisava fazer era erguer a porra da arma...
  Mas ele estava paralisado.
  Porque se algo conseguia afetar Leonid, então... o que não faria com ele?
  O momento se esvaiu com um piscar de olhos. Novokov pareceu voltar a si mesmo com uma inspiração funda e afiada, levando a mão esquerda imediatamente na direção de seu nariz e limpando o sangue que fluía dali com uma expressão mais sombria que o normal. Vladimir se esforçava, com muita dificuldade, para manter uma expressão cínica e desprovida de quaisquer outros questionamentos que não fosse apenas um: “e aí? Vai ficar parado?”, sentindo o olhar penetrante de Novokov quase expor sua alma, nua e crua, a seus pés. O que esse cara tinha de tão errado dentro de si? Vladimir já havia conhecido muita gente merda, mas aquilo... aquilo não era normal.
  — Se mexe.  — É tudo o que Novokov diz e Vladimir não é burro o suficiente para contestar.
  Inspirando fundo, tentando acalmar sua pulsação cardíaca desenfreada e obrigar a seus músculos tensos a se moverem, Vladimir engoliu em seco, seguindo a alguns passos atrás de Novokov na direção onde as garotinhas deveriam estar esperando.
  Os corredores que seguiam para a parte subterrânea dos laboratórios, alguns consideráveis níveis abaixo da terra, eram estranhamente organizados e sufocantes. Pálidos, e esterilizados, nada parecia fora do lugar, nem mesmo uma gota de sangue. Os elevadores pesados, com portas duplas, eram revestidos e à prova de balas, mais parecidos com cofres de segurança do que elevadores em si, altamente tecnológicos, funcionavam com base em voz e reconhecimento ocular. Ainda assim, dos três elevadores, um possuía marcas de mãos perturbadoras, como alguém que havia tentado abri-las a força. Mas era impossível para que um humano o tivesse feito. O mito era que havia sido Wolverine o culpado por fazer aquilo quando escapou, mas Vladimir não tinha muita certeza. Toda vez que eles eram obrigados a descerem até aquela parte da base, nos níveis subterrâneos, era sempre perturbador. Havia uma estática estranha que pairava no ar. Uma tensão invisível que carregava o espaço e o fazia parecer sufocante. Branco demais, limpo demais, silencioso demais.
  Por entre as celas e capsulas de contenção, havia monstro por todos os lados. Acorrentados até a boca e contidos contra a parede, suspensos no ar, aprisionados dentro de máquinas de contenção que estalavam com o eco de choques elétricos ou então submersos em um estado de coma induzido. Trancas pesadas impediam que pessoas de fora acessassem aquele lugar, nem mesmo Vladimir possuía acesso ali, apenas o alto escalão o tinha, e dentre eles, estava, é claro, Novokov.
  Vladimir ignorou a sensação de desconforto que começou a emergir e inundar seus pensamentos, ignorando o tremor que percorria todo o seu corpo, engolindo em seco, e preparando-se para o que estava por vir, ouvindo alguns gritinhos desesperados de garotinhas sendo arrastadas de uma das salas para outra, separando-as das mais velhas, quando um movimento em sua visão periférica chamou sua atenção.
  Vladimir uniu as sobrancelhas, virando-se na direção de onde a mancha havia chamado sua atenção, hesitando. Não, ele não deveria se afastar de Novokov. As ordens eram claras, seguir o que Novokov dizia, não fazer perguntas, esquecer o que acontecia ali embaixo. Vladimir não era exatamente a pessoa certa para arriscar sua vida por pura curiosidade. Então ele tentou ignorar, mas bastou seus olhos encontrarem os dela que tudo desapareceu.
  Por um breve segundo, Vladimir só conseguiu encará-la, estupefato.
  Ela era a criatura mais linda que ele já havia visto em toda sua vida. Nem mesmo em seus sonhos mais selvagens, nem mesmo quando ele viu Ksenya de joelhos, entre suas pernas, engolindo praticamente tudo, seria o suficiente para compará-la. Ela era completamente de tirar o fôlego. Cabelos pendendo delicadamente por seus ombros, olhos , intensos, fixos no rosto dele com uma mistura de inocência e medo, e algo dentro de seu peito se aperta para chegar até ela para protegê-la. Vestida de bailarina, impecavelmente. Escondendo-se atrás de uma das paredes, e encarando-o... encarando-o como se ele fosse o único que pudesse salvá-la.
  A respiração de Vladimir se perdeu em sua garganta, e então ele tomou sua decisão. Ele iria salvar ela. Não importava o que acontecesse, ele iria salvar ela. Seu coração martelava dolorosamente contra seu peito, com uma crescente arritmia, descompassado e amortecendo suas mãos de leve. Vladimir engoliu em seco, lançando um breve olhar para as costas de Novokov, antes de disparar na direção contrária da qual deveria seguir, em direção à mulher. Ele precisava alcança-la. Ele iria salvá-la.
  Custasse o que custasse, ele iria salvá-la.
  Mas a mulher soltou um chiado baixo, desprovidos de qualquer som possível, arregalando os olhos quando ele a flagrou, e imediatamente começou a correr, em desespero. Vladimir sentiu o desespero aumentar por seu peito enquanto ele se obrigava a correr mais rápido que seu corpo permitia. Por que ela estava fugindo dele? Ele não era um monstro ali! Ele só queria ajudar! Ele iria ajudá-la! E então ela ficaria grata pelo que ele havia feito, e eles seriam felizes. Era assim que funcionava. Era assim que sempre funcionaria.
  Os cabelos dela deslizaram pelo ar suavemente, pareciam ser tão macios, tão sedosos ao toque. As pernas elegantes de bailarina se moveram com surpreendente força, velocidade, para alguém tão frágil como ela. Como ela havia entrado ali? Quem era ela? As perguntas espiralavam pela mente de Vladimir enquanto ele tentava alcança-la, descendo escadas, e virando em corredores pálidos e mais pálidos, em um labirinto de celas que se tornavam mais grossas e mais antigas do que deveriam, os números gravados nas portas quase desaparecendo, enquanto o espaço adquiria um ar esquisito de ter sido esquecido pela passagem do tempo, um ar de contenção proibida e restrita que nem mesmo alguns do alto nível pareciam parecer e, todavia, lá estava, as portas estranhamente abertas, com manchas de sangue obscurecidas, secas e antigas demais para que ele se preocupasse com sua própria segurança.
  — Espera! Eu... eu só quero...! — Vladimir balbuciou sem fôlego, quase implorando para que a mulher parasse de correr, para que a linda mulher não tivesse medo dele. Ele não era um monstro, ele estava ali para ajudá-la. Ela deveria parar de fugir dele!
  Mas tudo o que ela fez foi olhar por cima do ombro, encarando-o com uma ponta de horror, os olhos , doceis e frágeis, exibindo uma nítida vulnerabilidade, como se ela fosse quebrar a qualquer momento, o que fez Vladimir querer abraça-la e protegê-la. Pior, o fez querer mantê-la somente para si mesmo. Pureza. Era isso que Vladimir havia buscado sua vida inteira. Pureza. Não a merda que ele havia encontrado em todas as outras mulheres com quem ele havia estado, que caíam tão fácil, desesperadas por atenção, vadias e corruptas. Não, era alguém como ela. Pura. Intocada. Delicada como uma brisa.
  Vladimir piscou, e então a mulher desapareceu completamente.
  Por um breve momento ele encarou o vazio à sua frente completamente estupefato e em choque. Para onde ela havia ido? Ela estava à sua frente não fazia nem mesmo dois segundos! Mas então os olhos dele repousaram na entrada de uma sala ampla, obscurecida pelas luzes apagadas e coberta por uma camada densa de poeira, enquanto um ruído contínuo, elétrico, ecoava pelo espaço. Uma escadaria feita de cimento queimado se abriu à sua frente quando ele se aproximou das portas que deveriam ter pelo menos 70 centímetros de grossura, em uma mistura de metais poderosos e vibranium. As trancas, antigas e renovadas, altamente tecnológicas, estavam quebradas, havia um glitch continuo em um dos painéis com o vidro trincado, piscando em um alerta que Vladimir não conseguia ler direito devido às fissuras e do cristal líquido das telas. Havia um cheiro intenso de borracha e carne queimadas espalhando-se pelo ar enquanto os olhos dele absorviam o espaço com uma expressão assustada.
  Câmaras de criogenia.
  Em sua maioria estavam vazias, exceto por uma. Ao centro da sala, um pouco mais ao fundo, enterrada entre o chão e escorada por inúmeros tubos e fios vindos do teto com estrutura industrial. Pilhas e pilhas de papéis estavam espalhados pelo chão, esquecidos e abandonados, enquanto ele se aproximava de onde a câmara de criogenia estava. Um arrepio percorreu o corpo inteiro de Vladimir enquanto seu coração martelava de maneira intensa contra sua caixa torácica, o peito dele a essa altura estava dolorido e incômodo, mas ele sequer prestou atenção nisso. Não. Os olhos dele estavam fixos no rosto da mulher presa entre os tubos, praticamente congelada, dentro da câmara de criogenia. Lá estava ela, presa pelos cabos e inconsciente, sequer parecia estar viva, os cabelos emoldurando o rosto dela, flutuando ao redor de si, os cílios tremendo suavemente e o peito subindo e descendo fracamente sendo a única indicação de que ela estava, na verdade, viva. Provavelmente em um estado de hibernação profundo, se fosse considerar a quantidade de fios que a enroscavam no lugar.
  Vladimir prendeu a respiração sem conseguir desviar os olhos dela. Ele precisa fazer alguma coisa, qualquer coisa.
  Ela se moveu.
  Vladimir arregalou os olhos prendendo a respiração ao observá-la esticar a mão na direção dele, os olhos , tão vulneráveis, tão assustados. Vladimir não percebeu que ele havia dado um passo na direção dela, quase que instintivamente, sentindo em seu peito o aperto de alguém que finalmente havia tomado uma decisão – ele iria salvá-la; se ele fosse seu salvador, então ela seria sua.
  A mão de Vladimir tocou o vidro gélido e espesso, hipnotizado, sequer capaz de perceber que sangue fluía, agora, de seu nariz com mais intensidade, pingando na frente de seu uniforme e no chão à sua frente, tudo o que ele conseguia pensar era na mulher. Na maneira com que ela parecia estar se sufocando, desesperada para alcançá-lo.
  Então, a mão dela tocou o vidro no mesmo lugar em que a mão de Vladimir estava, e ele soltou uma exclamação baixa, encantado. A mão dela era tão delicada, mesmo coberta por camadas de gelo que deveriam estar doendo para porra. Ele nunca quis tocar uma mulher em toda sua vida. Ele quase podia senti-la. Quente, macia, adoravelmente frágil em suas mãos... porra, ele estava ficando duro só de pensar.
  Os olhos de Vladimir voltaram a se encontrar com os dela, mas o sorriso de Vladimir desapareceu, dando espaço para uma expressão de horror. Nos olhos havia nada senão apenas pura fúria. Um monstro. Era isso que ela era. Um completo monstro. Mas é tarde demais para Vladimir. As unhas dela fincaram-se contra o vidro espesso, com as manchas do sangue onde as pontas dos dedos dela haviam sido completamente esmagadas com a violência que ela tentou agarrá-lo. O rosto contorcido por dor, e alguma coisa impossível de compreender, mas que chegava próximo a apenas fúria. Uma violência profunda e enraizada profunda demais dentro de si mesma. Mas era tarde dema...
  Vladimir explodiu.


01 - O Soldado

LONGING | AGORA
Coney Island, Nova York

  De todas as ideias que ele já tinha tido, aquela era de longe a mais estúpida.
  Mas ainda assim... o aroma de funnel cake, hot dog, óleo queimado e urina a céu aberto permeia os arredores. Os gritos de pura animação das crianças correndo em disparada para conseguirem tempo o suficiente para irem no máximo de brinquedos se espalham ao redor, algumas tropeçando em seus pés e apenas evitando atingir o chão, porque Bucky instintivamente os segurava, oferecendo seu sorriso mais gentil e o aviso de “cuidado” ou “sem correr”, antes de os assistir, com uma expressão contemplativa, voltarem a correr para longe, ouvindo um agitado “obrigado!” que seria consumido e esquecido completamente com os outros gritos e o barulho das máquinas do parque de diversões.
  Há um ponto de hesitação que percorre a expressão de Barnes. Por um breve segundo, ele é transportado para 1939, antes da guerra, e onde a única preocupação dele era apenas conseguir alguns trocados, para conseguir impressionar alguma garota bonita que havia aceitado sair com ele para algum encontro, e, é claro, encontrar uma garota que desejasse conhecer Steve também, porque Bucky jamais deixaria Steve para trás. Ou sairiam a quatro ou não haveria encontro. E por mais que isso soasse meio questionável – para dizer o mínimo – Bucky era leal demais para isso.
  Mas observar agora o parque de diversões, com todas as luzes em neon, com todas as músicas estranhamente agitadas e que pareciam pulsar pela cabeça de Bucky, sobre beijar milhões de garotos à beber para esquecer alguém, era no mínimo uma experiência curiosa. Quer dizer, a montanha russa Cyclone ainda estava ali, evidenciando a fé absurda que algumas pessoas possuíam em um objeto que estava, teoricamente, fadado ao fracasso de certa forma, ou pelo menos não estava exatamente tão seguro assim para sequer ter carrinhos correndo a toda velocidade, quiçá carrinhos com pessoas dentro. Era uma receita para o desastre, mas ainda assim parecia divertido o suficiente para que pessoas se sujeitassem a tal de qualquer forma.
  — Quanto tempo faz que você não anda no Ciclone para estar encarando-o como se fosse seu ex-namorado? — A voz irritante de Sam não oculta o tom de divertimento enquanto Barnes rapidamente pisca, voltando a si mesmo e lançando um olhar ao redor, irritadiço.
  Não é como se Sam estivesse observando-o muito a fundo, na verdade, se olhasse pelo ombro esquerdo, um pouco mais a noroeste, de frente para um pequeno carrinho que estava vendendo batatas chips e pipoca com corante doce, Sam Wilson, ou, para a completa frustração afetiva de Bucky, o novo Capitão América, estaria discretamente fingindo que estava esperando sua vez para ser atendido como qualquer pai divorciado ausente esperando conseguir um presente barato para agradar seus filhos. Mas o fato é que Bucky ainda sente suas bochechas se aquecerem, um claro sinal de que ele havia corado, e isso significava que a piada de Sam o havia pegado desprevenido e, para a satisfação do Capitão América, Bucky sabia que Sam o estaria atormentando pelo resto da semana por causa dessa maldita piada.
  — Quer saber? Terminando aqui, a gente vai andar nessa montanha russa. Se amarelar, vou dizer para as crianças que você é uma galinha.
  Bucky nega com a cabeça frustrado, pronto para retorquir ao que Sam havia dito com algum comentário sarcástico e igualmente infantil – apenas por fazer –, mas se contém abruptamente quando os olhos azuis esverdeados do soldado se encontram com os desconfiados, enrugados e evidentemente aborrecidos de uma senhora de meia-idade, claramente uma mãe, com cabelos chanel loiro e uma expressão de alguém que parecia discutir em um caixa porque estava faltando um centavo no troco que lhe foi entregue, lhe lança um olhar torto. Bucky sabe que não precisa dizer nada, mas seu impulso fala mais alto, então, com apenas seu sorriso mais fácil possível, Bucky retira o celular do bolso, e aponta para a orelha no qual o comunicador está enterrado, e diz em sua voz mais cínica possível:
  — Minha esposa. — Bucky volta a andar antes que sequer possa ouvir algum comentário de volta, exalando baixo, mal-humorado. Não porque está realmente incomodado com alguma coisa. Bem, na verdade está, mas não é com as piadas de Sam. Não, é aquela maldita situação. E todavia, ele não consegue convencer a si mesmo a dar meia volta e ir embora. É claro que não. Se havia algo que Bucky havia se tornado proficiente nos últimos tempos é em sentir culpa, e aquela, bem... ele não pode exatamente pedir desculpas a alguém morto, mas pode ao menos tentar fazer as pazes com o fantasma e oferecer reparações, por menores que fossem.
  — Muito discreto, Robocop, cê sabe que não dá pra levar a sério o seu papo de espião, né?
  — Cala a boca — Bucky retorque ao comentário de Sam e apenas revira os olhos ajeitando a lapela de sua jaqueta por mais alívio de um tique nervoso do que por estar realmente desajeitada.
  Bucky tenciona a mandíbula bem marcada, um pequeno músculo movendo-se sob a pele, enquanto os olhos azuis esverdeados dele deslizam pelas outras pessoas, buscando por um rosto em específico.
  — O ponto inteiro da espionagem é não ser pego. Como você explicaria um comunicador, Sam? Você faz parecer óbvio para ocultar a intenção por trás.
  Sam fica em silêncio por alguns segundos antes de praguejar baixo com um riso discreto. Bucky se aproxima de uma banca de jogos chamada de “Palhaço”, que consistia em apenas uma série de cabeças de palhaço se movendo da direita para a esquerda, e então ao contrário, consecutivamente, enquanto o único propósito era arremessar bolinhas de isopor pintadas de laranja na boca do palhaço e assim conseguir um prêmio.
  Bucky aperta os lábios assentindo para o dono da barraca quando ele entrega a bolinha de isopor para ele, antes de unir as sobrancelhas e voltar sua atenção para as bocas dos palhaços com uma ponta de nostalgia. Ele era muito bom naquele jogo, um sorriso nostálgico quase surge pelos lábios dele ao lembrar-se de como ele tinha o truque de sempre acertar no canto superior da boca do palhaço para conseguir fazer cair dentro, como ele conseguia os ursinhos de pelúcia e boneca para Dotty – ele nem lembrava mais como ela era, qual a cor dos olhos, como era o rosto, era apenas um manequim –, como Steve reclamava que Bucky estava trapaceando…
   Se vai jogar essa bolinha, é melhor fazer do jeito certo, Bucky. Sem roubar — diz Steve pelo comunicador, e a respiração de Bucky se perde em sua garganta.
  Ele nega com a cabeça, mas sem conseguir conter o sorriso torto que surge por seu rosto ao arremessar a bolinha no primeiro palhaço. Seu peito se aquece, e por um momento, Bucky quer só largar tudo e ir abraçar o melhor amigo, mas ele rapidamente afasta o pensamento de sua mente, revirando os olhos, fingindo sentir uma exasperação que de fato, não existia.
  —Consegue guardar muitos segredos, hein, Sam.
  — Não vem me culpar não, eu não tenho nada a ver com isso, Robocop. Tô seguindo para o sul, vou cobrir as saídas do leste — retorque Sam sem ocultar o próprio divertimento de seu tom de voz ao dar mais um apelido a Bucky, como se ele não estivesse o chamando por aquele nome fazia semanas. Quer dizer, ele já havia arriscado pesquisar na internet sobre o que diabos era um Robocop, e Bucky havia definitivamente ficado irritado porque obviamente ele não era um policial. Barnes só assumiu, por fim, que Sam era redundantemente estúpido, mas bem, onde estava a surpresa nisso? Eles eram amigos de Steve, maior bandeira vermelha, seja lá o que isso significasse, era o suficiente para representar Bucky e Sam naquela situação. — Tenta não começar um incidente internacional, Homem de Aço.
  Bucky revira os olhos sem conseguir conter a própria frustração naquele momento.
  — É vibranium! Eu tenho um braço de vibranium.
  — Homem de vibranium soa estúpido — contra-ataca Sam e, meio à parte, Bucky quase consegue ouvir a risada contida de Steve do outro lado da linha de comunicação.
  Barnes morde o interior de suas bochechas, contendo o impulso de responder Sam com um ataque inteligente e preciso, porque não é exatamente o melhor momento para fazer aquilo, então Bucky apenas concentra-se nas bocas dos palhaços giratórios, unindo as sobrancelhas enquanto se concentra em arremessar as duas bolinhas restantes que tem em sua mão.
  Ele inspira fundo, e, desta vez, faz como Steve havia pedido.
  Ele mira a bolinha, mas dessa vez não no cantinho em que ele sabia que iria entrar, mas como qualquer outro civil o faria. Bucky se dá ao luxo até mesmo de dar alguns passos para trás, para conseguir construir um espaço bom o suficiente para que pudesse arremessar a bolinha sem que atrapalhasse a trajetória, e, inspirando fundo uma única vez, a arremessa. E então, a última, seguida. Steve solta um riso nasalado, mas há uma ponta de nostalgia no eco da voz dele transmitido pelo comunicador preso na orelha de Barnes.
  — Exibido — resmunga Steve, e Bucky apenas oferece um sorriso meio desconfortável meio plástico para o atendente da barraquinha que indica para que ele escolha um dos prêmios, e por um breve segundo, Barnes precisa pausar e tentar lembrar-se.
  Do que ela gostava? Ele não tinha a mínima ideia. Mas então, os olhos azuis esverdeados de Bucky se tornam pesarosos, mais nublados do que antes enquanto repousam em uma raposinha esquisita e ridícula, feita de tecido, esguia, com patinhas que mais se pareciam com rolos de tecido laranja e branco e detalhes em preto, e botões pretos no lugar dos olhos. O gosto amargo em sua boca é pungente, mas é mais do que isso. Bucky sente culpa. Bucky não hesita em pedir pela raposinha anêmica de pelúcia, gentilmente a pegando e a observando com uma expressão distante por um breve momento. A ponta de seu polegar acariciando o tecido, mais instintivamente do que conscientemente, antes da voz de Steve ecoar pelo comunicador, dessa vez mais suave:
  — Você tem realmente certeza que quer fazer isso?
  Bucky exala pesado, lançando um olhar novamente para as pessoas ao redor do parque antes de tencionar a mandíbula com força, oferecendo um sorriso educado para o atendente da barraquinha e então voltando a caminhar por entre adultos em encontros ou apenas conversando tranquilamente entre si, pedindo para que as crianças agitadas e com rostos sujos de doces parem de correr.
  A nota sombria de seu olhar parece se aprofundar um pouco mais enquanto Bucky se aproxima de onde a estrutura espetacular de lona e metal do circo, onde a fila, apesar de grande, estava se movendo rápido para as pessoas que assistiriam o espetáculo. Bucky passa por Steve, mas os olhos dos dois homens não se encontram. Steve tem um folheto em suas mãos, parecendo estar lendo atentamente algo sobre algum tipo de higiene e proibições na cabine da Roda Gigante, enquanto Bucky apalpa casualmente o bolso de seu casaco pesado para encontrar onde o ticket dele estava, os dedos biônicos, envolvendo o pescoço da raposinha anêmica de pelúcia com um pouco mais de força do que deveria.
  — Não. Não tenho certeza — admite Bucky silenciosamente, mas de maneira honesta, finalmente conseguindo alçar o ticket de dentro de seu bolso, tencionando a mandíbula enquanto os olhos azuis esverdeados repousam nos dizeres: Maravilhosa Luna do espetáculo que aconteceria nos próximos minutos.
  Steve fica em silêncio por alguns segundos.
  — Você não precisa fazer isso, Bucky. Você já fez o trabalho. Encerrou tudo isso há um tempo. Recebeu o perdão da Corte Americana, você está finalmente livre — diz Steve com um tom de voz compassivo e a compreensão familiar consegue, ao menos, passar a falsa sensação de segurança a Bucky.
  Barnes tenciona a mandíbula com um pouco mais de força, enquanto une as sobrancelhas, encarando com intensidade o funcionário que está recebendo os tickets, mas não o enxerga de fato. Não, seus olhos estão presos no passado, em um amontoado de cabelos desgrenhados e despenteados, e olhos intensos que beiravam a pura insanidade; medo. Bucky percebe que, pela primeira vez em muito tempo, ele não se sente completamente incerto, sozinho, perdido. Aquece seu peito de uma maneira que ele havia achado que tinha morrido completamente após 1945, quando ele havia sido capturado pela primeira vez pela Hydra. Uma parte que ele nunca recuperaria.
  — Bucky, escuta... às vezes cometemos erros. Erros que não tem como consertar, que não tem reparação. Precisamos aceitar que cometemos essa falha, e aceitar que, por mais que desejássemos mudá-la ou repará-la, não há nada que possa ser feito. Não há desculpas ou gesto redentores. O melhor que podemos fazer é enterrar. Algumas coisas precisam ficar enterradas. Para o seu próprio bem.
  — Corajoso ser vocêa dizer isso, Rogers. — Apesar das palavras afiadas, o tom de Bucky é mais incerto do que agressivo, quase nostálgico e pesaroso. Bucky inspira fundo, entregando o ticket para o funcionário, e acenando com a cabeça em agradecimento, seguindo para as arquibancadas buscando por seu acento.
  Steve solta um riso seco, sem humor.
  — Por ser quem sou que estou dizendo, Bucky. Às vezes, o melhor que podemos fazerérecomeçar.
  As luzes do picadeiro se acendem com um chiado eletrônico e o eco da voz do apresentador soa pelas caixas de som, dispostas ordenadamente a cada quatro pilares, convenientemente, com uma bem abaixo do acento de Bucky – sorte a dele; não é como se ele tivesse assim também uma boa adição, graças a Hydra e os choques. Mas seus olhos não estão presos no apresentador em questão, animando a plateia e introduzindo o espetáculo de acrobacia e contorcionismo que iria acontecer em breve. Não. Os olhos azuis esverdeados de Bucky estão fixos no púlpito de, no mínimo, cinco metros de altura em que a figura se encontra fantasiada, como se fosse feita de pequenos cristais espalhados pelo corpo inteiro dela, enquanto os cabelos estão repuxados para trás, envoltos em pequenas correntes e contas de ouro espalhados pelas mechas. Os olhos , três tons mais claros e mais vívidos refletem as luzes com tons gélidos, enviando uma onda de tensão pelo corpo de Bucky. Ele tenciona a mandíbula novamente, unindo as sobrancelhas, determinado. Os dedos biônicos de seu braço soltam pequenos estalidos eletrônicos quando se fecham com força o suficiente para rasgar a pelúcia.
  .

•••

  — Você precisa ter muita coragem para vir até aqui, Sargento.
  Bucky move a mandíbula, mas não responde, ao menos não imediatamente. A voz adulta de soa mais esquisita do que ele lembrava, mas bem, ele a havia conhecido quando ela era apenas uma garotinha de 6 anos, assustada, escondendo-se nos cantos das celas ou espiando por entre as grades de ferro. Sua garganta se aperta enquanto Bucky tenta se obrigar a não se lembrar atrás de quem se escondia quando era só uma garotinha. A maneira com que agarrava à roupa dela, ou como se colocava sempre à frente de , não importasse o quão machucada estivesse – não importava o quanto sua vida dependesse disso. O cheiro de , todavia, é o mesmo, madeira, maçã e cigarro, coçam o nariz dele, mas não é desconfortável, só familiar o suficiente para ser desconfortável.
   permanece sentada em sua cadeira desconfortável de metal, projetando-se na frente do que parece ser uma penteadeira saída diretamente dos anos 50 com as lâmpadas de fundo amarelado formando quase uma linha ao redor do espelho, ressaltando a maquiagem pesada e artística que enfeita seu rosto, ou a maneira com que os cristais e ouro refletem contra a luz, criando pequenos reflexos suaves na madeira e no chão, ao redor de .
  Sem desviar o olhar da mulher, Bucky aproxima-se cautelosamente devagar até onde ela está sentada e repousa, um pouco meio sem jeito, e em uma oferta de paz, a raposinha anêmica de pelúcia que ele havia conseguido ganhar na barraquinha de palhaços, com a única intenção de entregar a a pelúcia. É claro que, agora, com o rasgo, era inútil, mas ele espera que ao menos pudesse servir como uma oferenda pacificadora e significaria a que ele, pelo menos, havia tentado apaziguar as coisas. Não é o suficiente, nunca seria o suficiente, mas é um começo, certo?
   não se mexe, os olhos dela apenas acompanham o movimento que Barnes faz, e então, ela se deixa recostar contra a cadeira de metal em que está sentada, erguendo o queixo de maneira desafiadora, um sorriso preguiçoso surge pelos lábios dela, repletos de descrença e uma raiva contida que não seria exposta, ele sabia, mas que não estava sendo, igualmente, ocultada de ninguém. Os olhos dela queimam o rosto dele, e Bucky se sente imediatamente desconfortável com a atenção que recebe, ele tenta ignorar a descrença, a raiva e o nojo que há nos olhos de , e apesar de tudo, Barnes não pode deixar de sentir seu coração afundar em seu peito, o peso, desconfortável e sufocante, indesejado, mas não menos verdadeiro. Talvez, esse fosse o problema de sentir-se culpado, a consciência de que nada, absolutamente nada que ele pudesse oferecer, poderia apagar o erro que havia cometido, mesmo que não estivesse em seu controle naquela época, não mudava o fato de que havia feito. Bucky engole em seco, percebendo tardiamente que havia sido, de fato, um erro ir até ali, mas agora é tarde demais para voltar atrás.
  Mas se Rogers não era um calhorda!
  — Porra nega com a cabeça com um riso contido, desprovidos de quaisquer traços de humor, enquanto o tom de incredulidade é pungente em sua voz.
  Quando ela era pequena, era uma criança doce, até mesmo meiga, extremamente tímida. Agora? Parecia agressiva, instável, e com um tom de voz rouco e arrastado que o fez se questionar internamente o quão sóbria ela estava naquele momento. Bucky não a culpa. De todas as coisas que ele poderia fazer, de todas as coisas que ele havia sido subjugado a executar, a última coisa que ele poderia fazer, era culpá-la por qualquer coisa, por mínima que fosse. Ainda assim, engolir o gesto, tem gosto amargo.
  Bucky trinca os dentes com força, mas obriga-se a desviar os olhos do rosto de para a mesa com a maquiagem que ela havia usado para o espetáculo. se empurra para trás, colocando-se de pé com um rangido metálico irritante da cadeira, e então encara Barnes, os dentes expostos em um sorriso afiado, mas que mais parece com uma careta felina, preparando-se para atacá-lo. Ele não a julgaria se ela fizesse. Ele não a impediria. Mas não faz nada, e talvez isso seja a pior parte de tudo.
  — Tá fodendo com a minha cara, seu merda?! Cê tá achando mesmo que pode entrar aqui e me obrigar a te ajudar, huh?! A audácia que cê tem...
  Bucky engole em seco, dando um passo para trás e erguendo as duas mão para cima, em um aviso silencioso de rendição a . Ele não está ali para lutar, e definitivamente não iria iniciar um confronto, não com .
  — , por favor... — dizBucky, hesitante, tentando apelar para a parte da mente de que não o via como ameaça, a parte da mente de que era a garotinha que ele havia segurado em seus braços, arriscado sua vida para proteger enquanto escapava da Hydra pela segunda vez. Alguma coisa daquela garotinha que confiava nele, que havia segurado sua mão sem soltar e implorado para que voltasse por , deveria estar ali. Precisava estar ali. Se não estivesse, então... — Eu só preciso de informações, isso não precisa acabar de maneira ruim, por favor, , não me faz ter que te atacar, por favor...
  Mas o riso de é cortante, e a súplica morre na garganta de Bucky antes que ele possa fazê-la.
  — Me atacar? Quem disse que você consegue chegar assim tão longe?
   arremessa bruscamente as maquiagens na direção de Bucky, que instintivamente usa seu braço direito para cobrir seu rosto, enquanto o braço biônico dele se aciona. Um estalido eletrônico escapa, e antes que Bucky possa se dar conta, o braço biônico agarra com força o braço esquerdo de , impedindo-a de acertar-lhe um soco, usando o punho direito para atingir com força o suficiente para impedir e não machucar a mulher, no ombro dela, empurrando-a para trás, ao mesmo tempo que tenta acertar um cruzado no rosto de Barnes.
  Bucky agarra com o braço biônico o pulso da mulher, apoiando a mão direita no ombro dela, tentando imobilizá-la, mas é mais rápida e consegue atingir um chute bem colocado na lateral de seu joelho. Um grunhido escapa da garganta de Bucky, seu joelho cedendo ao próprio peso, e desabando em seu joelho, usando o momento para desviar de uma joelhada de em direção ao seu rosto, girando rapidamente para a esquerda, e obrigando-se a colocar-se de pé.
  Trincando os dentes com um estalo, Bucky para ao lado de , envolvendo o pescoço dela com seu braço direito, apertado o suficiente para roubar o fôlego dela, mas não o suficiente para machucá-la, praticamente tentando fazer ouvi-lo:
  — ! , por favor!
  Mas é claro que, se havia algo que era boa, era justamente ao ser completamente incapaz de ouvir alguma coisa que era dita a ela. Maldita teimosia desgraçada que ela possuía!
  Bucky rosna baixo meio grito de pura frustração, sentindo o cotovelo dobrado de se conectar com suas costelas, roubando-lhe o fôlego dos pulmões – algo difícil de ser feito, se fosse ser honesto –, enquanto aproveitava a distração para chutar o calcanhar direito de Bucky, e usar a queda para lançar-se para a frente, derrubando-o e rolando por sobre seu ombro a fim de livrar-se dele.
   acerta um soco violento no rosto de Bucky, que grunhi entre dentes, sentindo seu rosto ser lançado para a esquerda bruscamente, a dor explodindo por trás de seus olhos, enquanto a pele queima com o contato do punho da mulher.
  O braço biônico de Bucky se aciona novamente, agarrando o pulso de bruscamente, ouvindo-a soltar um grito estrangulado pela maneira com que o sonoro crack escapa, evidenciando que Bucky deveria pelo menos ter deslocado o membro do lugar, enquanto a puxava para o lado, tentando tirá-la de seu caminho e disparar em direção à saída do camarim – ele realmente não queria machucá-la, porra! Mas é claro que não o deixaria escapar, deixaria? Não. sempre precisava levar tudo ao extremo, não é? Ela sempre tinha que passar de todos os limites até que não tivesse mais outra escolha senão matar ou morrer. Merda, Rogers! Por que de todas as pessoas você tinha que estar certo?
  Ainda no chão, desliza na direção de Bucky, lançando um chute que Barnes consegue desviar, mas antes que ele possa registrar, acerta outro chute forte na altura de seu peito, mandando-o para trás. Barnes avança na direção da mulher, desta vez, deferindo um golpe rápido e preciso na altura da costela dela, ouvindo-a grunhir com raiva e dor, antes de acertar o rosto dela, tentando encontrar uma abertura na postura de para conseguir imobilizá-la, mesmo que por meros segundos, no lugar. Bucky trinca os dentes com força, mas o peso em seu peito é maior, mais sufocante, e ele não pode escapar da própria culpa que havia enterrado tantos anos atrás. Ou quer escapar.
  — Eu sei que você queria que as coisas fossem diferentes, , eu gostaria que as coisas fossem diferentes... — A voz de Bucky desce uma oitava, mais grave, mais pesarosa, enquanto ele luta contra a parte de sua mente que grita que aquela é uma luta perdida.
  Não. Não! Ele não pode perder a garotinha que estava em sua memória. Não, não, porra! Se ele a perdesse, então... então era tarde demais para cumprir com aquela última tarefa. Então era tarde demais para perdão e ao menos fazer as pazes com o passado, e tudo o que lhe sobraria era a consciência de que não havia mais nada a ser feito, que a Hydra havia o transformado em uma arma e usado, e que ele não poderia corrigir isso, não para . Não na visão dela. Ele precisava que ela acreditasse que ele não era o Soldado Invernal. Ele precisava que ela visse.
  — Eu não tinha controle... por favor, , acredite em mim....
  O riso de é implacável e afiado, como facas, fincando-se lentamente pela pele de Barnes, e um arrepio gélido percorre por sua espinha como ácido, corroendo tudo que está pelo caminho. A respiração dele se perde momentaneamente em sua garganta, enquanto o aperto dele ao redor do pescoço de se aperta um pouco mais do que deveria. A reação é instintiva. Talvez, Rogers estivesse mais certo do que deveria. Talvez tivesse sido um erro terrível ter ido até ali. Talvez mortos devessem ficar enterrados pela sanidade e bem de todos. Talvez ele não desejasse que ...
  — É isso que diz para você mesmo? Que não tinha escolha aquele dia? ofega com um rosnado, enquanto o riso desprovido de quaisquer traços de humor rasga por seu peito.
  Ela não se debate contra Barnes, as unhas dela apenas fincam-se com mais força contra o braço direito dele, tirando sangue. Ela está tremendo, mas se de raiva ou algo além disso, Bucky não sabe dizer, porque, no momento que as palavras ecoam pelo camarim, é tudo o que ele consegue pensar e ouvir apenas.
  — Ninguém estava te controlando aquele dia, estava? Você tinha quebrado o código e estava fugindo, que ordens a Hydra poderia ter te dado aquele dia? Eu sei muito bem por que você a matou, Barnes.
  Bucky não reage. Os olhos azuis esverdeados dele apenas encontram-se com os de , em uma súplica silenciosa – pelo o que tampouco ele poderia saber –, mas ele não diz nada. Ele não a impede, dessa vez, quando se livra de seu aperto, puxando com força o braço direito de Bucky para o lado, apoiando sua mão esquerda sobre o ombro de Barnes e então o puxando com força para a frente, usando o joelho para atingir o rosto de Bucky.
  Dor explode por seu rosto, e um sonoro crack ecoa, onde seu nariz deveria ter acabado de ser quebrado. O ataque o desorienta e Bucky cai para trás, quando chuta novamente seu peito, tossindo e tentando se forçar a respirar, enquanto um grunhido baixo escapa por seus dentes cerrados, mas Bucky não se defende.
  Os olhos azuis esverdeados dele acompanham se aproximando de novo de sua penteadeira enquanto Bucky se arresta um pouco para trás, tentando colocar-se sentado enquanto limpava o sangue que escorre de seu nariz. Ele cospe o sangue que se acumula em sua boca, unindo as sobrancelhas e então congelando no lugar quando se volta na direção dele com uma arma em suas mãos, agora. É claro que ela teria escondido uma pistola automática em algum lugar do camarim, elehavia ensinado isso a ela. Há uma parte traidora de sua mente que não pode deixar de se orgulhar pela mulher. Ela havia aprendido afinal. Sua garotinha havia crescido. E de repente, Bucky percebe-se mais disposto do que deveria a aceitar sua morte se realmente estivesse determinada a matá-lo. Seria o justo.
  — Cê não tem ideia de como eu sonhei com esse momento, Tovarisch cospe entre dentes, erguendo a arma na direção de Bucky que não move um músculo.
  Os olhos azuis esverdeados de Bucky se encontram com os de e há uma nota de compreensão, mesmo que ele não deseje evidenciar nada a ela. Não porque ele não desejasse que ela compreendesse de onde ele vinha, mas porque sabia que ela não gostaria de ver remorso ou culpa no rosto de Barnes. Mesmo que ele se culpasse e sentisse o remorso corroer sua mente todos os dias por tudo o que a Hydra o havia obrigado a fazer, não cabia a Bucky mesurar o sofrimento que ele havia causado. E se pagar com sua vida é o preço justo que havia estipulado, então... ele estava em paz com isso. Bucky fecha os olhos, esperando o disparo.
  Mas ele nunca chega.
   solta um grito abafado, baixo, se lançando para frente quando um risco metálico praticamente corta o ar à frente de onde ela estava, enterrando-se contra a parede do camarim, enquanto Steve Rogers praticamente salta na direção de . Bucky abre os olhos de supetão, surpreso, e encara a cena à sua frente com uma breve confusão, antes de saltar sobre os ombros de Rogers, girando pelo ar e desabando no chão, antes de disparar para fora do camarim, correndo o mais rápido que conseguia. A arma esquecida no chão. Steve tosse baixo, tentando recuperar seu fôlego, enquanto se levanta do chão. Bucky solta um grunhido de dor baixo, colocando seu nariz de volta ao lugar e então balançando a sua cabeça ao se levantar, oferecendo uma mão na direção de Rogers, que a aceita sem hesitar.
  — Eu tinha tudo sob controle — diz Bucky com um tom de voz irritado, mas é mais do que isso. Barnes não queria que Steve tivesse visto sua decisão no final porque sabia que eles teriam que conversar sobre isso mais tarde. Sabia que Steve faria perguntas e Bucky não estava assim tão disposto a respondê-las. Sequer supunha que estava disposto a responder a si mesmo, como poderia falar algo para Rogers?
  Steve ergue uma sobrancelha, com um sorriso seco, negando com a cabeça.
  — Bem, para mim, você parecia precisar de ajuda — confessa Steve, seu cenho se franzindo enquanto parece tentar recuperar o fôlego, e Bucky aperta os lábios com uma careta. Barnes sente o incômodo dos golpes de , que não eram precisos, mas eram fortes o suficiente para machucar, mesmo que Bucky Barnes não tivesse um organismo humano, por assim dizer, ainda era um experimento; pior, ainda era uma mutante, então, de certa forma, após tantos anos, ela deveria ter aprendido a canalizar seus poderes para conseguir resultados mais efetivos.
  Inspirando fundo, Bucky observa Steve levar a mão esquerda em direção à orelha, apertando o botão do comunicador, tentando conseguir avisar Sam a tempo.
  — Sam, ela está seguindo na sua direção. Hostil. Comando para subjugar e imobilizar.
  — Tenho ela na mira, mas é melhor vocês virem rápido.
  — Cuidado, Sam — é tudo o que Bucky responde pela linha do comunicador, pegando a arma de do chão, e destravando-a rapidamente.
  Ele une as sobrancelhas, retirando o carregador da pistola automática, para verificar quanta munição havia, seis balas, e então colocando-a de volta no lugar, destravando a arma, e guardando-a atrás de si, lançando um olhar na direção de Steve com um aceno de cabeça, disparando atrás de .
  Bucky e Steve disparam por entre os civis, tentando tirá-los do meio do caminho para que não se tornem casualidades, enquanto, pela linha do comunicador, eles podem ouvir Sam direcionando-os para onde ele estava em confronto com . Barnes solta um grunhido deixando Coney Island e seguindo em direção à praia, praguejando alto quando ele observa desferir uma rajada de energia pálida em direção de Sam, arremessando-o para trás, derrubando-o.
  Bucky rosna, disparando na direção de Sam, saltando para conseguir agarra-lo e usando seu próprio corpo como escudo para amortecer a queda. Os dois rolam pela areia, e Bucky faz uma careta quando o cotovelo de Wilson acerta bruscamente a mandíbula de Barnes, e Bucky atinge alguma coisa de Sam, mas os dois ignoram, tentando se ajudar a se levantarem enquanto Steve tenta conter sozinho. Os dois disparam na direção de , tentando impedi-la de escapar.
  A mulher congela no lugar, visivelmente irritada, mas surpreendentemente, não luta contra os três heróis, pelo contrário. Resignada, apesar da fúria que parece cintilar e acender seus olhos, ergue suas mãos lentamente para cima, fuzilando Bucky com o olhar furioso contido. Ele sabia naquele momento, que a havia perdido. Não havia mais nada que Bucky pudesse fazer para tentar ao menos se desculpar por ter destruído o mundo e a vida de , por tê-la livrado dos tormentos da Sala Vermelha, mas condenado, por consequência, e matado, sua irmã mais velha antes disso. Por ter abandonado a garotinha sozinha em um mundo cruel, sem amparo algum. Ele sabia que não era digno de sentir o luto por matar – mesmo que ele não pudesse evitar.
  Então, não é mais o Sargento Barnes à frente de , tentando fazer as pazes e consertar os erros que a Hydra o havia obrigado a fazer e pela crueldade que ele sabia que manchava suas mãos e alma em profundidade ainda. A crueldade que sempre mancharia. Não. Este havia desaparecido, agora restava era a implacabilidade do Soldado Invernal. Quisesse Bucky ou não, aquela parte sempre estaria duramente fundada em seu ser, era também quem ele havia se tornado, e diante de , naquele momento, não havia mais outra escolha. Ela havia escolhido seu caminho, e não restava mais nada a Bucky senão usar a força agora. De qualquer forma, ele teria as respostas que precisava.
  — Zephyr — Bucky rosnou entre dentes, dando um passo na direção de e então mais outro, até que estivesse a centímetros de distância da mulher, os olhos presos nos dela, sem desviar, pronto para atacá-la e subjugá-la se fosse necessário. — Eu sei que você sabe onde os códigos estão. Você vai dizer tudo, e se tentar mentir, eu vou quebrar seu pescoço. Então é melhor começar a falar, , agora.

02 - Bailarina

FOX | 1951.
Berlim Oriental, Alemanha.

  Retira o pente. Verifica. Nove balas. Doze inimigos. Insere de volta. Destrava. Mira. Dispara.
  Uma.
  Duas, três.
  Quatro.
  Cinco, seis, sete.
  Quatro corpos no chão. Oito ainda em pé. Puta merda….
  Com os dentes trincados, se lança para a frente rolando por seu ombro esquerdo e chocando-se bruscamente contra a parede. Sua mente não registrou o hematoma recém adquirido, imediatamente se preparando para receber o golpe imediato que se seguiria. solta um chiado alto, usando os dois antebraços para proteger seu rosto, sentindo o impacto brusco do contato da sola da bota pesada de combate do inimigo acertar o nervo de seu braço, e, por consequência, ela derruba sua única arma. Mas ela não tem tempo. Porra! Precisa ser rápida. Precisa ser rápida! Um grunhido escapa por entre os dentes dela, enquanto ela usa o antebraço esquerdo para impedir que outro chute acerte bruscamente a lateral da cabeça dela. O impacto a empurra violentamente contra a parede, e ignora a dor que explode na lateral de seu corpo, rolando outra vez para frente, chutando com violência a panturrilha do quinto inimigo, ouvindo o satisfatório crack ecoar por seus ouvidos. Usando a fração de segundos de distração, se lança para frente, apoiando o pé esquerdo sobre o joelho dobrado do quinto inimigo, usando-o como apoio para alçar-se para cima, enroscando as pernas ao redor do pescoço do quinto inimigo em um aperto sufocante, enquanto lança seu corpo para trás, tentando alcançar o sétimo inimigo, próximo de onde os dois estavam, afim de derrubar ambos os inimigos com um único golpe.
  As mãos travam ao redor do pescoço do sétimo inimigo, e um grito abafado escapa por entre os lábios dela quando dois disparos são feitos. Ambos atravessam sua costela direita, mas não o solta, usando o peso de seus inimigos, e o empuxo para derrubá-los. não tem tempo de reagir ou avançar para finalizar seus dois oponentes. O oitavo inimigo é mais rápido. Um grito abafado escapa do fundo de sua garganta, enquanto desaba escada abaixo, rolando por seu próprio corpo, sentindo uma dor intensa atingir seu pulso esquerdo, quando o osso se parte. Mais disparos são feitos.
   não tem tempo para verificar o novo ferimento. Ela se arrasta o mais rápido que consegue pelo chão, lançando-se bruscamente contra uma das portas dos apartamentos, agora abandonados do prédio, engatinhando desastradamente, escorregando em seu próprio sangue, ao conseguir esconder-se no balcão enquanto os disparos se alojam nas paredes. Pouco tempo. Merda. se escora contra a parede gélida do balcão do apartamento abandonado, tremendo, enquanto trinca os dentes com força, os olhos prateados arregalados enquanto ela acessa a situação.
  Sem armas. Pulso dominante comprometido. Oito inimigos aproximando-se. Menos de um minuto para resposta. Porra. Porra! PORRA! prende a respiração, compartimentalizando suas próprias emoções, deixando o desespero e a ansiedade assumirem um assento de carona enquanto se concentra na praticidade da situação. Sua mão dominante está comprometida, a dor iria nocauteá-la nos próximos cinco minutos. O corpo estava começando a entrar em choque. Duas balas alojadas na caixa torácica, o aperto no peito provavelmente era indicação de que algumas costelas haviam sido quebradas. Então a linha de ação começa a se formar por sua mente: eliminar a dor, encontrar uma arma, ferir o máximo que conseguir, escapar pela janela do apartamento abandonado. Porcentagem de falha: 42%, em aumento.
   inspira profundamente, fechando os olhos por alguns segundos enquanto tenta acessar a parte de sua mente que lhe foi ensinada desde que se lembrava por gente. Inspira, segura, e então exala pela boca. Ao fundo de sua mente ela encontra o maldito botãoà sua espera. Não há outra forma de exemplificar, se não a sensação de um botão imaginário gravado ao fundo de seu cérebro, e como fora treinada para o fazer, ela gira o botão ao contrário, contando mentalmente, meio a parte, os segundos, tentando cronometrar suas ações com os inimigos que se aproximam.
  Uma onda elétrica gélida percorre o corpo dela por completo. A adrenalina mistura-se com o alerta em seu sangue enquanto aos poucos a dor vai dando espaço para uma sensação esquisita de formigamento crescente. Então se torna apenas um amortecimento suave, e após uma fração de segundos, não há mais nada. O nível da intensidade de sua dor poderia ser controlada por aquele maldito botão projetado em sua mente devido as práticas involuntárias e obrigatórias. trinca com força os dentes, mantendo sua concentração em sua respiração, tentando estabilizá-la ao máximo.
  Os olhos prateados dela se voltam para seu próprio pulso, estreitando os olhos ao perceber o quão torto estava. Sua mão estava praticamente no ângulo contrário. Um dos ossos se projetava para fora. Tinha quase certeza que ela teria que amputá-lo se sobrevivesse àquela merda de missão, mas sem a dor para corroer seu raciocínio lógico, a situação se tornava mais prática do que de fato era. tateiam desesperadamente por alguma coisa que ela possa usar a seu favor, encontrando um guardanapo de algodão qualquer próximo da bancada onde ela está escondendo-se e com um grunhido de pura impaciência e agitação, enrola o guardanapo ao redor de seu pulso, tentando conter o sangramento e manter a mão no lugar certo.
  Mais disparos.
   se encolhe instintivamente ouvindo os projéteis se ficarem nas paredes de concreto, e pequenos fragmentos atingem, não apenas o chão, mas igualmente a estrutura de concreto do balcão onde ela está se escondendo. Porra! agarra a primeira coisa que vê, a porra de um banco de metal com o assento em um tom verde neon excruciante para os olhos e tenta concentrar-se em apenas ouvir os passos em sua direção. Sua mente está a mil por hora, as pupilas contraídas enquanto o tremor aumenta por seu corpo, trincando os dentes com força, tentando desesperadamente manter sua respiração regular. Lufadas de ar, todavia, escapam por entre os dentes trincados dela. Cinco, quatro, três, do…
   acerta a panturrilha do quinto inimigo bruscamente com o banco de metal com o assento de neon, usando o antebraço direito, segurando ainda firmemente o banco, para atingir o braço esquerdo de seu oponente, empurrando a arma que ele empunha, ouvindo-a disparar próximo demais de seu ouvido. A explosão do disparo causa um ruído alto no ouvido direito de , e antes que ela possa perceber, seu ouvido direito fica completamente abafado – sangue escorre por seu pescoço, mas ela está ocupada demais para prestar atenção nisso. empurra o quinto inimigo contra a bancada, usando todo o peso de seu corpo enquanto o atinge bruscamente na cabeça com o assento do banco de neon, ouvindo um satisfatório crack, antes de agarrar com sua mão machucada o colarinho do quinto inimigo, usando-o como escudo quando o sexto, sétimo, e oitavo inimigo disparam na direção dela. o arrasta para trás, os olhos vidrados, arregalados, fixos em seus outros três oponentes, observando o sétimo inimigo sinalizar para a direita dela, indicando para que o oitavo e sexto inimigo seguissem pelo flanco dela e a atacassem ao mesmo tempo, enquanto arrastava o corpo agonizante do quinto inimigo ao qual ela se agarrava como um escudo junto consigo, tentando manter sua cobertura.
  Ela rapidamente lança um olhar ao seu redor, tentando acessar a situação, e então, ela segura com sua mão machucada, o osso se projetando um pouco mais para fora de sua pele por consequência, e o corpo do quinto inimigo, ela se volta na direção das bancadas da cozinha, encontrando uma frigideira média de ferro fundido sobre o fogão. Puta merda, se isso não era conveniente. Foda-se. empurra o corpo do quinto inimigo sobre o sétimo, como distração, ao mesmo tempo que ela se volta para o sexto, atingindo-o no rosto com a frigideira, violentamente, usando toda a velocidade que ela possuía para executar o golpe. Um guincho engasgado escapa do sexto inimigo que desaba no chão, momentaneamente inconsciente, enquanto arremessa a frigideira de ferro fundido na direção do oitavo inimigo, acertando-o com precisão. O cabo abre um buraco grotesco entre o nariz dele e o olho direito, enterrando-se em sua bochecha, antes do oitavo desabar em um baque molhado e nojento no chão.
   dispara na direção do oitavo inimigo estatelado no chão, buscando por algo que ela pudesse usar contra o sétimo inimigo, praguejando entre dentes ao encontrar apenas uma faca, imediatamente se levantando e preparando-se para atacar seu último inimigo, mas ele é mais rápido. O sétimo inimigo dispara na direção dela, usando o restante de sua munição para tentar abatê-la de uma vez. sente o impacto dos disparos, os ombros e corpo sendo empurrados para trás e a sensação como se fosse algo queimando sua pele se espalha de maneira familiar, mas não há explosão alguma de dor, apenas o típico característico amortecimento que ela havia se habituado a sentir. Três projéteis se afundam em seu tronco, dois, em seu flanco esquerdo, um no centro de seu abdômen. Ela sente uma breve contração em seu estômago, e seu corpo tem um espasmo. Sangue inunda sua boca, enquanto seu tronco se projeta precariamente para frente, enquanto sangue escorre por sua boca de maneira involuntária e consequente do disparo. Ela está amortecida demais para compreender com exatidão o que havia acontecido, mas seu nariz de repente fica permeado pelo cheiro sufocante de ferro e sangue, enquanto sua boca está amarga, e até mesmo  o ato de engolir lhe provoca uma sensação esquisita de impossibilidade. Mas ela estava sem tempo. Ela não para. avança na direção do sétimo inimigo, acertando com força a caixa torácica dele com um, dois, três, quatro golpes seguidos, afundando a faca até o punho, antes de retirá-la e fincá-la no supercílio de seu último oponente, estrategicamente entre o olho e o início do crânio, fincando-a fundo o suficiente para se alojar no cérebro do sétimo inimigo. então chuta com o restante de suas forças o tronco do sétimo inimigo, ouvindo-o meio aparte desabar no chão com um gorgolejo incômodo.
   cambaleia para trás, desabando sentada enquanto faz uma careta. Mesmo com a falta de dor por seu corpo, ela ainda pode sentir a exaustão, e, enquanto ela tenta normalizar sua respiração e colocar-se de pé, novos gostos e sensações provindas de ferimentos recentemente adquiridos começam a permear sua mente. Ela pode sentir o sangue, cálido, encorpado e viscoso escorrer de determinados pontos de seu corpo, umedecendo o tecido de seu uniforme e aquecendo-a de maneira inconvenientemente desconfortável. Seus pulmões estão ardendo. cospe o sangue que se acumula em sua boca, balançando a cabeça uma, duas vezes, como se pudesse tentar limpar ou ao menos manter sua mente estável e focada, mas a sensação de sua cabeça estar ficando mais leve e a propensão de um provável desmaio aproximando-se é o aviso para ela que seu tempo haviase esgotado.
  Continue se movendo. Levanta, porra, continua se movendo!
   trinca com força os dentes, exalando de maneira irregular e pesada por entre os dentes enquanto se obriga a tentar se levantar outra vez, desabando mais duas em seus joelhos e acertando bruscamente uma das paredes antes de engatinhar na direção dos corpos de seus inimigos. Um deles está apenas inconsciente, ela sabe, mas pouco se importa com isso no momento. Os olhos cinzentos da mulher percorrem quase em desespero, buscando pelo o motivo dela estar ali com uma ponta de frustração. Ela puxa e aperta um pouco mais o guardanapo servindo como bandagem em seu pulso esquerdo, se certificando de manter a porra do seu pulso no lugar, antes de começar a procurar por entre os bolsos de seus inimigos. Pelos próximos minutos, apenas pragueja entre dentes a cada um dos bolsos que ela abre, alçando um carregador, com cerca de seis projéteis à disposição. guarda em um dos bolsos de seu cinto, junto com a arma que ela havia encontrado, antes de voltar a procurar pelo motivo dela estar ali.
  A chave estava no segundo bolso do uniforme do oitavo inimigo, dentro de uma caixa de cigarros. estreita os olhos esforçando-se para manter sua visão focada, embora as laterais começassem a se obscurecer, como se pequenos pontinhos de luz se projetassem por sua visão, dificultando para ela entender o que era real e o que não era. Merda, seu tempo estava no limite. Ela concentra-se em verificar se esta era mesmo a chave de sua missão ou alguma outra tentativa de armadilha criada por seu inimigo. Não era incomum criarem falsas estratagemas para se distrair ou comprometer uma missão, e não seria a primeira vez que ela se deparava com uma armadilha em seu caminho. Sua mente volta para os detalhes da missão outra vez. Ela repassa os detalhes, de novo, e de novo, se questionando o que havia deixado passar desta vez. Os olhos prateados fixam-se no rosto dos inimigos, unindo as sobrancelhas grossas e bem marcadas, enquanto os analisa com atenção. O gosto amargo de sangue pungente em sua boca. Reconhecia os traços, os havia memorizado antes da missão, gravado os traços, cabelos loiros ondulados, bigode grosso, cicatriz no lado esquerdo da mandíbula, lóbulo esquerdo obstruído. Se ela puxar as pálpebras sabe que irá encontrar um olho com heterocromia, um verde, o outro castanho claro. Graham Ward, este era o nome dele. Ex-CIA, agora agente da SHIELD. Um alvo. Mas há algo de errado….
  Cabelos loiros ondulados, bigode grosso e marcado, cicatriz no lado esquerdo da mandíbula, lóbulo esquerdo obstruído. Cabelos loiros ondulados, bigode grosso, cicatriz no lado da mandíbula, lóbulo esquerdo obstruído. Cabelos loiros ondulados, barba por fazer, cicatriz no lado esquerdo da mandíbula, lóbulo direito obstruído. Cabelos loiros ondulados, barba por fazer, cicatriz no supercílio direito, lóbulo direito obstruído. Ela pisca uma vez. Nada acontece. Ela pisca de novo, encarando fixamente o corpo. Cabelos escuros, lisos, barba por fazer, cicatriz no supercílio direito, nariz quebrado, a respiração de se perde em sua garganta, sufocando um grito. Não é ele. Não é Graham Ward. Porra. Porra. O que estava acontecendo.
   pisca algumas vezes, sentindo sua cabeça girar enquanto a iluminação do espaço parece oscilar. Ela sente o ar começar a lhe faltar, tornando-se mais e mais rarefeito, acidentalmente caindo sentada. Sua mão esbarra no crachá do corpo, aumentando ainda mais sua confusão, quando ela lê o nome. É russo. Estranhamente familiar. Novokov…? Onde ela havia ouvido aquele nome antes?...
  É como se estivesse presa em um sonho esquisito no qual o rosto da pessoa com quem você está falando não era possível de ser visto. Como se estivesse presa em uma falha. Merda, ela deveria estar alucinando, não havia outra explicação para isso. leva as duas mãos em direção ao seus ouvidos, tentando abafar o pequeno ruído que começa a se formar ali, enquanto fechava os olhos com força. Por uma fração de segundos, ela apenas consegue escutar o seu ritmo cardíaco, acelerado, descompassado, mas constante. Bip. Bip. Bip. abre os olhos, confusa, não soa como o barulho de seu coração, mas sim…
  Ela abre os olhos, confusa.
   lança um olhar ao seu redor, tentando registrar a onde diabos estava. A pulsação de aumenta, criando um pico de adrenalina que faz com que sua cabeça comece a girar. Seu estômago afunda e ela tem quase certeza que irá vomitar. Sua garganta está seca, e sua respiração de repente se torna mais rápida, superficial, irregular, como se ela estivesse prestes a começar a hiperventilar. Ela franze o cenho, voltando a encarar o rosto de seu outrora inimigo – por que ele era seu inimigo? –, agora desacordado. Ela pisca uma vez, e o rosto continua o mesmo, a sensação de iniquidade lentamente aumentando. Quem supostamente ela deveria estar procurando? Onde estava ? O que ela…? pisca outra vez, como se estivesse tentando clarear seus próprios pensamentos, estendendo sua mão esquerda, dominante, completamente intactana direção do rosto do homem desacordado no chão ao seu lado, tremendo mesmo que ela sequer perceba que o faz. Os dedos dela se esticam para tocar na pele do homem, mas a luz oscila de um tom amarelado para vermelho antes que ela possa sequer tocá-lo direito.
  Que porra estava acontecendo?!
  Os olhos prateados dela se arregalaram, fixando-se na lâmpada por um longo momento. Por uma fração de segundos realmente teme o que vê. Ela está enlouquecendo. É o efeito de um gás. O que ela não percebeu desta vez? Merda! O que ela não havia percebido dessa vez?! O QUE ELA NÃO HAVIA PERCEBIDO DESSA VEZ?!... O ar começa a ficar mais rarefeito, e ela não sabe mais dizer o quanto de tudo isso é proveniente de um ataque de pânico, o quanto é sua mente apenas elaborando uma das inúmeras armadilhas que ela tentava evitar, e o quanto era verdade, mas pelos próximos minutos, apenas congela no lugar. Ela não consegue se mover. Precisa pensar racionalmente, ela sabe disso, mas a sensação gritante é que ela está em perigo – alguém estava a vigiando, alguém a estava caçando, estava ali! Ela podia sentir! Bem ali!... Ali onde?! – praticamente joga sua mente em uma espiral de loucura crescente. Seu ouvido direito ainda está ensurdecido, o eco vago de um zunido aumentando a cada seguindo, persistente e contínuo, e está doendo. Muito. Ela sente que algo quente e encorpado escorre, de dentro de seu ouvido ferido e surdo, para fora. Assemelha-se a água, mas é quente demais para o ser. Escorre lentamente por sua mandíbula, e então, desliza por seu pescoço, pingando em seu ombro. Ela quer tocar, quer verificar o que é, mas não consegue sequer se mover. franze o cenho lançando um olhar ao seu redor. Sua respiração aumenta ao ponto de tornar-se ofegante, irregular e trêmulo. Ela iria vomitar. Merda, ela sentia que iria desmaiar em breve, sua cabeça estava latejando.
  A sala de treinamento antiga com paredes brancas, agora revela manchas vermelhas profundas e em padrões esquisitos, mas permanece vazia. A luz continua a oscilar, enquanto ela balança a cabeça tentando se livrar do torpor que atinge seu corpo, prendendo-a no lugar. É como se ela estivesse presa em pequenos cabos, puxando-a para baixo, sufocando-a e imobilizando-a. Impossibilitada de fazer qualquer coisa que não fosse apenas observar. Trincando os dentes com força, ela tenta encontrar uma maneira de sair daquele maldito transe. Quaisquer tentativas dela de libertar-se daquele maldito estado de congelamento, são completamente esquecidas ao fundo de sua mente quando seus olhos prateados repousam na direção da porta dupla, revestida e pesada de metal, aberta com um clique. engole em seco, dando um passo hesitante para frente enquanto ergue as duas mãos no ar. Trêmulas, completamente encharcadas de sangue. A faca escorregando de sua mão esquerda e caindo com um clique metálico no chão de concreto queimado. arregala os olhos, seu tremor aumentando. Quando… quando ela segurou aquela faca? De onde veio…?
  Os olhos dela voltaram imediatamente na direção da porta, em uma mistura de confusão, medo e alívio. É apenas um soldado. Não um batalhão ou uma ameaça direta. Só um soldado. Sua mente está hesitante e assustada, assumindo que, apesar de ser apenas um soldado, havia algo de muito errado ali, seu peito, ao contrário, enche-se com uma sensação estranha de familiaridade. Ela tenta se lembrar de onde o conhecia, analisando-o com cuidado. É alto, o que faz com que seus passos silenciosos se tornem um pouco mais intimidadores – afinal era necessária real habilidade para conseguir conter os ruídos de sua locomoção daquela forma –, os cabelos longos pedem por seu rosto, na altura de suas maçãs do rostos, sem corte, como se tivessem crescido por desleixoou esquecimentoe nada mais. Tem um braço de metal, uma estrela vermelha de cinco pontas gravadas onde o braço biônico de metal se conectava com o que ela supôs ser o restante do músculo. Uniforme escuro, tático, pesado, e uma mordaça. Embora parecesse com uma máscara, não pode deixar de desconsiderar a ideia ao assumir que uma máscara deveria cobrir o rosto inteiro, e a dele apenas cobria a parte inferior de seu rosto, justa, como uma mordaça. tenta se mover, unindo as sobrancelhas. Há algo muitoerrado com ele. Ela lança um olhar ao redor, sentindo o desespero começar a aumentar, antes de voltar sua atenção para o soldado, seus olhos prendem-se aos dele e tudo desaparece ao seu redor.
  Mas não é o tom azul gélido, meio cinzento, meio esverdeado, que a prende em seu olhar, ou tampouco a intensidade por trás de tais olhos – como se estivesse tentando gritar algo, tanto quanto elaestava. Não, não. Era o estoicismo. Não havia nadaali. Os olhos dele estavam completamente vazios, obscurecidos por suas intenções, como um predador. entendeu rapidamenteque, quem quer que ele fosse, não erae jamais seriaseu aliado.
  A realização a teria feito exalar, se ela estivesse respirando. As palavras se formam em sua boca, mas nunca são expelidas. Ela observa congelada no lugar ele se aproximar, os olhos prateados dela repousando, então, na mão direita dele, a mão que parece ser feita de carne e ossos e não metal, como a outra. O tremor por seu corpo aumenta, ao perceber tardiamente o que ele segura ali. Uma Luger P8, pelo estado da arma em boas condições, funcional. Ele não está ali para ajudá-la, está ali para matá-la. Mas por quê? Ainda assim, um resquício de esperança quase se acende em seu peito quando ela o vê hesitar. É rápido, quase imperceptível, mas por um segundo, o soldado desvia o olhar para Novokov desacordado no chão, e parece considerar suas possibilidades. tenta usar isso a sua vantagem – estava desesperada, afinal, e qualquer chance aindaera uma chance. Me ajuda! Ela tenta dizer, mas sua voz não sai de seus lábios. Há apenas silêncio, como se alguém tivesse lhe roubado não apenas a fala, mas sua capacidade de se comunicar. Tentar falar era tão doloroso quanto afogar-se. Mas o soldado parece apenas estar no automático, estoico e compenetrado apenas em sua missão.
  O soldado dispara a arma, acertando-a em cheio.
  Sangue explode pela boca de enquanto a dor faz com que pontos de luz explodam em sua visão. Ela cambaleia para trás encarando-o com puro medo. Os olhos prateados dela fixam-se nos azuis esverdeados dele, e tudo ao redor desaparece. Ela tenta suplicar. Ela não quer morrer. Não agora. Não quando estava esperando por ela, no… no… não quando … quem… quem era ? O corpo dela se curva para frente bruscamente quando outro disparo é feito, e suas pernas cedem ao seu próprio peso. desaba no chão, engasgando com seu sangue. Ela tenta se colocar de pé, mas há uma sensação terrivelmente sufocante de amortecimento em seus músculos que a impede. A dor aos poucos se aloja em segundo plano em sua mente, enquanto seus olhos se tornam mais pesados. Os ombros dela se chocam contra o chão enquanto ela tenta se mover, mas não consegue. O sangue escorre por seu nariz, e lábios, enquanto a tosse aos poucos torna-se mais fraca e irregular. Os olhos prateados dela, ainda fixos no rosto dele, ficam mais e mais vagos. Sua visão torna-se embaçada, escurecendo-se mais rápido do que ela desejava. Estava caindo no sono? O que estava acontecendo? Seus ouvidos ficam abafados, como se ela estivesse embaixo d’água quando ela escuta o soldado dizer:
  — Senhorita ? Senhorita, ainda está comigo?
  A voz baixa e calma, cuidadosamente controlada de Doutor Fennhoff ecoa pelos ouvidos dela de maneira gentil. pisca rapidamente, inspirando o máximo de ar que consegue, como se tivesse ficado por muito tempo prendendo sua respiração, lançando um olhar assustado ao seu redor, parecendo ter voltado a si mesma. Os olhos prateados dela se movem pelos móveis da sala do Doutor Fennhoff. O cheiro suave de lavanda causou-lhe uma sensação de conforto enquanto os incensos cuidadosamente dispostos sobre uma das mesas dele com livros e mais livros espalhados, próximo da janela ficava. Era elegante, a sala dele, e acolhedora. Confortável, até. franze ainda mais o cenho, confusa. Não. Não… ela não estava ali, estava? Que lugar era…? Onde…? Como ela…? deixa-se recostar-se contra a cadeira, voltando os olhos prateados na direção do psicólogo. Ele está igualmente com o cenho franzido, uma expressão preocupada que tinge seus traços elegantes e finos, os olhos intensos, castanhos claros, levemente esverdeados se estreitando enquanto ele parece tentar ocultar sua tensão. Por que ele está tenso? Ela não escuta de início quando os lábios dele formam as palavras, mas então, ela entende o que ele está dizendo:
  — Senhorita ? ? querida, está me ouvindo?

03 - Bailarina parte 2

POINTE-SHOES | 1951.
Leningrado, União Soviética.

  O silêncio ensurdecedor só é quebrado após longos vinte minutos.
  Os olhos dela se erguem lentamente dos dedos longos e repletos de cicatrizes, as unhas fincando-se instintivamente, e meio a parte de sua mente ansiosa, em algumas cicatrizes mais fundas, delineando a estranha profundidade que desfigura seus dedos. Ela não se lembrava de onde as havia conquistado, mas sabia que em alguns raros momentos, quando ela estava prestes a pegar no sono, ou distraída demais com sua própria mente para perceber de imediato, ela podia sentir o toque fantasma ali. Dedos ásperos que não lhe pertenciam, traçando gentilmente as cicatrizes das mãos dela até chegar no interior de seu pulso esquerdo. Ela raramente retirava o pequeno bracelete feito de veludo escuro, vermelho, e com um brasão antigo, provavelmente de sua família, onde uma numeração marca a parte interna de seu pulso. Uma tatuagem, antiga. A essa altura, a tinta desgastada agora tem uma tonalidade meio azulada nas extremidades, revelando um passado que não conseguia se lembrar de ter existido, mas que, com provas físicas, era inegável.
  Disseram que ela havia sido capturada pelos nazistas próximos das fronteiras da Áustria, em um dos fronts dos russos. Disseram que haviam encontrando-a desacordada, mal respirando direito, quando o Exército Vermelho retomou as fronteiras, uma das poucas sobreviventes dos experimentos em campos de concentração. Disseram a ela que era uma reação natural de seu cérebro, após experienciar um evento traumático como aquele, perder a memória ou esquecer-se do que havia acontecido lá. Disseram que ela estava em casa novamente, segura e que um renomado e confiável médico iria ajuda-la. Mas não se sentia em casa, e muito menos segura: não com os pesadelos constantes. Não com os ecos de imagens que invadiam sua mente com frequência. Ainda assim, ela estava se esforçando para progredir, pelo bem de , mas igualmente porque se ela não fizesse… o quanto de sua mente ainda poderia ser considerada sã quando ela não tinha ideia do que estava vendo, sentindo ou ouvindo era real, e quando não era?
  Se seus sentidos poderiam tão facilmente enganá-la, então, o que era de fato a realidade?
  — Ouça, eu sei que pode ser difícil encontrar as palavras certas ou sequer mesmo palavras para se expressar. Todos nós temos limitações que nos impedem de expor algo, e isso é normal — Fennhoff começa a dizer, finalmente quebrando o silêncio após longos minutos, mas não consegue respondê-lo. Não é que ela não queira, ela simplesmente não consegue dizer. tinha aquela estranha sensação de estar sendo amordaçada vinte e quatro horas por dia, como se algo estivesse impedindo-a de falar alguma coisa, como se algo estivesse preso em sua boca, profundamente enroscado em seu esôfago, impedindo-a de falar.
  Fennhoff havia dito que aquilo era normal: algumas pessoas após sofrerem algum evento profundamente traumático poderia acabar experienciando a perda da fala. Ainda assim, não conseguia deixar de sentir-se desconfortável ao ver que Fennhoff, por uma fração de segundos, em todas as sessões esperava que ela falasse. Uma progressão, qualquer que fosse, e , todavia, só conseguia sentir-se estagnada. Presa no lugar. Era sufocante. Sentia que estava enlouquecendo.
  — Essa resistência é natural, especialmente tendo em vista o que você passou. Veja, querida, você não está mais em perigo. Eu não estou aqui para ditar normas ou te repreender. Não há certo ou errado. Estou aqui apenas para ouvir o que você tem a dizer — Fennhoff faz uma pausa, e engole em seco, recostando-se contra o estofado macio do sofá dele.
   precisa conter o impulso de deixar-se escorregar até que estivesse no chão, sentindo a estranha sensação de que, se apoiasse mais peso do que deveria em seu corpo ali, ela iria acabar caindo para trás, acabaria sendo absorvida pela poltrona e desapareceria em um mundo permeado apenas pela escuridão e o silêncio. Ela umedece o lábio inferior, assentindo lentamente para o que Fennhoff diz, mas ainda em completo silêncio.
  — Preciso que diga algo, , do contrário, não vou poder te ajudar.
  Quando não responde, outra vez, Fennhoff anota alguma coisa em seu sketchbook vermelho, a caneta deslizando pela superfície porosa do papel grosso, soando como um pequeno farfalhar que faz se tencionar um pouco. Ela não estava com medo, mas por que diabos estaria? Era só uma folha, uma caneta, e o barulho quase silencioso demais para ser percebido com clareza de alguém escrevendo. Mas seu coração ainda está pulsando rápido demais em seu peito, e suas mãos ainda se fecham com força enquanto ela tem aquela maldita sensação de deja vu outra vez.
  — Tudo bem, certo, por que não começamos por um tópico mais simples? Me fale um pouco de como foi a sua semana? Como está a preparação para sua estreia? Como tem se sentido? — Fennhoff tenta e inspira fundo, assentindo lentamente para o doutor.
  Os olhos de se desviam do rosto do médico e repousam na janela à sua esquerda, observando, sem exatamente querer muito, o mundo do lado de fora daquela sala pequena, porém confortável.
  Sentia-se como se estivesse dentro de um globo de neve. Estava nevando àquela altura, mas não é uma tempestade, ao menos, não ainda, manchando os telhados e as estruturas de cimento que envolviam a cidade. Por um breve momento a neve parecia simplesmente ter parado no ar, como se estivesse estática. pisca os olhos, abaixando-os rapidamente, unindo as sobrancelhas enquanto apertava os lábios em uma linha.
  — Estou nervosa. gesticula por fim. Não era melhor do que escrever, já que nem todos eram capazes de entende-la quando ela usava linguagem de sinais para se comunicar, mas Fennhoff havia estabelecido uma maneira de comunicação alternativa desde o começo com para que ela pudesse se expressar sem precisar escrever ou ao menos ter uma segunda alternativa. Além disso, nem sempre estaria com um bloquinho de notas para escrever o que estava pensando, logo, teria que ter uma segunda alternativa, e talvez até mesmo uma terceira maneira de se comunicar claramente.
   volta a linha de seu olhar para o chão, observando os veios de madeira impecavelmente encerados e organizados, sentindo uma pequena ponta de desconforto quando os olhos dela localizam uma estranha fissura entre duas tábuas. une as sobrancelhas, confusa, ao perceber que por baixo das madeiras do assoalho há cimento queimado — o que não fazia sentido algum, uma vez que estavam em um prédio antigo, logo a estrutura deveria ser apenas de alvenaria.
  Um pigarro de Fennhoff a desperta de sua distração outra vez. tenta não se encolher quando, por uma fração de segundos, os olhos dela se encontram com o rosto dele, mas tudo o que ela vê é apenas um crânio putrefato. Larvas escorrem por entre os orifícios de seus olhos e nariz, a mandíbula pende pela esquerda, sem o músculo para sustenta-la. inspira fundo, uma vez, antes de desviar seu olhar para suas mãos.
  — não tem parado de falar sobre isso. Disse que quer ser uma bailarina também, por causa dos tutus e das pedrarias, tem usado todas as tiaras, até mesmo para dormir. Acho que está mais ansiosa do que eu. gesticulou para Fennhoff que assente lentamente, em um pequeno incentivo para que ela continue falando, uma aprovação discreta de que ela estava indo pelo caminho certo.
   hesita por um breve momento, sem saber o que mais dizer. Sabia que existia ali um vínculo de confiança, e Fennhoff nunca a havia feito desconfiar de suas intenções por trás da ajuda que ele oferecia. Ela sabia que estava no caminho certo, por que diabos não estaria? Mas não era confortável. Por algum motivo, ao fundo de sua mente, havia alguma coisa estranha. Algo que estava fora do lugar. E ela não conseguia entender exatamente por que o fazia. O que ela não estava vendo desta vez? Onde ela estava errando agora? Por que ela estava sempre errando? O que ela não estava vendo…
  — Os ensaios têm ajudado bastante a manter minha cabeça no lugar, é mais fácil focar quando tenho algo em mãos, e também tem sido um desafio bem-vindo, depois de tudo… quer dizer, eu não sei se estou sendo uma boa… figura materna para ela, mas… estou tentando…
  Ela para de gesticular sem saber aonde queria chegar. Sem saber o que dizer. une as sobrancelhas, voltando a encarar suas mãos outra vez, esfregando o polegar ao longo de seu indicador, ansiosamente, deixando o canto de sua unha percorrer a profundidade grotesca da cicatriz, fazendo-a se arrepender de não ter usado luvas aquele dia. Havia tentado tomar um risco, aceitar uma mudança e fazer um salto de fé. Deus, como ela havia fracassado. Havia achado que conseguiria passar o dia sem as luvas, seu único consolo era a pequena pulseira de tecido envolvendo seu pulso esquerdo para esconder a numeração de quando estivera no campo de concentração. Mas… mas ela não era assim tão forte. E odiava a sensação. Odiava ter que olhar para suas próprias mãos e…
  — Não sinto que meu corpo me pertence confessa por fim, fechando os olhos, sem conseguir encará-lo. Ela não queria ver a pena no olhar de Fennhoff, não queria ver alguém sentir-se mal por ela porque piorava tudo. Ela não merecia aquilo… se ela tivesse sido melhor, mais rápida, se ela não fosse tão… tão ela, talvez sua família estivesse viva, talvez os amigos que haviam sido capturados e mortos no front Austríaco estivessem em casa, talvez tivesse uma infância tranquila e feliz, com os pais de verdade. Se ela pudesse ter trocado de lugar. Se ela pudesse voltar no tempo. Céus, ela tinha nojo de si mesma. Porque sempre sentia que havia algo de errado com ela, porque se todos a olhavam de maneira diferente, então, certamente, havia algo de errado com ela, não é? Quando uma pessoa a encarava com nojo, talvez, e apenas talvez, poderia ser um problema relacionado apenas a pessoa que a encarava, mas o que significava quando muitas a encaravam da mesma maneira? Certamente todas elas não estariam erradas também, não é? Não… não poderiam estar… — Sinto como se… como se não estivesse dentro do meu corpo, como se estivesse encarando uma estranha no espelho, como se nada em mim me… me pertencesse… como se estivesse fora do meu corpo… como se… se eu não fosse eu… eu não sei quem sou eu…
   fica em silêncio por alguns minutos, tentando absorver sua própria confissão a Fennhoff e ao mesmo tempo, esperando uma resposta dele, mas a resposta nunca chega. Hesitantemente, ela se obriga a abrir os olhos, franzindo o cenho. Fennhoff tinha momentos de silêncio para que absorvesse o que havia acabado de dizer e pensasse sobre, mas… nunca havia sido um completo silêncio. Nunca havia sido apenas a pulsação alta em seus ouvidos sua única companhia. O que…
  É fim de tarde. A luz suave, dourada, do por do sol fazia com que as cicatrizes em suas mãos ficassem estranhamente mais suaves. franze o cenho, levantando-se de supetão e lançando um olhar ao redor. Por que diabos ela havia se sentado em um banco de madeira no Brooklyn? abre a boca para dizer alguma coisa, mas se esquece, enquanto se abaixa para ajeitar seu sapato. Ela exala, exasperada, sim, seus pés estavam doendo por causa daquele sapato, deveria ser por isso que ela havia se sentado no banco, para ajeitar os malditos sapatos. Ela aperta os lábios, desafivelando as tiras de couro, considerando simplesmente voltar para casa descalça. descarta completamente a ideia ao perceber que seu pai a mataria se a visse descalça.
  , portanto, apenas massageia os calcanhares com uma careta, antes de ajustar os sapatos novamente em seus pés. Ela se coloca de pé rapidamente, meio corada, envergonhada pela situação e pressionando os lábios juntos em um sorriso apologético para algumas pessoas caminhando pela calçada que lançam olhar enfadados na direção dela. Instintivamente, ela coça a parte de trás de sua orelha, fincando a unha com mais força do que ela deveria na pele, enquanto desvia os olhos para o chão, agitadamente arrumando a saia de suas roupas. Desconfortável e consciente de si mesma, pega a raposinha de pelúcia, meio surrada e com um olho faltando, obrigando-se a andar.
  Tenta buscar em sua mente o que diabos estava fazendo ali, mas não encontra nada. lança um olhar ansioso pela rua, observando os prédios com tijolos vermelhos, as lojas, antiquários e um cinema. franze o cenho, os olhos percorrem a pequena quantidade de pessoas que se alinhavam na bilheteria para pegar ingressos, antes de finalmente encontrar o rostinho travesso da garotinha de cabelos loiros e olhos vívidos, correndo por entre as pessoas na fila e rindo alto, quando uma das outras crianças tropeça em seus pés e desaba no chão. exala, exasperada.
  !
  Toda santa vez! Bastava um minuto de distração e a garotinha já se envolvia em algum problema. Não podia ser pelo menos quieta por alguns instantes ou gostar de ler, como o fazia? Quer dizer, não era que estivesse esperando que uma garotinha de oito anos se comportasse como uma adulta, mas ela bem gostaria de um momento de sossego sem ter a certeza de que, o silêncio de era, na verdade, nada mais do que um indício que problemas maiores se acarretariam. A mão de aperta com mais força a arma em sua mão antes de correr. Mas então ela para por um segundo, assustada. Os olhos dela disparam para sua mão esquerda, onde seus dedos se fecham firmemente ao redor do corpinho desengonçado e esfarrapado da raposinha de pelúcia.
  Uma dor estranha se instala ao fundo de sua cabeça e por um segundo ela se encolhe, um grito estrangulando em sua garganta.
  Há algo de errado.
   fecha com força os olhos, cambaleando para o lado e se chocando contra algo. É frio, firme, como vidro. A luz a ofusca. Ela não consegue respirar, há algo a impedindo de respirar, embora, dolorosamente, oxigênio chegue a seus pulmões. Algo adorna sua boca de maneira lacerante, impedindo-a de sequer conseguir mover sua mandíbula, o metal frio e cortante fincando-se mais em sua pele, enquanto sentia cabos obstruindo suas vias respiratórias. Há algo enroscado em seus braços, muitos, puxando-os para trás, para baixo, prendendo-a no lugar, mesmo que suas pernas chutassem com toda força, mesmo que ela estivesse tentando se soltar. Seus membros parecem mais leves, como se estivessem flutuando, suspensos... imergidos em água. Ela tenta piscar, seus olhos ardem, desesperada para enxergar alguma coisa, qualquer coisa. Mas tudo o que ela vê é um borrão assustador de cores estranhas. Há um azul profundo, meio esverdeado, e pontos de luz piscam em algum canto à sua esquerda, e então, ela vê, desfiguradas, mas ali: silhuetas. Ela tenta discernir rostos e formas, ela tenta gritar por ajuda, mas tudo o que escapa é apenas um grito abafado de dor, que parece piorar apenas mais a pressão em sua cabeça, como se a pressão do que quer que estivesse prendendo sua boca, e mantendo-a imóvel, o que quer que estivesse acoplado em suas narinas e ao fundo de sua garganta, estivesse igualmente sobrecarregando com pressão sua mente, devido sua resistência.
  A dor é insuportável. Enlouquecedora. Ela chora, mas não sente lágrimas escorrerem por seu rosto. Ela se debate contra o que quer que a prende no lugar — os fios, há tantos deles — enquanto o desespero começa a aumentar. Sua cabeça está girando e ela sente os cantos de seus olhos começarem a se obscurecerem. Seu peito parece estar prestes a explodir, e tudo ao redor está abafado. E ao fundo de tudo, há um cansaço gritante, seu corpo estava desistindo. Alguém grita um nome. Um nome familiar. Fennhoff. Onde ela havia ouvido isso antes?
  — … está colapsando novamente! Pressão cardíaca em 20…
  — … a melhor opção é destruí-la de uma vez, Johann! Vai matar a todos, em troca do que?! Um experimento quebrado que
  — … JÁ CHEGA!
  — … SENHOR, O EXPERIMENTO… SOCORRO… UGH… NÃO CONSIGO…
  — … agora vê?! Vai acabar nos matando! Eu não vou…
  Ao longe um estrondo ecoa. Um disparo.
   pisca, tossindo, enquanto a dor por seus pulmões torna-se mais tolerável. Ela apoia a cabeça contra o tronco da árvore, fechando os olhos com força, tentando recuperar sua respiração, antes de perceber que o Sargento sentado à sua esquerda está falando alguma coisa. Puta merda, há quanto tempo ele estava falando? E o que diabos ele estava falando que ela não havia percebido. exala lentamente, balançando a cabeça, tentando diminuir a intensidade de sua pulsação, enquanto mantinha seu olhar fixo no americano.
  Normalmente teria uma aversão gritante por americanos. Eram arrogantes, estúpidos, e com uma linha de pensamento frustrante, a falta de conhecimento de lugares ao redor do mundo e de respeito por estrangeiros deixava explícito o quão exploratório e predador o país era, e seus nativos, além de idiotas, egocêntricos. Mas, estranhamente, e surpreendentemente até mesmo para , ela havia conseguido desenvolver até mesmo um pouco de tolerância ao americano. Mesmo que ela não fosse lá muito fã do charme barato dele.
  Sargento Barnes, no entanto, estranhamente, tinha um efeito calmamente sobre ela. Muito disso se dava a pulsação do sangue dele. Não era que não se acelerasse, ou mostrasse alguma irregularidade, mas era constante. Todas as vezes que ela tinha algum tipo de crise, onde tudo ficava extremamente sobrecarregado, e ela sentia aquela sensação incômoda de desespero a atingir, as batidas contínuas e firmes do coração de Barnes serviam como uma espécie de guia. Ela reconhecia por um pequeno descompasso, e esse descompasso era seu auxílio.
   balança a cabeça discretamente uma outra vez, tentando se livrar do torpor que a prendia refém no lugar, soltando um suspiro baixo e discreto quando finalmente seus ouvidos voltam a funcionar com mais clareza, apenas para perceber tardiamente que Barnes estava falando alguma coisa. Estava com uma foto em sua mão, os cotovelos repousados nos joelhos enquanto os olhos permaneciam, embora fixos no pedaço de papel, estavam distantes, como se visse algo que apenas ele conseguia.
  Ela podia ver a boca dele se mover, mas leva alguns bons segundos para perceber o que ele está dizendo. Ela une as sobrancelhas, se questionando por que diabos ele não calava a boca, e ao mesmo tempo, se esforçando para entender o que o americano dizia. Embora inglês não fosse sua língua materna, a Sala Vermelha havia se assegurado de que ela soubesse falar e entender o suficiente.
  “... e tinha um cinema perto de casa. Steve gostava de ir lá. Assistir todos aqueles filmes sobre o exército. Ele via aquilo solenemente, xingava qualquer um que fizesse barulho ou atrapalhasse. Desafiava caras duas vezes mais alto que ele, eu tinha que intervir, senão ele apanhava feio” diz Bucky, e ela quase pode ouvir o sorriso na voz dele. Ela quer questionar a ele por que diabos ele está dizendo aquilo para ela, quer dizer, ela não fazia ideia de quem era esse tal de Steve, e muito menos havia perguntado algo para ele, só pedido para que ele passasse a pólvora, mas, bem, parecia indelicado dizer “e?”, mesmo que ela quisesse trabalhar em silêncio. Então apenas murmura um “Ah sim” sem erguer a linha de seu olhar. Verifica os cartuchos improvisados, limpando-os com a manga de seu uniforme, sem erguer a linha de seu olhar, esperando que ele continue o que quer que estivesse falando. Mas Bucky não continua, ele, surpreendentemente, fica em silêncio. Estranhando o silêncio do americano, ergue o olhar, apenas para perceber que ele a estava encarando. Sua primeira reação, é avançar em direção a sua faca, preparada para atacá-lo.
  Mas ele não era uma ameaça para ela. Pelo menos naquele momento não.
   engole em seco contendo o impulso de desviar os olhos do rosto dele, incomodada pela maneira que ele a encara, mas obrigando-se a manter o contato visual. Era perigoso para ela desviar o olhar, ela não poderia ler o que se passava pelo rosto dele, não poderia tentar prever suas ações e intenções, mas encará-lo era uma faca com dois gumes. Porque os olhos dele eram lindos. Sob a luz suave do por do sol, com a tonalidade de ouro pairando pelas copas das árvores e refletindo-se pela neve e lama, projetavam sombras pelo rosto dele, acentuando seus traços, fazendo seus cabelos escuros ficarem mais escuros, como tinta. Fazendo os olhos dele adquirirem uma tonalidade mais cinzenta, azulada e menos esverdeadas. Sabia que era um truque da luz que estava fazendo os olhos dele parecerem daquela tonalidade, que eram na verdade de um azul mais profundo. Ela gostava da cor. Não era agressiva, apenas intensa. E ela se questionava o que diabos ele poderia estar pensando naquele momento.
  A parte racional da mente dela projetava possíveis intenções dele. Ele não poderia ser tão diferente dos outros homens do pelotão que ela havia encontrado pelas trincheiras. Talvez aquilo tudo fosse apenas uma fachada, uma distração, uma maneira de conquistar a confiança dela. Monstros farisaicos. Por mais que ela tentasse desesperadamente imitar uma silhueta masculina, simular trejeitos masculinos, e se sujasse, por mais que ela se recusasse a limpar o sangue seco e a lama em seu corpo, tentando camuflar e não levantar atenção para si mesma, não demorava muito para perceber que ela ainda era uma mulher no meio de homens. E alguns não suportavam a ideia. Outros divertiam-se com sua “inferioridade”. Então, ela não consegue evitar de calcular as potenciais consequências ali. Ela teria que matá-lo também? Ela teria que esconder o corpo dele em uma das pilhas de corpos deixados para trás, e culpar os alemães, para evitar que ele se aproximasse dela? Para evitar que ela ganhasse mais uma cicatriz em seu corpo? Mais um lembrete de que ela era inferior, que ela não deveria estar ali — mesmo tendo sido a filha da puta que tinha salvado o maldito esquadrão de uma morte certa?
  Mas o Sargento Barnes, da Infantaria 107, não era uma ameaça para ela. Céus, ela havia escolhido estar ali, ele havia sido arrastado. Os olhos dele espelhavam os dela: o medo, a incerteza pelo futuro, o desespero de querer voltar para casa, mas a certeza inconveniente e inquestionável que não havia mais para onde voltar. Algo dentro deles, como soldados, havia sido morto enquanto alastravam-se pelas trincheiras, gritavam por sobre os estrondos das granadas, e lutavam para sobreviver.
  E ela ainda gostava da cor dos olhos dele.
  “Foge daqui. Tem uma cidade aqui perto, o trem deve passar por ali, falarei que você é apenas mais um morto em combate, ninguém irá saber. Vai embora, volte para casa” diz Bucky em um tom de voz tão baixo que precisa se esforçar para ouvir o resmungo dele. Barnes não era o primeiro a dizer aquilo para ela, mas havia algo na maneira com que ele havia dito que a pega desprevenida. Por um segundo, considera. Ela abre a boca para responde-lo, mas sua voz some. Ela não consegue. Ela vê nos olhos dele o quanto ele gostaria de fazer aquilo, de voltar para casa. Não porque ele não tinha coragem, mas porque ele era apenas uma pessoa, como ela. Uma pessoa que temia a morte, como ela. Uma pessoa que tinha sonhos, esperanças. Que não hesitaria em morrer pela honra, por outras pessoas, mas que ainda assim, queria viver. tenciona a mandíbula, se calando por um longo momento.
  Era tentador. Mas se fugisse, para onde iria? Não havia casa para recebe-la. Não havia família. Não havia lugar. Havia apenas a Sala Vermelha. Ela não podia voltar para lá. Ela não conseguia…
  “E quem cobre suas costas se eu for?”, diz por fim, em um inglês quebrado, mas claro o suficiente para que ele entendesse, apertando os lábios com frustração, desviando os olhos dos dele. Aquilo era baboseira. Aquilo era perda de tempo. E, no entanto, lá estava ela, sem conseguir manter a boca fechada enquanto as palavras praticamente escorriam de seus lábios. Ela trinca os dentes, tencionando a mandíbula, voltando a concentrar-se na tarefa em suas mãos: improvisar munição para dois snipers que não tinham mais munição. Eles estavam fodidos. Muito fodidos. Mas para a sorte de Sargento Barnes, da Infantaria 107, ainda era , e se havia algo que estava inscrito em seu DNA era ser uma arma. Como sobreviver. Ela havia sido treinada para isso. Ela havia escolhido morrer ali. Iria até o final. Ela não voltaria para a Sala Vermelha.
  Ela pode sentir o peso do olhar de Barnes em seu rosto, mas ela ignora.
  “Me fala mais sobre… Steve? Esse era o nome dele? Como ele é?”, desconfortável, é a única coisa que consegue pensar em perguntar a Barnes, a fim de o fazer desviar a merda de seus olhos do rosto dela. une as sobrancelhas, para si mesma, supondo o quão ridículo era aquilo. No meio de uma guerra, com a vida em risco, desesperada para conseguir improvisar uma munição que poderia ser a salvação ou condenação deles e ela vai lá, e cora por causa de um cara. Grande momento para se lembrar de que, no fim, ela era apenas uma garota.
   volta a encará-lo por um breve momento, em silêncio, antes de negar com a cabeça, batendo a sapatilha no chão algumas vezes, antes de toma-la em suas mãos, a fim de quebrá-la, movendo-a para frente e para trás, antes de, com um suspiro pesado, alçar a tesoura à sua direita, e começar a riscar, com a ponta afiada da lâmina, nas solas.
  — Por quanto tempo mais vai continuar com essa farsa, bub? diz ele com um tom de voz baixo, irritadiço, mas levando em consideração que na maior parte do tempo ele estava irritado ou bufando, não se importava muito com a reação de Logan. Ela tenciona a mandíbula com força, embora estivesse fazendo um ótimo trabalho em ignorá-lo, as palavras ainda acertam onde lhe dói mais. Uma farsa? Que porra ele estava falando? Ainda assim, ela não o responde.
   termina de ajustar as sapatilhas de ponta antes de alçar o esparadrapo para cobrir alguns dos seus dedos dos pés, que estavam não apenas com calos, mas esfolados devido a constância em seu treinamento. Ela exala pesado, fechando os olhos enquanto tenta ignorar, no fundo de sua mente, o pulsar constante de seus batimentos cárdicos, irritantemente presente, estranhamente baixo o suficiente para se tornar apenas um som de ambiente. Um fundo esquisito do qual ela não conseguia fugir não importava o quanto ela tentasse. Ela veste as sapatilhas, prendendo-as firmemente em seus pés, antes de levantar-se do chão, endireitando seus ombros e preparando-se para alongar-se.
  Mas Logan a segura.
   tenciona a mandíbula com um estalo, um músculo projetando-se suavemente sob sua pele com a força com que ela trinca os dentes. Os olhos de desviam-se do chão para encontrar os dele. Olhos azuis a encaram de volta, mas estranhamente, ela sente como se tivesse algo errado ali, como se algo estivesse faltando. Como se estivesse procurando uma cor que não existia. Por que diabos ela estava procurando uma cor que não existia? Não tinha coisas melhores — ou bem, ao menos mais preocupantes para se concentrar?
  — Cê é melhor que isso, bub, cê é melhor do que qualquer um aqui — rosna Logan baixo, mas as sobrancelhas unidas evidenciam em seu rosto, sempre rabugento, que há uma nota de preocupação ali. aperta os lábios, tentando se forçar a respondê-lo, tentando se forçar a pronunciar as palavras, mas é como se algo estivesse errado consigo mesma. Como se sua mente estivesse desconexa de seu corpo, como se não lhe pertencesse. Mas sua garganta está seca demais, e ela não consegue. Ela tenta se soltar das mãos dele, mas ele mantém o aperto firme em seu braço. — Faz o trabalho, bub. Escapa daqui. Encontra a saída. Você pode fazer.
   trinca os dentes com mais força, sentindo a raiva aquecer sua corrente sanguínea enquanto ela tenta empurrar Logan para trás. Mas o toque dele é como metal em sua pele. Estranhamente familiar. Estranhamente sufocante. Estranhamente reconfortante. engole em seco, sentindo algo em sua garganta incomodar, como se houvessem tubos presos fundos, tocando seus pulmões e novamente aquela sensação de estar sendo presa por cabos puxando-a para baixo a atinge, mas são os olhos de Logan que atraem sua atenção.
  De repente, pega-se perdida ali. Não por algum sentimentalismo barato ou até mesmo uma suposição de um passado em braço dos quais os fragmentos ainda a atormentavam como flashes. Não, longe disso. O que a havia pegado desprevenida havia sido a cor. Talvez tivesse sido apenas um truque com as lâmpadas do anfiteatro. Talvez ela estivesse apenas exausta demais para conseguir registrar tudo ao seu redor. E talvez, apenas talvez, fosse algo completamente o contrário. Algo completamente fora de seu alcance de cognição. Fora de sua capacidade de compreensão.
  Logan tinha olhos azuis. Estranhamente familiares a ela como o próprio ato de respirar. Algo gravado em sua mente que não se acionava em alerta, mas igualmente, algo do qual ela não tinha muita certeza de onde vinha. Ele estava ali, ele sempre estava ali: no fundo de sua mente, observando-a, bufando e assistindo de longe, mas ela sabia que estava ali. Possuíam uma tonalidade acinzentada, mais fria. Um tipo de tonalidade que poderia lembrar tanto a um riacho cristalino, quanto a um mar revolto, um paradoxo por si só que ocultava uma besta feral por trás da indiferença intrínseca que exibia. Mas naquele momento, naquela maldita fração de segundos, o olhar que ela encontra ali não é o de Logan. Não, não são… são diferentes…
  São… são azuis esverdeados.
  A boneca de porcelana desaba no chão, fragmentando-se em pequenos pedaços espalhados pelo assoalho de madeira. se encolhe instintivamente, saltando para trás, confusa com a maneira súbita que ocorre. Ela ergue a linha de seu olhar, quase esperando encontrar os olhos de Logan outra vez, mas… ele não está ali. Não mais. Ao em vez disso, o gritinho infantil que captura a atenção de é o suficiente para deixá-la em alerta. O tremor em seu corpo aumenta enquanto os olhos buscam desesperante pelo local onde o som havia partido, sentindo seu coração martelar com intensidade em seu peito. Ela dá um passo, e então, mais um, meio cambaleante, as sapatilhas em seus pés de repente parecendo pesadas e desconfortáveis, estranhamente molhadas, aquecidas, mas ela sequer as percebe. Sequer percebe como o vermelho pungente do sangue começa a se infiltrar pelo tecido da sapatilha.
  Tudo o que ela consegue pensar é alcançar a garotinha encolhida em um cantinho próximo à parede de tijolos de barro, um pezinho pisando sobre o outro, enquanto a respiração irregular revelava uma mistura de medo e ansiedade, enquanto as mãozinhas agarravam com força uma pelúcia de raposa, encardida, envelhecida e usada, faltando um olho.
  — ! — grita , sentindo o aperto em seu coração aumentar, como se estivesse sendo esmagado por uma força invisível, enquanto sua garganta parecia se fechar, com um nó preso. Suas mãos estavam tremendo com intensidade enquanto os olhos percorrem o rostinho da garotinha, da cabeça aos pés e então a cabeça novamente, desesperada para localizar algum tipo de ferimento, qualquer coisa que pudesse identificar de imediato, desesperada apenas a chegar até onde a garotinha está, sem importar-se em ajoelhar-se em meio aos cacos de porcelana. Sem se importar com nada mais senão a garotinha.
   agarra a menina, puxando-a em sua direção, em um abraço apertado, um soluço misturado com suspiro de alívio escapa por entre os lábios dela, enquanto sentia o tremor percorrer o corpinho da menininha que se agarra em seus ombros.
  — Desculpa! Eu não queria… eu só… desculpa… desculpa, eu juro que não queria… soluça, sua voz infantil quase impossível de ser compreendida por entre as lágrimas enquanto os bracinhos agarram a frente de sua fantasia e fecha os olhos com força, inspirando fundo, o cheiro puramente de atingindo seu nariz de maneira calmante. A mão de repousa na nuca da garotinha, enquanto tenta acalmá-la, com um murmúrio gentil, repetindo mentalmente para si mesma que estava tudo bem. estava bem. Elas estavam bem.
   se afasta um pouco da garotinha, apertando os lábios com uma expressão compreensiva e ainda preocupada, enquanto observava o rostinho de . As bochechas redondas estavam manchadas, avermelhadas, manchadas pelas próprias lágrimas, enquanto franzia o cenho, encarando com medo. Gentilmente, a limpa as lágrimas que escorrem pelo rosto da garotinha, tentando acalmá-la.
  — Está tudo bem, meu amor… está tudo bem, a gente tá bem, ok? sussurra gentilmente, sua voz estranha até mesmo a seus ouvidos, rouca e estranhamente fraca, mas ela não se importa. Tampouco se importa com o gosto de sangue que se espalha por sua língua. De onde estava vindo? Que merda era aquela? No momento? Sua menor das preocupações. era sua preocupação. Apenas . franze o cenho, limpando mais uma lágrima das bochechas de , antes de virar o rostinho da garotinha em suas mãos, verificando os bracinhos apenas para ter certeza de que ela estava realmente bem. — Machucou alguma coisa? , a boneca te acertou em algum lugar?
  A garotinha nega com a cabeça, e inspira fundo, aliviada, assentindo para si mesma.
   une as sobrancelhas, lançando um olhar ao seu redor, percebendo tardiamente que estava ajoelhada nos cacos de porcelana da boneca que havia quebrado acidentalmente. Ela engole em seco, fazendo uma careta enquanto a dor aguda se espalha por seu corpo, enquanto ela se deixa cair no chão ao lado de , verificando os ferimentos recém adquiridos, assim como os rasgos em sua meia calça.
  — Você me abandonou. — A vozinha de , apesar de infantil, carrega ainda um peso de acusação que faz congelar no lugar.
   franze o cenho encarando a garotinha, tentando encontrar a motivação por tal acusação, tentando se lembrar quando a havia abandonado, mas nunca havia feito isso, estava sempre com ela… sempre que ela… sempre que…não havia memória alguma. Daquela manhã, daquele dia.
  Algo estava acontecendo.
  — Você me abandonou. Por que me abandonou? Você prometeu  que não ia me deixar sozinha! Você mentiu… você mentiu, você mentiu! É mentirosa!
   não consegue conter o choque.
  Algo se quebra dentro de seu peito em fragmentos insuportáveis e afiados. Algo se parte e dilacera sua alma, criando fendas profundas o suficiente para que uma sensação de vazio se alastre por seu peito. Ao fundo de sua mente ela consegue escutar a voz de Logan ecoando: faça o trabalho, bub.
  — Não, ! Eu jamais faria isso, meu amor! De onde tirou essa ideia? se força a dizer mesmo que sangue escorra por entre seus lábios sem que ela perceba. Seu único foco é . O olhar que lhe lança. Um arrepio gélido percorre pela espinha de , e ela não consegue evitar de se encolher, as duas mãos dela se agarram, pressionando-se contra seu peito, como se ela pudesse se proteger da garotinha de 6 anos, mas incapaz de o fazer. Porque tudo ali era honesto. A dor que permeava os olhos de , as lágrimas insistentes que caíam de seu queixo pequeno no rostinho em formato de coração da menina, a maneira com que as sobrancelhas dela se curvavam, e o rosto se crispava suavemente. A acusação silenciosa. —  … por favor, acredite em mim, eu nunca… eu nunca…
  Mas nunca o quê?
  O que nunca faria com a garotinha? Do que estava tentando defender-se? Quem sequer… quem sequer era ela?
  Não sabia. Sua mente está em branco. Completamente apagada e limpa, sem fissuras. Não há rostos. Não há nomes. Não há nada. Mesmo que seu corpo indique que ela está em perigo, sua mente não registra. ofega, de repente, sentindo uma desconfortável e sufocante falta de ar novamente, os fios invisíveis que a prendiam no lugar tornando-se mais tensos, mais bruscos, violentamente puxando-a para baixo, enquanto ela começava a se afastar de . Não estava sequer consciente da movimentação, era como se seu corpo estivesse movendo-se contra sua própria vontade. Os dedos agarrando-se contra o assoalho de madeira, enquanto se arrastava em direção a parede, de costas para esta, enquanto os olhos permaneciam fixos em .
  As mãos dela se afundam, mais e mais no sangue, enquanto ela passa a hiperventilar. Sua cabeça está pulsando, e seus ouvidos estão dolorosamente abafados. Seus olhos vagam de um lado para o outro, mas não se fixam em nada. E tudo o que ela consegue fazer é tremer. O que estava acontecendo? O que ela não estava vendo? O que ela não estava vendo de novo?! O sangue atinge os cotovelos dela, enquanto tenta fechar os olhos com força, mas tudo o que faz, é atrair seu olhar, desta vez para a pilha de corpos que a cerca.
  Um grito estrangulado escapa de sua garganta, enquanto os olhos se movem com ansiedade ao redor, tentando registrar tudo e, ao mesmo tempo, desejando desesperadamente não ver nada. Ela toca em algo e percebe que é um braço. A sala abobadada, parece com um galpão subterrâneo. De algum lugar, a distância ela pode ouvir os clics mecânicos de uma tranca, e uma conversa distante. Mas ela sequer presta atenção nisso, seu olhar está fixo nos corpos, nos membros decepados, nos órgãos expostos.
   primeiro vomita, seu corpo violentamente se projeta para frente enquanto o vômito rasga por sua garganta, os olhos lacrimejando em um arquejo desesperado. Então, ela grita. Um grito desesperado e cortante que rasga pelas paredes, reverberando pelo espaço amplo empilhado de corpos. As mãos dela se afundam em meio a sangue e carne. O cheiro pungente de putrefação faz sua cabeça girar, e ela suplica para que parem. O grito se torna menos e menos coeso, há somente um gorgolejo inteligível de lágrimas e puro medo. Sua mente espirala, e ela está afundando. Afundando por entre os corpos, tentando se arrastar em direção a maldita porta pequena de ferro, tentando alcança-la, usando toda sua força para tentar abri-la. Um pulso percorre a sala, como um batimento cardíaco conjunto.
  Ela pode os sentir. Ao redor dela, inertes, mas então, pulsando. Mais e mais rápido conseguindo sincronizar-se com os batimentos cardíacos dela, com a maneira com que o coração dela martela dolorosamente contra sua caixa torácica, como suas mãos se amortecem e ela não consegue mais sequer respirar, hiperventilando violentamente. acerta uma, duas, três, quatro, cinco vezes a porta de ferro, sem perceber quando seus dedos se quebram, quando sua pele se rasga, quando a verdade se expõe: lutar para escapar é inútil. Mais um pulso percorre a sala. soluça, gritando mais uma vez uma súplica desesperada: “me tira daqui, por favor, por favor, por favor, para, por favor!” até que sua garganta esteja doendo, não apenas rouca pela força, mas as cordas vocais dela se estouram. Mais um pulso percorre a sala.
  E mais um.
  E mais um. Mais um. Mais um. Tudo explo…
  — Ouça minha voz, querida. A verdade está em mim e nada mais. Ouça a minha voz, querida, eu sou seu guia, eu sou sua voz, eu sou sua linha de vida, eu sou sua luz. Ouça minha voz e guie-se até mim. Você acorda em cinco, quatro, três, dois...
   acorda com um grito preso em sua garganta, ofegante.
  Por um longo momento ela apenas olha ao seu redor trêmula e desorientada. O suor frio escorre por sua pele como um manto, mas está quente sob suas digitais quando ela o toca. Seu corpo está febril, mas ela nunca esteve com tanto frio. passa os dedos por entre os cabelos, sentindo as mechas se enroscarem e romperem enquanto ela puxa para baixo, incomodada. Estão sujos, emplastrados com alguma coisa seca. Sangue. O que…?
  — De novo.
   pisca, encarando a mão biônica de metal estendida à frente de seu rosto enquanto ela tenta registrar o que diabos estava acontecendo ao redor. Como ela havia parado ali? Que lugar era aquele? Quem… quem era ele?
  Os olhos dela se erguem lentamente, seguindo o braço biônico de metal, prendendo a respiração instintivamente enquanto uma sensação desconfortável de familiaridade percorre seu corpo inteiro. Sua pulsação está acelerada, amortecendo seus sentidos e abafando seus ouvidos, sua respiração é rápida e irregular, enquanto ela tem a sensação de estar hiperventilando. Sua boca está terrivelmente seca, e ela treme, piscando os olhos ansiosamente como se algo estivesse impedindo-a de enxergar direito o que estava acontecendo. Esperando, aguardando que algo fosse acontecer, algo terrível que se aproximava, deixando seu corpo mais e mais em alerta, algo que ela ainda não sabia o que era. Podia sentir, mas não sabia. Não estava vendo, outra vez. Mas então os olhos de se encontram com os dele, e tudo se torna abafado ao fundo de sua mente, como se tudo se concentrasse a apenas aquela pessoa. Azul esverdeado a encara de volta. Intensos, sob a luz pálida da sala de contenção, eram marcantes, impossíveis de confundir-se, apesar de indiferentes e difíceis de ler, ainda possuía uma cor vibrante. Seu azul esverdeado
  De onde ela o conhecia?
  — De novo — comanda o Soldado Invernal novamente, frio e distante.

CONTINUA...



Comentários da autora


  Nota da Autora: sim, descobri recentemente que minha trope PREFERIDA é: Doomed Siblings Angst, não to bem. The Line do Twenty One Pilots, da série Arcane, é uma boa música para servir como soundtrack desse capítulo. Sim, desculpa, mas vai ficar pior. Esta fic é escrita de madrugada, quando estou sobrecarregada com estímulos externos e preciso de uma forma de me regular, portanto perdão antecipado por incoerências, erros gramaticais e algumas confusões, meu e-mail está sempre aberto para discussões e opiniões.