Entre Dois Mundos



Escrito por Nathara Santanna | Instagram
Revisado por Natashia Kitamura

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Capítulo Um

  Destino…
  Minha avó costumava sussurrar essa palavra em meu ouvido com um leve sorriso nos lábios, mesmo que eu tivesse feito algo errado. No vocabulário da minha avó, destino significava que tudo o que eu fiz, fazia parte dele.
  Sabe, eu cresci ouvindo que a vida é cheia de obstáculos, que durante o nosso período na Terra encontramos caminhos tempestuosos e claros, e que nossas escolhas dependiam unicamente de nós. Em todas as conversas que tive com minha avó, ela sempre deixou claro que o destino nos uniu, que eu era destinada a ficar com ela para sempre. Pode parecer um pouco egoísta da minha parte falar isso, mas minha avó nunca soube o peso que suas palavras carregavam, pois, de certa forma, suas palavras mostravam o quanto eu havia sido abandonada pelos meus pais, mesmo que ela nunca tenha dito isso.
  Fui descobrir os segredos da minha existência na escola. Até então eu achava supernormal ser criada pela minha avó. Meu avô, infelizmente, havia falecido há muito tempo, e não tive a chance de conhecê-lo. Porém, na escola, percebi que as crianças ao meu redor tinham um pai e uma mãe, ou dois pais, ou duas mães, e eu? Bom, eu tinha uma avó. Essa situação era algo que matutava na minha cabeça, “por que meus pais nunca apareceram?” Por outro lado, eu também não queria ser injusta com a minha avó e perguntar sobre eles. Afinal, ela nunca tinha falado sobre meus pais, e eu tinha medo de perguntar e magoá-la.
  Acho que foi por volta dos meus dez anos que eu criei coragem para falar sobre esse assunto com ela, até porque eu já estava maior e acreditava que poderia entender muito bem o motivo dos meus pais não viverem comigo. Sou grata por ela, que, mesmo com a minha pouca idade, foi sincera ao explicar o porquê de eles não fazerem parte da minha vida, e suas palavras eram claras como a neve “Seus pais eram adolescentes quando você nasceu, e eles não tinham maturidade de cuidar de você. Sinto muito.” Acho que essas palavras, quando você tem dez anos, são reconfortantes, mas, estando mais velha, agradeço mentalmente por ela nunca ter exposto a verdade nua e crua na minha cara.
  Não tardou até eu descobrir a verdade que minha avó tentava esconder. Meus pais abriram mão de me criarem. Eles seguiram com suas vidas como se eu não existisse. Eu sabia que não devia me importar com essa situação, mas era tão devastador saber que as pessoas que te colocaram no mundo não ligavam para você, me fazendo questionar, “Por que sentir falta de pessoas que eu nunca conheci?” Por muito tempo, eu senti ciúmes dos meus amigos e da família que eles tinham, pois, desde que me entendo por gente, sempre fui eu e minha avó. Essa inveja me consumiu por um tempo, e acho que isso foi combustível para o meu desejo de ir atrás deles.
  Talvez tenha sido aí que minha vida começou a desandar. As poucas informações que eu tinha dos meus pais era que eles tinham ido para faculdade e seguiram caminhos diferentes, ou seja, eles não ficaram juntos depois de me terem. Fui atrás de saber um pouco mais sobre suas vidas e descobri que os dois estavam muito bem-casados e com filhos. Lembra quando falei que minha vida começou a desandar depois de começar a procurar sobre meus pais? Bom… Quando descobrir quem era minha mãe, soube que meus avós maternos ainda viviam na minha cidade, e, com toda a esperança do mundo, bati em sua porta, apenas para ouvir que eles não tinham nenhuma ligação comigo e que esperavam que eu não fosse mais até a casa deles.
  Nunca falei para a minha avó as intenções que eu tinha em encontrar meus pais e tentar ter alguma ligação com eles. Tudo o que fiz foi por trás das costas dela, o que foi muito egoísmo da minha parte. Porém só fui entender mais sobre isso dois anos depois, quando completei dezesseis anos e tirei minha licença para dirigir. Eu e minha melhor amiga, , fomos em busca dos meus pais. Para minha surpresa, minha mãe estava casada há algum tempo e era mãe de gêmeos. Ela exalava felicidade e não falou muito comigo, mas prometeu manter contato, se eu a considerasse tia, e não mãe. Meu pai por outro lado não foi encontrado, porém minha mãe informou que ele tinha se casado quatro anos antes, e que o mesmo tinha uma filha da minha idade.
  Um soco no meu estômago.
  Acredito que foi nesse dia que tudo o que eu idealizei caiu por vez, quando vi que, para os meus pais, eu tinha sido apenas algo que aconteceu em suas vidas e que facilmente foi descartada por eles como um brinquedo sem importância. O que aconteceu, fez eu ser grata a minha avó, por tudo o que ela fez por mim. Dona Camélia não tinha obrigações em me criar, muito menos me proporcionar educação, mas ela foi a única que esteve ao meu lado até hoje. Porém apesar de eu ser extremamente grata à minha avó, também virei um pouco rebelde depois de descobrir que meus pais não ligavam para mim. Na minha mente, ser uma pessoa correta em todos os aspectos faria com que meus pais voltassem para casa, mas, depois de tudo o que aconteceu, resolvi me rebelar e ser eu mesma. Vamos lá, eu nunca fui muito sortuda, e o peso do abandono que eu carregava em meu peito parecia nunca ser suprido pelo amor incondicional da minha avó.
  — Eu sei que essa notícia é chocante, . — Eu havia sido chamada para a sala do diretor, crente que eu tinha feito alguma coisa fora dos padrões, mas nunca, nem um milhão de vezes eu poderia imaginar o real motivo de estar naquela sala. — Mas você precisa ser forte. — Suas palavras eram transmitidas em tom de conforto, mas pareciam apenas um zunido passando pelos meus ouvidos. Sinto muito, sua avó faleceu. Essas palavras ecoavam em minha mente sem parar.
  — Não me peça para ser forte. — Minha voz sai um pouco trêmula, deixando claro a minha vulnerabilidade. Eu não sabia o que sentir, e muito menos conseguia chorar, era como se eu estivesse presa em um pesadelo.
  — Tomei a liberdade de ligar para a pessoa mais próxima da sua lista de contato. — Ele parecia estar olhando minha ficha de registro naquele momento. — Infelizmente nenhum parente sanguíneo, além da sua avó está registrado. — Sr. Watson não parecia muito feliz. — Então entramos em contato com Dorothy, e ela irá buscá-la. — Tudo parecia estar passando em câmera lenta ao meu redor, a voz do diretor era quase robótica para eu entender, mas eu sabia que isso era apenas meu cérebro tentando absorver todas as informações de uma única vez.
  — Sabe me dizer se ela chegou a ir para o hospital? — Minha voz quebra e automaticamente olho para o chão.
  — Desculpe, . Por eu não ser da família, não tive maiores informações. — OIho brevemente para ele e logo abaixo minha cabeça, mexendo em uma pelezinha que estava levantada em minha unha.
  — Tudo bem. — Solto um suspiro. Eu não sabia o que seria de mim a partir de hoje, minha avó sempre esteve ao meu lado durante esses anos, ela era minha família, e agora eu não tinha mais ninguém.
  Não sei quanto tempo passou, mas acredito que o Sr. Watson tenha me deixado sozinha naquela sala, imersa em pensamentos, pois, depois de um bom tempo, sinto uma mão pousar suavemente em meu ombro, fazendo com que eu me levantasse rapidamente, desconfiada.
  — ! — Dorothy e eu éramos as únicas naquela sala, seu rosto encharcado por lágrimas. Lágrimas essas que me fizeram sentir inveja, visto que eu não tinha derramado nem uma gota até o momento. — Sinto muito. — Suas palavras eram carregadas de sentimentos, e eu apenas a encaro, sem falar muita coisa.
  — Ainda não consigo acreditar… Minha avó… — Novamente minha voz se quebra, e tenho que pigarrear para que ela não volte a falhar.
  — Eu sei, meu bem. — Dorothy parecia não estar me contando tudo o que estava acontecendo, ou seja, ela acaba me deixando um pouco apreensiva.
  — O que será de mim? — Apesar da apreensão, não deixo de comentar com ela uma das minhas maiores preocupações e sinto Dorothy congelar em seu lugar.
  — Meu bem, agora que sua avó se foi, eles entraram em contato com o seu pai. — Paraliso. — Ele está vindo fazer a liberação do corpo, visto que você é menor de idade e não pode fazer isso.
  Meu pai. Eu tinha uma vaga lembrança dele, na realidade de uma foto que eu vi dele nas redes sociais, sua conta era privada, então eu tinha mandado uma solicitação de amizade para ele, que foi gentilmente recusada, ou seja, além da foto que eu tenho dele quando ele tinha uns dezessete anos, eu tinha uma foto de perfil de uma rede social com sua idade atual.
  — Não acho que ele realmente se importe. — Minha voz era quase inaudível, inflada pela amargura que eu sentia ao lembrar que ele existia.
  Ainda era impossível assimilar. Minha avó. A pessoa que me criou, que me viu crescer, já não estava mais nesse mundo. Parecia surreal o que estava acontecendo na minha vida, e minha mente não parava de trabalhar. Pensamentos a mil. Uma parte de mim ainda esperava que as pessoas ao meu redor recebessem uma ligação falando que tinha sido um engano, e que minha avó estava viva, e bem. Mas, por mais que eu quisesse que tudo não passasse de uma brincadeira de mal gosto, a ficha estava caindo. A data de hoje ficaria para sempre marcada em meu coração, manchada como uma memória de algo que jamais deveria acontecer, mesmo que o dia “D” chegasse para todos. Eu não estava preparada.
  Culpa é o que eu sinto, eu deveria ter percebido que algo não estava certo. Talvez se eu não tivesse acordado tarde, se eu não tivesse pulado o café da manhã, talvez, só talvez ela ainda estivesse viva.
  A morte da minha avó poderia ter sido evitada.
  A culpa era minha.
  — , com o falecimento da sua avó, muita coisa mudou. — Prendo minha respiração, tentando entender onde Dorothy queria chegar com isso.
  — Claro que as coisas mudaram, agora sou eu contra o mundo. — Nada do que ela falasse iria fazer sentido nesse momento.
  — Acho que você não entendeu, seu pai será seu tutor legal até você completar dezoito anos. — Não fazia sentido uma pessoa que nunca se importou com você, e com a própria mãe aparecer de repente como se fosse o salvador da pátria. Pra mim ele não merecia meu respeito, não quando ele deixou tudo para trás e nunca se importou com as consequências dos seus atos.
  Como as coisas eram injustas, não é mesmo? Como que a justiça poderia confiar em um homem que nunca teve contato com a sua filha? Não era mais fácil eles darem a minha guarda para alguém que eu conhecia? E que convivia?
  — Dorothy… — As coisas não faziam sentido naquele momento. Eu não conseguia raciocinar e por conta disso eu não conseguia ser racional.
  — Apesar de tudo, Axel é seu pai. — Ela sorri para mim em meio às lágrimas. — Deixe que ele fale o que irá acontecer a seguir. — Dorothy afaga meus ombros. — Vamos para casa. — Ao ouvir essas palavras, meu coração se contrai ligeiramente.
  Casa.
  Eu não tinha mais uma casa.
  Nunca mais sentiria o conforto, ou o cheiro da minha avó novamente e saber disso, me matava internamente.
  Saindo da sala da diretoria, caminho silenciosamente ao lado de Dorothy. Meu celular não parava de vibrar, sinal de que as pessoas já estavam cientes sobre o falecimento da minha avó, porém, apesar de suas boas intenções em me dar os pêsames, eu não queria falar com ninguém e muito menos lidar com a morte da minha avó naquele momento. Entrar no carro de Dorothy, por exemplo, tinha sido um momento traumático, como a simples ideia de ir para minha casa, algo que eu amava fazer, passou a ser aterrorizador? Que tipo de ambiente eu encontraria ao atravessar as portas de um lar harmonioso? Era possível eu não me sentir confortável em um local que eu costumava viver? Talvez meu maior temor é chegar em casa e minha ficha finalmente cair, esse era meu lar, mas antes dele ser meu e da minha avó, ele era só dela. Aquele local era um reduto de memórias que ela construiu ao longo dos anos, minha avó era a luz da nossa casa, e agora, como seria? Meu pai jamais abandonaria sua casa, e muito menos sua família para ficar comigo nesta cidade.
  — ? — A voz de Dorothy me puxa para a realidade, e percebo que estamos paradas em frente à minha casa. — Chegamos. — A observo tirando seu cinto de segurança e aguardando eu fazer o mesmo.
  — Você irá ficar comigo até alguém chegar? — Eu tinha uma pequena esperança de que ela fosse ficar ao meu lado, pelo menos até meu pai chegar.
  — Sinto muito, meu bem. — Começo a murchar lentamente. — Eu tenho que resolver algumas questões que Axel pediu. — Uma parte de mim queria ser mesquinha e pedir para Dorothy ficar ao meu lado, mas eu não podia usar as pessoas a meu favor. — Tudo bem ficar sozinha?
  — Sim… — Mesmo com o coração na mão e sentindo a necessidade de ter alguém ao meu lado, engulo esse sentimento, afinal ninguém tinha obrigação de ficar.
  — E, … se por acaso seu pai chegar antes de qualquer pessoa, você consegue ser boa para ele? — Fecho meus olhos com força, reprimindo qualquer sentimento.
  — Não posso garantir nada.
  A atitude de Dorothy é um tanto quanto indelicada. Era ultrajante ela me pedir para ser uma boa pessoa para o meu “pai”. Talvez as pessoas devessem ser mais cautelosas com suas palavras e compreensivas. Minha vida toda foi eu e minha avó, e não tinha como, de uma hora para outra, aceitar uma pessoa completamente estranha.
  Ao entrar em casa, sou surpreendida pelo cheiro familiar da comida da minha avó. Algo tão simples, que sempre me trouxe conforto, agora parecia me ferir profundamente. Sem perceber, meus pés percorrem o curto caminho até a nossa cozinha, como se quisesse encontrá-la como sempre, parada em frente ao fogão, fazendo algo gostoso para comermos. Mas, o cenário que encontro é totalmente diferente. Alguns itens de uso diário estavam espalhados pela cozinha, representando o que tinha acontecido anteriormente, minha avó jamais deixaria as coisas desorganizadas dessa maneira. De repente, ao olhar para essa cena, minha boca seca de repente, e um aperto no coração surge, sinal de que as lágrimas em algum momento cairiam.
  Porém nada vem.
  Estou seca.
  Vazia.
  Agora, em casa, a verdade que eu recusava aceitar me atinge com extrema brutalidade. Minha avó não vai voltar, ela morreu. O que estava feito, estava feito. Eu teria que aceitar que nunca mais me sentaria ao seu lado em um domingo à tarde para assistir TV enquanto comíamos morango, ou que brigaríamos pelo controle remoto novamente. A pessoa que sempre foi meu porto seguro, não estaria mais ao meu lado para me ver indo para faculdade, nunca iria ver a família que irei construir, ou estar ao lado dos filhos que escolhi ter.
  A pessoa que eu amei durante toda a minha vida não estava mais ao meu lado.
  Eu perdi minha avó.


  N/a: Olha eu aqui de novo! Agora com uma história original para vocês.
  Espero que gostem de “Entre dois mundos”. Para ser bem sincera, matutei por umas boas semanas o título dessa nova história, pois ela foi escrita lá em 2016/2017 e o título dela uma hora foi “Malia”, enquanto ainda era apenas um doc, e depois “Trent - Série Baxter” quando finalizei a história e transformei ela em PDF.
  Eu tenho um carinho imenso por essa história, ela foi a segunda história que eu finalizei em 2017, porém arquivei ela e nunca mais mexi. De uns tempos para cá, resolvi reorganizar todas as minhas histórias em ordem cronológica, e resolvi dar uma chance para ela.

Capítulo Dois

  Me agacho no chão da cozinha, deixando toda a dor que eu estava sentindo ser libertada, e mesmo assim, nada veio, nenhuma gota de lágrima derramada. Nada. Era como se existisse algo bloqueando todas as minhas emoções, as impedindo de serem expostas. Eu tinha que estar chorando, mas não conseguia. E isso era devastador.
  Nunca fui uma pessoa que se deixou levar por sentimentos, eu nunca chorei na frente dos outros e muito menos demonstrei fraqueza para essas pessoas, e não, isso não fazia parte da criação que minha avó me deu, pelo contrário. Minha terapeuta sempre falou para expor meus sentimentos, e não guardar nada para mim, todavia eu tenho esse sentimento de não querer incomodar as pessoas, e que elas não têm nada a ver com meus problemas, então minha avó nunca soube o que se passava realmente comigo.
  Estou tão imersa em pensamentos, que não me dou conta que alguém tinha entrado em nossa casa. Isso era um perigo, a minha falta de atenção, mas eu estava tão focada em me manter sã, que não me importei com mais nada.
  — Vejo que você já foi liberada. — Sinto um arrepio em minha espinha ao escutar uma voz firme atrás de mim.
  — Axel. — Sussurro o nome do meu pai.
  — Então você sabe quem sou eu. — Ele dá um sorriso de lado, e me levanto rapidamente. — . —Apesar de Axel sorrir, suas feições não demonstravam uma emoção sequer.
  Essa era a primeira vez que eu estava na presença do meu pai, e ele era exatamente como minha avó tinha descrito.
  Ele tinha um olhar impassível e era frio como o gelo. Pensei que ela tinha exagerado com essas características, mas o vendo ali, parado na minha frente, eu tive a certeza de que ela tinha mentido para não me assustar. Meu pai era astuto e intrigante, quase assustador.
  — Pensei que você iria direto para minha avó. — Dorothy tinha dito que Axel iria fazer a liberação do corpo da minha avó, porém ela não tinha dito sobre ele vir primeiro para cá. Eu não estava preparada para vê-lo tão cedo.
  — . — Meu nome em sua boca era falado sem nenhuma emoção, seco, distante demais. — Moro há pouco menos de uma hora daqui. — Observo meu pai cruzando os braços. — Assim que me ligaram, saí imediatamente para resolver o que tinha que ser resolvido. — Ele não precisava me explicar, mas pelo menos ele tinha sido legal a esse ponto.
  — Veio sozinho? — Não era segredo para mim que ele era casado, e essa pergunta acaba escapando dos meus lábios em um tom que eu não tinha desejado.
  — Já que sou filho único da minha mãe. — Suas palavras eram como lâminas afiadas. Engulo em seco. — Vim fazer a liberação do corpo. — Axel parecia calmo, e sua calma me deixa aflita. Minhas mãos suam à medida que ele coloca as dele no bolso, de forma mais casual possível e me encara. — E não, não vim sozinho. Na realidade minha esposa já está a caminho, ela foi buscar nossa filha na escola.
  — Claro. — Dou o meu melhor e sorrio. — Vou para o meu quarto. Preciso me preparar. — Começo a caminhar para fora da cozinha.
  — ... — A voz seca de Axel preenche o ambiente. — Temos que conversar. — Eu não queria ter que conversar com ele, muito menos queria saber o motivo dessa conversa.
  — Isso pode esperar, não é? — Eu não estava me sentindo confortável em sua presença, e muito menos queria estar aqui quando sua esposa chegasse.
  — Não. — Sua voz é firme, quase que autoritária, o que me faz ceder.
  — Ok. — Tento manter uma boa distância entre Axel e eu.
  — Eu serei breve, não precisa se sentar. — Acho que ele percebeu que eu estava indo me sentar em um dos sofás que tínhamos na sala depois de caminhar para fora da cozinha.
  Observo meu pai com um pouco de atenção. Ele usava um terno e a julgar pelo caimento, ele tinha sido feito sob medida para Axel. Seu cabelo estava perfeitamente alinhado, demonstrando que ele tinha controle sobretudo ao seu redor. Axel realmente tinha uma vibe de CEO.
  — Claro, como você desejar. — Solto um suspiro.
  — Você deverá arrumar suas coisas, pois irá se mudar comigo. — Arregalo meus olhos, completamente chocada com a bomba que Axel solta de repente. Eu não estava preparada para essa notícia, quer dizer, eu sabia que alguma coisa poderia acontecer, pois, Dorothy tinha dito que ele era meu tutor legal agora, mas eu esperava que na primeira oportunidade, ele iria falar que eu estava nesse mundo por conta própria apesar de suas obrigações.
  — Por um momento achei que você iria pedir para eu me emancipar, sabe não acreditava que você fosse querer uma intrusa na sua casa. — Tento não parecer amargurada, mas era uma missão impossível.
  — Eu já fui adolescente, e sei muito bem como vocês podem agir. — Sua voz é firme novamente, e me encolho um pouco.
  — Só porque você fez coisas da qual não se orgulha, não quer dizer que eu, ou os outros somos assim. — Eu não sabia se era uma boa ideia desafiá-lo, mas quem teve um filho quando adolescente não fui eu, e sim ele.
  — … Assim como você eu também não estou feliz com essa notícia de você ter que morar comigo. — Ele continua em pé, os braços cruzados, me encarando como se estivesse pensando em alguma opção para me descartar. — Minha mãe era sua responsável legal, e agora sua guarda passa para mim.
  Meu coração volta a se comprimir com a pequena menção a minha avó. O ar parecia mais difícil de ser respirado, e um por momento minha visão escurece. Continuo escutando Axel falando de fundo, mas nada parecia querer me fazer voltar à realidade. Quando volto a mim, olho para Axel, buscando qualquer sinal de pesar em suas feições, mas tudo o que eu conseguia ver era a indiferença estampada em seu rosto.
  — Pensei que minha mãe viria. — Não que eu contasse muito com isso, mas entre ela e meu pai, se eu concordasse em chamá-la de tia, talvez tivesse um lugar mais acolhedor para morar.
  — Não sei qual foi a história que minha mãe contou enquanto você crescia, mas aqui vai a realidade. Sua mãe assinou uma documentação renunciando toda a responsabilidade de você assim que nasceu, . — Novamente suas palavras vêm sem nenhuma piedade, como se ele quisesse me ferir mesmo.
  Minha avó nunca mencionou os motivos reais dos meus pais terem me deixado com ela, mas era claro que não tinha sido por eles serem adolescentes. Provavelmente, vovó tenha falado isso naquela época para não me magoar, mas era óbvio que com o tempo eu iria perceber que as coisas não eram como ela falava e muito menos como eu imaginava. Claro que minha avó não tinha culpa disso, afinal, acredito que ela apenas queria me fazer sentir bem com toda a situação que envolvia meu nascimento.
  — Você não está tão longe. — Fecho minhas mãos com força, a ponto de sentir minhas unhas cravarem na minha pele. A realidade é que meus pais não deveriam ter direito sob a minha guarda, independente do falecimento da minha avó.
  — E é aí que você se engana. — Meu pai se move um pouco, apenas para mudar sua postura. — Minha mãe e eu sempre tivemos um acordo, ela tinha medo de que pelo fato de ser uma pessoa velha, pudesse morrer antes de você ser maior de idade. — Prendo minha respiração com o rumo que essa conversa estava levando. — E por causa disso eu assinei um termo em que, em caso de morte, eu assumiria sua guarda até você completar dezoito anos. — Seus olhos se encontram com o meu. Choque. Esse era o sentimento que eu tinha nesse momento. Era como se eu fosse um empréstimo, uma dívida que ele tinha passado adiante, mas que agora estava sendo forçado a assumir novamente.
  — Então eu sou um fardo que você terá que aguentar até completar dezoito anos. — A raiva toma conta de mim. Não era algo que eu conseguiria controlar no momento e por conta disso o tom da minha voz se eleva para quase um grito. — Sua família sabe que eu existo? — Eu podia sentir meu rosto quente, sinal de que eu estava vermelha.
  — Paige sempre soube de você. — Sua voz parecia distante. — Ela não ficou muito feliz pelo fato de eu estar tendo uma filha, mas aceitou. — Axel encara seu relógio. — Espero que você respeite minha família, elas não são como você.
  Um nó se formou em meu peito. Como eu conseguiria sobreviver durante um ano com essa pessoa? Ou melhor com a família dele? Eu sempre me considerei uma intrusa, mas agora os níveis foram atualizados de uma maneira que eu não tinha certeza se saberia lidar.
  — Sua mãe acabou de morrer, você poderia ter um pouco de compaixão e empatia? — Minha voz falha um pouco, mas seu olhar não muda.
  — Sempre serei grato pela minha mãe assumir a responsabilidade de alguém que ela não tinha nenhuma obrigação de criar. — Fecho meus olhos com força, tentando relevar tudo o que ele está falando nesse momento por causa da minha avó. — Pode ir para o seu quarto.
  Não espero muito, afinal se eu ficasse mais um pouco sob a sua presença, com certeza eu falaria algo que iria me arrepender depois. Subo as escadas com passos pesados, pensando em mil formas de ignorar Axel pelo resto do dia, e principalmente, pelo resto do ano. Ele era um estranho. Nunca tinha visto meu pai e agora agradeço ao universo por isso nunca ter acontecido. A ideia de chamar Axel de “pai” era completamente ridícula. Tudo o que ele falou ou expressou até o momento era o retrato perfeito sobre o que ele achava de mim, e nada do que eu fizesse iria fazê-lo mudar de ideia.
  Meus pais deixavam claro em suas atitudes que eu não era bem-vinda. Ambos tinham filhos, porém nunca tive a oportunidade de conhecê-los, pois, eu fazer parte de suas vidas nunca foi um plano para eles. Porém o destino gostava de brincar com a minha cara, e agora eu me via presa ao meu pai por causa de um acordo que ele e minha avó fizeram há dezessete anos.
  Deitada na minha cama, minha mente continua girando, pensando em maneiras de me livrar do meu pai ou do fato de ter que conviver com a sua família. Eu não precisava disso em minha vida, apesar de crescer pedindo por isso. Além do mais, nunca esperei muito deles, não quando cresci e percebi que eles não me queriam em suas vidas, mas saber que tanto o meu pai e minha mãe abriram mão da minha guarda assim que eu nasci e nunca olharam para trás, magoou, porque agora eu tinha a confirmação.
  — . — Ouço uma leve batida na porta do meu quarto, Dorothy aparecendo em seguida.
  — Acho que eu peguei no sono. — Me levanto, levemente desorientada. — Que horas já são? — Noto que ela já estava vestindo roupas pretas, e percebo que não troquei de roupa desde que cheguei.
  — Está na hora de você se despedir. — Ela entra em meu quarto, se aproximando da minha cama. — Sei que você está em uma situação difícil, mas está na hora. — Dorothy vai até o meu guarda-roupa e começa a mexer nele. Ela já tinha feito isso incontáveis vezes, pois, Dori e minha avó eram amigas de longa data. Ouço um resmungo vindo dela, e logo vejo um vestido preto em suas mãos. Ele não era o mais elegante que eu tinha, muito menos o mais bonito, porém era a única peça no meu guarda-roupa que eu tinha certeza ser apropriado para a ocasião.
  Seus olhos me encaram com expectativa, eu sabia que ela estava ansiosa e queria me ajudar, mas na minha atual situação, nada do que eu ou os outros fizesse iria resolver o meu problema, e acho que esse é o motivo de eu engolir todos os meus sentimentos novamente e passo a me perguntar, o que deixaria minha avó orgulhosa?
  A realidade é que eu não tinha uma resposta para a minha pergunta. E muito menos sabia como me despedir de uma pessoa que esteve presente em minha vida nos últimos dezessete anos. A dor estava ali, presente, porém eu apenas não conseguia expressar ela para os outros. A culpa por não conseguir chorar me consumia, eu deveria estar chorando, quebrando alguma coisa, mas nada acontecia. Era como se ocorresse uma falta de conexão com meus sentimentos, como se eles estivessem presos a sete chaves, impedindo que eu os libertasse.
  Sinto uma leve falta de ar. O quarto parecia um pouco mais escuro que o normal, sendo iluminado apenas pela luz que saía da pequena fresta entre a minha janela e a cortina. Um silêncio toma conta do local, as coisas ao meu redor ainda pareciam difíceis de serem assimiladas, e dou o meu melhor para pegar o vestido em cima da minha cama e ir até o banheiro para me trocar, não querendo tomar tempo das pessoas que tinham ido até o local que o funeral estava acontecendo.
  Puxo o ar novamente, sentindo uma dor em meu peito. Meus dedos estavam trêmulos, mas eu não sabia se era pela falta de alimentação, ou porque eu estava indo me despedir da minha avó. Tento repetir algumas vezes que tudo iria ficar bem, mas a quem eu estava enganando? A mim mesma? Saber que essa troca de roupa, que deveria ser simples, significava me despedir eternamente da minha avó me deixava aflita, entretanto, eu não tinha mais o que fazer.
  Chegou a hora de dizer adeus.
  — Você ficou bonita. — Dorothy estava me esperando do lado de fora do meu quarto. — Vamos descer, precisamos cumprimentar as pessoas que estão chegando.
  Até onde eu lembro, nós não tínhamos muitos familiares, ou pelo menos foi isso que eu pensei a minha vida toda. Ao descer as escadas acompanhada de Dorothy, sou surpreendida por alguns rostos nada familiares. Acabo chamando um pouco de atenção, atenção essa que eu não queria no momento, e os olhares que recebo não são nada amigáveis, era como se essas pessoas estivessem me julgando.
  Era estranho saber que de certa forma me conheciam, mas porque minha avó nunca tinha falado deles para mim? Lembro da última vez que perguntei se minha avó tinha irmãos, ela desconversou e falou que não tinha mais contato com eles, porém ao ver essa quantidade de pessoas desconhecidas, apenas descobri que minha avó mentiu em algumas coisas relacionadas a nossas vidas.
  — Precisamos descer. — Dorothy me desperta dos pensamentos, segurando minha mão com mais firmeza. — , apenas lembre-se de ser uma boa pessoa, seu pai não é tão ruim quanto você imagina, e essa é a sua família. — Respiro profundamente.
  — Eu não quero ter que ir embora…
  — , está na hora de você aceitar que algumas coisas mudaram e que esse é o seu novo cenário. Seja uma pessoa boa. — Ela força um sorriso para mim, suas palavras soando um pouco vazias.
  — Claro… — Eu estava exausta, e não tinha mais forças para lutar, por isso tento forçar um sorriso. — Irei tentar o meu melhor.
  Descemos a escada em completo silêncio, as pessoas naquela casa pareciam ter perdido o interesse em mim e voltam a fazer o que estavam fazendo antes. O velório seria em uma capela a duas ruas da minha casa, Dorothy comentou que Axel não queria um velório dentro de casa, pois isso impediria que novos compradores se interessassem pelo local. Minha avó acabou de morrer e ele já está pensando em lucros.
  Ignoro todos ao meu redor, e Dorothy vai até a capela ao meu lado, prestando todo o suporte que eu precisava naquele momento. Minha melhor amiga estava viajando e eu sabia que ela não chegaria a tempo para estar ao meu lado, o que me restava era me apoiar em pessoas que eu acreditava quererem o meu bem.
  Conforme nos aproximamos da capela, percebi que a rua estava com alguns carros estacionados e que o local não estava tão vazio. A quantidade de pessoas do bairro que vieram prestar condolências e se despedir da minha avó era muito grande, me deixando um pouco aliviada em finalmente poder ver rostos conhecidos.
  Chegar ao local e não encontrar Axel, foi um alívio. Finalmente pude me sentir um pouco mais segura, talvez isso se dá pelo fato de eu estar cercada por pessoas que eu conhecia. Então, forço um sorriso leve para eles, mesmo que eu esteja despedaçada por dentro, pois era isso que minha avó iria querer. Conforme fui caminhando para dentro da capela, as palavras de conforto que recebo durante todo o meu percurso pareciam penetrar dentro do meu peito, o deixando ainda mais pesado.
  Aqueles que conheciam minha avó, sabiam o quão simples ela era. Dona Camélia sempre brincava ao falar que não queria pessoas em seu velório chorando, pelo contrário, ela queria que as pessoas lembrassem os bons momentos que viveram com ela, assim como queria todos com um sorriso no rosto. Porém, para mim seu desejo era muito difícil de ser realizado. Conforme vou chegando mais perto do local onde estava o caixão da minha avó, mais as pessoas pareciam me apoiar. Foi com eles que eu cresci, e ter todos ao meu redor naquele momento de despedida me deu forças para chegar até a minha avó.
  Paro em frente ao caixão e prendo minha respiração por um momento. O local estava silencioso, como se todos que estavam naquele lugar entendessem a minha dor. Instintivamente, estendo minha mão e tocando a dela, sua pele que antes era quente como o fogo, agora era fria como o gelo. Seu olhar sereno é o que me pega desprevenida, ela parecia em paz, como se estivesse apenas dormindo delicadamente e isso faz com que a realidade me atinge com força. Minha avó não fazia mais parte desse mundo.
  Minha cabeça começa a latejar, e de repente sinto que as coisas ao meu redor começam a embaçar. Tento de certa forma focar em algum ponto específico, para ver se consigo fazer as coisas voltarem ao normal, mas o som das pessoas ao meu redor começa a se tornam distantes. Com as mãos trêmulas, tento me apoiar em Dorothy, mas nada do que tentava fazer parecia estar surtindo efeito. Minha respiração, que eu estava conseguindo controlar até o momento, se torna irregular, me causando uma onda de pânico pelo fato do ar não entrar e muito menos sair. De repente, sinto uma onda de calor invadindo meu corpo, fazendo com que a sensação de falta de ar piorasse ainda mais.
  Eu estava entrando em pânico.
  Eu estava ficando sem ar.
  Sem pensar duas vezes, começo a correr entre as pessoas que estavam naquele local.
  Eu precisava sair dali.
  Agora.


  N/A: Sei que esse capítulo foi um pouco monótono assim como o primeiro, mas eles são importantes para a construção da nossa personagem principal, e essencial para o desenrolar dos próximos capítulos.
  A história já está finalizada, mas pelo fato de ter sido escrita lá em 2016, muita coisa mudou então estou editando algumas coisas, no entanto não prometo que vocês não irão passar raiva com alguns acontecimentos, afinal, eles são importantes para todos os personagens e a construção deles como adolescentes.

Capítulo Três

  Eu sabia que as pessoas que ficaram para trás iriam compreender meus motivos para sair daquele lugar, porém eu não tinha certeza se Axel iria tolerar minha atitude. Não que eu ligasse muito para o que ele pensava, mas assim como Dorothy disse, eu teria que mais cedo ou mais tarde aprender a lidar com ele.
  Depois de sair de lá, me sinto um pouco melhor. Minha respiração já havia voltado ao normal, e minha mão não estava mais dormente, sinal de que eu consegui recuperar meus sentidos. Talvez a pressão tenha sido muito grande para eu lidar, afinal ver minha avó dentro de um caixão nunca passou pela minha cabeça.
  — ? — Eu estava de cabeça baixa, então não vejo quem está me chamando, apenas os pés da pessoa, e a julgar pelo par de sapatos que ela usava, a pessoa tinha muito dinheiro.
  — Sim? — Ao levantar minha cabeça, encaro uma garota loira de olhos extremamente azuis me olhando. Parecia um pouco confuso para mim uma pessoa que eu nunca tenha visto na minha vida me cumprimentar, porém lembro momentaneamente das pessoas que estavam na casa da minha avó e que eu não tinha ideia de quem eram.
  — Acertei, não é mesmo? — A garota continuava parada na minha frente, e passo a encará-la com mais atenção. — … — Ela cruza os braços, e continua me encarando.
  Um sinal de alerta brota na minha mente. Eu nunca tinha visto essa garota em toda a minha vida e era um pouco estranho ela saber quem eu era. Minha avó também nunca mencionou uma palavra sobre uma garota da minha idade, então talvez ela fosse apenas a neta de alguém que veio prestar suas condolências.
  — Você é…? — Minha fala sai um pouco arrastada.
  — A vida é engraçada né? — Seu sorriso é alinhado e seus dentes perfeitamente brancos. — Pode não parecer, mas eu sei muito sobre você, .
  — E como você saberia? — Pergunto.
  — Sou Payton, filha de Paige e Axel… — Prendo minha respiração, era tudo o que eu precisava no momento, ter que lidar com a filha de Axel.
  — Interessante, não sabia que ele tinha adotado alguém da minha idade. — Eu sabia que meu pai tinha se casado há quatro anos, e que desse casamento, ele tinha uma filha da minha idade. Automaticamente, presumo que ele tenha adotado a filha de sua esposa.
  — De onde você tirou isso? — Payton não parecia muito feliz com o que eu tinha dito. — Eu sou filha de Axel e Paige. — Não entendo muito bem aonde ela queria chegar com essa afirmação, pois para mim não fazia sentido.
  — Para você ser filha de Axel, ele teria que ter ficado com a minha mãe e a sua. — O entendimento vai caindo, até que me dou conta do inevitável.
  — Na realidade, meu pai e minha mãe namoravam nessa época. — Tento absorver suas palavras. — Depois que eles tiveram uma briga, meu pai dormiu com sua mãe e o resto já sabemos. — Em nenhum momento ela se refere a Axel como nosso pai, apenas como o pai dela. — No fim eu sou a filha legítima do meu pai, enquanto você não passa de uma filha bastarda dele. — Suas palavras são atiradas sem piedade, e acabam sendo um balde de água fria.
  — Minha avó… — Eu estava tão chocada que não conseguia formular nenhuma pergunta.
  — Minha avó. — Payton frisa muito bem. — Sempre soube de mim. Ela participou de todos os momentos da minha vida, mas ainda sim estou chateada pelo fato dela ter passado mais tempo com você do que comigo. — Payton se senta ao meu lado.
  — Como? — Tento puxar em minha memória qualquer indício dessa interação da minha avó com a família do meu pai, mas nada vem em mente.
  — A vida da vovó não era apenas baseada em você. — Presto atenção em suas palavras. — Quando ela conseguia se livrar de você, a primeira pessoa que ela procurava era meu pai e minha mãe, vovó estava muito triste em não me ver crescer como ela queria.
  — Não acha que você está sendo egoísta? — Pergunto.
  — Egoísta? Eu? — Paige parecia chocada com a minha pergunta, mas ela não percebia que o tempo todo ela estava me diminuindo.
  — Sim, você.
  — Desculpe, . Porém eu perdi de ter minha avó ao meu lado por sua casa.
  Eu estava chocada. Cada palavra que saia da boca de Payton, minha irmã, parecia surreal. Eu não queria acreditar nessa história que ela me contou, no fundo eu acreditava que suas palavras pudessem estar sendo expostas dessa forma por conta do ciúme de saber que eu iria viver com sua família, mas à medida que eu a encarava, mas verdade eu via em suas palavras.
  — Eu não tenho culpa se ela preferiu estar ao meu lado. — Me levanto, não querendo mais estar na companhia dela. — E outra, bastarda? Por que você acha isso? — Murmuro. Essa era uma palavra tão forte para ser dita que eu teria vergonha de sugerir que minha própria irmã era bastarda.
  — Meu pai e minha mãe são casados, meu pai assumiu a responsabilidade dos atos dele e esteve ao lado da minha mãe e ao meu lado desde que eu nasci, e para você? O que sobrou? É o nome do meu pai que consta na sua certidão de nascimento? — Suas perguntas são como navalhas afiadas. — Você não sabe de nada, porque você não é importante para gente, muito menos faz parte da nossa família.
  — Isso é um absurdo. — Eu tinha certeza de que cada palavra que saiu da boca de Payton era com o intuito de me magoar, e talvez ela tenha conseguido, eu só não daria o braço a torcer. — Não faz sentido o que você está falando.
  Olhando com mais atenção para Payton, percebo que ela tinha muitas semelhanças com Axel, nosso pai.
  — Você irá entender, mais cedo ou mais tarde, que nunca deveria ter nascido. — Ela se aproxima de mim. — Espero que você entenda que nem eu e nem minha mãe gostamos do fato de você ir morar com a gente, e estamos apenas aceitando isso por consideração a minha avó. — Engulo em seco, sentindo um nó se formar em minha garganta.
  Nesse momento, com a adrenalina mais baixa do recente acontecimento, a raiva começa a subir dentro de mim. Minha avó sempre soube da filha de Axel e aparentemente conviveu com eles ao mesmo tempo em que me criava. Vovó que sempre soube da dor que sentia pela falta dos meus pais, escondeu de mim uma parte da minha vida.
  — Eu não quero fazer parte da sua vida… — E eu realmente não queria, tudo o que eu mais desejava era ficar na minha cidade, cercada por pessoas que eu conhecia.
  — Infelizmente para nós, você terá. — Payton parecia irritada. — Você pode fazer um favor para mim? — Fico chocada ao ouvir ela me pedir um favor, a garota desde o momento que chegou me metralhou de informações da qual não solicitei, e agora queria me pedir um favor? — Já que você irá permanecer calada irei considerar isso como um sim, só quero pedir que você não apareça mais na capela hoje, deixe que eu e minha mãe soframos um pouco a perda da minha avó e sogra dela, não queremos uma intrusa em um momento tão familiar. — Suas palavras eram calculadas e frias, elas carregam tanta frieza que me sinto levemente vulnerável. Ela se afasta, sem esperar minha resposta e caminha em direção à capela. De longe é possível ver duas pessoas nos encarando, e logo tenho a confirmação de ser Axel e Paige, a esposa dele. Os dois estavam esperando Payton se reunir com eles e isso me machuca profundamente. Essa cena era meu sonho, um sonho que nunca fui capaz de realizar. Meu pai, uma pessoa que sempre esperei ser presente na minha vida, estava ocupado demais sendo um pai para a minha irmã.
  Tento não me aproximar da capela, eu estava me sentindo traída e não queria estar no mesmo ambiente que eles, não quando eu poderia ser humilhada novamente e escutar palavras das quais eu não estava preparada para ouvir. Por isso observo de longe as pessoas que iam chegando na capela. Eles pareciam felizes, o som das conversas paralelas era alto. E eu fico ali, parada, incapaz de lidar com as informações que Payton despejou em mim. Suas palavras martelavam em minha mente, “você não devia ter nascido”.
  Meu pai encarava minha irmã com uma afeição que em nenhum momento me olhou, ele abre os braços para abraçá-la, um gesto tão natural vindo da parte dele que me atinge em cheio. O chão aos meus pais parecia desaparecer. Isso não era justo. Não era justo saber que meus irmãos recebiam tanto amor e carinho dos meus pais e enquanto tudo o que eu recebia era desprezo. Tudo o que eu tinha eram as memórias que criei com minha avó, e parecia que até isso querem tirar de mim.
  Talvez eu tenha chamado a atenção das pessoas que estavam naquele local, pois Axel lança um olhar em minha direção, um olhar discreto, mas que indicava que apesar de eu estar ali, eu não fazia parte daquela família. Inconscientemente dou alguns passos para trás, tentando manter meu autocontrole. Meu corpo parecia se tornar mais pesado, e a adrenalina começa a se esvair.
  Eu estava esgotada.
  Eu precisava sair dali. Eu não era bem-vinda, mesmo sendo neta de Dona Camélia.
  Solto um suspiro e dou meia volta. Decidida a voltar para a casa da minha avó e aproveitar os últimos momentos que teria naquele lugar. Enquanto ando, um misto de sentimentos como tristeza e raiva tomam conta de mim.
  — ? — Escuto uma voz familiar me chamando.
  Olho por cima do ombro e vejo Zane vindo em minha direção, seu olhar parecia preocupado. Fecho meus olhos, tudo o que eu não queria no momento era ter que lidar com Zane, mas novamente o destino parecia me odiar.
  — Zane… — Eu não queria quebrar na frente dele.
  — Tentei te ligar, mas a chamada estava caindo na caixa postal. — Ele se aproxima rapidamente e me abraça. — Como você está? — A pergunta era meio óbvia, e a resposta mais ainda, porém Zane nunca foi muito inteligente.
  Apesar de não querer lidar com ele no momento, Zane era a pessoa mais próxima de um amigo que eu tinha no momento, então apenas balanço minha cabeça, não conseguindo encontrar palavras para descrever o que eu estava sentindo, e continuo o abraçando.
  — , você sabe que pode chorar, estou aqui. — Zane afaga minhas costas, mesmo assim minhas lágrimas insistem em não descer. — Sei que as coisas não estão boas no momento, falei com meus pais, você pode ficar um tempo na nossa casa até Evie chegar.
  — Zane, eu vou embora. — Ele desfaz o abraço e me encara, um pouco chocado.
  — Como assim?
  — Axel apareceu. — Solto um suspiro. — Vou morar com ele.
  — Isso é ótimo! Você sempre quis morar com seus pais. — Zane estava feliz, mas era porque ele não tinha ideia da humilhação que passei desde aquele momento.
  — Eu preciso de um tempo. — Recobro minha força.
  — Vou acompanhar você até em casa. — Zane começa a caminhar comigo novamente. Eu apenas aceito sua ajuda, e caminhamos lado a lado até chegar em casa. Zane parecia curioso, mas agradeço o fato dele não me fazer perguntas.
  Paramos em frente à minha casa, e a observo um pouco mais, logo ela seria vendida e eu não sabia o que iria acontecer. Algumas casas ao redor que seguiram o mesmo destino de venda, foram demolidas e em seus lugares prédios foram erguidos, ou seja, talvez essa fosse a última vez que eu iria pisar nesse local.
  — Quer que entre com você? — Zane quebra o silêncio e olha para mim.
  — Acho que preciso fazer isso sozinha. — Forço um sorriso ao olhar para ele.
  — Tudo bem… — Ele parecia hesitar um pouco. — Irei até a capela e logo volto. — Agradeço com um olhar. E logo caminho até a entrada da minha “casa”.
  Abro a porta e entro. As pessoas que estavam por ali param de falar e começam a me encarar, novamente, pessoas que eu não tinha ideia de quem eram. Resolvo voltar a ignorar essas pessoas, e subo as escadas lentamente. Cada degrau parecia ser um obstáculo em meio aquele silêncio criado pelos desconhecidos.
  Chegando no meu quarto, me sento na cama, e volto a encarar o nada. O dia de hoje tinha sido marcado por um turbilhão de emoções e eu podia sentir um peso avassalador alojado em meu peito, mas mesmo assim as lágrimas teimam em não cair, fazendo com que toda a angústia fique presa dentro de mim. Perdida no tempo, olho pela janela do meu quarto e percebo que o cinza do céu estava se tornando mais intenso, indicando que já estava ficando tarde. Meus dedos brincam com o lençol enquanto tento refletir sobre tudo o que aconteceu hoje. As palavras do meu pai, as palavras da minha irmã, tudo isso atormentando minha mente. Eu estava me sentindo perdida. Claro que eu sabia que existiam diversas formas de se lidar com o luto, porém a ausência de lágrimas me deixava com uma sensação de ingratidão, de culpa.
  Escuto som de passos vindo do corredor, e logo alguém batendo na minha porta. Acreditando ser Zane, peço para a pessoa entrar.
  — Payton? — Fico confusa ao vê-la parada na minha porta, ela não tinha pedido tempo para ficar com a minha avó?
  Ela entra no quarto e fecha a porta, sem se importar em ser muito educada comigo.
  — Sim, . Sou eu. — A julgar pelo tom de sua voz, minha irmã parecia um tanto quanto arrependida.
  — Pensei que você iria ficar na capela, velando o corpo da nossa avó. — Tento quebrar o silêncio que se formou.
  — Sim... Mas durante o meu tempo na capela, percebi que tinha algo para te falar. — Seria muito inocente pensar que ela iria me pedir desculpas por tudo que ela falou antes?
  — E o que seria, Payton? — Pergunto.
  — Você roubou minha avó de mim. — Ela dá um passo se aproximando. — Em todos os momentos que ela esteve comigo, você deu um jeito de estragar. — Eu estava paralisada, chocada demais para falar alguma coisa. — , você não pertence a minha família e eu irei fazer você se arrepender amargamente todos os dias por ter nascido.
  O peso em meu peito se intensifica. Por que as pessoas estavam fazendo isso comigo? Por que ninguém conseguia respeitar minha dor, meu luto? Eu estava me sentindo tão cansada disso, e por mais que eu tentasse me manter sã até o dia acabar, eu podia sentir que tudo que eu estava guardando para mim até agora, estava começando a desmoronar.
  De repente, todo o ar que demorei para conquistar, parecia ser sugado do meu quarto. Minhas mãos voltam a tremer e minha visão começa a embaçar, fazendo que eu me levante assustada da minha cama. Ando de um lado para o outro no meu quarto, sabendo que eu estava perdendo o controle mais uma vez. Minha cabeça estava uma bagunça, eu não sabia como direcionar meus pensamentos, e tudo piora quando eu paro na frente do espelho.
  Ver minha imagem e a maneira que eu estava naquele momento, fazia eu sentir repulsa de mim mesma e sou tomada novamente por uma avalanche de sentimentos.
  Meus pais não me amavam.
  Minha avó se foi.
  Eu era uma bastarda.
  Uma intrusa.
  Num lapso de raiva, dou um soco no espelho. O som do vidro se estilhaçando no chão, logo sinto uma dor aguda em minha mão. O que foi que eu fiz? Tento não me mexer muito, os cacos do espelho estavam espalhados pelo chão do meu quarto, e eu parecia tão quebrada quanto eles naquele momento.
  — ! — Carter estava do outro lado do meu quarto, parado em frente a minha porta. — Não se mexa. — Balanço minha cabeça, as lágrimas finalmente surgindo.
  — O que você fez? — Era perceptível a preocupação estampada em sua voz, mas eu continuava em choque, nenhuma palavra saia da minha boca.
  Serei eternamente grata por Carter não esperar uma resposta minha, ele simplesmente atravessa meu quarto e me segura com firmeza, fazendo questão de tomar cuidado para eu não me machucar ainda mais.
  Mas talvez o que ele não tinha ideia era de que eu já estava quebrada.

CONTINUA...



Comentários da autora

  N/A: Prontos para algumas reviravoltas na vida da Malia? Já aviso com antecedência, não odeiem ela, mas se odiarem, odeiam com carinho haha.
  Então é isso, nos vemos nas próximas atts.