Ensaio Sobre Ela



Escrito por Ray Dias | Instagram | Twitter
Revisado por Natashia Kitamura

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  03 de novembro de 2019. Nunca mais foi só uma data desde o dia em que entrou em minha vida. E ela entrou derrubando portas, muros, revolvendo os meus mais insanos sentimentos. Trocou os móveis de lugar e cada parte do meu ser. Fez o que ninguém jamais faria, ou conseguiu fazer. chegou do nada, e tão de repente como veio, partiu.
  Três de novembro. Aniversário dela. E eu já havia acordado revirado por saber que data era aquela, mas naquela noite eu não pensaria no passado. Passei todo o dia na universidade olhando para os corredores como se tivesse qualquer vestígio de que ela surgiria ali. A pior arma do ser humano, pode ser a sua memória.

  Naquela mesma universidade, e eu nos conhecemos. Eu, aluno de Literatura, e ela Biologia. Nosso flerte começou pelos corredores, entre um olhar ou outro, até que descobrimos amigos em comum. Mas eu só tive coragem de chamar para sair no dia em que fazíamos o festival da primavera em meu curso, e em cima de um palanque improvisado eu era o declamante do sarau da vez.
   surgiu caminhando em direção à nossa pequena aglomeração e eu nem a vi chegar – era sempre assim – quando ela parou no círculo à frente. Sorriu para mim e colocou os cabelos atrás da orelha, estava atenta. Como se eu tivesse ganhado o motivo do século para declamar cada palavra com todo o meu coração, eu não mais tirei os olhos dela. E todos começaram a perceber que o
declamante enxergava apenas a plateia de um, sob seus olhos. começou a perceber os olhares sobre si e mordeu os lábios constrangida. Antes que se encolhesse de medo ou saísse dali eu desviei o olhar e só a encarei novamente para dizer a verdade que compartilhava em meu coração naqueles versos¹:

“Em um único momento
Eu caí e rolei em sua direção, sem rima e nem razão.
Como a maçã de Newton
Com uma pancada
Com uma pancada dura
Meu coração balançou entre o céu e a terra
Num movimento pendular
Foi meu primeiro amor”

  Desci do palanque sob aplausos e cumprimentei alguns colegas de curso que estavam no caminho, por onde eu ia me direcionando a ela. Todos os olhares estavam sobre mim, mas eu nunca me importei, eu nunca percebi as coisas frívolas. tinha em sua pele um rubor tão belo, que eu poderia emoldurar aquela imagem, e emoldurei no mais íntimo da minha memória.
  — Oi. – falei assim que estava na frente dela.
  — Olá . Foi um belo poema, principalmente o final.
  — O final acabou de ser inventado, porque foi para você.
  — Como? – ela sorriu sem graça, com o rubor ainda maior em seu rosto.
  — Eu preciso, desesperadamente, que você queira minha presença tanto quanto eu não posso mais imaginar um dia sem a tua. Só nós dois, sem nossos amigos para ser um motivo de nos encontrarmos.
  — … – ela riu discreta e confusa: — Eu sou da biológicas, então, eu preciso que você seja mais direto por favor…
  — Vá em um encontro comigo. De preferência para sempre…
  O brilho que surgiu no olhar dela, escondia uma lágrima discreta, que rolou fina e encontrou a ponta do meu dedo. Era inacreditável, mas dizia que aquela era a surpresa mais linda que já havia recebido em um 03 de novembro. Até ali, era uma data qualquer para mim, até entender, que… Não, não era. A data era o marco do dia em que na Terra eu teria uma alma gêmea.

  Então, caminhar por cada corredor daquela universidade onde hoje eu sou professor de História das Literaturas Ocidentais, um especialista não só em minha área, como também um escritor reconhecido no país, mas que até ontem era só um jovem poeta enamorado, não era nada fácil no dia 03. Já não adiantava resistir às memórias, mas eu precisava me concentrar aquela noite no meu ensaio que deveria ser entregue em um mês. O famigerado ensaio sobre o primeiro amor. Minha editora chefe surgiu numa reunião qualquer, me pedindo a tarefa mais difícil que eu poderia cumprir na vida.

  — Um ensaio sobre o seu primeiro amor.
  — Você não acha que vai ser um tanto quanto monótono? Por que não, "o primeiro amor" em si? Sem necessariamente ser o meu.
  — Porque o maior autor de romance romântico e poesia erótica do país é um homem que também nunca mais apareceu com nenhuma mulher, apesar de sua legião de fãs mulheres.
  — Tyna, isso é… – engasguei.
  — Eu sabia que você iria fugir. Mas, … A sua história de amor com a é incrível! Eu sei disso, porque eu estava lá.

  E foi assim que eu estava há dois dias escrevendo um ensaio curto para a semana dos namorados da editora. O Ensaio sobre Ela. E precisava revisar tudo o que tinha escrito até aquele dia, e decidi fazê-lo justamente naquela noite. Mas não dava para me concentrar. Fechei o notebook e caminhei até a varanda do apartamento, e quando olhei para baixo relembrei outro momento de nós dois.

   carregava uma caixa pequena em seus braços, e correu para fora do prédio. Havia acabado de chegar em casa e eu repousava meus olhos no livro que seria a prova da semana. Sorri e me levantei para beijá-la e retirar as suas vestes com resquícios de neve, mas não pude. sempre entrava e saía quando e como queria.
  — Já volto, amor!
  Ela disse com um sorriso calmo, mas um olhar desesperado. Fiquei parado ali, até que decidi ir à varanda. Depois de um tempo, pude vê-la se agachar perto de uma árvore do jardim da calçada do prédio, e em seguida sair correndo até a farmácia da esquina. Desci assustado, mas já imaginava o que poderia ser.
  — ! Está muito frio! O que você está fazendo na rua assim!? Cadê seus agasalhos?
  — Eu vi você trazer a caixa aqui, e imaginei ser um resgate assim que você correu na farmácia. Vamos subir com ele, meu amor.
  — Obrigada, príncipe, eu não poderia deixar esse filhote aqui e… Aaatchim!
  Puxei o corpo de para o meu. Esfreguei seus braços enquanto subíamos, por mais que não fosse necessário, já que ela estava agasalhada e eu não.
  — Podemos ficar com ele, amor? O abrigo está cheio... – dentro do elevador, seus olhos pidões demonstravam o quanto ela desejava aquilo.
  — Eu faço tudo o que você quiser meu amor. – respondi com um beijo leve e um sorriso.
  — Ah, … Você é o melhor! Obrigada por isso! Então agora temos um filho!
  — E qual vai ser o nome dele?
  — Tatalo.
  Abracei-a e olhamos ambos para a caixinha de sapato com o filhote friorento.

  Cuidamos de Tatalo naquele dia e nos outros ao longo da vida de namorados que tivemos, e eu, após tê-la perdido, ainda cuido dele. O miado que o gato soltou foi o sinal de que eu deveria parar de reviver as memórias de alguém que não mais estava ali. Fui até a escrivaninha e desliguei o abajur, a noite fria do dia do aniversário dela era tal qual meu coração, então enrolei-me em cobertores para me aquecer. Eram os únicos que podiam. E fui dormir, era tudo o que eu poderia fazer naquele momento.

  Na manhã seguinte, diferente do que eu imaginava e como tinha sido em todos aqueles anos, as memórias não amenizaram. Diferentemente daqueles três anos e meio, o dia seguinte ao aniversário dela gritava a sua presença em minha face. E o fantasma de perseguiu-me pelas aulas dadas, pelas orientações feitas, pelos momentos sós, e até quando eu estava no banheiro.
  — Professor !? – a voz apressada da aluna me despertou daquelas memórias de novo, pela sei lá quanta vez no dia.
  — Perdoe-me?
  — Está tudo bem com você, ?
  — ?
  — Ah… Desculpe. – a mulher corou e de novo, lembrei de — É que temos a mesma idade, e…
  — Em que posso ajudar?
  Interrompi a conversa de flerte, como tantas outras.
  — Eu gostaria de pedir gentilmente que fizesse uma dedicatória… – me direcionou meu novo livro.
  Apenas sorri e o peguei realizando a dedicatória e agradeci. A aluna e sua amiga que a aguardava puseram-se a se afastar da minha mesa na cafeteria, e eu levantei também. Peguei minha pasta e segui-as para fora dali; após descartar meu lixo, pude ouvir parte do diálogo delas enquanto caminhava um pouco mais atrás:
  — Preocupado? Não, acho que tem a ver com a ex-namorada dele! Ontem foi o dia do aniversário dela, os dois são o casal mais conhecido dessa universidade! Ou melhor, eram… Eles se conheceram aqui e trabalharam juntos até três anos atrás…
  — O que aconteceu?
  — Ela viajou para fazer o doutorado em botânica e desapareceu.
  E imediatamente ao ouvir aquilo, as memórias retornaram enquanto eu caminhava até a sala dos professores:

  — Botânica no Brasil? Você não está pensando em voltar para sua casa e me deixar aqui, não é?
  — Minha casa é onde você está!
  Concordei sorrindo, mas estava preocupado e inseguro. Ainda não tinha ido ao país dela conhecer seus pais, e de repente ela estava voltando para lá, a fim de fazer o doutorado em botânica, sob alguma coisa de espécimes da Mata Atlântica e outras da Amazônia. Tudo o que falava de sua área era confuso para mim, tudo, exceto quando era sobre nós. Nós dois éramos a linguagem que eu melhor conhecia.

  Um colega de departamento saiu da sala dos professores quando eu entrei, e o cumprimentei. Minha expressão mudou ao me ver só. Poderia relaxar e viver o estresse de tantas lembranças, junto a dor. A mesa que ela usava estava agora ocupada por outro profissional, e uma corrente de flashback me tomou, dessa vez mais forte.

  — Lamento muito, ! Não encontraram o corpo de

  Tyna, nossa amiga em comum que havia conversado com a família de , trouxe a notícia aterradora: na viagem, o avião caiu enquanto sobrevoava o Peru e não havia o menor sinal de , como outras poucas vítimas desaparecidas. Eu quis ir direto para lá escavar cada metro de terra com minhas mãos e encontrar meu grande amor, e fui. Mas depois de quatro meses com Tyna implorando para eu aceitar a realidade, e com a família de dizendo para eu confiar que eles iriam me mandar notícias, eu cedi. Voltei ao meu país, e três anos e meio se passaram.
  Senti um bolo na garganta, e o choro veio silencioso, mas muito doloroso, e meu telefone tocou de repente.
  — ?
  — Oi Tyna… – tentei disfarçar a voz.
  — O que houve? Você está bem?
  — São as lembranças que não querem me deixar hoje de novo… É como um castigo para não me esquecer, e eu não quero esquecê-la, Tyna, mas… Por quê?
  — Oh, … Me perdoe! Se eu não tivesse pedido o ensaio para você…
  — Relaxe. – a interrompi — Vai ser uma boa e linda forma de a homenagear, e depois, ele está quase pronto.
  — Bom… Se precisar de algo, me fale! Eu liguei para perguntar do ensaio mas se está quase pronto e se você está assim, melhor deixar para finalizar depois. Precisa de um prazo maior?
  — Não, tudo bem. Entregarei logo.
  Tyna e eu nos despedimos e eu me recompus. Dei as minhas últimas aulas, e segui para casa. Aquela noite, sonhei com . Um sonho confuso, um sonho dela vestida com roupas peruanas, vivendo com povos locais, feliz, e acordei assustado com a imagem dela caminhando até mim no corredor da faculdade.
   era a mulher da minha vida. Eu sempre achei que sem ela eu morreria, que um sem o outro era como não ter oxigênio, mas eu vinha sobrevivendo aquele tempo todo. Foi também que não me fez desistir. A imagem do meu futuro sem ela, destruído, me fazia crer que onde quer que ela estivesse não ficaria feliz. Então dei meu melhor pra seguir a vida como pude.
  A vida é uma roda de bicicleta. Às vezes torta, ainda nos leva a diferentes lugares, mas cambaleantes. Às vezes enfeitada para chamar atenção, dão beleza ao nosso pedalar constante. Às vezes simples como qualquer roda de bicicleta, do tipo de vida comum que a maioria segue. Às vezes girando tão rápida que não se podem enxergar os arames, e transforma tudo numa imagem única, veloz. Como a vida que encaramos como uma corrida atrás do não se sabe o quê.
  A minha vida é uma roda de bicicleta. Sem a , eu não levo ninguém a lugar nenhum, mas como um equilibrista de monociclo eu me levei até onde estou. E não preciso continuar, porque sem a eu não posso ficar.

  03 de novembro de 2020. Eu caminhava cansado, estava exausto do lançamento do livro novo. O Ensaio sobre Ela virou um romance, mais um. E aquele dia foi lançado na editora, mas também num evento especial para os alunos na universidade. Eu havia acabado de sair do auditório, afrouxava a gravata enquanto caminhava rumo à sala dos professores. Queria urgentemente ir embora, mas não pude dar nenhum passo.
  Os cabelos estavam maiores do que eu me lembrava, e a pele bronzeada, mas o olhar… O sorriso… Era a ! Era a ? Tive certeza quando a mulher, largando a bolsa no chão, correu em minha direção ao me olhar. Como em câmera lenta, ela desencostou-se da parede, e olhou em volta, até que me viu e veio para meus braços numa corrida urgente. Eu não consegui mover nenhum músculo! Ela pulou em meu colo e me abraçou com seus braços fortes pelo pescoço, e suas pernas torneadas na minha cintura.
  — Eu estou viva, ! – olhou-me diretamente e beijou o beijo que senti tanta falta — Eu te amo! Eu te amo, entendeu?
  Depois que meu torpor passou, eu consegui finalmente abraçar fortemente o corpo saudoso da mulher que eu amava, e beijá-la com vontade enquanto silvos e gritos de felicidade ecoavam ao nosso redor.
  A vida nos surpreende. Eu só fui compreender tudo aquilo muito tempo depois. O avião de caiu no Peru, e sem memórias ela viveu no povoado onde as pessoas que a socorreram viviam e a ajudaram. Levou dois anos para as memórias ressurgirem aos poucos, e desde então buscava sua verdadeira identidade. Teve alguns lapsos e, em três anos, pôde reencontrar sua família, que explicou quem ela era e que contaram a ela que o rosto do homem com o qual ela sonhava era o meu. Seus pais perderam o meu contato numa mudança, assim como o de Tyna, e por isso não conseguiram avisar que, em 04 novembro de 2019, reencontraram . E nem que ela estava voltando com todas as suas memórias após uma noite de sono onde sonhou que se reencontrava comigo.
  Não sei se foi o universo, a numerologia da data, as orações de anos, o nosso amor ou o meu livro que coincidentemente contava a mesma história vivida por e que eu havia sonhado… mas a vida me devolveu a .

  Hoje, 03 de novembro de 2021, ela está mudando de novo os móveis de lugar, trocando cortinas e cantando sem parar. , a pequena maçã da física do amor que caiu em minha cabeça. , a garota das plantas, a mulher dos meus sonhos, e que por eles foi trazida de volta. A dona de todas a memórias que eu guardei por nós dois, a mãe do gato Tatalo… , a personagem do Ensaio Sobre Ela, o meu maior bestseller… A mulher que está gostosamente preparando a casa para a festa de hoje, em comemoração ao seu aniversário, e quem eu nunca mais deixarei se perder de mim. Pela eu vou até o fim do mundo, mas nunca mais permanecerei distante dela.
  — Aaah! ! Me coloca no chão amor! – ela falou gargalhando ao me ver a colocando em meu ombro e a levando para o quarto: — A festa, !
  — Vai começar agora.
  Falei sussurrando em seu ouvido e tirei meus óculos com cuidado, os deixando sobre um móvel qualquer e trancando a porta do quarto. ruborizou, dessa vez de tesão, e sorriu animada. Olhei para ela com a minha expressão transtornada de pura libido, expressão que ela amava, e fui retirando a calça jeans devagar permitindo-a me analisar seminu, afinal, já não usava camiseta. aos poucos foi caminhando para trás e se sentou à cama, hipnotizada em cada pedacinho do meu corpo. Agachei-me sobre ela e puxei sua cintura a beijando; rapidamente ela entrelaçou minha cintura com as pernas e não havia melhor lugar no mundo para se estar, senão dentro do abraço e das coxas de .

  ¹: poema "Física do Amor”, do dorama Goblin.

"Eu nem vi
Quando você espetou sua casa aqui
Quando você espalhou seu suor em mim
Ameno
E mesmo assim
Eu nem vi
Quando você acordou
As cortinas
Descobriu meu quintal
(...)
Nem vi você chegar
Foi como ser feliz de novo
Ainda faz
Um tempo bom
Pra desperdiçar comigo
Podemos enfeitar domingos" (Cícero)

Fim.



Comentários da autora

  Nota de autora: Oi amoras! Espero que gostem dessa short! Não esquece de deixar um comentário, tá? Isso é um feedback importante demais ❤️ E muito obrigada por sua leitura!