Capítulo único
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Puxou as mangas até as falanges dos dedões e moveu o ombro ajustando a mochila. Era seu primeiro dia de volta ao Brasil e à escola. Tinha visto de tudo nos Estados Unidos, mas ser a novata novamente a aterrorizava, principalmente numa cidade com um nível tão alto de precipitação. Sentiu o choque contra o ombro quase a fazer perder o equilíbrio, a menina de cabelos laranja que passava correndo ergueu a mão num pedido de desculpa de quem não pode parar. Encontrou onde seria sua sala e esperou abrirem a porta; escolheu uma carteira qualquer no meio da classe, folheou o módulo. Ao seu lado sentou um garoto sorridente de covinhas profundas na pele oliva e cabelo cacheado posto para trás com uma faixa; conversava com os colegas. O sinal tocou por uma segunda vez e o professor apareceu na porta conversando com outra professora, esta parecia olhar diretamente para ela, desviou.
- Bom dia, pessoal! Por favor, todo mundo sentado. Obrigado! Primeiro eu...
A porta foi aberta de supetão. Os cabelos ruivos que passaram por ela no corredor sacudiram para frente e para trás.
- Atrasada, %Débora%?
- A diretora me deixou entrar. – argumentou, ofegante.
O professor expirou, trocando o peso nas pernas.
- Tudo bem, sente-se!
%Débora% sentou-se na carteira ao lado da novata. Ao tirar a mochila das costas, %Débora% notou a menina ao seu lado e franziu o cenho.
- Como eu estava dizendo, primeiro quero que conheçam a nossa nova colega, %Maraíza%.
Ela apenas fez um movimento de aceno geral e sorriu.
- %Maraíza% acabou de chegar dos Estados Unidos, o que significa que ela já está bem mais à frente no inglês que vocês. Ou seja, corram atrás! Vamos corrigir o exercício.
Os livros começaram a ser abertos e %Mara% viu-se sem saber o que fazer. O garoto de covinhas e cachos aproximou-se e disse:
- Page 52. – e sorriu simpático – %Daniel%. Bem-vinda!
- Obrigada! – correspondeu o sorriso, abrindo o módulo.
Na hora do intervalo %Débora% se aproximou e sentou-se ao seu lado.
- Você é a menina com quem trombei mais cedo, não é?
Ela assentiu, a boca cheia de sanduíche.
- Foi mal! Eu tenho essa habilidade de não saber desviar. Meu nome é %Débora%, mas você já deve saber graças ao professor awesome. – a voz carregada de uma ironia palpável acompanhou os olhos rolando.
- Professor awesome?
- Não percebeu que ele fala isso quase que o tempo todo? Tudo é awesome pra ele.
%Mara% sorriu, não havia notado. Mas agora, com o comentário, começava a contabilizar na mente quantas vezes ele tinha dito “awesome” durante a aula.
- Ow, Ariel! – ouviram gritar, ambas olhando na direção do grito. %Daniel% se aproximava de onde estavam – Já tá me trocando pela novata, ridícula?
%Débora% sorriu.
- Você já conhece o %Dan%?
- Ele me disse a página do exercício.
- É por que somos as pessoas mais legais desse lugar. – disse ele, enlaçando o pescoço de %Débora%.
- Você a chamou de Ariel? – tentou puxar assunto, engolindo em seco.
- Sim, pelos cabelos.
- E por que eu sou uma sereia.
- O quê?
- Somos de uma equipe de natação. – explicou o moreno – Deveria vir nos ver treinar, novata.
- Não caia na dele – começou %Débora%, soltando-se do gancho do amigo e tocando-a no ombro –, vai tentar te seduzir com o projeto de tanquinho dele. – %Mara% riu, encolhendo-se ao sentir o toque – Mas seria ótimo mesmo se viesse nos ver.
Nunca fora fã de esportes aquáticos, não seria agora que começaria. Deu a desculpa das caixas que tinha que desmontar e mala para desfazer, mas que deixariam para uma próxima.
***
Já se aproximava do final do ano quando %Débora% e %Daniel% começaram a surtar sobre os campeonatos. Conseguira manter-se longe dos treinos até então, porém ambos haviam sido escalados para a eliminatória estadual. Ofereceram casa, comida e transporte para que fosse com eles, não viu como desculpar-se e acabou os acompanhando.
Puxou as mangas do casaquinho com a desculpa que o local era frio por conta da altura da arquibancada onde ia ficar e tudo o mais. De lá mal conseguia distingui-la das demais, todavia seu medo falava mais alto. Conseguiu reconhecer as pernas torneadas e a touca laranja de Ariel na raia 2. Levantou-se para torcer pela amiga. Cada segundo sem saber se ela conseguiria completar em primeiro lugar lhe custavam as unhas. O resultado de nunca ter ido aos treinos foi não saber quão boa a amiga era. Logo %Débora% já estava de volta e socando o ar ao comemorar o primeiro lugar.
Correu ao pódio para vê-la subir, sorridente, no degrau mais alto. Aplaudiu com todos os outros, mas recebeu o prazer de ser especialmente agradecida lá de cima.
No dia seguinte foi a vez de %Daniel% que, metodicamente, havia passado o dia anterior se concentrando. Com a presença de %Débora%, fora obrigada a sentar-se mais próxima da competição. Foi mais fácil de identificar o projeto de tanquinho e as covinhas dali. %Daniel% estava na raia 4 e acabou chegando em terceiro lugar. Apesar de não ser o primeiro, subiria ao pódio e iria para as regionais.
Surpreendeu-as ao saltar do pódio direto nos braços delas, ainda molhado, sacudindo os cachos nelas.
- Não! Não! – gritou %Mara%, empurrando-o.
Eles a olharam sem entender o que estava acontecendo. Ela encarou as mãos molhadas, os olhos começavam a ficar marejados.
- Droga! – praguejou e correu o mais rápido que pôde.
Eles foram atrás dela, naturalmente.
O vestiário feminino estava vazio visto ser dia do masculino. %Débora% chamava por ela quando entrou lá; %Dan% logo atrás dela.
- Você não pode entrar aqui. – resmungou %Débora%.
- Mas tá vazio!
- Shhhhh! – gesticulou ela – %Mara%?
Seguiram em direção aos chuveiros a passos lentos e pensados, como se andassem em um campo minado. Ao atravessarem a parede de proteção foram recebidos com um gemido de choro e o choque da realidade.
- Puta merda! – exclamou %Dan%, levando as mãos a boca.
Era %Mara% ali. A mesma %Mara% de sempre, porém com uma enorme calda de peixe com escamas tão %castanhas% quanto seus olhos até o umbigo onde se misturava com a pele. Tinha os seios expostos, os dedos unidos por membranas e unhas escurecidas. Sua pele parecia brilhar como escamas transparentes, tinha guelras no pescoço e uma camada de brilho extra nos olhos que não pareciam piscar. As pupilas estendidas como os olhos de um tubarão assustaram ainda mais o nadador, %Débora% estava hipnotizada.
- %Dan%, tranque a porta.
- Co-como espera que eu faça isso?
- Não sei, dá teu jeito!
%Débora% abaixou-se calmamente e engatinhou no azulejo, paralela à cauda para mais próximo dela.
- %Mara%? – murmurou.
- Por favor, eu faço qualquer coisa, mas não me entrega para a mídia.
%Débora% suspirou, sorrindo.
- Caramba!
- É horrível, eu sei.
- %Mara%, você continua linda. Particularmente muito mais linda. Meu Deus, nunca foi tão difícil controlar a vontade de tocar alguém.
A ruiva passou a mão por cima das escamas, sem tocá-las. %Dan% voltou quando ela chegava a parte que parecia pele. Pisou em ovos até ela e sentou do outro lado.
- O que...? Como...? Quando...?
- Acho melhor explicar quando estiver de volta a minha forma humana.
Ele expirou pesadamente.
- Uma sereia? Eu devo estar sonhando, não é possível!
- Não é sonho. Olhe nos meus olhos.
Ele o fez. A camada extra de brilho se moveu como um piscar, porém para o lado.
- Proteção para mantê-los abertos na água. – dobrou o pescoço na direção de %Débora%, exibindo as guelras – Respirar debaixo d’água. – Moveu os dedos, mostrando as junções – Ajuda na hora de nadar...
%Mara% sorriu, sentindo-se ligeiramente menos nervosa.
- Podem tocar. Logo irão desaparecer. E, hm, vou precisar de roupas.
- Sua vez, Ariel. – resmungou o garoto, acariciando as escamas. – Tantas perguntas... – continuou murmurando – Eu sempre soube que você era extra especial, %Maraíza%.
Fim!