Escrito Nas Estrelas
Escrito por Luh Marino | Revisado por Ponci
Eu o amo.
Desde que o conheço, eu o amo.
Por isso ele foi a primeira pessoa que me veio em mente quando estranhos papéis cortados em formato de estrela começaram a aparecer no meu armário do trabalho.
E não simples papéis cortados em formato de estrela.
Papéis cortados em formato de estrela com recadinhos românticos escritos neles.
Por isso ele foi a primeira pessoa que me veio em mente quando os papéis surgiram.
Eu o amo.
Sempre o amei.
E ele me ama de volta, então, quem diabos iria colocar recados românticos no meu armário do trabalho além dele?
Essa história está confusa, não está?
Ok.
Eu devo dizer de imediato que sou uma péssima narradora e, por isso, as coisas tendem a ficar confusas.
Mas prometo me esforçar.
Vamos ao início.
Eu cheguei ao meu trabalho, o colégio Caminhos, no horário de sempre, às seis e meia. Passei pela secretaria em direção à sala dos professores, vendo alguns colegas e alunos chegando também. Lá dentro, cumprimentei aqueles com quem tinha mais intimidade e abanei mão de leve para os que não conhecia muito bem.
Os armários dos professores ficavam no fundo da sala, cada um com o nome de um docente.
Abri o meu esperando encontrar o normal. Pastas, trabalhos, provas, um ou outro recadinho da coordenação ou de algum aluno pedindo três décimos para não bombar na minha disciplina.
Mas quando abri a portinha minúscula do compartimento, ele estava quase completamente vazio.
Quase.
Porque ali, no meio dele, havia um único e singular papel-cartão amarelo, cortado em formato de uma estrela de cinco pontas. Olhei para trás, procurando por explicações (e os meus pertences) e notei que apenas Júlia, a professora de literatura do ensino médio, me encarava com um sorrisinho nos lábios. Ela estava sentada no sofá e, em seu colo, estavam todas as minhas coisas.
Decidi que as pegaria depois.
Agarrei o papel como uma criança se agarra a um filhote fofo e virei ele entre meus dedos, querendo saber se era apenas aquilo.
Era apenas aquilo.
Apenas um papel amarelo cortado em formato de estrela.
Bufei, procurando a graça naquilo, e ouvi os passos de Júlia, que se aproximava para devolver meus materiais. Perguntei:
“Foi você?”
“Claro que não” Ela respondeu. “Tenho cara de quem consegue cortar um papel cartão num formato tão perfeito?”
Nós rimos e eu guardei minhas coisinhas. Me ajeitei, passei mentalmente a aula que teria no nono ano e, quando vi, já era hora de ir para a sala. O resto do dia correu normalmente.
Naquele dia, não me importei com o papel. Afinal, era só um papelzinho, não havia nada demais.
Uma semana depois e a situação se repetiu. Dessa vez, quem estava com as minhas coisas não era Júlia, e sim Marco, um professor do pré. E, diferente da primeira ocasião, havia um recado.
O primeiro recado.
“Sua confusão com a primeira estrela foi adorável.”
Olhei em volta, mas ninguém prestava atenção em mim. Nem mesmo Marco, que havia abandonado meus materiais em cima do sofá e estava tomando um café e dando em cima de Léo, professor de educação física.
Novamente, não dei muita atenção ao papel, embora tenha demorado um pouco para dormir à noite, enquanto Gustavo (meu namorado. O “ele” de quem falei no começo, lembra?) me abraçava gostoso na minha cama de solteiro apertadinha.
Achei que aquilo iria se tornar um evento semanal. Mas os recados demoraram a voltar.
Voltaram apenas hoje.
E foram dois de uma vez.
Eu havia notado meus materiais na mesa assim que entrei na sala às seis e meia. Já são seis e quarenta e eu estou parada em frente ao armário, com receio de abri-lo.
Júlia entra e me grita um “oi” da porta. Não consigo responder e, por isso, ela se aproxima.
— O que é? — pergunta, e só então nota que estou parada em frente ao armário. — Os recadinhos voltaram?
Faço que sim com a cabeça, e acho que consigo murmurar que estou com medo de encontrá-lo ali. Júlia me manda tomar no cu e abre o compartimento por si própria, e então consigo ver os dois papéis cortados em formato de estrela.
Os pego delicadamente, como se eles fossem rasgar apenas com o contato da minha mão. Os viro e lá estão as palavras. Elas são escritas à mão, mas não consigo me lembrar de ninguém com aquela letra.
O primeiro diz o seguinte:
“Ficou com saudades? Eu fiquei.”
Não consegui segurar um sorriso, e acho que Júlia notou. Mas Júlia que se lasque.
O outro falava:
“Quero fazer um experimento contigo, Ticiane.”
Ticiane.
Sentiu o impacto da coisa?
Ninguém nunca me chama de Ticiane. É Tici, Tica, Nane. Nunca Ticiane.
Ticiane.
Credo.
Fico encucada com aquilo o resto do dia. Quando o sinal da sétima aula no segundo ano bate, eu quase saio dali antes mesmo dos adolescentes. Mas claro que eles me ultrapassam.
Passo na sala dos professores apenas querendo pegar algumas coisas que deixei por ali mesmo, mas me deparo com Júlia, Marco e Léo parados na frente do meu armário, cada um segurando algumas das minhas coisas.
— Que onça! Três no mesmo dia?! — exclamo. — O que essa pessoa doida quer comigo, meu deus?
Viro logo a chave da portinha porque já não estou mais com paciência. Pego o papel amarelo de qualquer jeito, querendo mais que ele rasgue mesmo. Viro ele na palma da mão e...
“Amo como você fala com tanto carinho dos seus alunos, mesmo aqueles que são mais peste.”
E me desmancho inteira.
Ser professora é a coisa que mais me traz alegria nessa vida, e a pessoa dos cartões-estrela sabe disso. E por algum motivo, ela saber disso me deixa menos brava. Como se agora eu tivesse uma razão para confiar nela.
Os meus três colegas querem saber o que a estrela diz, mas eu não me sinto confortável em dividir. É algo só meu. Meu e da pessoa que me manda os papéis.
Quem me manda os papéis?, me pergunto.
Gustavo.
Gustavo, que me ama, que eu amo, que namoro há nove anos e de quem não pretendo largar tão cedo.
Vou para casa meio que flutuando.
Guga chega meia hora depois que o ligo. Ele é uma pessoa bem pontual.
Ele tem a chave do meu apartamento e entra por si próprio enquanto estou na cozinha preparando um tereré, que ele ama tanto.
Tanto quanto me ama.
Só um pouco menos. Porque me ama muito.
Isso é o que ele diz, não eu!
Ele me abraça por trás e eu sinto seu cheiro gostoso de limão, porque ele tem um pé de limão na janela do quarto, e seu quarto inteiro fica cheirando a limão, e suas roupas cheiram a limão, e ele todinho cheira a limão.
E eu amo o limão.
Me dá um beijo no ombro descoberto pela regatinha florida e eu coloco minhas mãos acima das dele em volta da minha cintura.
— Oizinho — ele diz.
— Fala, cabra.
Entrego o tereré a ele e ele sorri de modo mais lindo.
Vamos para a sala, e meu gatinho novo, que adotei na semana passada, se esfrega em meus pés.
— Então esse é o famoso Lúqui? — Guga pergunta enquanto ri por causa do nome.
— É sim! Diga ‘oi’ para o meu pequeno amigo — eu respondo e pego uma das patinhas do felino, acenando enquanto ele mia escandalosamente querendo se livrar de mim.
Mas é que ele é tão fofo!
Guga dá mais um gole na bebida.
— E por que chama Lúqui? Você disse no telefone que era com “quê”. Por que não Luke, por exemplo? Com “cá”?
— Porque estamos no Brasil, uai!
Ele dá mais uma risada enquanto solto Lúqui no meu colo. Ele fica ali por um tempo, mas quando Guga termina seu tereré e larga o copo no chão, à frente do sofá, Lúqui aproveita o novo colo vazio e se move para lá.
— Ele me lembra alguém — Guga diz, alisando os pelos amarelos do gato. — Lúqui.
Ligo a televisão e deixo na Globo, baixinho. Ainda passa Sessão da Tarde, e eu quero ver a novela que vem depois.
— Lúqui — noto pelo canto dos olhos que Guga pegou o gato nas mãos e o colocou bem na frente do próprio rosto, encarando o bichano de maneira intensa. — Lúqui, eu sou o seu pai.
Como se tivesse entendido a referência, Lúqui mia o mais alto que pode (“Nããããããooo!!!”), e eu e Guga rimos tanto que ele tem que largar meu gato para não matá-lo asfixiado.
Nos acalmamos um tempo depois.
— Guga, a gente tem que prosear.
— Diz.
Minha bolsa está na mesinha ao lado do sofá, então a pego ali e, de dentro dela, tiro os papéis e entrego a Gustavo.
— Recebi esses recados aí nas últimas três semanas — começo a explicar. — Pelo jeito do último que é esse aí dos alunos, eu imagino que seja alguma coisinha romântica.
Tem uma ruguinha no meio da testa franzida de Gustavo, e ele não diz nada.
— Foi você, hein?
Acho que ele vai sorrir para mim daquele jeito lindo e dizer “aah, me pegou”, mas ele continua encarando as estrelas com aquela cara de capivara morta.
— Fui eu não, doce — fala por fim, me devolvendo os papéis.
E é só isso que ele fala antes de pegar Lúqui de volta no colo, virar para frente e fingir que está prestando atenção n’A Filha do Presidente na TV.
— Guga — chamo. Nem tchum. — Gustavo, por que tão sério?
— Sei lá. Talvez porque tem alguém querendo te tirar de mim, uai.
Eu sorrio com seus ciúmes. Gustavo não é ciumento, nunca foi. Mas, de repente, uns papéis bobos o deixam intimidado.
— Tem nada que se preocupar não, doce — tento acalmá-lo, e vejo que consigo tirar dele um sorriso. — Sou minha, mas sou meio que tua também.
Ele larga o gato no chão de novo e se chega junto de mim.
Me faz perder a novela.
No dia seguinte, terça-feira, não me sinto surpresa quando chego ao trabalho e vejo minhas coisas do lado de fora do armário.
Acho que é mais fácil deixá-las logo ali do que ficar colocando-as no lugar de novo sabendo que no dia seguinte terei que fazer a mesma coisa. E no seguinte. E no outro também.
Júlia já está lá, sorrindo para mim daquele jeitinho maroto que descobri que ela tinha no primeiro recado na estrela.
Abri o armário e peguei logo o papel.
“Amo quando você fica concentrada cozinhando.”
A última pessoa que havia me visto cozinhando foi Gustavo. Mas ele disse que não era ele quem escrevia os recados. E eu acreditava, claro, quem mentiria sobre isso?
Conto à Júlia o que o recado diz e comento sobre o que havia pensado de Gustavo. Ela concorda comigo; não há motivos para ele mentir sobre isso.
Vou para a aula normalmente.
Os dias passam e as estrelas se tornam diárias. E a cada dia o recado parece mais pessoal. E então não são só coisas que eu divido apenas com Gustavo, mas coisas que eu sei que faço no dia-a-dia. E é aí que fica mais difícil de descobrir quem está me mandando as estrelas.
Um dia comento com Léo que essa coisa da pessoa tirar meus pertences do armário para colocar os recados me irrita profundamente, e no dia seguinte os recados passam a aparecer em cima da minha pilha de coisas dentro do armário.
Procuro que nem louca para ver se acho alguém suspeito o suficiente para que eu possa culpá-lo pelos recadinhos, mas todos parecem extremamente desinteressados em mim e na minha vida romântica pessoal.
Júlia, Marco e Léo são os que mais me ajudam a tentar descobrir quem é a personalidade por trás das estrelas, então descarto a possibilidade de ser um deles. Marco já estava descartado desde o começo, já que ele é bem gay. Os outros foram com o tempo.
É quinta-feira, chego em casa mais cedo porque não tenho nenhuma aula depois do intervalo. É perto das dez e quarenta. Lúqui, assim que me vê entrando, mia alto. Ele está crescendo rápido, e eu começo a notar seus gostos favoritos. Minha mãe faz e vende comida orgânica para animais (começou com isso depois que uma das nossas cadelas morreu de câncer no fígado e ela encucou que era por causa da comida, então passou a fazer), então eu dizia quando Lúqui gostava ou não de algo e ela mudava a receita.
Todos saíam vencedores.
Vou ao meu quarto e guardo a estrela do dia (“Amo que você leva sua Nutella de casa para o trabalho e come com o pão de queijo da cantina”) na terceira gaveta da cômoda.
Estou guardando todas ali, porque a gaveta sempre foi vazia e agora tinha alguma coisa com o que ocupá-la.
A gaveta já está quase entupida de estrelas.
Já é a terceira semana consecutiva em que estou recebendo as estrelas. Elas me deixam feliz, apesar de muito curiosa para descobrir quem as manda. Não consigo pensar em ninguém que poderia ser.
Elas chegam todos os dias. Não há um dia em que elas faltem. Desde que recebi a primeira estrela já se foram seis semanas.
Seis.
É quase um mês e meio.
E me pergunto aonde a pessoa dos recados de estrela quer chegar com isso. Não é como se eu estivesse me apaixonando lentamente pelo admirador secreto apenas por causa de alguns papéis, então se ele pretende fazer com que eu largue Gustavo para ficar com ele, pode ir tirando a capivara da chuva.
Meu telefone toca, Lúqui mia e eu vou correndo atender. Sento no sofá e o bichano se aninha no meu colo.
— Alô?
“Tici, posso passar na tua casa? Estava no centro comprando e de repente chegou essa chuva. E eu to a pé!”
É meu antigo vizinho. Ele morou na casa ao lado da minha desde que eu nasci até me mudar da casa dos meus pais para meu atual apartamento. Ele tinha a minha idade, e no caso, ele quem continuou com a casa enquanto seus pais foram morar longe.
Sortudo, porque as casas daquele bairro eram todas lindas.
— Chuva, hein? — olho pela janela e, realmente. Está chovendo.
Na verdade está caindo o mundo, mas não quis parecer mais desatenta do que sou.
— Claro que pode, Juli!
Dez minutos depois ele bate na minha porta. Abro e lá está ele, todo encharcado, parecendo um ursinho carinhoso muito triste por ter suas compras molhadas.
— Entra!
Juliano entra e eu o levo até a cozinha para que ele possa deixar suas coisas ali, secando. A maioria é comida.
— Que péssimo — ele murmura enquanto vê o estado das suas coisas na mesa da janta.
Enquanto isso, eu pego saquinhos de chá para preparar. Inicialmente pensei em fazer tereré, mas tereré é gelado e não acalma.
Enquanto a água esquenta, vou até meu quarto pegar toalhas. Quando volto para a sala, Juliano tirou a jaqueta, e pela sorte dele a camisa por baixo não molhou. E não tinha muito que eu podia fazer pela calça.
— Toma aí, vê se melhora um pouco — entrego a toalha a ele, que pega com um sorriso no rosto e começa a secar os cabelos compridos. — Eu tenho calças do Gustavo aqui, mas como ele é mais gordo que você, ficariam muito largas. E eu não tenho cinto.
— Não tem problema, se a minha calça fosse jeans ainda seria péssimo. Mas não é, então seca rápido.
O chá fica pronto.
Juliano senta comigo no sofá, em cima da toalha, e Lúqui não vai muito com a cara dele, então se enfia no meu quarto e de lá não sai. Mas conversamos bastante. A chuva não demora a passar, mas ele continua ali e colocamos todos os papos em dia.
Ele é ótimo, uma boa pessoa.
Quando ele vai embora, quase sinto falta da companhia.
Mas Gustavo me liga e tudo fica colorido.
Mais um dia, um tempo depois. Quando abro o armário, lá está o cartão. Fico rapidamente curiosa com a nota do dia, então pego a estrela logo de uma vez e viro o lado escrito para mim. Não há nenhum dos meus fiéis escudeiros junto comigo, então não vou ter com quem comentar o recado por pelo menos 50 minutos.
“Amo como você sabe o que fazer para nos deixar bem. Seja um chá ou um tereré.”
Automaticamente penso em Juliano, mesmo que tenha passado quase uma semana desde sua visita.
Meu deus, isso está cada dia mais confuso. Cada dia que passa eu penso em uma pessoa diferente, e nenhuma delas satisfaz minha curiosidade porque ainda assim eu não consigo ter certeza de quem me manda as estrelas.
E eu quero tanto saber quem é.
Odeio ficar curiosa. Se tem uma coisa que eu odeio, essa coisa é ficar curiosa.
Tenho o primeiro horário livre, e preciso muito de alguém para falar sobre o bilhete de hoje, porque a ideia de ser Juliano é ao mesmo tempo absurda e interessante, e eu não sei direito como me sentir sobre isso.
Vou para o ginásio porque sei que Léo vai estar dando aula para os pequenos do fundamental 1 naquele horário, então quero encontrá-lo.
Ele está lá, tentando convencer uma criança a perder o medo de pular corda. Me apoio no batente da porta que separa o ginásio da escola e fico observando tudo com um sorriso no rosto.
Léo não tem muita paciência com crianças.
— André, você tem que pular — o garotinho faz cara emburrada e nega com a cabeça. Léo vira os olhos. — Vamos lá, você precisa pular pra não ganhar falta na aula. E está atrapalhando o resto dos seus amiguinhos, é isso que quer?
André mais uma vez nega com a cabeça, mas então um amiguinho se aproxima e fica na frente dele ao lado da corda.
— Se você pula, eu pulo.
André abre um sorriso mínimo e aceita tentar pular. Léo deixa a corda com o estagiário que está acompanhando ele e vem ao meu encontro quando me vê.
— Fala, queridona.
Mostro a ele a estrela e conto sobre a visita de Juliano no outro dia. Ele me ouve com cuidado e entende minha preocupação.
Está prestes a me responder sua visão quando o estagiário chama. Léo se afasta apenas um tempo para dizer ao formando o que fazer com as crianças.
— Inventa um jogo e vai. Fala que os jogos comecem e deixa eles felizes. Eles gostam de jogos.
Volta para perto de mim.
— Ele é suspeito, Tici. Bem suspeito. Eu ficaria de olho. Mas como ele é?
— Magrelo, cabelo comprido, barba ralinha e cara de bonzinho.
— Nunca vi por aqui, eu acho. Se bem que não vi nunca ninguém botando nada no seu armário, ninguém viu.
Conversamos mais um pouco e volto para a sala dos professores. Não há muito que fazer, apenas pensar em um jeito de descobrir logo quem está por trás das minhas estrelas, porque eu simplesmente não aguento mais essa vontade de saber.
Odeio ficar curiosa.
Basicamente não há mais lugares na minha gaveta. As estrelas não são pequenas; na verdade, ocupam um bom espaço. Espaço esse que a bendita gaveta não tem direito.
Júlia está comigo, acabou de chegar para me ajudar a organizar as estrelas na gaveta.
Pega Lúqui no colo e ele ronrona.
— Nossa, mas que criaturinha mais preciosa, Tici!
— Não é? Um fofão. Meu precioso.
Ela deixa o bichano no chão novamente e se aproxima.
— Acho que podemos usar uma caixa, você tem alguma aí?
— Devo ter alguma da mudança escondida em algum lugar da casa.
Depois de nos ajeitarmos no chão do meu quarto, com todas as estrelas esparramadas à nossa frente, começamos a ver a ordem delas.
Sou uma pessoa organizada. Coloquei números em cada uma das estrelas para saber exatamente quando elas chegaram, qual chegou antes ou após a outra, e Júlia me zoa por causa disso.
Depois de algo próximo de meia hora, ela me chama.
— Houston, temos um problema.
Olho para ela com uma interrogação no rosto.
— A estrela número 29 está sumida. Não achei.
Fico um pouco assustada, pois onde diabos ela poderia estar?
Terminamos de arrumar as outras e partimos à caça da estrela 29. Procuramos em todos os cantos do quarto, da sala, da cozinha. Até no banheiro e na área de serviço nós olhamos, mas minha estrelinha não está em lugar algum.
Sinto um tipo de tristeza por dentro, algo como um luto pelo meu pedacinho de papel cartão. Júlia vai embora no fim da tarde e eu ainda estou com a estrela na cabeça.
De repente, ouço a porta da frente se abrindo e, quando olho, vejo meu Guga lá. Ele sorri para mim, aquele sorriso que é meu, e eu derreto um pouco. Mas ainda penso na estrela.
— Oizinho.
— Oi, cabra.
Ele me beija com carinho típico de Gustavo, mas ainda penso na estrela.
— Veio de surpresa.
— Queria ver tua carinha.
Sorrio porque ele é uma graça, mas ainda penso na estrela.
— Quer me ajudar com a janta? Não tenho nada.
Ele diz que querer ele não quer, mas precisa de alimento. Nos divertimos fazendo um macarrão alho e óleo, porque é o meu melhor prato, e mesmo sendo tão simples eu consigo me sujar. Guga me beija todinha e eu o beijo também, mas penso na estrela.
Mais tarde, na minha cama apertadinha de solteiro, estamos abraçados e o amor que fizemos foi tão bom, mas tão bom. Infelizmente, ainda penso na desgraçada da estrela.
— Sabe que a Júlia veio aqui hoje — digo sussurrando, apesar de que não tem necessidade. — Veio me ajudar a organizar as estrelas — aponto para caixa que agora está ao lado da cômoda.
Ele não responde de uma vez, e sei que é porque ele tem ciúme das estrelas, apesar de não ter motivo.
— E o que aconteceu?
— Sumiu uma.
Ouço ele engolir a seco e automaticamente tiro meu rosto de seu peito e olho diretamente para ele.
— Que é?
— É uma com o número 29?
— Gustavo!
Ralho com ele, porque não gosto que mexam nas minhas coisas e ele sabe disso. Não é nem porque tem algo a esconder, é simplesmente porque pode sumir alguma coisa e eu vou ficar obcecada que nem estou com a estrela.
— É porque gostei dele. Diz “amo quando seus olhos brilham ao falar de algo que você ama”, e me perguntei se seus olhos brilham ao falar de mim.
Rolo os olhos, mas lhe dou um beijo no ombro.
— Gustavo, te amo. Cê sabe disso. Meus olhos são o Sol quando falo de ti.
— Como você sabe, cabra?
— Só sei.
Ele me beija nos cabelos e me faz cafuné até eu dormir. Sonho com Gustavo, e estrelas, e o sol nos meus olhos quando penso em Gustavo.
Eu o amo tanto.
Já foram quase quatro meses e já tenho outra caixa, porque as estrelas só chegam mais e mais.
— Eu vejo gente morta? — Júlia pergunta, entrando na sala dos professores e me encontrando lá. Faço cara de dúvida e ela ri. — Você. Tá com a maior cara de defunta.
— Não dormi. Briguei com Gustavo.
Ela senta ao meu no sofá imediatamente, e pega minhas mãos entre as suas com preocupação.
— O que foi que aconteceu?
— Essas estrelas desgraçadas! — balanço a estrela que está na minha mão, a que recebi mais cedo no mesmo dia.
“Amo como você arqueia a sobrancelha e sorri de lado quando sabe que está certa.”
— Gustavo morre de ciúme delas. E ele nunca foi ciumento, Ju, não sei o que tá acontecendo! É tão chato, queria que elas parassem de aparecer porque amo tanto o Gustavo e não quero brigar com ele por causa de papel cartão amarelo.
Suspiro e ela faz carinho na parte de trás da minha mão.
— Vai ter que acabar um dia. Não é pra sempre. Ele vai ficar de bem.
Ele aparece mais tarde na minha casa. De primeira não quero falar com ele e penso em não deixar ele entrar, mas então lembro que ele tem a chave.
Desgraçado.
Me tranco no quarto e ele vem bater na porta.
— Tica. Não quero brigar contigo, Tica. Abre aí, vai?
Ele só me chama de Tica quando sabe que estou puta da vida.
Desgraçado.
— Gustavo, não quero você de ciúme com papel, caramba! Não preciso disso vindo de você, de verdade.
Ele fica quieto do outro lado.
— Não sei o que tenho com essas estrelas. Elas me irritam muito. Eu tinha essa coisinha de mandar bilhetinho pra uma garota que tinha paixonite no fundamental, e sempre via ela expondo meus bilhetes pra todo mundo e dizendo o quanto estava apaixonada pelo admirador dela.
Abro a porta, chocada.
— Oizinho — ele diz naturalmente. Ignoro, óbvio.
— Como é?
— Fiquei com medo de você também se apaixonar pelo seu admirador.
Eu quase dou risada, mas tenho medo de que ele vá se ofender.
— Gustavo! Nunca, doce. Nunca.
Me aproximo dele e me lanço em seu abraço. Meu lugar favorito no mundo, depois do stand de milk-shake do Bob’s.
— E o que aconteceu com a menina? — fiquei curiosa.
— Esqueci. — ele sorri de ladinho.
— Como que esqueceu?
— Desisti dela quando você entrou na escola.
Olho para ele e ele sorri daquele meu jeito.
— Você é bom demais.
— Sou, não sou?
Lhe dou um tapa pela audácia.
— Para! Você é bom sim, mas sem se achar.
— Não diga que sou muito bom pra você, Tica. Eu sou — ele ri, e quase apanha de novo. —, mas não diga.
Puxo ele para o quarto e a noite conta histórias.
Cinco meses.
Exatos cinco meses desde a primeira estrela, eu checo três vezes no calendário.
Cinco meses.
É sexta-feira, eu dou aula.
Mas quando chego na sala dos professores e abro o armário, não tem estrela nenhuma lá dentro.
Não tem.
Fico encucada com isso o dia inteiro, mesmo quando chego em casa.
Sem estrela.
Eu queria uma estrela. Por que será que o admirador parou de mandar estrela? Não vejo um motivo para isso. Eu nem havia descoberto quem ele era ainda! E ele sumia assim?
Chega a ser antiético.
Quase no fim da tarde, recebo uma ligação do Léo, que pede que eu vá ajudar ele com umas coisas lá na escola. Pergunto se é com alguma turma, e ele quase me bate por telefone ao dizer que não tem mais nenhum aluno na escola, porque os períodos já passaram.
Eu quase me bato quando vejo que não notei isso.
Só pode ser algo burocrático, e ninguém merece passar por isso sozinho, então aceito ir ajudá-lo só por desencargo de consciência.
Chego no Caminhos e ele está todo apagado. Não entendo.
É uma peça que estão me pregando?
Entro pelo portão principal e Júlia, Marco e Léo estão todos lá, sorrindo para mim como se soubessem de um segredo de estado.
— Isso tá parecendo suspeito e assustador — digo.
— Parecendo? — Marco ironiza, e recebe um tapa de Léo no ombro.
— Até hoje você não se ligou que as aparências enganam? — Júlia diz, e me pisca. — Segue as estrelas.
Ela me entrega um papel cartão antes de se retirar com os outros. Viro a estrela para o lado em que há escritos.
“Ei, Ticiane. Gostou da brincadeira? Vai pra encruzilhada.”
Olho para a frente, e vejo que tem um novo papel no local em que dois corredores se cruzam em forma de cruz. Me aproximo e abaixo para pegar a estrela.
Estou emocionada, mas não faço ideia do que pode sair dali.
“Devo dizer que não fui eu quem botei os papéis no armário. Tive ajudantes haha. Esquerda!”
Olho para o corredor da esquerda e ando mais uns passos antes de achar um novo bilhete.
“Notei que você nem percebeu que dia era quando recebeu a primeira estrela. Mais uns passos.”
Vou seguindo as pistas. A cada estrela, eu consigo formar uma imagem mais clara na minha mente. Começo a descartar alguns suspeitos, no meio do caminho penso em mais uns, mas com o tempo as coisas vão fazendo mais sentido.
Me percebo uma pessoa um tanto quanto burra.
“Juro que sua confusão, que me foi gravada para que eu acompanhasse, era adorável. Volta para o corredor e segue à direita agora.”
“Mas acho que sua cara quando me descobrir vai ser ainda melhor que a confusão. Vinte passos para a frente. Vinte certinho. Se quiser contar.”
“Eu amo cada detalhe seu e sei que sabes disso. Banheiro masculino. Pode entrar, a diretora deixou.”
“Tici, você me conquistou desde o primeiro momento. Me chamou atenção, e eu quis ser seu desde então. Pátio.”
“Foi interessante ver que você sequer desconfiou de mim. Minha atuação foi ótima, então. Cantina. Do lado de dentro.”
“Mas eu mal posso esperar para te ver aqui e te fazer uma pergunta especial. Dentro do forno de pão de queijo.”
Pergunta especial. Que tipo de pergunta pode ser especial? Minha cabeça está a mil e, ao mesmo tempo, eu não consigo prestar atenção em nada porque estou tão feliz, tão feliz. Quero chorar.
“Tici, eu te amo, cabra. Te amo tanto que nem sei mais como expressar, não depois de aproximadamente 90 cartões. Embaixo do balcão.”
“Mas espero que você tenha se tocado. Te amo em cada detalhe, em cada defeito, em cada qualidade, em cada soprar da brisa eu te amo. Lado de fora, segue a rampa.”
“Sou teu. Só teu. Sempre fui, e sempre quero ser. E sei que você é tua, mas só de ser um pouco minha também eu já me sinto honrado. Vem me ver no ginásio.”
Então eu corro.
Na porta do ginásio, tem o que eu imagino ser o último bilhete.
“Já parou para pensar que eu sempre fui teu e, apesar de negar, você sempre foi meio que minha também? Eu já. Por isso te amo. Afinal, está escrito nas estrelas.”
Abro as portas do ginásio eufórica.
E ele está lá. Todo de branco, sorrindo para mim. Uma das mãos tem os fios que seguram diversos balões de hélio que flutuam. Eles são azuis e têm estrelas.
A outra mão está atrás do corpo.
E ele sorri tanto.
Sorri tanto que parece que seu sorriso vai rasgar a cara. Ele vê meu rosto que provavelmente está vermelho de chorar, ele sabe que foi ele quem fez que eu me emocionasse.
Ele sorri, e seu sorriso é meu, é só meu, e é para mim.
— Oizinho.
Lindo.
A coisa mais linda que eu já vi.
Sempre foi ele.
Sempre.
Eu me aproximo e ele fecha o sorriso só um pouco.
— Sabe que dia é hoje? — me pergunta enquanto eu pego os balões da mão dele. Só faço que não com a cabeça. Não confio na minha própria voz. — Cinco meses atrás comecei com a brincadeirinha — ele ri. — Dez anos atrás eu te levei para o baile de caridade da igreja e nós passamos o dia sentados no banquinho falando mal de todo mundo na cidade. Não éramos as melhores pessoas do universo, não é?
Eu solto uma risada e me aproximo um pouco mais.
Quero que ele me encoste.
Mas suas duas mãos agora estão atrás do corpo, quando deveriam estar na minha cintura, meu rosto, meu cabelo. Seus lábios falam, mas eles deveriam estar me beijando.
— Dez anos atrás, quando te deixei em casa de bicicleta, depois de você quase ter caído mil vezes, porque aquela bicicleta não era pra dois, eu te perguntei se você já tinha um namorado, e você disse que não porque queria que fosse eu. Dez anos atrás você me pediu em namoro, e eu aceitei. E há dez anos você me faz a pessoa mais feliz desse mundo, Tici.
Ele tira as mãos de trás do corpo e tem uma caixinha de veludo nelas. Ele abre. Um anel.
Aliança.
— Hoje sou eu que faço o pedido, doce.
Ah, Gustavo.
Sempre foi ele.
Eu o amo.
Desde que o conheço, eu o amo.
E ele me ama de volta. E ele me ama tanto.
— Tica, cabra, quer casar comigo?
Vai ser sempre ele.