Efeito Colateral
Escrito por Juliana M.
Revisado por Natashia Kitamura
PRÓLOGO
Algumas histórias não começam com amor à primeira vista. Começam com pactos silenciosos, feitos às pressas, sem testemunhas.
, irmão da melhor amiga de , era perspicaz, calculista e acostumado a jogar com as aparências. Sabia que, no mundo em que se movia, lealdade valia mais que palavras, mas menos que intenções.
, herdeira de uma família poderosa e acostumada a controlar cada detalhe da própria vida, escondia sob a determinação uma vulnerabilidade que poucos percebiam.
carregava cicatrizes que ninguém via. guardava batalhas que ninguém entendia. Juntos, inventaram uma história de fachada e, sem perceber, deram ao destino a chance de brincar com o que restava de suas certezas.
E assim, a farsa que os uniu virou rotina. Uma performance tão ensaiada que as falas se confundiam com a vida, e o palco, com a realidade. O que eles não previram foi o efeito colateral: o coração, frágil e teimoso, que começou a escrever sua própria história no meio do que era para ser apenas uma farsa.
A verdade, de repente, tornou-se mais importante que o plano original.
Capítulo Um –
Eu, , achava, no mínimo, interessante – e ultrajante – assistir como os homens pareciam ter tanta dificuldade em ouvir as palavras das mulheres, mesmo quando elas estão em maior número em uma reunião. É surpreendente como eles conseguem se recusar a ouvir os pontos de vista femininos com facilidade, como se as vozes das mulheres fossem naturalmente menos relevantes ou audíveis. Fico me perguntando se isso está relacionado a fatores biológicos ou se é, de fato, uma questão cultural profundamente enraizada.
Eu nunca tive uma postura misândrica, mas comecei a considerar pesquisar mais sobre o tema após uma experiência frustrante: passei quatro horas em uma sala de reunião com sete homens que, deliberadamente, pareciam ignorar as cinco mulheres presentes. A cada intervenção feminina, eles fingiam não ouvir ou rapidamente mudavam o foco, como se nossas opiniões fossem menos relevantes.
Embora eu tivesse uma condição financeira bastante privilegiada, ser uma mulher e ainda por cima, marrom, era motivo suficiente para ser ignorada e desvalorizada em inúmeras situações. A frustração era constante. Mesmo ocupando uma posição de chefia, eu tinha que enfrentar esse tipo de comportamento por parte da população masculina. Sentia que, para ter minhas opiniões levadas a sério, eu precisava elevar o tom de voz, o que não só ia contra minha natureza, mas também era mentalmente exaustivo.
– Rapazes, peço um minuto de silêncio, por favor. – Mal a frase saiu da minha boca, o dedo indicador de um deles ergueu-se como uma faca, ordenando meu calar. Minhas sobrancelhas arquejaram, lentas, enquanto meu olhar – afiado como vidro quebrado – perfurava o homem. Antes, porém, captei os olhares das mulheres à mesa: alguns cheios de fogo, outros de medo, porém, todas me olhavam com estima e esperança de que eu fosse capaz de acabar com aquele desagrado todo. – Senhores, por favor!
Meu corpo ergueu-se da cadeira como um veredito. Fiquei em pé, plantada como uma sentinela, enquanto meus olhos varriam a mesa até que o último murmúrio agonizasse no ar. Infelizmente, aquele silêncio súbito não era respeito, era apenas rendição. O silêncio finalmente se instalou e eu respirei fundo antes de começar a destacar meus apontamentos.
–Observo muitas demandas, mas poucas resoluções concretas. –Eu odiava ter que assumir o papel de chefe, de verdade, mas naqueles momentos, era necessário que eles me vissem no papel de líder, não de herdeira. – Dos dez pontos discutidos hoje, apenas a proposta da senhora Spencer trouxe uma solução viável, que, lamentavelmente, não recebeu a devida consideração. Reitero que a diversidade de perspectivas é um valor institucional desta empresa. Planos serão avaliados por mérito, independentemente de quem os apresenta.
O silêncio que se seguiu foi interrompido pelo senhor Dane, cujo tom desafiava sem confrontar diretamente: – Com todo respeito, diretora, a implementação do plano Spencer exigiria realocação de recursos que...
–Três critérios, senhor Dane. – Interrompi com suavidade. – Eficiência, custo-benefício e alinhamento estratégico. Se sua objeção não contemplar esses fatores, sugiro que a formalize para análise posterior. Spencer! – Chamei e ela, prontamente, levantou-se.
– Com uma equipe enxuta de seis colaboradores, divididos em...
–Aprovado. – Declarei antes que as justificativas técnicas fossem sufocadas por novos debates.– Senhora Spencer liderará o projeto. Dúvidas operacionais devem ser dirigidas a ela. – Fechei minha agenda com decisão e olhei em meu relógio de pulso, notei que já estava quase no fim da outra reunião em que eu deveria estar. – Quero uma pessoa na análise de custos variáveis. Posso deixá-los nas mãos de Alana ou temos mais algum empecilho? – Novamente, apenas murmúrios. – Para mais reclamações e possíveis dificuldades no plano de Alana, falem diretamente com ela ou me enviem por e-mail suas considerações. – Olhei diretamente para o velho Dane, que resmungou bravo.– E com fundamentos, por favor!
Com um breve aceno de despedida, dirigi-me à saída. Ao passar por Alana, pressionei-lhe levemente o ombro, suficiente para transmitir apoio sem afetar sua autoridade recém-estabelecida. Seu sorriso em resposta foi contido, mas os olhos brilhavam com aquela rara combinação de gratidão e determinação que só os verdadeiros talentos exibem ao receberem oportunidades merecidas.
Era a primeira vez que deixava uma mulher da equipe com tamanha responsabilidade, mas ela parecia mais do que pronta para assumir a missão e acatar a oportunidade. Descobriríamos no final do mês se o plano mensal de Spencer seria um sucesso ou não, mas, pelo menos, eu tinha feito minha parte declarando apoio ao meu núcleo feminino da equipe de contabilidade.
Caminhei pelo curto corredor de piso de carvalho e respirei fundo antes de entrar na sala de Ethan, meu parceiro na direção do setor financeiro. Ethan era um cara engraçado quando queria, eu costumava dizer que nós éramos “frenemies”, ou seja, amigos e inimigos na mesma medida. Ele me irritava profundamente e eu o adoecia, como ele mesmo costumava dizer. Mas Ethan era talentoso, não tinha como negar. Por isso, ele foi o único que aceitei dividir a direção financeira da Associados.
Também foi o único funcionário da empresa que eu já havia praticado alguns atos libidinosos.
Foi uma estupidez sem tamanho. Eu cometi o erro de convidá-lo para meu aniversário do ano passado e após muita bebedeira, provocações e uma brincadeira idiota de verdade ou consequência, acabei me agarrando com Ethan atrás de uma árvore no jardim principal do hotel. Aconteceu uma única vez e nós fizemos um pacto silencioso de nunca mais falar sobre aquilo, nem entre si, nem com terceiros.
Ele apenas acenou com a cabeça quando me viu chegar, sem parar de digitar algo e conversar com a tela do computador, provavelmente preparando alguma objeção cáustica aos meus últimos relatórios. Sentei-me próxima a ele, mas afastada da câmera do eletrônico. Não demorou muito para que eu percebesse que Ethan estava enrolando aquela situação além do necessário.
“Nós iremos comprar os novos softwares de qualquer jeito, por qualquer preço, para quê barganhar ainda mais?”, avaliei mentalmente, “Céus, esses caras daqui acham mesmo que meu tempo não é dinheiro”.
Balançando os braços com discrição, comecei a chamar a atenção de Ethan por trás das telas. Ele ergueu os olhos com visível incômodo, pediu licença aos investidores do outro lado da videoconferência e me encarou com um tédio que quase transbordava pela tela, antes de silenciar o microfone.
– Ethan, feche o negócio. – Murmurei, enquanto guardava meus papéis na bolsa-pasta, pronta para sair dali o mais rápido possível.
Eu já havia enfrentado duas reuniões longas naquela manhã e outras três me aguardavam. Eu só queria ir para a quietude e tranquilidade da minha sala. Ou pelo menos, dez minutos longe de argumentos masculinos travestidos de estratégia.
– Podemos conseguir por menos.
Revirei os olhos. Estava exausta demais para bancar a chefe insuportável outra vez, mas, ainda assim, vesti esse figurino pela última vez no dia.
– Estou de saída. Quero os contratos prontos para revisão sobre minha mesa quando eu voltar. – Disse com firmeza.
– ...
– Ethan, temos capital suficiente para pagar essa bagatela. – O interrompi antes do homem começar suas lamúrias que não faziam sentido para mim, uma pobre mulher determinada a chegar em sua sala antes do horário do almoço.
– , eu só estou sendo cauteloso. – Ele rebateu, como se explicasse pacientemente para uma criança.
Homens…
– Não se preocupe. Cautela é meu trabalho. – Peguei o relatório que eu mesma havia finalizado na madrugada anterior, com todas as análises e projeções já revisadas e entreguei direto em suas mãos. Como Alana Spencer, eu também sabia muito bem o que estava fazendo. – Já fui cautelosa por você.
Saí da sala sem olhar para trás. Eu era confiante, mas não o bastante para encarar o olhar fulminante que Ethan provavelmente estava me lançando naquele momento.
Infelizmente, trabalhar em um escritório com mais de dez homens significa, quase inevitavelmente, ser rotulada de arrogante. Mas a verdade é que essa "arrogância" nada mais é do que um mecanismo de sobrevivência. Se você vacilar, se demonstrar qualquer sinal de vulnerabilidade, eles sentem o cheiro. E quando sentem, não hesitam: te devoram viva. É por isso que, às vezes, eu precisava me impor além da conta – falar mais firme, mais alto, mais direto – só para ser ouvida.
Claro que isso me custava olhares enviesados e comentários sussurrados em reuniões.
Ethan, apesar de – nos raros momentos em que baixava a guarda – ser divertido, era o tipo de cara que vivia tentando me podar, como se estivesse o tempo todo numa competição velada que só ele participava. Sempre querendo pensar à frente, falar mais rápido, parecer mais inteligente. E, é claro, nunca perdia a chance de me lembrar que ele sabia o que estava fazendo. Como se eu não soubesse.
O que me deixava mais irritada nem era o comportamento dele em si, era o fato de ele ignorar completamente o detalhe de que eu era neta do dono. Netinha do patriarca. Herdeira da dinastia . Pelo amor de Deus, o que aconteceu com o respeito pelo bom e velho nepotismo capitalista?
A história da começou bem antes de qualquer um desses engravatados aparecer com suas planilhas de Power BI. Logo após a Segunda Guerra Mundial, num porão sujo em alguma rua esquecida de Mumbai, meu bisavô Jampur inventou uma broca metálica de pouco mais de dez centímetros para ajudar um vizinho a montar um carrinho de mão. A peça, que mal chamava atenção, acabou se tornando um marco no automobilismo.
Dada, que não era nenhum bobo, enxergou ali uma oportunidade. Começou a vender a tal broca para fabricantes de carros de corrida, alguns pequenos, outros bem grandes, tipo a McLaren e a Peugeot. Foi o suficiente para consolidar a no mercado por décadas.
A cada vez que alguém em algum canto do mundo decidia usar a broca patenteada pelo meu Dada, um depósito generoso pingava na nossa conta. Era quase poético.
Claro que os tempos mudaram. Hoje, o setor busca por materiais mais leves, mais rápidos, mais tecnológicos. A já não está no topo da lista, mas ainda mantém um bom lugar entre os grandes. O suficiente para garantir conforto à nossa família e estabilidade à empresa. Nossa filosofia sempre foi clara: lucro e segurança acima de ambição desenfreada. E sinceramente? Eu preferia assim.
Isso me dava liberdade. Eu podia trabalhar sem me arrastar até a exaustão, ao contrário de outras empresas onde os executivos pareciam estar a um passo do colapso nervoso. E, melhor ainda, podia me dar ao luxo de manter alguns pequenos vícios.
Como comprar Louboutins. Só por diversão.
Como uma das diretoras financeiras da empresa, minhas responsabilidades iam muito além de revisar relatórios e corrigir planilhas no automático. Havia dias, como hoje, em que eu precisava negociar contratos, contratar serviços externos ou até supervisionar a venda de alguma unidade do grupo. Cada decisão fazia parte de uma engrenagem maior: o crescimento estratégico da empresa.
Além disso, eu e Ethan éramos responsáveis por criar e revisar estratégias, coordenar equipes e manter a saúde financeira do negócio. E, justiça seja feita, apesar das nossas divergências ocasionais, nós éramos uma dupla eficiente. Quase todas as estratégias que traçávamos davam certo. Modéstia à parte, éramos bons.
Apesar de meu mestrado em Contabilidade e Estatística deixar claro que meu maior defeito era ser uma grande nerd indiana, eu deveria ter escutado meus pais e ter feito alguma faculdade que envolvesse gestão de pessoas, mas fazer o quê, gosto de números.
Cheguei à minha sala quase correndo, saboreando o gostinho da liberdade, mesmo que por apenas alguns minutos. Mal fechei a porta e já arranquei as sapatilhas dos pés como se fossem algemas, jogando-me no pequeno sofá. Eu já tinha esgotado toda a minha cota de energia antes mesmo do fim da manhã, tudo o que eu queria era me desligar do mundo.
Ficar ali, jogada no sofá, jogando Candy Crush e vendo vídeos aleatórios recomendados pelo algoritmo do Instagram. Foi exatamente o que fiz, durante uma hora inteira. Uma hora que eu insisti em fingir que era meu horário de almoço, mesmo não tendo comido absolutamente nada.
A verdade é que eu só queria, por pelo menos sessenta minutos, não pensar em dinheiro, planilhas, estratégias, contratos ou qualquer coisa que justificasse o depósito no fim do mês. Só uma hora em que eu pudesse simplesmente existir, sem precisar produzir nada. Nada além de talvez uma pontuação ridícula no Candy Crush.
Eu queria ter nascido para ser herdeira, não uma trabalhadora. Daquelas legítimas, com vocação mesmo. Há herdeiros que nasceram para serem herdeiros.
Minha mãe, Anjali, por exemplo, tinha a palavra herdeira estampada em cada célula do corpo. Ela vivia em função disso, como se fosse um cargo oficial com benefícios e plano de carreira. Minha prima Kala também herdou esse talento. Meu primo Abu? Outro exemplo vivo de como é possível passar uma vida inteira entre brunches e partidas de tênis sem sentir um pingo de culpa.
Já eu... Eu nasci com os genes trabalhadores do meu dada Jampur, e, infelizmente, nenhuma inclinação natural para tardes ociosas em clubes de campo. Enquanto eles dominavam a arte de não fazer nada com maestria, eu sonhava com o luxo de não ter que justificar cada segundo do meu dia com produtividade.
O toque do celular me despertou de um cochilo involuntário. Atendi sem nem olhar a tela, pelo toque exclusivo, já sabia exatamente quem era.
– Estou dormindo. – Murmurei, ainda de olhos fechados.
– No meio do expediente? Duvido muito! – A voz debochada de Nina veio carregada de desconfiança e sarcasmo, como sempre.
Nina era minha melhor amiga desde os dezesseis anos. Estudante de direito, linda, com a pele parda, traços finos e um cabelo cacheado de dar inveja até em comercial de shampoo. A gente se conheceu quando fui transferida para a escola dela no meio do ano letivo. Eu era a garotinha indiana deslocada e ela foi a única que me recebeu com um sorriso no rosto.
Desde então, éramos inseparáveis (na medida do possível, claro, considerando nossas rotinas insanas).
– Quando você começar a trabalhar, vai entender do que eu estou falando. – Resmunguei, me espreguiçando e sentando no sofá enquanto bagunçava os cabelos. – O que você quer?
– Grossa. Eu queria escutar sua voz… – Revirei os olhos e fiquei em silêncio, esperando a retratação daquela desculpa idiota. – Tá, nem eu acreditei nessa. – Nina soltou uma risada divertida. – É que a gente tinha combinado de jantar hoje, lembra? Mas eu não vou poder ir.
– Nina! – Reclamei, sentindo o incômodo se instalar. – É o terceiro jantar que você cancela. Eu quase não a vi esse mês. O que está acontecendo?
– É–ér… eu sei, . – Nina gaguejou, e eu quase pude vê-la do outro lado da linha enrolando o dedo em algum cachinho perdido das suas longas madeixas, como sempre fazia quando estava nervosa.
– E amanhã?
– E–eu também não posso… – Bufei, frustrada. – Eu juro que vou compensar você! – Ela apressou-se em dizer, como quem tenta evitar uma bronca. – Posso fazer um almoço para você no sábado que vem, que tal? – Ela sugeriu como se eu tivesse alguma opção além de aceitar.
Os sumiços de Nina tinham se tornado frequentes. Eu já vinha notando isso há alguns dias. Claro, nem sempre a gente conseguia se encontrar toda semana, mas nos esforçávamos para, pelo menos, manter nossa tradição quinzenal. A minha rotina insana e a vida de estudante dela nunca foram as mais compatíveis, mas sempre dávamos um jeito.
– Não é como se eu tivesse escolha, né, doutora? – Brinquei. – Como você está, ladki? – Chamá-la de menina em hindi era quase um código nosso. Ela sempre ria quando eu fazia isso.
– Um pouco nervosa com as provas… Coisas de universitário, você sabe como é. – Respondeu com uma risadinha leve, mas com um fundinho apreensivo.
– Nina, você está mais do que pronta. Não é como se você não fosse a mais inteligente da sua turma.
Do outro lado da linha, ela riu. E, por um momento, senti que tudo estava em seu devido lugar. Fazer Nina rir era meu pequeno grande propósito. Eu ia continuar, mas três batidas secas na porta me interromperam. Nina também ouviu.
– Acho que o trabalho está te caçando, . Vai lá ser incrível! A gente se vê no sábado?
Me levantei do sofá e fui em busca dos meus sapatos, sabendo bem o que aquelas batidas impacientes na porta significavam. Meu tempo de paz tinha acabado. A me chamava de volta para o furacão de responsabilidades que, entre resmungos e suspiros, eu fingia odiar… mas, no fundo, adorava.
– Pode entrar. Oi, Kacey.
– Oi, eu trouxe café. – disse Kacey, levantando os dois copos como se fossem troféus, com um sorriso animado no rosto.
Kacey era uma daquelas pessoas que você conhece no trabalho, troca meia dúzia de palavras na hora do almoço e, quando menos espera, já está contando segredos enquanto toma cerveja barata no sofá da sala. Era uma loirinha magra, com energia de sobra e sempre disposta a dar risada. Nosso convívio aumentou bastante depois que ela foi promovida no setor de publicidade e tivemos que participar juntas de um workshop enfadonho promovido pela direção geral.
– Você acaba de salvar meu almoço. – Murmurei, aliviada, e a abracei de leve antes de dar um longo gole no café expresso.
– Ué, você ainda não almoçou?
– Nem tempo, nem coragem de levantar daqui.
– Estava um burburinho danado no refeitório hoje... Falaram que a Alana foi nomeada como encarregada do mês e que foi você quem bateu o pé por ela. – Disse, sentando ao meu lado com o tom cúmplice de quem traz uma fofoca fresca. – Isso aí, girl power! – Completou, erguendo o braço e mostrando o bíceps em alusão a figura histórica da mulher feminista.
– Ah, não foi nada demais. Você sabe como o povo adora exagerar. – Dei de ombros. Como se apoiar outra mulher no ambiente de trabalho fosse uma grande revolução feminista, e não o mínimo de decência humana. – E aí, o que temos para hoje?
– De fofoca? Hmm… – Kacey tamborilou os dedos no queixo, dramatizando a busca mental por informação. – Ah! Carl, do jurídico, está traindo a esposa.
– De novo?
– Pela terceira vez! E, aparentemente, com uma estagiária nova, que nem sabia que ele era casado.
– Meu Deus, esse homem está sempre em modo autodestruição. Ele devia colocar isso no currículo.
Era nesses pequenos momentos com Kacey que meu dia se equilibrava. O caos continuava lá fora, mas por alguns minutos, sentadas no sofá com café e conversas fúteis, parecia que tudo dava um tempo de respirar.
– Pois é, dessa vez com a ruivinha da secretaria. Paolo conseguiu uma nova campanha publicitária. E... ah! Eu vou a um encontro hoje. – Kacey disse, empolgada, com aquele brilho nos olhos que só quem está apaixonada sabe ter.
– De novo? – ergui uma sobrancelha. – Olha só, resolveu sair da abstinência, hein?
– Já estava mais do que na hora. – Ela deu de ombros. – Andy, o cara com quem estou saindo, me pediu para levar uma amiga para um amigo, tipo um encontro duplo. Mas falei para ele o quanto é difícil encontrar alguém disponível tão em cima da hora. Até conversei com a Lina do quarto andar, mas ela disse que não podia ir hoje.
– Encontro às cegas, Kacey? Isso funciona? – Perguntei, curiosa, mas também com um toque de ceticismo. Nunca tinha acreditado muito nessa história de encontros às cegas.
– Foi assim que eu conheci o Andy. É o nosso terceiro encontro e até agora está tudo bem. – Ela sorriu. – Quer tentar?
Engasguei com o café e comecei a tossir, espantada com a sugestão de Kacey.
Eu não ia a um encontro desde o meu término de namoro, e algo me dizia que um encontro duplo, com um cara que eu nunca vi na vida, não era exatamente o tipo de experiência que eu precisava para voltar à “vida ativa”.
– Nem pensar, me parece a maior roubada. – Refleti em voz alta, enquanto Kacey tirava o celular do bolso e começava a digitar rapidamente.
– Pronto, já está marcado. – Ela disse, com um sorriso travesso.
– O quê?! – Gritei, quase arrancando o celular dela da mão. Li a mensagem que ela acabara de enviar: “Tudo certo para hoje? Vou levar uma amiga, avise ao .” – Ficou maluca, loira? Eu disse que não! Isso é loucura.
– Como você sabe se nunca foi em um encontro duplo? E, além disso, faz quanto tempo que você não sai de casa e vai a um encontro de verdade?
– Eu não sei, Kac, talvez alguns meses. – Respondi, ainda em choque. – Mas ir a um encontro arranjado com um cara que nunca vi me parece tão, sei lá, anos 90.
– A primeira vez que fiz isso achei uma loucura. Tipo, existe o Tinder! – Ela riu, lembrando do que parecia uma época distante. – Mas depois percebi que é muito mais agradável e divertido do que pensamos. O que me diz?
– Eu digo não. – Reafirmei, sem hesitar, como se fosse uma questão de sobrevivência.
Encontros previsíveis já eram um desafio para mim, então lidar com algo totalmente imprevisível? Nem pensar. Isso definitivamente estava fora de cogitação.
– . Eu já confirmei com eles, você vai ter que ir. – Kacey insistiu, batendo as unhas na tela do celular com a mesma determinação de sempre.
– Você não disse meu nome nem nada, Kac. Procure outra pessoa, garanto que será melhor. – Respondi, já cansada dessa conversa, mas Kacey não estava nem aí. Ela levantou do sofá, jogou o copo de café vazio na lixeira e se encaminhou para a porta. – Ué, aonde você vai? Vai me deixar falando sozinha? – Chamei, indignada.
– Preciso trabalhar, a chefe aqui é você. – Ela brincou, jogando um sorriso travesso por cima do ombro. – Tente se animar para hoje.
– Eu não vou!
– Passo aqui às oito. Esteja pronta.
– Não tenho roupa! – Olhei para baixo, para meu vestido sem graça de ambiente corporativo. – Você espera que eu vá em um encontro usando isso?
– Não era você que não ia? Por que a preocupação com a roupa então? – Antes que eu pudesse responder, ela desapareceu pelo corredor, deixando apenas um"Te vejo às oito, beijos!"ecoando no ar.
Eu fiquei lá, sentindo uma onda de irritação me percorrer. Balancei a cabeça, ainda incrédula com a habilidade de Kacey. Como diabos aquela loirinha tinha me enrolado tão fácil?
A ideia de me expor a um encontro com alguém completamente desconhecido, especialmente em um dia de semana, era algo que ia contra meus hábitos normais. No entanto, por algum motivo, eu estava bastante tentada a ir.
Sentada em minha mesa de trabalho, rodeada por relatórios trimestrais, fui atingida por uma realidade incômoda: eu era a única no grupo sem histórias divertidas para contar nos happy hours. "Alguém já ouviu falar do novo sistema de classificação de despesas que implementei?" não era exatamente o tipo de assunto que fazia os olhos das pessoas brilharem de empolgação.
E, sejamos sinceras, até eu mesma preferia ouvir as histórias de encontros desastrosos, os beijos inesperados, ou os "quase lá" que deixavam todo mundo suspirando de desejo. Euadoravaessas fofocas. Vivia vicariamente através dos "quase lá" alheios, das paixões repentinas, dos desastres amorosos que faziam todos rirem. Enquanto isso, minha contribuição para as conversas se limitava a... auditorias bem-sucedidas.
Foi pensando em dar um pouco de entretenimento para as poucas amizades que eu tinha, que, pouco antes das oito da noite, decidi me preparar. Com um suspiro resignado, me arrastei até o banheiro do escritório, meu kit de maquiagem minimalista em mãos. O batom vermelho era meu único toque de ousadia em meio a toneladas de neutralidade corporativa.
Quanto ao resto? Bem, meu vestido cinza-tijolo continuaria tão emocionante quanto um relatório de despesas, mas os saltos pretos guardados na gaveta – aqueles reservados para clientes particularmente chatos – ao menos me fariam sentir um pouco menos... , Diretora Financeira, e um pouco mais , mulher de 29 anos que ainda sabia se divertir.
A cabeça loira de Kacey surgiu como um raio solar contra minha porta de vidro fumê. Antes que eu pudesse protestar novamente, estávamos mergulhadas no trânsito caótico do centro. Durante o trajeto, passei o tempo todo reclamando do modo traiçoeiro como Kacey tinha conseguido me convencer a estar ali, em uma situação que eu nunca teria imaginado.
Chegamos quase atrasadas devido ao trânsito caótico do horário de pico e logo fomos em direção à mesa reservada no andar superior do local.
– Olha, aquele ali é o Andy. E ao lado dele, está o seu cara. – Kacey apontou, entrelaçando o braço no meu.
Senti minha ansiedade pulsar de forma inconveniente ao olhar para os dois homens, que estavam a alguns metros de distância. Normalmente, eu não tinha problemas com homens e nunca ficava nervosa, mas desde o meu término, uma insegurança constante havia se instalado em relação à minha vida amorosa e todas as minhas relações íntimas.
– Meu cara. – Murmurei, descrente, ao ouvir a forma como ela me apresentou o meu acompanhante da noite.
Os dois estavam conversando perto do bar e da mesa reservada para o grupo. Conforme nos aproximávamos mais, o rosto de Andy ficou visível para mim, mas o tal "meu cara" ainda estava de costas, e eu não conseguia vê-lo. Kacey deu uma corridinha animada até o rapaz e o abraçou, empolgada.
– Desculpe o atraso. Congestionamento. – Ela explicou, sorrindo.
– Sem problemas, acabamos de chegar. – Ele se virou para mim e estendeu a mão, sorrindo. – Oi, sou Andy. Esse aqui é o .
Virei meu corpo ao mesmo tempo que ele, estendendo a mão para cumprimentá-lo, mas recuamos assim que, finalmente, nossos olhos se encontraram.
– Ant! – Exclamei, surpresa, arregalando os olhos.
. O irmão mais novo de Nina. Uma presença insistente em todas as fotos amareladas da minha adolescência. Sempre ali, nos cantos das lembranças, com aquele sorriso e olhar que parecia enxergar mais do que deveria.
– ?!
– Ué, vocês se conhecem? – Andy perguntou, surpreso.
– Há mais de dez anos. – suspirou antes de me puxar para um abraço rápido. – Oi, .
– Como você vem a um encontro e sequer pergunta o nome de quem vai ser seu par? – Reclamei, insatisfeita. – Teríamos evitado essa situação se você tivesse sido decente.
– Você fez exatamente a mesma coisa! Sabia que vinha me encontrar?
– Sabia que viria encontrar um . Existem milhões! Qual sua desculpa?
– E daí? Sabe quantas mulheres se chamam ?
– Na Índia? Muitas. Aqui? Menos de vinte. – Respondi com um sorriso irônico, cruzando os braços, desafiando-o.
–Estatisticamente improvável! – Andy riu, interrompendo nosso duelo de olhares. Ele se inclinou para Kacey, sussurrando algo em seu ouvido. Eu e nos entreolhamos rapidamente, mas logo voltamos a atenção ao casal à nossa frente.
– Bom, já estamos aqui, vamos jantar. Kac, você pode pegar aquela mesa para nós? – Andy pediu à loira, que olhou rapidamente para mim, buscando uma confirmação antes de se afastar. – Escutem, estive pensando... Já que vocês se conhecem, tem problema se sentarmos em mesas separadas? Eu queria ficar um pouco sozinho com a Kacey.
– Sem problemas, cara. – garantiu, apertando o ombro de Andy, em um gesto amigável.
– Eu só quero jantar. – Dei de ombros, lançando um olhar de soslaio para , os braços ainda cruzados. – Já estamos aqui mesmo.
– Se você pagar.
Claro. A típica provocação de . Desde os tempos da escola, ele implicava comigo e com minha condição financeira, sempre com aquelas piadinhas baratas sobre eu ser mimada ou metida demais para o meu próprio bem. O pior? Ele nem estava totalmente errado.
– Atrevido. – Respondi, empurrando de leve seu ombro ao passar por ele, tentando disfarçar o sorriso que ameaçava escapar.
Fomos guiados pela recepcionista até o espaço externo do restaurante, uma grande sacada no segundo andar com mesas espalhadas e uma vista surpreendentemente bonita da cidade. Apesar do barulho constante do trânsito lá embaixo, o ar fresco e o brilho dos postes conferiam um charme meio caótico à cena.
– Então... – Ele puxou minha cadeira com um gesto cuidadoso, quase antiquado. – Já que estamos condenados a jantar juntos...
– "Condenados" é a palavra certa. – Resmunguei, afundando na cadeira. Meus saltos bateram no pé da mesa, num ritmo impaciente. – Você podia ter perguntado.
– E você podia ter dito não para Kacey.
Ficamos em silêncio por alguns segundos. Eu mexia no guardanapo, enrolando as pontas entre os dedos, envergonhada demais para puxar assunto. Sabia que minha timidez não me deixaria tomar a iniciativa, e, por sorte ou misericórdia, percebeu isso. Suspirou como quem aceita um fardo divertido e quebrou o silêncio com casualidade.
– Então... quer dizer que os agora andam frequentando encontros às cegas? – A provocação veio com um sorriso enviesado.
– Assim como os , pelo visto. – Respondi, folheando o cardápio em busca de qualquer coisa que me distraísse da curva do sorriso dele.
– Ah, mas nós sempre fomos românticos incuráveis. – Havia uma pontinha de ironia ali, mas ele manteve o tom leve. – Já vocês, ...
– Ant, não faça eu me arrepender de pagar esse jantar para você. – Levei a mão à testa, massageando as têmporas como quem precisa de paciência extra.
Tudo isso enquanto tentava ignorar o fato inegável de que estava ainda mais bonito do que eu lembrava.
Na verdade, ele sempre fora bonito. Mas, de uns tempos para cá, parecia ter descoberto isso e decidido usar como arma. Eu dizia isso de forma completamente imparcial, claro. Só mencionava o fato ocasionalmente para Nina, só para irritar. Ela detestava que eu comentasse sobre o quanto o irmão estava gato. E, por isso mesmo, eu não perdia a oportunidade.
Meus olhos traíram-me, escorregando para seu rosto, que havia evoluído de "bonitinho" para algo perigosamente atraente nos últimos anos.
– Tá bem, fico quieto. – Ele ergueu as mãos em rendição, mas o olhar permaneceu desafiador. – Afinal, não é todo dia que tenho a honra de um encontro com a grande . – Jogou as palavras com aquele tom casual demais para ser só brincadeira.
– Deixou de ser um encontro no momento em que você nem se deu ao trabalho de perguntar meu nome, bonitinho. – Lancei um olhar afiado por cima do cardápio, tentando ignorar o calor súbito nas bochechas.
– Se eu tivesse chegado aqui sabendo que você era você, ainda contaria como um encontro? – Ele apoiou os cotovelos na mesa, me encarando. Ergui o rosto, arqueando uma sobrancelha. – ... – Murmurou, como se saboreasse o nome.
– Você tem um fraco pelo sobrenome , isso é óbvio. – Estendi o cardápio na direção dele, desviando o olhar. Precisava de um escudo visual contra aquele olhar charmoso demais. – Espero que você deixe claro para Kiara que tudo isso foi um grande mal-entendido.
Observei seus ombros enrijecerem no exato momento em que ele passou os olhos pelo cardápio. O silêncio que se seguiu foi incômodo.
, além de irmão da minha melhor amiga, era também o namorado da minha prima, Kiara. Nina e Kiara, que se conheceram através de mim, se encontraram em uma festa, onde também estava presente. Nina os apresentou e o resto é história. Eu sabia que eles estavam juntos desde então, mas nunca me importei.
Além de não ligar para e seus casos de amor recorrentes, eu e Kiara tínhamos uma relação... fraternalmente venenosa, digamos assim. Ela me irritava desde sempre. E eu, por minha vez, fazia questão de continuar retribuindo o carinho.
– Sobre a Kiara... – Ele começou, e eu logo pensei: Lá vem bomba. – A gente terminou. Já tem alguns meses, para falar a verdade.
– Oh. Desculpa, Ant. Eu não sabia. – Foi sincero. Eu realmente não fazia ideia.
Nina sempre comentava o fato dos dois serem um casal inseparável e perfeito, o que me causava repulsa. Não por , claro. Eu nunca tive nada contra ele, Ant sempre foi educado e gentil comigo, meu problema sempre foi Kiara.
Kiara e sua síndrome de pobre menina rica. Kiara e sua vontade de sempre ser ou parecer superior a mim. Kiara e seu nariz perfeito e arrebitado.
– Tudo bem, sem problemas. Achei que você soubesse. – Ele levantou o braço e chamou a garçonete. – A Nina não comentou?
– Comentários sobre a vida da Kiara entram por um ouvido e saem pelo outro. – Revirei os olhos de forma tão escancarada que ele riu. Se ele quisesse falar mal dela, estava liberado. Aliás, seria um presente.
– Ah, é! Vocês se odeiam. – Ele deu uma risadinha leve, enquanto a garçonete se aproximava e anotava nossos pedidos.
– Eu não odeio ninguém. – Dei de ombros. – Ela é que não sabe lidar com as dores e delícias de ser uma . – Balancei os cabelos de forma teatral.
– , você é orgulhosa demais para o seu próprio bem. – Ele balançou a cabeça, ainda rindo.
– Quem disse isso? Kiara? – Ele assentiu, mastigando um pedaço de sua tortilla. – Ela não sabe nada sobre mim.
pareceu ponderar sobre a minha afirmação por um segundo.
– Na verdade, nenhum de nós sabe nada um do outro.
Não tive como discordar. Aquela era, de fato, a primeira vez que eu trocava mais de dez palavras seguidas com , mesmo com todos os anos de convivência indireta. Tudo o que eu sabia sobre ele vinha de comentários soltos da Nina. Quanto à Kiara... bom, ela nunca demonstrou o menor interesse em me conhecer de verdade, então eu também nunca fiz questão de deixá-la entrar na minha vida.
– Posso perguntar o que aconteceu? – Soltei, antes que meu bom senso me impedisse. Soou intrometido, mas meu espírito fofoqueiro já estava na frente, todo empolgado com o possível plot twist daquele casal que parecia inabalável.
– Eu também não sei. – Ele suspirou, pensativo, antes de continuar. – Ela pediu um tempo. Depois, pediu mais um tempo. E mais outro. E quando eu achei que a pausa fosse acabar, ela só disse que não sentia mais o mesmo por mim.
– Sinto muito. Você merecia uma explicação melhor.
– Nah, você só está dizendo isso porque é a Kiara. – Ele soltou uma risada baixa, negando com a cabeça.
– Sim, óbvio! – Rimos juntos. – Mas, sério, é melhor não comentar nada disso com ninguém. Se a Kiara descobrir que a gente jantou junto, mesmo sem planejar, vai surtar. Vai dizer que eu corri atrás de você. Não é que eu me importe com a opinião dela, mas... estou sem tempo – e paciência – para lidar com as grosserias dessa garota.
– Quando começou? – Perguntou de repente, com uma sobrancelha arqueada. Franzi o cenho, sem entender de imediato. – Esse ódio mútuo entre você e a Kiara.
Fiquei em silêncio por alguns segundos, realmente pensando na resposta. E quando falei, fui tão honesta que nem eu mesma esperava.
– Quando a gente cresceu... e ela ficou mais bonita do que eu.
soltou uma gargalhada tão espontânea que eu quase me assustei. Era a primeira vez que eu o via rir daquele jeito.
Kiara sempre foi pequena e bonita, com um rosto delicado, poucas expressões faciais. Delicada e graciosa, do jeito que minha mãe sempre sonhou que sua única filha fosse. Mas a mãe de Kiara era americana e, além dos traços indianos fortes, ela herdou o nariz delicado e europeu.
Se minha mãe quisesse uma filha com beleza de capa de revista, teria caçado um estrangeiro também, como o pai de Kiara fez. Mas não. Ela escolheu Adit , o mais indiano dos indianos. O resultado? Eu nasci grandalhona, com cabelo demais, expressões fortes e uma aparência orgulhosamente indiana. E tudo bem. Ou quase.
Aos dezenove, tomei uma decisão que muitas meninas indianas – ou, pelo menos, algumas – sonham em tomar: coloquei silicone. Nada exagerado, só o suficiente para aposentar, de uma vez por todas, a reputação de "-sem-peito" que me perseguiu por toda a adolescência.
Eu achava que não adiantava nada ter quadril e coxa se o decote parecia um campo plano. Então dei uma ajudinha ao meu corpo nesse pequeno "defeito de fábrica". A cintura, eu consegui resolver na base da academia e da dieta. Mas peito... peito só no bisturi.
A gora, quase chegando aos trinta, eu não me arrependia da mamoplastia, mas talvez, hoje em dia, não colocaria. A moda dos peitos naturais – que não tinha naquela época – me atraiam bastante, porém, não dá para negar que eu amava ver como minhas roupas sempre vestiam bem no decote, não importava o tipo de corte.
– Você não pode estar falando sério. – arqueou uma sobrancelha, descrente.
Claro que havia muito mais por trás da história, mas eu não estava nem um pouco inclinada a abrir o jogo com alguém que, até pouco tempo, dormia na mesma cama que minha arqui-inimiga.
– Acredite ou não, foi assim que tudo começou. Isso... e o fato de que ela me chamou de fascista quando comecei a trabalhar na .
– Uau. – Ele soltou uma risada surpresa. – Que extremo.
Observei seu rosto enquanto o garçom nos servia os pratos. Ele parecia genuinamente intrigado e talvez um pouco impressionado.
– Pois é. Inacreditável que ela nunca tenha te contado sobre as nossas brigas épicas. – Falei, com um toque de dúvida. Eu conhecia Kiara o suficiente para saber que, se tivesse tido a chance de me pintar como a vilã da história, ela teria feito isso com prazer e riqueza de detalhes.
– Ela comentou algumas coisas, sim. Mas, sinceramente? Nunca acreditei cem por cento. – sorriu. – Você não me parece ser fascista... só rica. – Mordi o lábio, tentando conter o sorriso que ameaçava escapar. Não consegui. Abaixei a cabeça e comecei a mexer na comida, fingindo concentração no prato enquanto sentia o calor subir pelas bochechas. – Estou curioso. O que fez você topar um encontro às cegas? Você não é do tipo que faz essas coisas.
– E como você sabe o que eu faço ou deixo de fazer? – Rebati, lançando um olhar de soslaio.
– Acho que sei o que você não faz. Ou o que costuma evitar. – Ele deu de ombros, mas coçou a cabeça ao perceber que talvez estivesse errado. – Pode ser só impressão, mas você não parece ser muito fã desse tipo de programa.
– Eu também achava que você não fazia coisas assim... meio incomuns para os tempos modernos. Mas veja só: cá estamos nós.
– A vida fica mais interessante quando a gente tem histórias diferentes para contar. – falou com um encolher de ombros despreocupado, e eu assenti, surpresa por concordar. Enquanto eu tinha pensado nisso apenas por um momento naquela tarde, parecia viver por esse lema há anos. – Além disso, vai ser divertido contar para Nina como eu acabei num encontro com a melhor amiga dela.
Minha expressão deve ter denunciado o pânico que me atravessou.
– Se a Nina descobre isso, ela me apaga da vida dela em dois segundos. Você sabe o quanto ela é superprotetora com você.
– O que, aliás, é totalmente sem noção. – rebateu, fazendo uma careta que o deixou com cara de garoto emburrado. – E além do mais... não é um encontro de verdade.
Ah. É mesmo, pensei, mordendo por dentro da bochecha, um pouco envergonhada por ter esquecido desse detalhe por alguns minutos.
– Bom, não vamos brincar com fogo... – Tomei um gole da bebida, tentando disfarçar o fato de que minha boca estava seca demais e aquilo não tinha nada a ver com comida apimentada.
– Tem medo de se queimar, ?
continuou comendo como se nada estivesse acontecendo, mas seu tom provocativo causou um arrepio sutil pelo meu corpo. Os olhos verdes de cintilavam em minha direção despretensiosamente e isso já era o suficiente para que eu me questionasse se aquele não-encontro era uma má ou boa ideia.
– Não tenho medo da queimadura em si, – Respondi, pousando o copo na mesa – só dos efeitos colaterais que ela pode causar.
– Ժ –
No dia seguinte, precisei de uma força sobrenatural para controlar meu próprio impulso e avidez por fofoca e não contar a Nina sobre a coincidência maluca na noite passada envolvendo seu irmão.
Jantar com foi mais leve e divertido do que eu esperava. Nunca havíamos passado tanto tempo a sós, mas foi surpreendente perceber como a conversa fluiu com naturalidade, como se fôssemos velhos amigos (embora, na prática, fôssemos apenas conhecidos de longa data).
Ao final da noite, percebi uma mudança no modo como ele me olhava.
me tratava com certa ironia, carregando um toque sutil de desprezo. Eu sabia o motivo: minha conta bancária bastante generosa. Ele sempre pareceu nutrir um preconceito silencioso com a minha origem privilegiada.
Mas depois do jantar mexicano que compartilhamos, aquele olhar dele estava diferente. Menos indiferença, algo havia suavizado naquele olhar que antes era carregado de julgamento. E, por mais que fosse sutil, talvez até uma ponta de curiosidade.
Passei a manhã inteira revisando relatórios de todos no escritório. Era um trabalho cansativo por si só, e o fato de que cinquenta por cento dos relatórios estavam simplesmente errados só tornava tudo pior. Normalmente, eu corrigiria todos os erros sozinha, mas dessa vez, os equívocos eram tantos que me recusei a assumir tudo. Em vez disso, devolvi os relatórios errados aos seus respectivos autores.
Estava exausta e uma vontade desesperadora de tomar um mojito se apossou de mim. Em geral, não era muito chegada ao álcool, mas o mojito... Eu bebia mesmo só em um dia específico: o meu aniversário.
Eu sempre amei aniversários. Não apenas o meu, mas especialmente o meu. Celebrar o meu próprio dia era algo que eu adorava. Desde os meus dezesseis anos, meus pais alugavam um hotel em uma ilha para que eu comemorasse com amigos e familiares.
Este ano não seria diferente. A ilha de Sundar, onde sempre acontecia a festa, era um local especial, com um hotel pertencente a um amigo íntimo dos meus pais, o que transformava a comemoração no evento do ano. Mas, como tudo que é grandioso, essa celebração exigia muito planejamento e paciência. Felizmente, essas eram duas coisas que eu sabia fazer bem.
Ao final do expediente, no caminho de casa, passei em frente ao restaurante Baston e me lembrei que, por causa da minha frequência no local por conta de Andreas, acabei me tornando amiga dos garçons. Não pensei duas vezes antes de estacionar e entrar. Encontrei Billy, que sempre me mimava com as bebidas não alcoólicas, mesmo que não estivessem no cardápio.
O restaurante estava lotado, como sempre nas sextas-feiras, com pessoas à procura de distração. Dei sorte de encontrar um dos banquinhos estofados do bar livre e corri para me sentar. Tirei meu iPad da bolsa e comecei a organizar a planilha de quartos reservados para os meus convidados, já imaginando os preparativos finais da festa.
Deveria ser fácil, afinal, eu organizava um setor inteiro em uma empresa. No entanto, meus avós, orgulhosos imigrantes de Mumbai tiveram quatro filhos, quinze netos e dois bisnetos, ou seja, toda e qualquer festa de família se tornava um verdadeiro Holi Festival em plena Deli.
Enquanto tateava a tela do iPad, não pude deixar de sorrir, imaginando a bagunça que seria quando meus primos se reunissem.
Senti a cabeça pesar um pouco, resultado do tempo de exposição à tela, mas me forcei a finalizar as planilhas que ainda faltavam. A distração foi suficiente para me pegar de surpresa quando uma voz surgiu do além, fazendo-me saltar do banco.
– Um Bourbon para a mesa nove, por favor. E uma dose de tequila.
Primeiro, achei a voz atraente e, logo em seguida, reconhecível. Eu conhecia aquela voz. Levantei a cabeça e me inclinei no banco para enxergar o rosto por trás do corpo de ombros largos. Me estiquei no banco, espiando por cima do ombro e lá estava ele. , de perfil, com aquele jeito desleixado de quem já estava no terceiro drink.
– Uísque e tequila juntos? Quer um atestado de óbito de presente? – Soltei, inclinando-me para trás na cadeira. Ele virou a cabeça, parecendo surpreso ao me ver ali, sentada e o observando com um olhar travesso.
– Sexta-feira, . Você sabe como é. – Apoiou o queixo na mão, o cheiro amadeirado de seu perfume misturado ao Bourbon.
– Segunda vez em menos de vinte e quatro horas, ? Vou começar a achar que você está planejando esses encontros “acidentais”. – Fiz as aspas no ar com os dedos, mantendo o olhar brincalhão.
– Droga, você me descobriu. – Ele sorriu de lado, claramente se divertindo com a situação.
Trocamos algumas palavras enquanto eu fingia que não estava observando como a luz do bar acentuava seus ombros enquanto ele se inclinava no balcão. me contou que, diferente de mim – que já estava acostumada a frequentar restaurantes sozinha – ele estava ali com seus colegas de trabalho. Dei uma risada ao ver a careta que ele fez ao contar isso, parecia totalmente involuntária.
– Eles são tão divertidos assim? – Perguntei, curiosa.
– Bom, estou aqui há apenas uma hora e, desde então, já fui chamado de homossexual, carente, indigente e, aparentemente, ser solteiro também é um defeito. – Soltei mais uma risada, observando sua pose enfezada, que, embora claramente frustrada com as acusações, ainda carregava um sorriso forçado. – É, estou me divertindo para caramba.
Meus dedos hesitaram no elástico do cabelo quando senti os fios escaparem do coque. Por um instante, considerei recolocá-los no lugar, mas deixei que caíssem sobre meus ombros como uma decisão silenciosa. Eu me sentia mais bonita assim. E, embora me recusasse a examinar muito de perto o motivo, sabia que aqueles olhos verdes – agora observando meus cabelos com um interesse que fazia meu pescoço queimar – tinham tudo a ver com isso.
. Solteiro.
A informação girava em minha mente como uma placa de neon piscante.
estar solteiro era uma verdadeira surpresa. Eu conhecia todas as namoradas dele. Ou pelo menos parecia que sim, considerando que ele tinha mais relacionamentos do que a população de Mumbai. Mas, apesar disso, ele nunca foi o tipo cafajeste.
não só respeitava seus relacionamentos, mas era lembrado por ser genuinamente gentil, atencioso e fácil de se apaixonar. Ele acreditava no amor em sua essência, em todas as suas formas, e se entregava a cada experiência com uma intensidade que só alguém romântico poderia ter.
Coitado.
– Você descreveu todos os ambientes corporativos existentes. Quer saber? Você merece essa tequila. Eu pago!
Ele ficou surpreso por um segundo, mas logo um sorriso convencido apareceu em seu rosto. Um sorriso confiante e irresistível.
– , senhoras e senhores! – Ele exclamou, divertido. – Achei que você nunca ofereceria. – Ele virou o copo de tequila com rapidez, de uma forma meio... viril? estava um homem muito bonito, ou era impressão minha? “Céus, eu preciso transar?”, pensei, assustada com a direção dos meus próprios pensamentos. – Eu acho que mereço uma para cada xingamento e humilhação que já passei hoje.
– É tão ruim assim?
– Se eu disser que não, estarei mentindo. – Admitiu, visivelmente frustrado, mas com um toque de humor na voz.
– Onde você trabalha, afinal?
Eu sabia que Nina já havia me contado, mas a verdade é que nunca prestei muita atenção ao nome.
– No escritório da Wolf, Davies e...
– Martinez! Davi Martinez é seu chefe? Aqueletrogloditaé meu tio!
engasgou com o gole de uísque, os olhos arregalando-se como se eu tivesse confessado parentesco com o Voldemort.
Olhei em volta pelo restaurante, admirando a elegância do ambiente refinado e iluminado. Meu olhar parou em uma mesa longa, onde alguns homens de terno estavam reunidos. Não demorou para que eu avistasse Davi Martinez, sentado no centro, com um semblante autoritário e um sorriso de canto de boca que nunca me enganava.
– Davi Martinez é seu tio? – perguntou, a expressão dele era de puro espanto. E foi impossível não rir diante da surpresa dele. –Tio deverdade?!
–Oquase-tiomais persistente do mundo, – Concluí, fazendo aspas no ar.– Sabe aqueles amigos da família que viram 'tio' por pura insistência? Pois é. Só faltou ele trazer uma certidão de nascimento falsificada.
parou por um segundo, aparentemente refletindo sobre o que eu disse, antes de soltar um suspiro exagerado de alívio. Ele colocou a mão no peito como se tivesse acabado de escapar de um grande susto.
– Eu já estava aqui, imaginando como faria para fingir que ele é o melhor patrão do mundo à sua frente, mas agora estou tranquilo. – Ele deu uma risada, tentando disfarçar o desconforto.
– Pode ficar tranquilo, não precisa fingir. Eu o conheço bem demais para saber o quão desagradável ele pode ser. Na última vez que nos vimos, ele teve a brilhante ideia de me perguntar se eu usava "burca porque já era impura". Era só um sári.
O rosto de mudou imediatamente. O sorriso brincalhão desapareceu e ele me olhou com uma expressão de desprezo evidente.
– Sério? – Ele perguntou, a voz tingida de incredulidade. – Que tipo de... coisa é esse cara?
– É exatamente isso que eu sempre pensei. – Respondi, com um meio sorriso, tentando suavizar a gravidade da situação. – Davi tem esse jeito... peculiar de achar que o mundo gira em torno da visão estreita dele. E, sinceramente, ele realmente acredita que suas opiniões são verdades universais. Não se engane, ele tem uma coleção infinita de preconceitos disfarçados de conselhos.
– Devo acrescentar “racista” à lista de adjetivos que tenho para descrevê-lo? – fez uma careta, visivelmente incomodado.
– Com certeza. – Confirmei, ainda de olhos atentos. Minha varredura pelo restaurante chamou a atenção do homem careca, que logo começou a andar em nossa direção. – Ele está vindo para cá. Disfarça.
– ! – Davi Martinez praticamente bradou o meu nome antes mesmo de se aproximar completamente.
A voz grossa e arrastada já entregava o estado em que ele se encontrava. Quando finalmente chegou perto, sua presença se impôs com um bafo etílico que podia ser sentido a um metro de distância. Ele não estava bêbado o suficiente para desmaiar ou causar um escândalo, mas aquele tipo de embriaguez que tornava tudo mais... incômodo.
Tentei sorrir, mas meu desconforto era evidente para qualquer um com olhos minimamente atentos. A verdade é que eu nunca gostei muito do tio Davi. Ele era amigo de longa data do meu tio – irmão do meu pai – e frequentava nossas festas desde que eu era pequena, mas nunca tivemos intimidade de fato. E se o meu papa, sempre tão educado e ponderado, deixava claro que não gostava dele, quem era eu para contrariar?
– Titio! – Exclamei, exagerando no tom infantilizado da voz. Aquela personagem mimada sempre funcionava como armadura social. Ao meu lado, revirou os olhos de maneira dramática e sua ironia foi tão expressiva que quase ri. No impulso, chutei seu tornozelo discretamente sob o balcão.
– O que está fazendo aqui sozinha? – Perguntou, apoiando-se no balcão com uma lentidão calculada, mas falha, como se quisesse parecer casual, mas estivesse lutando contra a própria gravidade.
– Não estou sozinha, veja só. – Completei, com um sorriso forçado.
Era evidente que essa era a única razão para ele ter se aproximado. A curiosidade o corroía por dentro desde que nos avistou conversando. Davi nunca resistia a uma chance de exercer controle, nem que fosse só para marcar território em espaços onde ele achava que sua presença deveria ser sentida.
– Ah, que ótimo. – Davi comentou, tentando manter um sorriso no rosto, mas sua expressão deixava claro que ele não se sentia tão entusiasmado assim. – Se conhecem? – Davi perguntou, com aquele tom casual forçado de quem já vinha remoendo a pergunta desde que nos viu juntos.
– Sim, há bastante tempo, devo frisar. – Respondi com doçura exagerada, pousando uma das mãos no ombro de . Ele me lançou um olhar de surpresa, franzindo o cenho em confusão.
Davi nos encarou com intensidade, como se pudesse extrair a verdade com os olhos.
– Ah, isso explica. – Disse, balançando a cabeça lentamente. – Se eu não conhecesse bem o aqui, até ficaria preocupado.
Semicerrei os olhos, desconfiada do que ele queria dizer. Mas bastou o modo como ele sorriu, torto e satisfeito, para eu entender a insinuação. E senti o estômago revirar de repulsa.
Olhei para . Ele desviou o olhar imediatamente, desconfortável. Não só por mim, mas também por ele. Era óbvio que Davi estava sendo hostil, disfarçando o veneno em sarcasmo.
– Não entendi. – Falei, seca.
– é meio que nossa mascote na empresa. Não representa ameaça alguma. Como poderia, não é mesmo?
Eu e nos entreolhamos, incrédulos. Ele parecia querer enfiar a cabeça dentro do copo. E eu... bem, eu tinha um talento quase incontrolável para reagir por impulso diante de injustiças.
e eu nunca fomos íntimos, mas havia respeito, sustentado pela minha amizade com Nina. Esse pacto silencioso nos mantinha ligados. Quando percebi os olhares debochados vindos da mesa dele, uma ideia surgiu. Rápida, certeira e capaz de calar aqueles sorrisos.
E irônica, considerando o contexto da noite passada.
– realmente não oferece mal algum. Foi por isso que eu o escolhi. – Abandonei o tom mimado de minutos atrás e usei minha voz firme, a voz que eu usava em audiências e reuniões. Davi ergueu uma sobrancelha, intrigado. Virei-me ligeiramente para e perguntei, com uma inocência ensaiada: – Você não contou?
Por dentro, eu implorava: Não estraga. Vamos, , só uma vez, entra na dança comigo. Me ajuda a deixar esse babaca desconcertado.
– Anh... não...? – respondeu, visivelmente confuso, mas com uma fagulha de entendimento nos olhos.
– Por que não contou? – Continuei, encostando de leve na lateral de sua cintura, como se o toque pudesse lhe passar confiança. Não tive coragem de apertar. Tocar daquele jeito, mesmo que fosse atuação, me deixou estranhamente tímida. – O problema, tio, é que eu não sei se me leva a sério...
– Não sabia que você estava namorando, . – Davi retrucou, com a voz grave, lançando um olhar fulminante para .
– Pois é. A verdade é que estou à espera de um pedido, tio, se é que me entende. – Pisquei de leve. A mentira saíra com uma facilidade assustadora. E, ao contrário do que imaginei, não senti culpa. Só alívio por ver o desconforto brotando no rosto de Davi. – Titio... será que pode nos dar licença por alguns segundos?
Davi revirou os olhos, obviamente não acreditando na minha mentira. Ainda assim, riu e levantou as mãos, teatral, como se estivesse se rendendo.
– Claro, claro. Vou deixar vocês dois pombinhos conversarem. – Disse com escárnio antes de se afastar com passos lentos, lançando mais um olhar crítico para .
Assim que ficamos a sós, o ar pareceu mudar de densidade. O silêncio que se instalou foi incômodo por um segundo, não por causa dele, mas por mim. Eu tinha acabado de fingir que estávamos em um relacionamento. E, apesar de ter sido por um bom motivo, agora me sentia absurdamente exposta.
– Você enlouqueceu? – murmurou, olhos arregalados, a voz oscilando entre pânico e riso.
– Ele foi petulante, cínico e ainda te tratou mal. – Cruzei os braços, sentindo a indignação pulsar na pele.
– Ele sempre me trata assim. – Retrucou, como se isso bastasse.
– E por que você aceita?
– ... Eu não aceito, eu sobrevivo. Ele é meu chefe. Paga minhas contas. Eu não tenho muitas opções. – Passou as mãos pelo rosto com força, bagunçando ainda mais o cabelo castanho. Estava à beira do desespero, perdido... e, para meu azar, bonito demais até nesse estado. – Ótimo. Já era. Ele vai me demitir. Me ferrar. Nunca mais vou pegar um caso. – Resmungou, mais para si do que para mim.
– Relaxa. É bem possível que você seja promovido.
Ele piscou, confuso.
– Como é que é?
– Eu conheço homens como ele. Cresci cercada deles. Davi não valoriza competência, valoriza imagem. Agora que acha que você está comigo, isso te torna útil. Ele pode ser tóxico, mas sabe fazer política. Vai querer você por perto. – Notei o medo em seu olhar e acrescentei: – Meu pai sempre diz: “Eu não inventei o jogo, só aprendi a jogar.” E, sinceramente, eu sou ótima jogadora.
me encarou por um instante longo, como se tentasse me decifrar. Então, soltou um riso curto, quase resignado.
– Obrigado por me defender, de verdade. Mas, sinceramente, não vale a pena. Eu sei lidar com ele. Não é grande coisa. – Respirou fundo, mais leve agora. – Tá... não sei se você acabou com minha carreira ou salvou minha vida, mas... valeu, . Eu acho.
– Vou ao banheiro enquanto você decide se me agradece ou me mata. – Anunciei, num tom despreocupado.
Recolhi minhas coisas do balcão e segui até o banheiro, sentindo o peso da tensão apertar minha nuca e meus ombros. Joguei um pouco de água fria no pescoço, como se isso fosse suficiente para lavar a situação caótica que eu mesma tinha provocado. Respirei fundo algumas vezes, tentando reencontrar meu eixo.
Dei um aceno rápido para Billy e paguei a conta, deixando uma gorjeta generosa. Ele retribuiu com um sorriso cúmplice. Com passos firmes, atravessei o bar em direção à mesa onde os homens ainda conversavam. foi o primeiro a me notar e enquanto eu me aproximava, nossos olhares se cruzaram.
– Te vejo depois? – Murmurei, parando bem perto dele. Nós estávamos tão próximos que eu senti o cheiro dele me envolver e como se fosse um gatilho, senti vontade de beijá-lo. E sabe o que eu fiz? Beijei. Ok, não chegou a ser um beijo, mas foi um selinho demorado o suficiente para que eu sentisse a forma exata dos lábios dele contra os meus. – Ótimo, me liga.
A mesa inteira nos observava em silêncio. Olhei para cada um deles, todos me observando com uma expressão mista de espanto e admiração, incluindo . Homens podem ser incrivelmente previsíveis, mas ainda assim conseguem inflar um pouco o nosso ego. Satisfeita com o efeito causado, virei para Davi e, com um sorriso, me despedi: – Titio, é sempre um prazer revê-lo. Espero vê-lo no meu aniversário. Boa noite, rapazes. Juízo.
E então simplesmente me virei e fui embora.
Por que, veja bem, por trás da minha timidez sempre houve uma coragem discreta, paciente, que aparecia quando eu mais precisava e que me permitia ocupar espaço com uma confiança talvez ensaiada, mas convincente o bastante para enganar qualquer um.
Sim, eu era tímida. Sim, eu carregava consciência de classe. Eu era uma herdeira mimada que adorava atenção? Absolutamente.
Nada me divertia mais do que desestabilizar homens que acreditavam que o mundo girava ao redor deles e que se julgavam superiores a mim só por serem homens.
– Ժ –
– , não corra na escada! – Ouvi a voz grossa de meu pai soar de algum cômodo distante de onde eu estava.
– Não estou correndo! – Rebati, gritando de volta.
Eu ainda morava com meus pais e não, isso não era um problema. Nunca foi. Como filha única, morar com eles numa casa grande mais parecia um arranjo cinco estrelas com café da manhã incluso, lavanderia express e afeto ilimitado.
Meu quarto e meu escritório ocupavam praticamente o terceiro andar inteiro, então dava até para dizer que eu tinha meu próprio apartamento, só que com gente lá embaixo que me amava incondicionalmente e fazia biryani quando eu tinha um dia ruim.
Pois minha mãe, Anjali, podia ser muita coisa, mas nunca tinha me negado um biryani sequer.
Meus pais são indianos, o que, na teoria, significaria superproteção nível hard, do tipo que rastreia o GPS do filho e já tem três pretendentes engatilhados caso o namoro atual fracasse. Mas os meus não seguiam esse roteiro. Eles preferiam fingir que eram o clichê só para manter a tradição viva entre os parentes, mas por dentro eram surpreendentemente tranquilos.
Claro que de vez em quando rolava uma chantagem emocionalzinha básica. Um “você podia jantar com a gente hoje, seu pai até botou a camisa florida que você gosta”. E lá ia eu, vencida pela fofura e pela promessa de samosas.
Então sim, ainda morar com eles e ser, com todas as letras, filhinha de papai e mamãe, era um privilégio com gosto de lar. Uma dessas bênçãos que a gente finge que não valoriza para manter a pose, mas que, no fundo, sabe que é um dos maiores confortos da vida adulta.
Adentrei a grande cozinha em busca de ingredientes para um pequeno jantar fácil e rápido, mas como acontecia quase toda noite, eu desisti no primeiro contratempo e procurei por um restaurante na lista de delivery que eu deixava escondida em uma das gavetas do armário embutido. Fui para a sala de estar enquanto fazia meu pedido e encontrei meus pais no cômodo.
– Ok, você pode acrescentar quatros samosas? – Pedi para a atendente enquanto fazia um sinal de espera com as mãos em direção aos meus pais. – Obrigada. Ah, Deus abençoe o delivery! – Brinquei, me jogando no sofá.
– Como se nossa cozinha não tivesse todos os ingredientes para você fazer samosas. – Mama reclamou enquanto se olhava no longo espelho grudado em uma das paredes. Ela usava um vestido preto que poderia ser considerado simples, mas por cima, ela usava um sári amarelo e rosa lindíssimo, combinando com os ornamentos em seu cabelo preto.
– Temos os ingredientes, mas não temos a mão de obra.
– Como se não tivéssemos empregados... – A mulher rebate, mas eu ignorei, ligando a televisão e começo uma busca pelos canais. Sentado em uma poltrona, meu pai passava os olhos de maneira rápida em seu celular até que notou que eu o olhava, esperando que ele sorrisse de volta.
Meu papá era meu melhor amigo. Gostava de bancar o severo, o patriarca indiano tradicional que fazia cara feia para os erros e levantava a sobrancelha para qualquer ousadia, entretanto, bastava estarmos em casa, longe do olhar dos outros, para que Adit deixasse cair a máscara e revelasse o coração doce por trás do bigode meticulosamente aparado.
Ele, em mais de uma ocasião, me defendeu da minha mãe como um escudo humano, com frases épicas como: “Anjali, ela só cortou o cabelo, não declarou guerra ao país”. Com ele,a intimidade vinha natural.
Com minha Maa... bem, a história era outra. Eu me sentia como uma funcionária em avaliação constante.
Era como atravessar um campo minado: eu sabia queminha dificuldade em me abrir com Anjali Bhasinnão era culpa dela,mas da minha certeza de que, antes de qualquer confissão, viria o veredito.Ela me amava – disso eu nunca duvidei – mas amava ainda mais o ideal de filha perfeita que criou em sua cabeça, e, para a infelicidade de ambas, essa filha não era eu.
Aos dezoito anos, abandonei o script dela e segui o meu, com teimosia e um pouco de cafeína: formei-me com honras em Economia, emendei dois mestrados e ainda cogitava um doutorado. Mas, mesmo no dia da minha formatura – aquele que deveria ser o ápice do meu triunfo pessoal – tudo o que consegui de minha mãe foi um olhar de quem parecia estar diante de uma exposição entediante de planilhas. Um misto de tédio, decepção e, talvez, um pouco de repulsa.
Mas, apesar da convivência tensa, havia um tipo de afeto entre nós. Um cuidado que não se dizia, mas se notava em pequenos detalhes, como o chá que ela deixava no meu quarto quando eu virava a noite estudando ou a forma como mandava flores no meu aniversário, mesmo depois de uma discussão.
Porque, no fundo, Anjali me amava. Só não sabia demonstrar isso sem parecer que estava prestes a demitir alguém.
– Estão arrumados. – Comentei.
– Temos aquele jantar de comemoração ao título, lembra? O que você deveria ir e recusou o convite? – Sorri amarelo em direção a ela. – Tem planos para hoje, filha?
– Por que eu teria, maa? – Levantei a cabeça, desviando o olhar da tela da televisão e encarei meus pais, arrumados de maneira fina e elegante demais.
– Bom, é sexta–feira. – Respondeu. Deu uma batidinha no ombro de Adit, forçando-o a ficar de pé e arrumando sua gravata.
– E desde quando eu saio nas sextas?
– É verdade, djan. Ela não sai nunca, muito menos nas sextas. – O homem zombou, mexendo no bigode.
– Ei! – Reclamei, puxando uma almofada e joguei em sua direção. – Para ser sincera, hoje eu dei uma passada no Baston. Encontrei o tio Davi, inclusive. – Papá rolou os olhos com a menção ao nome do homem, fazendo com que eu e mamãe déssemos risadas com a reação negativa. – Além do mais, o que tem de errado em gostar de ficar em casa?
–Absolutamente nada, Madhu.– Minha mãe respondeu, mas os olhos dela percorreram meu moletom manchado de café como se fosse um crime de guerra. –Seu pai só está implicando. Mas não pense que isso significa que não nos preocupamos. – E então veio a cutucada habitual. –Você pelo menos saía quando namorava o Andreas.
Ah, claro. O Andreas. Quase um ano separados e minha mãe ainda o trazia à tona como quem esfrega sal em uma ferida cicatrizada. Não era nem por saudade dele, eu suspeitava, mas pela conveniência que ele representava: um namorado de pedigree, de bom gosto e que me levava para jantares caros com nomes impronunciáveis no menu.
–Ah, sim, nossas aventuras épicas... Jantares em lugares onde uma salada custa um rim, seguidos de filmes russos de cinco horas sobre camponeses filosofando na neve. Uma verdadeira orgia de emoções. – Respondi, fingindo entusiasmo.
Até hoje não sei o que era mais entediante: ele ou a filmografia de Tarkovsky.
–O ponto é que você saía. Agora? Nem seus amigos aparecem. Nem a Nina, que adorava vir aqui...
–Trabalho todos os dias, sabia? E, pasme, gosto da minha própria companhia. Isso é tão anormal assim?
Ela suspirou, erguendo as mãos em rendição falsa e saiu da sala com um olhar que dizia "estou desistindo de você".
Meu pai, que observava tudo do sofá com a mesma expressão que usava para assistir debates políticos, se aproximou em silêncio. Passou a mão pelos meus cabelos como fazia desde que eu era pequena, num gesto que ainda conseguia me desarmar.
–Não há nada errado em preferir solitude, madhu.–A voz dele era tão morna que doía. –Só nunca confunda isso com solidão.
Virei-me para encarar seus olhos escuros, onde sempre havia respostas: –E como eu faço essa diferença?
– Se a paz do silêncio começar a parecer barulho, se o conforto da sua companhia começar a pesar... é hora de olhar mais fundo. Solitude é escolha. Solidão, às vezes, é um pedido de ajuda.
As palavras dele ecoaram em minha mente, e percebi que, embora eu estivesse satisfeita em minha solidão, havia uma linha tênue entre estar confortável sozinha e sentir-se isolada.
Frustração e melancolia.
Foram esses os sentimentos que encontrei dentro de mim naquela noite, depois que papá saiu pela porta, deixando no ar não só o cheiro suave do incenso que ele tanto gostava, mas também todas aquelas reflexões que ele, com poucas palavras, havia despertado.
Aquela tinha tudo para ser apenas mais uma noite rotineira, daquelas em que o silêncio pesa um pouco, mas não o suficiente para incomodar. No entanto, ele me fez pensar. E pensar demais nunca foi minha atividade favorita.
Naquela noite, depois do jantar, abandonei qualquer tentativa de ser produtiva e segui direto para o quarto. Me livrei do salto, do brinco, do dia. Tomei um banho demorado e, já de camisola, sentei no canto da janela antes de engolir os dois comprimidos de sempre.
As luzes da cidade brilhavam ao longe, tímidas por trás dos muros altos e dos jardins bem cuidados da nossa casa. Eu não via muito dali, mas o suficiente para sentir uma paz que só vem quando a gente observa de longe aquilo que não precisa tocar. Fiquei ali por um tempo, sem pressa, apenas respirando como quem espera que alguma resposta venha com o vento.
Mas naquela noite, nenhuma resposta veio. Só o sono e um vazio que eu ainda não sabia nomear.
Talvez fosse uma questão de hábito. Tem gente que cultiva peculiaridades muito mais excêntricas. Eu, por outro lado, era só uma mulher caseira e pacífica, com um gosto peculiar por listas de tarefas, chá de camomila e silêncio. E, sinceramente? Eu estava bem com isso. Conhecia meus limites, minhas prioridades e a maturidade me trouxe o conforto de saber exatamente o que eu queria da vida ou o que eu definitivamente não queria.
Ainda assim, havia noites – como aquela – em que a solidão se sentava comigo no parapeito da janela, cruzava as pernas e começava a me encarar em silêncio.
Não era como se eu nunca me perguntasse se havia algo de errado comigo ou com o rumo que eu estava tomando. E eu sabia – ainda que não gostasse de admitir – que o término com Andreas tinha tudo a ver com isso.
Andreas Buppha e eu tínhamos terminado há pouco mais de um ano. E aquele seria nosso primeiro aniversário separados. Nos dois anos de relacionamento, fomos mais companheiros do que apaixonados, mais cúmplices do que íntimos. As famílias estavam em festa desde que dissemos “sim” para aquele namoro. Ou melhor, desde que não dissemos “não”.
Andreas era o sonho de qualquer mãe de classe alta: atlético, educado, absurdamente bonito e com cabelos tão sedosos que eu suspeitava de um pacto com alguma entidade capilar. Tinha o charme dos que leem Foucault por prazer, bebem vinho como quem julga rótulo e citam Tarkovski em conversas casuais.
Mas, sendo bem honesta? Nem sempre eu queria uma conversa refinada. Às vezes, eu só queria comentar o novo reality da Netflix em paz, rir de memes ruins, comer miojo na panela e ter vontade de arrancar a roupa de alguém. E com Andreas… nada disso acontecia.
A vida sexual, por exemplo, era... simbólica. Tão simbólica que, em dois anos de namoro, o clímax foi mais emocional do que físico e aconteceu uma única vez. Andreas era lindo, musculoso, gentil... e zero tesão. Não dava para explicar.
Era como ter um quadro do Michelangelo pendurado na sala e nunca poder tocar.
Mas não posso negar que, ainda assim, ele foi um bom namorado. Me ajudou em momentos difíceis, me apoiou em crises familiares e profissionais e demonstrou um carinho genuíno, mesmo que sempre com uma certa frieza elegante. Não foi meu primeiro amor, mas foi, com certeza, o mais funcional. E talvez por isso fosse tão estranho não sentir falta dele. Eu não sentia falta dele. Sentia falta de ter alguém.
E sexo. Eu sentia muita falta de sexo. Aquele espontâneo, divertido, sem filtro de luz ou trilha sonora conceitual.
Olhando para as horas em meu relógio de parede, vi que já era quase uma da manhã. E, como todo ser humano que já perdeu o sono em pleno início de sábado, comecei a imaginar a vida dos outros. Um clássico. O que será que estavam fazendo as pessoas que eu conhecia?
Será que a Rebeca finalmente tomou coragem de mandar mensagem para o ex ou ainda estava deitada com a cara afundada no travesseiro e um filme dramático rodando em loop? Será que o Andreas estava em algum restaurante conceituado tomando um vinho que parece suco de beterraba e discutindo teorias existencialistas com gente igualmente bonita e sem olheiras? A minha prima que casou por conveniência social estaria dormindo de lado, as costas viradas para o marido que não amava?
E será que alguém também estava olhando para a cidade pela janela, exatamente como eu?
Foi quando, entre tantos pensamentos confusos, enquanto me enfiava entre os lençóis e afundava a cabeça no travesseiro tentando convencer meu cérebro a desligar, um nome surgiu com um brilho inesperado:
.
Me peguei imaginando como teria sido o restante da noite dele. Teria voltado para casa resmungando sobre a minha teimosia? Teria feito uma videochamada para algum amigo para contar sobre a aberração que conheceu? Ou teria simplesmente me esquecido assim que saiu da minha rua e voltado à sua vida normalmente?
Suspirei. Apesar do travesseiro não responder às minhas perguntas existenciais, naquela noite, ele me ofereceu um silêncio mais gentil. Um silêncio com nome, sobrenome… e olhos verdes.
Capítulo 2 —
Cheguei ao vigésimo arrependimento do dia. O primeiro? Ter colocado os pés fora da cama.
Sexta-feira de fim de mês. Para um grupo seleto do escritório, aquilo era quase um ritual sagrado e, por alguma ironia do destino, eu agora fazia parte da congregação.
O templo escolhido? Baston, um restaurante francês que se levava a sério demais, onde uma entrada custava mais que meu salário inteiro.
As más línguas diziam que o lugar era de um dos sócios anônimos da firma, o que explicava por que nossas extravagâncias eram magicamente debitadas em uma conta fantasma qualquer. Confesso: esse foi meu único consolo naquela noite. Saborear um prato que valia meu mês de trabalho, fingindo com cara séria que eu também pertencia àquela pequena máfia de ternos bem cortados.
Agora, o que foi arrependimento? Tudo o que vinha depois.
Quando entrei na empresa, cheio de gás e ingenuidade, eu sonhava em fazer parte da "panelinha". Aqueles advogados experientes, que riam entre si como se tivessem acabado de ganhar mais um processo ou mais um milhão. Eu achava que os jantares seriam uma espécie de clube secreto de mentes brilhantes, onde se discutiriam estratégias jurídicas revolucionárias, precedentes históricos, talvez até Shakespeare.
Pobre de mim.
A realidade era um circo de dez homens entre os quarenta e sessenta anos — metade deles forçando a voz para soar mais grave, a outra metade forçando o córtex cerebral para disfarçar a demência precoce — empanturrando-se de foie gras enquanto disputavam quem contava a piada mais sexista ou o caso de assédio mais "engraçadinho". E eu ali, entre um gole e outro de uísque caro que nunca compararia com o próprio dinheiro, rindo por educação, me perguntando em que momento da minha vida eu achei que pertencer a isso seria um sinal de sucesso.
Depois de receber o convite pela primeira vez, faltar estava fora de questão. Recusar seria um verdadeiro "suicídio social". Eu nunca mais seria escolhido para os casos importantes e perderia a chance de construir conexões significativas. Assim, lá estava eu, aproveitando a comida e bebida gratuitas e, ao mesmo tempo, massageando meu próprio ego.
— Esse é um Armani 2018, minha mulher escolheu, mas eu não vejo problema em não usar grife, de verdade. — Victor comentou, segurando a taça com a mesma pose afetada de um crítico de vinhos em crise de identidade. Era um dos homens mais desagradáveis do escritório e responsável por metade das piadas maldosas envolvendo meu nome. — Você não precisa se sentir mal por isso.
— Não me sinto. — Respondi, virando o copo de uísque com vontade. Pedi o mais caro da casa, o tipo de bebida que eu só tomaria de graça e queimei a garganta como se fosse minha forma silenciosa de protesto.
Usei jeans preto e um blazer azul marinho porque era funcional. Tinha passado o dia resolvendo pepinos de última hora, entrando e saindo de salas como se o escritório fosse um tabuleiro de War. A última coisa que eu queria era um terno de modelagem duvidosa esmagando minha dignidade junto com o resto da anatomia. Se isso me colocava um degrau abaixo de Victor Armani 2018, ótimo.
Estava em uma reunião com um colega quando, por volta das seis da tarde, fomos liberados. Diferente da maioria dos meus colegas de andar, recebi mais uma convocação para o Baston. A quinta vez. Já não era mais surpresa, era praticamente uma maldição recorrente.
Minhas suspeitas eram claras: ou me odeiam e se divertem me diminuindo, ou me amam... e também se divertem me diminuindo. Ambas as opções me desagradavam em igual medida. Sabia que terminaria a noite com um gosto amargo na boca e a garganta ardendo de tanto engolir piadas atravessadas, palavras entaladas e vontade de mandar todo mundo ir à merda.
Desde que saí da faculdade, dei sorte — ou azar, dependendo do ponto de vista — em conseguir bons lugares para trabalhar. O escritório jurídico Wolf, Davies & Martinez é um deles. Trabalhar na área tributária nunca foi meu sonho, mas pelo salário que eles pagam, eu faria até faxina no local com esmero. E, como todo emprego que paga bem demais para ser verdade, aquele lugar era um verdadeiro inferno travestido de prestígio.
Meu chefe direto era Davi Martinez, um dos advogados mais ricos do país. Ganhou notoriedade (e milhões) defendendo o Estado num escândalo de sonegação fiscal que envolvia regularização territorial. Cínico, impiedoso, sempre com aquele sorriso de canto de boca que só aparece em gente que nunca teve que parcelar um boleto.
As primeiras piadas me envolvendo partiram dele, e seus funcionários, ainda que tão lascados quanto eu, seguiram o exemplo como bons cordeiros tentando provar que são lobos. Nem na época do colégio sofri tanto bullying e assédio moral quanto no meu ambiente de trabalho atual. A diferença é que, naquela época, pelo menos os valentões não usavam terno da Hugo Boss.
— Diga-me, . Você é casado? — A pergunta do Lopez caiu na mesa como um pedaço de carne crua.
A mesma. Toda. Maldita. Semana.
— Não, Lopez — Respondi, rodando o copo de uísque entre os dedos. — Por quê? Está interessado?
Funcionou. As risadas explodiram como sempre. Naquela mesa, piadas homofóbicas eram como moeda corrente: todo mundo usava, ninguém questionava o valor.
— Você sempre sozinho... — Lopez continuou, esfregando as mãos como se estivesse prestes a anunciar um veredito. — Vão começar a pensar que você, como posso dizer... aprecia a companhia masculina.
O coro de gargalhadas foi tão previsível quanto patético. Respirei fundo, sentindo o gosto metálico da raiva na língua. Não era a dúvida sobre minha sexualidade que me envenenava. Era a forma como eles usavam isso como arma.
Quase soltei um "sim" só para vê-los engasgar. Quase lancei um "você nunca sabe" com tom de desafio. Mas minha vida já era um jogo de xadrez onde eu movia peças sob mira. Então apenas balancei a cabeça e ri, o som mais vazio que já saiu da minha garganta.
— Você não precisa saber de tudo na minha vida, colega. — Falei, levando o copo de uísque até a boca, tentando engolir todas as palavras que eu realmente queria gritar.
— Resposta típica de quem está no armário! — Lopez berrou, triunfante.
Alguém bateu na mesa. Outros imitaram. Um circo de macacos de terno.
- E você, Lopez? Tem tanta familiaridade com o armário assim? Que obsessão é essa? — Retribuí o desafio, e logo a pequena faísca virou alvo da mesa inteira, até do Martinez, meu chefe, que parecia sempre esperar o momento exato para que eu mostrasse o meu pior lado.
— Por que você não vai até o bar e traz umas doses para gente? — Lopez disparou, claramente controlando a raiva. E pelo tom, ficou claro que aquilo não era um pedido, era uma ordem disfarçada.
— Como quiser, patrão. — Respondi, sarcástico, e me levantei da mesa, dando-lhe uma piscadela, não só por provocação, mas porque já estava cansado daquela merda toda.
Caminhei até o bar, o movimento já um pouco turvo pela mistura de raiva e álcool. O uísque começava a perder o sabor, mas eu continuava bebendo sem fazer careta, sinal de que estava na hora de parar. O que fiz, então? Pedi mais um drinque.
— Um Bourbon para mesa nove... e sete doses de tequila. — Pedi ao barman, sentindo que estava indo longe demais. Mas quer saber? Se era para afundar, que fosse com classe.
A paciência já tinha me deixado fazia tempo. Eu só queria esquecer que aquela noite existia. E se fosse para beber, que fosse na conta deles. Eu merecia isso. Só isso.
— Uísque e tequila juntos? Quer um atestado de óbito de presente? — A voz ao lado me pegou desprevenido.
Virei devagar e encontrei sentada no balcão, com um mojito pela metade e um iPad equilibrado no colo. A visão dela me fez rir por dentro. De todas as pessoas que eu esperava encontrar ali, ela definitivamente não estava na lista.
— Sexta-feira, . Você sabe como é... — Respondi, me aproximando.
— Segunda vez em menos de vinte e quatro horas, ? Vou começar a achar que você está planejando esses encontros “acidentais”. — Fez as aspas no ar com os dedos, sem tirar os olhos da tela, mas a provocação estava ali, viva, clara.
— Droga, você me descobriu.
A noite anterior tinha sido uma surpresa daquelas. Eu conhecia há anos. Ela era a melhor amiga da minha irmã desde a escola, mas bastou um jantar para destruir boa parte das ideias que eu fazia dela.
Descobri uma mulher calma, modesta, divertida. Muito diferente da imagem meio distante que eu tinha.
— Isso aí que você pediu parece suicídio. — Comentou, dando uma olhadela para os pedidos que o barman começava a preparar.
— E você? Pensei que não bebia. — Apontei com o queixo para o copo dela.
— Não bebo mesmo. Mas o Billy aqui faz um mojito sem álcool melhor do que muito bar por aí, não é, Billy? — Ela sorriu para o barman, que apenas balançou a cabeça, como quem estivesse acostumado com aquele charme todo.
Ela voltou os olhos para mim. E eu, pela primeira vez naquela noite, me senti fora daquele inferno. O caos do jantar, os comentários idiotas, o peso de sempre... tudo pareceu ficar em silêncio por alguns segundos.
— ou , quando precisava assinar documentos ou intimidar desafetos — era o tipo de pessoa que fazia o "desleixo elegante" parecer uma arte. Seus cabelos castanhos viviam em permanente estado de rebeldia, nem lisos nem cacheados, mas num meio-termo que sugeria ou um estilo deliberado ou uma rendição filosófica aos fios. Quase nunca usava maquiagem, exceto um batom borrado que desaparecia após o primeiro café.
Mas havia um detalhe crucial: não precisava se esforçar.
De estatura média, mas dona de uma postura ereta e confiante, passava a impressão de ser mais imponente do que realmente era. Ela carregava uma espécie de elegância natural, que muitas vezes me dava motivo para implicar, mas raramente soava esnobe ou forçada. Só quando o mundo exigia — jantares beneficentes, festas de embaixador, aquelas ocasiões em que o sobrenome "" precisava brilhar — que ela surgia em seus vestidos caríssimos e sapatos de marca, maquiagem forte e presença estonteante.
E ela sempre foi assim, desde a época da escola. Mesmo com algumas espinhas no rosto e aquele jeito ainda meio infantil de quem não tinha pressa de crescer, havia algo nela que destoava. Uma maturidade silenciosa, uma presença que chamava atenção sem esforço. Era o tipo de pessoa que, mesmo quieta, fazia a sala inteira notar sua existência.
Ignorar era impossível. E resistir ao encanto dela era quase impensável. Eu sei disso porque já fui um dos que tropeçaram nessa armadilha. Fácil, sem nem perceber.
— Cadê sua sombra? — Perguntei, escorando-me no balcão ao lado dela. — Minha irmã não está acoplada em você? — Provoquei, vendo-a revirar os olhos com um sorrisinho.
— Infelizmente, não. Vim direto do trabalho e parei aqui para beber algo e revisar umas coisas. — Apontou o iPad e, em seguida, se virando de vez para mim. — E você?
— Estou com o pessoal do trabalho. — Não consegui disfarçar a careta e ela riu da minha indiscrição.
— Eles são tão divertidos assim? — Ironizou.
— Bom, estou aqui há apenas uma hora e, desde então, já fui chamado de homossexual, carente, indigente e, aparentemente, ser solteiro também é um defeito. — Seus cabelos caíram do coque baixo com a movimentação e eu sorri com a visão.
Quando estava com os cabelos soltos, ela voltava a ser a garota que eu sempre via passar no corredor da escola com Nina e a imagem era nostálgica para mim.
— Você descreveu todos os ambientes corporativos existentes. Quer saber? Você merece essa tequila. — Apontou quando o barman deixou o copinho com um prato de limão e sal em sua frente. — Eu pago!
— , senhoras e senhores! Achei que você nunca ofereceria. — Comemorei, pegando o copo e virando em minha boca, sem utilizar o limão ou o sal. — Eu acho que mereço uma para cada xingamento e humilhação que já passei hoje.
— É tão ruim assim? — Perguntou, solidária com o meu infortúnio.
— Se eu disser que não, estarei mentindo. — Fui sincero.
Naquele instante, eu assinaria minha demissão com tinta do próprio sangue. Mas quando a fúria baixava e eu encarava a realidade nua e crua, uma verdade dolorosa surgia: aquele inferno de egos e sarcasmo era, ironicamente, o solo mais fértil para minha carreira.
O trabalho não tinha nada da poesia que eu imaginara na faculdade, eram horas engolindo sapos em reuniões e noites dissecando cláusulas escondidas em contratos que ninguém lia. Alguns dias eu me via parado no metrô, questionando cada escolha que me trouxera até ali.
— Onde você trabalha, afinal?
— No escritório da Wolf, Davies e...
— Martinez! — Completou, me interrompendo. — Davi Martinez é seu chefe? Aquele troglodita é meu tio!
Gelei por completo. Eu estava prestes a incitar muito ódio diretamente para um familiar do homem?
Um suspiro escapou dos meus lábios antes que eu pudesse conter quando explicou que ele era seu “tio” por conveniência social. Nem sangue nem afeto.
— Eu já estava aqui, imaginando como faria para fingir que ele é o melhor patrão do mundo à sua frente, mas agora estou tranquilo.
— Pode ficar tranquilo, não precisa fingir. Eu o conheço bem demais para saber o quão desagradável ele pode ser. Na última vez que nos vimos, ele teve a brilhante ideia de me perguntar se eu usava "burca porque já era impura”.
— Devo acrescentar “racista” à lista de adjetivos que tenho para descrevê-lo? — Questionei seriamente, mas ela pareceu achar engraçado.
— Com certeza. Ele está vindo para cá, disfarça. — Ela interrompeu a própria fala e pigarreou, bebericando seu copo. Me recompus, alterando minha postura também, como se não estivesse sentindo a dose de tequila cintilando em cada ponto do meu corpo.
— ! — Ouvi a voz de trovão do idiota ressoar por trás de mim.
— Titio! — Ela exclamou de maneira afetada e eu agradeci por estar de costas para o homem, assim ele não me viu revirar os olhos teatralmente. Mas viu e chutou meu pé ao descer do banco para ir cumprimentar Davi.
— O que está fazendo aqui sozinha? — Ele desviou o olhar e me encarou, confuso.
— Não estou sozinha, veja só.
— Ah. Que ótimo. Se conhecem?
— Sim, a bastante tempo, devo frisar. — Ela explicou e eu sorri de boca fechada, segurando-me para não rir ou fazer algo que entregasse o teor alcoólico pós tequila pura.
— Ah, isso explica! Se eu não conhecesse bem o aqui, até ficaria preocupado.
É claro que eu não passaria intacto. O veneno na voz dele era nítido, até mesmo para , que costumava estar alheia às provocações diárias que eu enfrentava. Ela ergueu uma sobrancelha, surpresa, e me lançou um olhar rápido. Desviei, um pouco envergonhado.
Ser humilhado na frente de gente que eu mal conhecia era uma coisa. Mas diante de alguém como a , que me conhecia desde sempre, aquilo se tornava muito mais difícil de engolir. As piadas e risadas que eu normalmente deixava passar ganhavam outro peso quando partilhadas com alguém que fazia parte da minha história.
— Não entendi. — Ela pontuou e eu engoli em seco.
Ótimo, abriu uma brecha para o homem destilar ainda mais veneno em mim.
— é meio que nossa mascote na empresa. Não representa ameaça alguma. Como poderia, não é mesmo? — Riu maldosamente.
Arfei, desacreditado. Ele simplesmente não tinha decoro algum.
— realmente não oferece mal algum. Foi por isso que eu o escolhi.. — Emitiu com a voz tão firme, intensa e intransigente que eu imediatamente lembrei que era rica. Esse tom de voz eu só encontrei em pessoas ricas. — Você não contou? — virou-se para mim, que franzi o cenho, confuso com o que ela queria de mim no momento.
— Anh, não. — Murmurei, totalmente incerto.
— Por que não? O problema, tio, é que eu não sei se me leva a sério. — Ela se aproximou, abraçando-me pela cintura e eu travei completamente ao perceber quais eram suas intenções.
— Não sabia que você estava namorando, .
— A verdade é que estou à espera de um pedido, tio, se é que me entende. — Deu uma piscada, sorrindo dramática. Ótimo, além de inventar uma história maluca, ela ainda me descreveu como um imbecil. — Titio, você pode nos dar licença por uns segundos? — Pediu com uma classe e elegância inigualáveis.
— É-é claro Vou deixar vocês dois pombinhos conversarem. , você quer que eu leve isso? — Apontou para o balde com vinho e uísque preparado pelo garçom e que eu deveria levar para a mesa.
De repente, Davi Martinez tornou-se gentil. Sem esperar pela resposta, ele pegou a bandeja e se dirigiu de volta à nossa mesa. Fiquei totalmente descrente do que acabara de acontecer.
— Você enlouqueceu? — Murmurei para ela, virando de costas para as pessoas de minha mesa, que agora encaravam a situação após ver o chefe chegar com uma bandeja.
— Ele é petulante e cínico, e ainda te tratou mal. — Explicou, cruzando os braços, parecendo irritada.
— Ele sempre me trata assim.
— Por que você aceita?
Claramente a mulher era sua própria chefe e não sabia como lidar com os desafios do proletariado.
- ... Eu não permito, eu sobrevivo. Ele é meu chefe. Paga minhas contas. Eu não tenho muitas opções. Ótimo, já era. Ele vai me demitir, me ferrar. Nunca mais vou pegar um caso na vida.
— Relaxa. É bem possível que você seja promovido.
— Como é que é?
— Eu conheço homens como ele. Cresci cercada deles. Davi não valoriza competência, valoriza imagem. Agora que acha que você está comigo, isso te torna útil. Ele pode ser tóxico, mas sabe fazer política. Vai querer você por perto. Meu pai sempre diz: “Eu não inventei o jogo, só aprendi a jogar.” E, sinceramente, eu sou ótima jogadora.
Como nos desenhos animados, uma lâmpada se acendeu em minha mente. estava absolutamente certa. O ego do homem jamais deixaria passar a oportunidade de ter um de seus funcionários supostamente relacionados a uma pessoa de família abastada.
— Obrigado por me defender, de verdade... Mas, sinceramente, não vale a pena. Eu sei lidar com ele. Não é grande coisa. Tá... não sei se você acabou com minha carreira ou salvou minha vida, mas... — Refleti, assustado. — Valeu, . Eu acho...
— Vou ao banheiro enquanto você decide se me agradece ou me mata.
Informei que voltaria para a mesa e ela disse que passaria lá para se despedir. Caminhei de volta ao meu lugar, tentando evitar olhar para Davi. No entanto, meu olhar encontrou o dele por um instante e a surpresa no seu rosto era clara. Ele ficou em silêncio, mas a tensão era palpável.
Tentei desviar o olhar rapidamente, mas o peso de sua presença me fazia sentir como se estivesse sendo examinado de perto. Enchi o copo com mais uísque, na tentativa de aliviar a ansiedade, embora soubesse que não resolveria nada. O que aquilo significava? Ele estava irritado? Preocupado? Ou apenas em busca de algo para me desestabilizar?
A conversa à mesa continuava, mas eu não conseguia focar em nada além de Davi, que não tirava os olhos de mim. O que isso significava? Que ele iria me matar? Ou me demitir por supostamente estar comendo a sobrinha dele?
— Sim, os restaurantes estão cada vez mais distantes do centro...
— É, isso se dá pela população que...
— A quanto tempo você e estão juntos? — A voz de Davi cortou o fluxo da conversa, interrompendo até os sons de talheres batendo.
Todos na mesa se calaram instantaneamente, virando-se para nos observar. Onze pares de olhos estavam fixos em mim e o peso da pergunta ecoou de maneira constrangedora. Eu me senti congelado por um momento, o coração batendo forte no peito. Eu não sabia o que responder e meu silêncio só fez a situação mais desconfortável.
— . — Ele insistiu, a voz mais firme, como se pressionando para obter uma resposta. — Há quanto tempo você e minha sobrinha estão juntos e por que eu só soube disso agora?
— Nós nos conhecemos há um tempo, senhor. Estudamos juntos. — Pigarreei, olhando ao redor e vendo todos observando Davi com uma curiosidade que beirava a inveja, talvez até desconfiança.
— Estudaram juntos? — Davi riu, claramente cético, e recostou-se na cadeira. — Você estudou no Guardins? — A pergunta foi carregada de desdém.
O Guardins era uma escola de elite, conhecida pelas mensalidades altas e pelos alunos de famílias ricas.
— Bolsa por indicação.
Martinez assentiu pensativamente, os dedos tamborilando no braço da cadeira. Cada batida ecoava como um tique-taque de bomba relógio. Não expliquei que minha vaga no Guardins veio com o suor da minha mãe, que enquanto esses herdeiros brincavam de polo, ela esfregava os mármores da mansão do diretor. Que eu estudava com livros usados enquanto ela lavava a roupa íntima dessas mesmas pessoas que agora me olhavam com um misto de curiosidade e desdém.
O homem de cabelos castanhos — cujo nome eu me recusava a aprender — soltou um risinho que me fez ver vermelho por um segundo.
— Ah, então a princesa está se divertindo com plebeu. Que fofa. — Zombou.
Senti meu sangue ferver, mas mantive os punhos fechados sob a mesa e encarei o homem, que eu nem sabia o nome.
— Você não respondeu à pergunta — Martinez insistiu, colocando as mãos sobre a mesa e se inclinando para frente. — A quanto tempo?
— Qu... Cinco meses — Gaguejei, os números saindo aleatórios como dados jogados. Que pesadelo!
O silêncio que se seguiu foi tão espesso que ouvi o gelo derretendo nos copos. Todos os olhos se voltaram para Martinez, conhecido por demitir funcionários como quem descarta guardanapos usados.
Então, como um trovão, ele gargalhou.
— ! Quem diria! Pegou a herdeira no laço! Você é mais esperto do que eu pensava! — Ele riu, bebericando o seu copo, e eu sorri de forma tensa.
Tentei manter a compostura, respondendo educadamente às perguntas e aceitando os tapinhas nas costas, mas a cada momento me sentia mais desconfortável. Quando Carlos, um cara alto e musculoso, se inclinou para mais perto de mim e deu um tapinha nas minhas costas, meu estômago se revirou.
— Então, você está namorando a garota de ouro, hein? — Ele perguntou com um tom de escárnio.
— É, acho que estou... — Respondi, forçando um sorriso, tentando controlar a raiva.
— Sorte a sua! Ouvi dizer que ela vale uma fortuna... — Comentou, tomando um gole do copo e eu franzi a testa, incrédulo com o que acabara de ouvir.
Como alguém poderia ser tão desprezível?
Logo em seguida, o som dos saltos de ecoou no ambiente, batendo contra o chão com uma leveza, mas ao mesmo tempo com uma força que parecia querer chamar a atenção. Levantei os olhos e a vi se aproximando, elegantemente, com um vestido preto simples, que terminava um pouco abaixo dos joelhos.
Contive um sorriso enquanto meus olhos desciam, involuntariamente, para suas pernas. tinha um caso de amor com saias que beirava o obsessivo.
Longas até o tornozelo, curtas o suficiente para fazer os padres da cidade rezarem por sua alma. Plissadas. Retas. Calças jeans? Shorts? Essas eram raridades arqueológicas. Se eu fechasse os olhos agora, conseguiria contar nos dedos todas as vezes que a vi vestindo algo que não fosse aquelas malditas saias que me deixavam igualmente fascinado e irritado.
Minha boca secou enquanto eu me lembrava, quase à força, do meu papel naquela farsa. Desviei o olhar por um instante, tentando recuperar o controle, e foi o suficiente para vê-la se aproximando da nossa mesa.
Todos os olhos se voltaram para ela; as conversas masculinas se dissolveram no ar, substituídas por olhares de admiração. Eu, no entanto, senti algo mais complexo: uma mistura incômoda de irritação e fascínio.
— Vejo você em casa depois? — Perguntou, assim que me levantei.
Havia um convite silencioso em seus olhos, um sinal claro de que queria que eu entrasse no jogo. Mas a maneira como ela se aproximou me paralisou. Preso àquela proximidade, tudo que consegui foi acenar com a cabeça, devagar, tentando disfarçar o efeito devastador que ela causava em mim.
Ela sorriu com a minha resposta, satisfeita, ainda assim, havia um brilho malicioso em seus olhos. Antes que eu pudesse reagir, inclinou-se mais, puxou-me pelo braço e selou a cena com um beijo rápido, estalado. Eu não precisava olhar em volta para saber: todos estavam observando.
— Titio, sempre um prazer revê-lo. Espero vê-lo no meu aniversário. Boa noite, rapazes. Juízo! — Ela disse, se afastando com um sorriso.
Ela deixou o ambiente com uma naturalidade imbatível, como se o mundo ao redor fosse apenas um cenário sob seu controle absoluto. E, sendo honesto, se ela quisesse algo de mim, eu provavelmente daria sem hesitar.
Todos na mesa a acompanharam com os olhos. Esforcei-me para sorrir, sem ter certeza de como deveria reagir. Levei o copo aos lábios, tentando encontrar calma no próximo gole, mas sabia, no fundo, que nada do que eu dissesse ou fizesse ali seria suficiente para mudar a forma como eles me viam.
Foi então que a voz de Davi cortou a mesa, baixa e afiada. Até aquele momento ele observava em silêncio, com o sorriso contido de quem usa cordialidade como disfarce. Senti o ar gelar e por horas carreguei o desconforto daquela frase.
— Ora, ora... parece que alguém aqui ganhou na loteria e esqueceu de avisar o resto da turma.
— Ժ —
Com a feição intrigada, tamborilei os dedos na mesa, tentando entender o que diabos estava acontecendo naquele recinto.
Desde que coloquei os pés no escritório naquela segunda-feira, tudo parecia… fora do lugar. Primeiro, minha mesa. Estava limpa. Limpa demais. Nada de pilhas de documentos, nada de recados rabiscados ou pastas amontoadas esperando despacho.
Olhei ao redor. As baias vizinhas estavam do jeito de sempre: abarrotadas, bagunçadas, com aquela aparência caótica que fazia parte do nosso cotidiano. Franzi o cenho, desconfiado. O que estavam tentando me dizer com aquilo?
Na tentativa de afastar pensamentos pessimistas — como, por exemplo, uma possível demissão disfarçada de gentileza —, decidi que um café cairia bem antes de encarar o que quer que estivesse por vir. Caminhei até a copa com passos contidos, esperando o silêncio costumeiro ou, no máximo, um murmúrio abafado. Mas assim que entrei, fui surpreendido.
Cinco pessoas estavam ali. E, para meu total espanto, todas me cumprimentaram.
Aquelas mesmas figuras que, durante meses, mal levantavam os olhos quando eu passava, agora me ofereciam sorrisos cordiais e acenos. Um deles até me chamou de “”. Nunca me chamavam pelo nome.
A caneca em minha mão quase escorregou. Algo definitivamente estava errado.
Antes que eu conseguisse responder, Victor — meu colega obcecado por grife — entrou na saleta e, com a autoridade de sempre, mandou todo mundo sair. Surpreendentemente, obedeceram. Levantei uma sobrancelha, dividido entre rir e ficar irritado. O tom autoritário, o peito inflado, tudo nele me dava nos nervos.
— Victor, sempre gentil. — Ergui a xícara num brinde sarcástico.
— Corta essa, . Você conseguiu me surpreender.
Inclinei a cabeça, avaliando-o.
— Do que diabos você está falando, babaca? — Franzi a testa, misturando irritação e confusão. Victor revirou os olhos e avançou um passo, as mãos cerradas em punho.
— Se envolver com a sobrinha do chefe foi baixo até para você.
A ficha começou a cair. As pessoas me tratavam diferente por causa desse romance de fachada com a ?
— Nem todo mundo é tão ganancioso quanto você, Victor. — Rebati, sentindo a irritação crescer.
— Então me conta: toda essa paixonite pela sobrinha do Martinez não tem nada a ver com o sobrenome dela? — Ele sorriu com ar melífluo.
— Até semana passada eu nem sabia que eles se conheciam. E, para ser justo, não são parentes.
— Não sei se você é um azarado esperto ou um burro sortudo. — Ele suspirou, passando a mão pelo rosto, e apontou para o bolso como se aquilo explicasse tudo.
— Se você só veio me xingar, eu volto para minha mesa. — Resmunguei, impaciente.
— Tá, tá… como conheceu ela? — Insistiu.
— Por que esse interrogatório?
— Coleguismo.
— Ela é amiga da minha irmã. Nos conhecemos na escola. Sem mistério.
Então ele agiu: o celular apareceu como arma, tela virada para mim, 00:03:22 piscando em vermelho. Estava gravando.
— Martinez mandou verificar seu conto de fadas. — Parou a gravação com um clique escarninho. — Eu, honestamente, estou cagando.
O café amargou na garganta.
— Que babaca. — Murmurei, esfregando as têmporas. Era cedo demais para lidar com esse tipo de insanidade. — Você devia ser ator.
— Meus pais não deixaram. — Deu de ombros.
Pela primeira vez, Victor pareceu… humano. A resposta soou sincera, e por um instante, me lembrei que ele era, no fim das contas, apenas outro funcionário preso naquele circo corporativo.
— Se eu fosse você, inventava uma desculpa e ia logo falar com ele. O gordo está se roendo para te chamar. — Concluiu, meio conselho, meio provocação.
— Eu só não entendo o que ele ganha com isso. Por que esse interesse todo no relacionamento de um funcionário qualquer?
— Sua namorada é uma , . — Victor respondeu como se estivesse explicando algo óbvio demais. — Ele me disse com essas palavras. Martinez é viciado em dinheiro. Se vê uma oportunidade de se infiltrar no meio de gente rica, ele se joga sem pensar duas vezes. Não importa como, com quem, nem o quanto vai manipular no processo.
Fiquei em silêncio por um segundo, absorvendo aquilo. E então veio a pancada. Aquela verdade suja que escancara tudo. O motivo dos olhares tortos, dos sorrisos falsos, do tratamento repentinamente cordial.
— Apaga essa gravação.
— E arriscar meu emprego por isso? — Ele balançou a cabeça, como quem se diverte com a ingenuidade alheia. — Acorda, . Todo mundo aqui dança conforme o Martinez assovia. Até você.
Não consegui rebater. A pior parte era admitir que ele tinha razão. Martinez nos controlava sem que a gente percebesse, com medo, com promessas, com chantagens veladas. Victor virou-se para sair, mas hesitou ao alcançar a porta. Deu meia-volta, como se tivesse lembrado de algo importante. Seus olhos brilharam com aquela malícia irritante que ele nunca fazia questão de esconder.
— Sabe, ? Quando eu disse que você era um sortudo burro, eu não estava brincando. Mas acho que você merece os parabéns, você conseguiu.
— Consegui o quê, Victor? — Suspirei, cansado, sabendo que o que viria a seguir seria uma atrocidade ou uma grande surpresa.
— Ah, vamos lá. Primeiro: a mulher é gata. Eu vi. Com os dois olhos e um pouco de inveja. Segundo: rica. Pesquisei o sobrenome dela e, meu amigo, aquilo ali é um PIB de um país pequeno. E terceiro... — Sorriu como quem vai soltar a cereja do bolo. — ...ela é sobrinha do chefe. Quer dizer, tecnicamente não é, mas isso não importa. Você realizou o sonho fetichista de todos os caras daqui! Ele não tem filhas mulheres, mas saber que um de nós conseguiu comer a sobrinha já o suficiente.
Eu abri a boca para responder, mas nada — nem minha voz, nem um pensamento coerente — veio em seguida. A percepção me atingiu como uma tonelada de tijolos e senti uma mistura de descrença e raiva. Victor deu um tapinha no meu ombro, um sorriso malicioso no rosto.
Eu queria dar um soco nele, mas sabia que não valia a pena.
Com isso, ele saiu da cozinha, me deixando sozinho com o zumbido incômodo dos meus próprios pensamentos. Encostei na parede, tentando controlar a respiração e organizar o turbilhão que se formava dentro de mim. A ideia de que uma simples brincadeira fora do ambiente de trabalho, numa sexta-feira despretensiosa, pudesse ter se transformado numa bola de neve corporativa era quase absurda. E, no entanto, lá estava eu, vivendo exatamente isso.
Lavei a xícara de café com movimentos automáticos, ainda processando tudo o que Victor havia dito. Voltei para minha mesa como quem anda no piloto automático. Tentei me forçar a focar nos despachos que estavam acumulados, como se a rotina pudesse me oferecer algum tipo de alívio ou controle.
Entretanto não consegui me concentrar por mais de cinco minutos seguidos.
Depois da sexta-feira caótica no Baston e da manhã tensa naquele escritório, eu esperava que o pior já tivesse passado. Talvez, no fundo, quisesse acreditar que tudo voltaria ao normal com o tempo. Mas foi ali, naquela tarde aparentemente comum, que percebi o quanto tinha subestimado o impacto de na minha vida.
No final do expediente, quando a maioria dos colegas já começava a recolher suas coisas, ouvi meu nome ecoar no corredor. Chamado direto à sala de Davi Martinez.
Não seria honesto dizer que não fiquei nervoso. Fiquei. Meu estômago revirou. Meu coração acelerou. Eu nunca tinha entrado naquela sala. Nunca tive qualquer contato direto com o chefão, além de um aceno vago ou uma instrução breve nos corredores.
Até a última sexta, Davi Martinez mal sabia meu nome. Agora, de repente, ele queria falar comigo. E eu sabia que, quando Martinez queria falar com alguém, não era por acaso. Era porque ele já sabia exatamente o que queria tirar da conversa.
Enquanto eu atravessava o escritório, caminhando até a sala de Martinez como se caminhasse com uma pilha de pedras nos ombros, senti os olhos dos meus colegas de trabalho em mim. Alguns me olhavam com admiração, outros com inveja, mas todos pareciam curiosos sobre o que aconteceria no escritório de Martinez.
Tentei não deixar que seus olhares me alcançassem, focando no caminho à frente e me preparando mentalmente para o que quer que me esperasse.
Finalmente, cheguei à pesada porta de carvalho que levava ao escritório de Martinez. Hesitei por um momento, respirei fundo e bati na porta, fazendo o som ecoar pelo escritório.
— Senhor? Mandou me chamar?
— . — Ele nunca antes tinha me chamado assim. — Fecha a porta.
— Algo errado? — Perguntei, controlando a respiração.
Ele me observou dos pés à cabeça, como se estivesse avaliando um animal em leilão. Seu olhar era quase predatório.
— Pelo contrário. Não sei se notou, mas apreciei bastante o seu relacionamento com minha sobrinha. — “Jura, velho? Acho que ninguém percebeu”, pensei, contendo o sarcasmo. — Sou amigo da família há anos e, mesmo não sendo de sangue, considero-me parte da família. — “Sanguessuga.” — Agora que você sabe da minha ligação com os , precisamos conversar sobre negócios.
Respirei fundo. Estava pronto para recusar o que quer que fosse. Não queria me envolver com nada vindo de Davi Martinez. Mas antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele abriu uma pasta sobre a mesa e começou a tirar uns papéis.
O nome "Adit" brilhou em letras douradas no documento. “Proposta de Fusão — WDM Corp & Group”. Meu estômago deu um giro. Inclinei-me para dar uma olhada. Pareciam contratos, ou algum tipo de proposta... ou talvez os dois.
— Senhor, sabe que eu não tenho qualquer influência sobre os , certo? — Falei, com cautela, tentando não soar provocativo.
Eu mal conhecia aquela família. Eu mal conhecia !
— , tsc, tsc... — Levantou-se com ares teatrais e deu a volta na mesa imponente e se aproximou de mim. — Você ainda é um menino no mundo dos negócios, garoto. — Tentei argumentar, mas ele me cortou com um gesto. — Vou te contar uma história breve. Kapur é um velho amigo meu. Quase um irmão. Mas é um tolo quando se trata de dinheiro. Perdeu tudo por causa de uma americana e agora vive como um pobre coitado no centro de Mumbai. Mas o irmão dele, Adit... ah, esse sim é um homem impressionante...
Kapur. Era o pai da Kiara. A minha verdadeira namorada . Ou ex, sei lá. Naquele momento, essa era a menor das preocupações.
Continuei ouvindo, surpreso com o quanto Martinez sabia sobre aquela família. Ele falava com tanta propriedade que parecia íntimo da árvore genealógica dos . Não consegui evitar a pergunta silenciosa que surgiu na minha cabeça: será que ele sabia também que meu relacionamento com era uma mentira?
Talvez, se Kiara ainda usasse o sobrenome da família, esse jogo teria começado antes. Mas não era dela que Davi queria se aproximar. Nem de . O que ele cobiçava ia além do sobrenome. Ele queria Adit .
— Adit é o presidente atual da Company. O único daquela família que nunca caiu nos meus encantos. Ele me odeia. — Foi ali que tudo fez sentido. — , tenho uma proposta para você.
Eu podia ter dito não. Podia ter me levantado, mandado ele se ferrar e saído com o pouco de dignidade que ainda me restava. Mas não fiz nada disso.
Fiquei.
Eu tinha contas. E não eram simples. Eram buracos cada vez mais fundos, que nenhuma rescisão contratual seria capaz de cobrir. Dívidas que envolviam minha irmã, minha mãe... Coisas que não se resolviam com princípios. Então me calei.
Travei a mandíbula, empurrei qualquer resquício de moralidade para o canto mais escuro de mim mesmo e encarei Martinez, fingindo uma indiferença que eu não sentia. Em seguida, largou a caneta com um estalo seco e me encarou.
— Sabe por que eu te chamei aqui, ?
— Imagino que tenha a ver com minha vida pessoal, já que virou pauta por aqui.
— "Vida pessoal". — Ele soltou uma risada curta, debochada. — Engraçado ouvir isso de alguém que tratou a minha empresa como se fosse a sua conta bancária pessoal.
Meu estômago revirou.
— Eu não faço ideia do que o senhor está falando.
— Tsc, tsc... — Ele se levantou devagar. Sua sombra caiu sobre mim como uma ameaça silenciosa. — Vamos ao que interessa. Você me dá acesso aos … — apontou para um documento sobre a mesa, onde lia-se claramente Vice-Presidente Sênior — …e eu esqueço que você desviou duzentos e oitenta e sete mil reais da empresa.
O tempo parou. O tique-taque do relógio na parede bateu como martelo dentro da minha cabeça.
— Eu... eu não...
Minha voz falhou.
Ele ligou o laptop e, segundos depois, minha própria voz preencheu a sala: “Usa o fundo de reserva, depois eu resolvo.”
Era a gravação do dia em que Nina quase perdeu a bolsa. Eu tinha feito o que precisava. O que achei que ninguém descobriria.
— Dois crimes. — Disse, contando nos dedos, como quem explica algo a uma criança. — Apropriação indébita e fraude contábil.
Virou o monitor em minha direção. Um e-mail meu para o contador. Depois, uma planilha com movimentações suspeitas. Números alterados. Datas incoerentes. E então, uma pasta com e-mails impressos.
— Você pediu para adulterar os registros. Por e-mail. — Abriu a última gaveta e puxou um pen-drive prateado. — E aqui dentro... está tudo. Relatórios originais. Gravações. Até uma ligação com o financeiro. — Jogou o pen-drive sobre a mesa. Ele deslizou lentamente até parar bem à minha frente. — Você usou verba da empresa para pagar a faculdade da sua irmã. Para impedir o despejo da sua mãe. Coração generoso, . Pena que isso ainda é crime.
Meus olhos correram do contrato para o pen-drive. E então, finalmente, para o rosto dele.
— O que o senhor quer?
— Que você convença sua namoradinha a abrir caminho. Fazer com que ela fale com o titio. Me entregue documentos, cláusulas, contratos... qualquer coisa que possa desgastar o velho Adit. Com o material certo, eu compro. Ou destruo.
Trinquei os dentes. Permaneci em silêncio. Martinez se aproximou mais um passo e deu dois tapinhas no meu rosto, como se estivesse acariciando um cachorro obediente. Peguei o pen-drive com a mão trêmula. Ele não desviou o olhar, sorria com a calma de quem já havia vencido.
— Feche a porta quando sair.
E eu fechei. Com a alma mais pesada do que qualquer contrato já assinado.
— Ժ —
Saí da sala de Davi Martinez com a cabeça girando. Era como se ele tivesse despejado uma tonelada de informações diretamente no meu cérebro, à força, sem qualquer cuidado com os estragos. Eu andava no automático, sem realmente enxergar o caminho até minha mesa. Sentei na cadeira como quem desaba. Ainda sentia o peso daquele pen-drive no bolso, como se ele tivesse o poder de me afundar ou me salvar, dependendo do próximo passo.
Baixei os olhos para o celular na minha mão, e antes que pudesse pensar duas vezes, abri o aplicativo de mapas. Meus dedos se moveram sozinhos.
Company.
Fiquei olhando para o trajeto traçado no visor, como se ele fosse me responder alguma coisa. Como se, de algum jeito, o GPS pudesse me dar um rumo moral também.
Não demorei a chegar ao prédio comercial da . Ele ficava próximo de onde eu trabalhava e o trajeto podia ser feito em vinte minutos ou menos. O céu já estava escuro, o expediente havia terminado e havia grandes chances de eu estar ali à toa. Ainda assim, me lembrava de Nina comentar que costumava sair tarde do trabalho. Resolvi arriscar.
Entrei no imponente edifício e segui direto para o andar dela. O local estava quase vazio, a maioria dos funcionários já havia ido embora. Caminhei até a recepção e informei que procurava por . O atendente fez uma ligação breve e, para meu alívio, liberou minha entrada.
Poucos segundos depois, cheguei ao último andar do prédio luxuoso e ao sair do elevador, deparei-me com um único rapaz sentado atrás de uma mesa simples. Ele parecia jovem — talvez um estagiário — e seu crachá dourado deixava claro seu cargo: "secretário".
— Olá, boa noite — Cumprimentou, mas sua expressão cansada sugeria que eu era a última pessoa que ele queria atender naquela noite, ainda que não fizesse ideia de quem eu era. — Posso ajudar?
— Boa noite. Sou . A ainda está aí?
— O senhor tinha horário marcado? — Perguntou, abrindo a agenda sobre a mesa.
— Não. Sou apenas um amigo. Ela está?
Sabia que sim. O porteiro não teria me liberado se ela já tivesse ido embora. E, de onde eu estava, conseguia ver a luz vazando pela fresta da porta. Nela, a placa dourada exibia seu nome completo, seguido do título em letras discretas: Diretora Financeira.
— Vou verificar. Um segundo. — O rapaz suspirou, levantando-se como se carregasse cinco pedras nos bolsos. Ele bateu à porta com leveza e, após um breve diálogo que não consegui ouvir, voltou e assentiu com um gesto preguiçoso. — O senhor pode entrar.
Agradeci rapidamente e me aproximei da sala, desviando o olhar dos quadros elegantes que decoravam o corredor.
O escritório de era amplo, moderno e sofisticado. Uma parede inteira de vidro revelava a cidade iluminada lá fora. À esquerda, uma estante embutida abrigava livros organizados, uma pequena televisão e alguns objetos decorativos. A mesa de trabalho era normal, com duas cadeiras à frente. Um sofá branco e uma mesinha de apoio completavam o ambiente.
— Oi, Ant. — Ela sorriu ao me ver, levantando-se da cadeira e vindo em minha direção.
Deus sabe o quanto eu tentei não encarar suas pernas. Juro que tentei. Mas ela usava uma saia lápis escura e uma blusa com alças finas que deixava os ombros à mostra e insinuava mais do que mostrava. A própria definição de uma mulher poderosa — e completamente fora do meu alcance — em um ambiente corporativo.
E, claro, ela percebeu o exato momento em que meus olhos desceram por seu corpo. Seu sorriso teve um canto ligeiramente erguido. Sutil o suficiente para me fazer questionar se não era coisa da minha cabeça.
— Oi, . Desculpa aparecer assim, sem avisar. Eu só… vim.
— Está tudo bem? — Perguntou, com um cuidado que me desmontou um pouco. — Você nunca veio aqui antes.
— Aconteceu uma coisa... — Caminhei até o sofá branco. Sentei devagar, tentando parecer relaxado, mas por dentro, meu coração ainda batia no ritmo descompassado da última conversa. — Fui promovido.
— Uau… que... que legal, — Respondeu com um sorriso hesitante, forçado. Tentava soar empolgada, mas seus olhos já buscavam a segunda camada do que eu estava prestes a dizer. — Parabéns?
— Vou te dar um tempinho para juntar as peças — Murmurei, afrouxando a gravata e recostando no sofá. Observei o rosto dela se transformar: da confusão à desconfiança... até chegar no choque.
— Não. — balançou a cabeça, como se rejeitasse a ideia antes mesmo de digeri-la. — Não pode ser.
— Pode, sim.
— Davi? — Ela deu um passo à frente, a voz mais tensa, como se já soubesse a resposta. — Por favor, me diz que isso não tem a ver comigo.
— Infelizmente… tem tudo a ver com você.
Ela soltou uma risada nervosa, seca. Depois se calou, como se estivesse tentando absorver o que acabara de ouvir.
— Eu não acredito. — Disse, num tom mais baixo, quase para si mesma.
O gosto amargo da conversa que tive mais cedo ainda pesava na minha garganta. Eu não sabia se era indignação, vergonha ou algo entre os dois. Talvez um pouco dos dois.
Quando entrei naquela sala, não fazia ideia de que sairia de lá tão indignado. Davi Martinez não só passou por cima de qualquer senso de ética, ele pisoteou. Disse absurdos que jamais poderiam ser repetidos, especialmente para .
A cereja do bolo? A sugestão dele de que eu a engravidasse. Engravidasse. Como se ela fosse uma jogada estratégica em uma partida suja de xadrez corporativo.
E, ainda assim, a parte que mais me corroía era o fato de que ele achou que eu aceitaria. Como se fosse natural. Como se fosse fácil. Como se ele soubesse que, no fundo, eu poderia ser comparado. O mais humilhante?
Ele não estava completamente errado.
se afastou, balançando a cabeça. Levantou-se da mesa e começou a andar de um lado para o outro, os saltos ecoando no piso impecável. Passou uma das mãos pelos cabelos, os dedos tensos, inquietos.
— Martinez está obcecado. E não é por você. Nem por mim. É pelo seu pai. Ele quer entrar na a qualquer custo.
— E o que ele quer?
O tio de não era conhecido por jogar limpo e sua nova oferta não fugia à regra. Não era segredo que ele vinha tentando se infiltrar nas empresas dos há tempos, buscando uma brecha para posicionar-se estrategicamente em uma das divisões mais influentes. E agora, com minha suposta proximidade com , o homem viu a oportunidade perfeita e mais fácil de inserir-se no setor jurídico por meio da diretora de finanças.
“Eu já tenho um plano, só quero uma chance, sei que com um simples caso lá dentro, consigo me instaurar lá dentro como uma praga”, me recordei das palavras frias do homem.
— Tudo. Documentos, acesso, brechas legais. Mas, mais do que isso… ele quer você. Não no sentido pessoal — Apressei-me a explicar, para evitar mal-entendidos —, mas como porta de entrada. Ele sabe que o Adit confia em você. E que, em tese, você confia no seu “namorado”.
Ela franziu o cenho, piscando devagar, como se começasse a montar o quebra-cabeça.
— Você está me dizendo que ele quer que eu entregue informações? Usando você como isca? — Não respondi. Apenas a encarei. E o silêncio entre nós falou mais do que qualquer palavra. — Ele te ameaçou? É por isso que você está aqui?
Inclinei levemente a cabeça, desviando o olhar.
— Davi Martinez nunca pede. Ele impõe. — Ela assentiu devagar, os olhos ainda cravados em mim. Estava desconfiada, tentando decifrar o que eu dizia e, mais ainda, o que eu não dizia. — Ele quer coisas específicas... Cópias de contratos. Cláusulas confidenciais. Acha que, com a documentação certa, pode derrubar o Adit... ou comprá-lo.
— Isso é crime, .
— Eu sei. Mas o Davi não liga para legalidade. Ele só quer resultado.
O silêncio caiu de novo. A cidade, lá fora, visível através da parede de vidro, parecia distante, alheia.
— Por que você está me contando isso?
A verdade que não disse: Porque o pen-drive com as provas queima meu bolso como um carvão em brasa. Porque preciso que você me odeie o suficiente para ficar longe, mas não tanto para me denunciar.
— Porque eu preciso que você esteja atenta. Que se proteja. E que entenda que... se alguém aparecer querendo esse tipo de informação, não vai ser coincidência.
— E o que você vai fazer?
Gostaria de ter a resposta. Mas, por enquanto, só tinha dúvidas.
— Ainda estou tentando descobrir.
assentiu devagar. E, mesmo sem confiar completamente, ela entendeu. Porque era inteligente. E, acima de tudo, corajosa.
— Não acredito nisso. Não acredito que ele está tentando usar você assim. É tão covarde, tão baixo. — A voz de estava cheia de raiva, seus olhos queimando enquanto ela olhava para mim. — Não consigo acreditar, é um absurdo! É ridículo! — Indignou-se, balançando a cabeça.
— Ele disse que sabia que a já não era apenas uma montadora há tempos. E que não entendia por que nunca conseguiu se tornar sócio — Contei, tentando manter o tom neutro. Mas meu sangue ainda fervia só de lembrar.
Repassei a , com exatidão, cada palavra que Martinez dissera. Não omiti nada... ou quase nada. Usei os mesmos termos que ele, as mesmas expressões. Se antes ele já tinha poucas chances de conseguir alguma parceria com os , agora eu havia enterrado de vez qualquer possibilidade.
— É claro que ele nunca conseguiu! O imbecil é um asno quando se trata de finanças. E, além disso, é sujo. Se é que você me entende. — Ela passou a mão pelos cabelos, balançando a cabeça, como se lutasse para entender como aquilo tinha escalado tão rápido.
— O trabalho dele é uma farsa. Não é segredo para ninguém. Ele passa a perna em investidores, mente nos relatórios, manipula os números. A teria mais prejuízos do que lucros se se envolvesse com um cara desses.
Ela parou por um segundo, respirando fundo.
— Como você está?
— Bom… tirando o fato de que a promoção que eu sonhei por anos surgiu por conta de uma mentira... — Ironizei, antes de me dar conta do que havia deixado escapar.
A expressão dela mudou. Da indignação para um misto de culpa e decepção. abaixou os olhos, e por um segundo, tudo que ela carregava explodiu em silêncio. Me xinguei mentalmente. A culpa não era dela. Nenhuma parte disso era.
— Calma, a culpa não…
— Me desculpa, Ant. De verdade. Eu nunca imaginei que… — Ela começou a dizer, atropelando as próprias palavras. Mas eu a interrompi também.
— Você não tem culpa, . — A voz saiu mais firme do que eu esperava. — Você só tentou me ajudar. E deu certo, no fim das contas. Consegui a promoção. E o respeito do meu chefe.
— Tenho certeza de que você merecia a promoção, apesar dessa maluquice do tio Davi. — Tentou me reconfortar, tocando meu ombro que, mesmo de forma leve, deixou minha pele em alerta, mesmo por debaixo da camisa e do paletó.
— Eu espero que sim, — Murmurei, pesaroso. — Pensei seriamente em pedir demissão hoje… mas eu tenho contas para pagar.
O olhar dela se tornou um espelho incômodo: cheio de decepção, raiva, frustração. Tudo junto. Ela estava genuinamente abalada por tudo aquilo, talvez até mais por mim do que pelo próprio Martinez. E isso só tornava tudo ainda mais difícil de engolir. Eu me odiava por ter me envolvido com aquilo, por ter permitido que ele me usasse. Por, de alguma forma, ter deixado que isso nos envolvesse.
Meus pensamentos foram interrompidos por batidas na porta.
se levantou e eu a acompanhei com o olhar. Não por malícia — eu não era um pervertido —, mas porque ela era linda. Linda de verdade. E havia algo nela que tornava impossível não olhar. A forma como ela caminhava, confiante, como se soubesse exatamente quem era. Aquela saia justa... deixava seu corpo num formato quase irreal.
Eu podia jurar que a curva da sua bunda parecia um coração perfeitamente desenhado.
— Senhorita, seu jantar chegou. Devo...? — O rapazinho disse, hesitante. Me preparei para levantar, imaginando que aquele era meu sinal para ir embora, mas ela se virou antes que eu dissesse qualquer coisa.
— Você já jantou?
— Ainda não, mas eu já estava indo para casa.
— Aqui tem mais do que o suficiente para nós dois, — Pegou a sacola das mãos do estagiário. — Me ajuda aqui? — Me apressei para tirar o peso das mãos dela, pegando as sacolas. — Obrigada, Pat.
— É… na verdade, eu queria saber se… — Começou ele, parecendo meio nervoso. Mas logo o cortou, rindo.
— Ah, o seu encontro! Me desculpa, você devia ter me avisado. Pode ir, Pat. Está liberado, não se preocupe.
— Obrigado, senhorita. E… não é um encontro. — Retrucou, envergonhado. O que só arrancou mais risadas dela.
— Claro que não. — Piscou provocante para o rapaz antes de fechar a porta.
Se ela piscasse assim para mim… bom, seria meu fim. Eu, fraco como era para mulheres como , passaria dias lembrando daquela piscada.
— Tem certeza de que não estou atrapalhando? — Perguntei, ainda meio sem jeito. — Você deve ter trabalho a fazer.
— Eu te coloquei numa confusão, Ant. O mínimo que posso fazer é te oferecer um jantar. Você gosta de yakissoba?
Assenti, já ajudando a tirar os potes plásticos da sacola.
— De qualquer forma, se você ainda está aqui a essa hora, deve ter uma pilha de coisas para resolver.
— Eu sempre tenho. — Respondeu com um meio sorriso, dando de ombros. — Por que está de óculos?
— Esqueci minhas lentes — Devolvi o gesto, também encolhendo os ombros. Achei curioso ela ter notado um detalhe tão pequeno.
Ela ligou a TV num jornal qualquer, apenas para ter um som de fundo e seguimos arrumando as coisas juntos. Conversamos mais um pouco sobre Martinez, sobre meu trabalho. A mesa de centro ficou lotada. Era comida demais para uma pessoa só e o cheiro do yakissoba era simplesmente irresistível. Pensei no arroz requentado me esperando em casa e decidi que, dessa vez, eu não fingiria educação.
Eu nunca tive intimidade com . Desde os tempos de escola, éramos pouco mais que conhecidos. Se alguém me dissesse que um dia eu estaria sentado no chão do escritório dela, numa segunda-feira à noite, compartilhando um jantar improvisado — e delicioso —, eu pediria data, hora e localização. Não porque duvidasse. Mas porque, sinceramente, não iria querer perder isso por nada.
— E ele é seu estagiário à…?
— Dois anos — Respondeu, deixando os hashis dentro da embalagem vazia. — Ele é ótimo. Estou preocupada agora com o contrato dele chegando ao fim. Você é advogado, me diz: o que acontece se eu mantiver ele aqui por mais alguns anos?
— Se após a formatura dele, ele não receber bonificações, salários e um contrato específico para área dele, você vai ser processada.
— Não posso só pagar uma multa e seguir com ele? — Ela fez um biquinho, distraída.
Foi a primeira vez naquela noite em que senti, de verdade, vontade de beijá-la.
— Pelo menos você tem a Nina. Ela com certeza te visitaria na prisão. — riu e eu a acompanhei. Olhei para a parede de vidro ao nosso lado, onde nuvens carregadas tomavam o céu. Se eu forçasse a visão, podia ver as primeiras gotas de chuva começando a cair. — Tem algo no seu rosto… acho que é molho.
Ela corou levemente, pegando um guardanapo. Mas antes que pudesse usá-lo, me aproximei e peguei de sua mão. Com cuidado, limpei o canto de seu queixo. Ela permaneceu imóvel, me deixando fazer aquilo. Por um segundo, nossos olhos se encontraram e o tempo pareceu parar.
Minha mão ainda repousava em seu rosto, um segundo além do necessário, quando ela quebrou o silêncio com uma pergunta inesperada: — Você é um bom advogado?
— A-acho que depende da área. Sinceramente, acho que seria melhor se tivesse mais chances de… trabalhar de verdade. Ultimamente só faço relatórios e despachos. Nada meu, sempre dos outros advogados. Me sinto mais estagiário que advogado. — Hesitei, então soltei com um sorrisinho: — Acho que fiz um mau negócio em recusar a proposta do Martinez.
— Não! Você não está à venda, Ant. Nós não estamos. — Apontou o dedo para mim, firme. — Você é bom em direito corporativo?
— Oh, não! Vai me obrigar a dar consultoria de graça, não é? — Brinquei, fingindo exaustão.
Ela riu e se levantou, indo até a mesa. Voltou com uma pasta nas mãos e um sorriso travesso no rosto.
— Era nisso que eu ia trabalhar agora. Mas está lotado de palavras difíceis e “juridiquês” que me dão sono. E veja só que sorte: tem um advogado sentado no chão do meu escritório… e o melhor, ele parece cheio de boa vontade.
— A dívida entre nós só aumenta.
Não percebi o quanto aquela frase podia soar dúbia — ousada até — até sentir o silêncio que se formou logo depois. O clima mudou. Pesou. Quando a olhei por cima da lente dos óculos, ela já me encarava, séria… ou talvez só concentrada. Eu não sabia ler direito o que via ali. Só sabia que estava ficando difícil desviar o olhar.
Um trovão forte nos assustou, fazendo com que ambos virássemos para a janela ao mesmo tempo, vendo a chuva desabar lá fora.
— Contanto que a gente consiga se ajudar...
Fraco para mulheres. Fraco para ela.
Assenti, abrindo a pasta no colo, folheando lentamente as páginas. Qualquer desculpa para não a encarar mais.
Voltamos a nos sentar no sofá. Apesar de espaçoso e confortável, ele tinha apenas dois lugares, o que fez com que nossos corpos ficassem inevitavelmente próximos. Senti o ombro de encostar no meu. Um toque leve, quase nada, mas ainda assim, parecia que o atrito entre nossas peles gerava faíscas.
Ela usava uma blusa sem mangas, e eu, embora já tivesse tirado o paletó, ainda vestia uma camisa social grossa demais para que pudesse sentir verdadeiramente sua pele. Mas só a ideia de estarmos encostados já fazia minha respiração oscilar um pouco.
Ouvi o barulho do controle da TV em suas mãos, depois o som dos dedos deslizando pela tela do celular. Ela parecia distraída, dividida entre os aparelhos. Eu, por outro lado, não conseguia me dividir nem por um segundo. O caso em minhas mãos exigia atenção e de fato era interessante, uma causa praticamente ganha para a companhia de energia que a havia contratado.
Mas por mais que tentasse focar nas cláusulas, nos argumentos, na jurisprudência possível, havia algo muito mais difícil de ignorar do que um erro processual ou um parecer mal escrito: . Sentada ao meu lado, com aquele calor sutil irradiando de sua pele, com aquele perfume leve que parecia se misturar ao som da chuva do lado de fora, ela parecia uma distração calculada e inevitável.
— Posso comer sua tortinha? A minha já acabou. — Ela me perguntou com um sorriso travesso, e eu, sem hesitar, assenti, pegando a tortinha de chocolate da mesa e entregando a ela. Ela a pegou, parecendo satisfeita. — E então?
— Você precisa de um advogado. — Sugeri, tentando manter o tom sério.
— Acho que preciso. — Ela respondeu, me olhando com um brilho nos olhos que fez minha garganta apertar um pouco. Aquela olhada parecia proposital e o jeito como ela falou fez com que eu me sentisse à beira de um jogo. Mas, antes que pudesse me perder mais, ela continuou. — Pode continuar.
— É sério, mulher. Vocês precisam de um advogado. Com mais um pouco de provas contratuais, a companhia ganha a causa. — Dei uma risada, quase aliviado, mas ainda preocupado com a gravidade da situação.
— Me fale de números, . Quanto eu vou gastar com isso? — Ela perguntou, voltando à sua postura pragmática e firme, como se a conversa fosse algo totalmente normal.
Isso me fez sorrir, não pude evitar. O pessoal de exatas tem essa característica, não é? Tudo é mais objetivo.
— Exatamente eu não sei, mas deve envolver algo acima de cinco dígitos, com certeza. — Falei, tentando ser o mais realista possível.
— Entendi. Amanhã vou contatar o advogado daqui. O que devo falar? — Ela perguntou, e naquele momento, virou-se completamente para mim, com o corpo voltado na minha direção. Ela mordia a torta de morango de maneira simples, que não devia ser tão provocadora, não devia ser tão convidativa. Mas era.
— Bom, inicialmente, a companhia vai se negar a fazer muita coisa sem um mandado judicial. Eles irão recorrer ao sigilo contratual, então vocês devem ir preparados para isso. Existem juízes que podem autorizar alguns planos por meio de editais, mas… — Eu ia continuar, quando percebi o sorriso leve de se transformando em uma risada contida. — O que foi? — Perguntei, surpreso com a mudança de expressão dela.
— Acabei de lembrar de você na época da escola. Parecia um menininho, todo sério, e agora você se tornou um advogado de verdade. Que coisa, não é? — Ela disse, a risada ainda na voz, fazendo com que eu me visse tentado a rir junto.
— Eu também lembro de você na escola, . Não somos de anos tão diferentes, não. — Falei, sem conseguir evitar o sorriso. Mas, ao dizer isso, um sentimento estranho se formou no meu peito. Nostalgia, sim, mas também um certo espanto. Não pude deixar de me perguntar como é que eu, , um simples ex-colega de escola, estava ali, sentado ao lado de . — Na verdade, você é mais velha que eu, não é? — Questionei, como se de repente, a verdade estivesse saindo sem querer.
— Apenas um ou dois anos, ! — Ela rebateu, com o tom de voz exasperado e, ao mesmo tempo, divertido. — Os anos me conservaram bem, é claro.
Com um movimento quase teatral, ela jogou o cabelo para trás, como uma verdadeira princesa. Aquilo foi o suficiente para fazer com que eu caísse em uma risada. Eu não era um cara de muitos sorrisos e risadas, eu sempre parecia mais sério do que gostaria, mas me deixava leve e confortável o suficiente, ocasionando assim alguns sorrisos despretensiosos em mim.
— Os anos te ajudaram, . — Comentei, rindo da atitude presunçosa dela. sabia exatamente o efeito que causava em mim e não fazia questão alguma de esconder isso. — Sabe, lembro distintamente de você ser a garota nerd e reservada da escola. Ainda tem um rosto de menina, seus cabelos cresceram pouca coisa... mas mesmo assim, você está mais bonita do que nunca. — Deixei meus olhos correrem por seu rosto sem nenhuma tentativa de disfarce.
As bochechas dela coraram levemente, mas seus olhos ganharam um brilho travesso que me fez perceber que alguma resposta já se formava na sua mente. Ela se inclinou para frente com uma suavidade quase ensaiada, apoiando o queixo na mão e me lançando um olhar que misturava provocação e leveza.
— Oh, por favor. Você faz parecer que eu era uma completa nerd reclusa. Está dizendo que continuo igualzinha a dez anos atrás? — O sorriso nos lábios dela deixava claro que ela entendeu meu ponto, mas preferia rebater com desdém fingido. — E você? Era o quê? O bad boy sempre metido em confusão?
— O que você chama de "bad boy", eu chamo de "malcompreendido". — Me recostei no sofá com um ar de falsa modéstia. — Nina sempre diz que você é a pessoa mais tímida que ela conhece. E que você sempre foi uma criança quieta. Mas eu nunca te vi assim. Pelo contrário, desde os seus quinze anos, sempre achei você segura demais para uma adolescente. Parecia que já sabia quem era.
Tentei puxar da memória uma imagem da adolescente, mas não consegui. Era como se a versão atual dela dominasse completamente meu pensamento, sufocando qualquer lembrança do passado. A presença dela agora era intensa demais. O passado se desfazia diante dela.
— E você não sabia? — Ela ergueu a mão devagar e, com o dedo indicador, empurrou meus óculos de volta para o lugar, no alto do meu nariz. O gesto parecia casual, ou talvez nem tanto. Mas o efeito foi imediato.
— Com quinze anos? Ninguém sabe, . — Tentei manter a compostura, mas o toque sutil me pegou desprevenido. — Você sempre soube o que queria. E, sinceramente? Acho que até hoje a gente só finge que sabe quem é. No fundo, está todo mundo só interpretando um adulto, enquanto por dentro continua aquele adolescente de quinze anos tentando entender leis tributárias e o mercado financeiro.
— Eu sempre achei você seguro de si. Até convencido demais, para idade que tinha. — Ela disse, com uma expressão que misturava lembrança e provocação.
— Tudo fachada. Não para impressionar colegas ou namoradinhas. Mas pela minha mãe. Pela Nina. Elas precisavam de alguém forte e eu tentei ser isso. — Quando meus olhos se abriram de novo, percebi o quanto estávamos próximos naquele sofá. — Eu era só um moleque tentando entender quem era. Você, por outro lado… sempre pareceu ter tudo sob controle.
— Nem tudo foi exatamente planejado. — Ela desviou os olhos por um momento e suas bochechas coraram de novo. Foi rápido, mas eu vi. Pela primeira vez, um resquício de timidez escapou. — Eu, definitivamente, não planejei estar compartilhando o jantar com você, .
Um sorriso puxou os cantos dos meus lábios ao perceber uma pitada de vulnerabilidade em suas palavras. Havia algo desarmado ali, quase imperceptível, e não pude evitar me perguntar se ela também estava sentindo o mesmo puxão estranho que eu sentia. Era uma sensação leve, mas insistente, como se uma tensão silenciosa pairasse entre nós, aguardando para ser reconhecida.
— A vida nos leva a lugares inesperados, não é? — Notei que ela levou as mãos ao cabelo, tentando prendê-lo, provavelmente. Mas os segundos passavam... e uma das mãos continuava lá. — Tudo certo aí? — Perguntei, tentando não rir ao ver a expressão concentrada dela.
— Na verdade, não. Minha pulseira ficou presa no cabelo. — Ela resmungou, claramente irritada com a situação.
— Vira. Me deixa ajudar.
Ofereci ajuda... e no segundo seguinte, me arrependi.
Ela virou de costas devagar, inclinando levemente a cabeça para o lado para me dar acesso ao cabelo preso. A pulseira, de correntes finas e delicadas, tinha se enrolado em uma mecha. Era um emaranhado pequeno, mas exigia cuidado. Aproximei meu rosto sem perceber, os dedos se movendo devagar, tentando desfazer o nó metálico entre os fios.
A pele da nuca dela estava à mostra, morna, e o cheiro do seu perfume era discreto, mas presente. Algo entre flores e conforto. Me concentrei na tarefa, ou tentei. O problema era que meu coração parecia bater alto demais, como se pudesse denunciar que algo dentro de mim estava mudando.
— Você está tenso. — A voz dela veio baixa, quase como uma constatação divertida.
— Estou tentando não arrancar um pedaço do seu cabelo, . — Respondi no mesmo tom, tentando disfarçar o quanto minha proximidade com ela estava me afetando. — É uma tarefa perigosa.
— Claro. Perigosíssima. — Ela sorriu de leve, sem virar o rosto, mas eu vi o canto dos lábios se levantar.
Continuei concentrado, até que, com um movimento cuidadoso, consegui soltar a pulseira. Meus dedos tocaram levemente a pele da nuca dela por um segundo a mais do que o necessário. Ela percebeu. Eu também.
— Está cheio de grampo aqui. — Murmurei enquanto tentava entender a estrutura instável do penteado.
— Técnica de sobrevivência. Três reuniões seguidas, um café derramado e nenhum espelho.
— Pronto. — Falei, mais baixo do que pretendia. Depois de libertar o último fio da pulseira, deixei minha mão pousada na nuca dela por um segundo a mais do que o necessário. Um toque sutil, mas intencional. — Tenta agora — Ela puxou o braço devagar, testando, e depois com um movimento rápido quando percebeu que estava livre. — Viu? Deu certo.
Num gesto automático, passei a mão por seu ombro nu para remover os fios cortados que haviam caído ali. Não imaginei que o contraste entre minha mão quente e a pele fria dela fosse causar uma reação tão clara. virou levemente o rosto em minha direção, mas não se afastou. Continuávamos ali, próximos, presos em algo invisível. Por reflexo, me inclinei um pouco mais.
— Obrigada. Eu disse que precisava de um advogado. — A voz dela foi baixa, quase um sopro, e ainda assim vibrou diretamente em meu estômago, despertando um nervosismo primitivo.
— De nada. Mas, se posso dizer, acho que você vai precisar de mais do que um advogado... considerando seu talento natural para se meter em encrencas. — Ela revirou os olhos, um sorriso quase contido surgindo no canto dos lábios. — Continue revirando os olhos assim e eles vão acabar ficando presos.
— Estou quase contratando você como meu advogado pessoal.
— Quase? Eu venho dando conselhos jurídicos de graça esse tempo todo e você ainda está no “quase”? O que mais preciso fazer para convencer você de vez? — ergui uma sobrancelha.
— Ah, você não quer saber como me convencer... acredite.
Minha mente se encheu, num piscar de olhos, com possibilidades que eu preferia não detalhar. Me forcei a manter a compostura, mas não consegui esconder o sorriso enviesado. Ela era ousada, segura e isso me agradava mais do que eu gostaria de admitir.
— Isso foi um desafio? Porque, se foi, saiba que eu nunca recuo diante de um.
— É mesmo?
— Sim. E não tenho grandes restrições quanto aos meios que uso para conseguir o que quero.
Não era exagero. Eu conhecia bem minhas armas, elas sempre me levaram longe. Mas cada conquista vinha acompanhada de um peso que, cedo ou tarde, eu teria que carregar sozinho.
— Tem certeza de que quer entrar nesse jogo, Ant? Eu posso ser bem implacável quando quero. Convivo com homens e lobos todos os dias. Sei me virar.
— Não duvido. Mas posso garantir que não sou como nenhum deles.
— E o que te faz diferente?
— Bem, para começar, não tenho muito senso de moralidade. — Continuei, sem rodeios. — E, se quer saber, tenho um talento especial para fazer as pessoas me darem o que eu quero, ainda que sem perceber.
Sabia que aquilo poderia soar quase intimidador, mas estava longe de ser uma confissão cheia de culpa ou arrependimento. Era apenas uma verdade sobre mim, uma das várias que eu não fazia questão de esconder, apesar de sentir vergonha com alguns aspectos mais brutos da minha personalidade.
— E... o que você quer agora?
Esse era o problema — um dos muitos — com . Ela não se intimidava. Nem por um segundo.
— Você não tem ideia do que eu quero agora.
Quando seu corpo se virou ainda mais e nossos olhos se encontraram, percebi que o que estava prestes a acontecer era inevitável. Eu iria beijar e ela iria deixar.
Vi meu desejo refletido nos olhos dela e, percebi, com um certo alívio carregado de tensão, que ela sentia exatamente o mesmo. Aquele magnetismo entre nós não era unilateral. Ela também estava sendo puxada para mim, com a mesma força crua e inevitável.
Já não havia espaço para dúvida, muito menos para recuo. Se eu pensasse demais, poderia vacilar. Então, sem dar a mim mesmo essa chance, estendi a mão e segurei seu queixo com delicadeza, guiando seu rosto para cima, em direção ao meu. Os olhos de abandonaram os meus e desceram lentamente até minha boca. Quando ela fechou as pálpebras, uma onda de satisfação atravessou meu corpo. Não de maneira arrogante, mas como se, enfim, algo fizesse sentido.
Uma vontade quase infantil de comemorar me invadiu. E eu soube, com todas as certezas possíveis, que a única forma aceitável de comemorar aquilo era encostando meus lábios nos dela.
A atmosfera em volta de nós parecia carregada, nem sequer havíamos nos tocado de fato, e tudo já queimava.
Puxei-a para mais perto, aprofundando o beijo, minha mão deslizando do seu queixo para a nuca, segurando-a firmemente contra mim. Passei os lábios nos dela, subi por suas bochechas, passei pela mandíbula e voltei para seus lábios, tudo isso para tentar gravar a textura macia de sua pele.
Tentei ser o mais atencioso possível, pois não sabia quando teria essa oportunidade de novo. Mas não estava com tanta paciência e capturou meus lábios rapidamente. Não demorou muito para que eu perdesse o controle, puxando-a pela cintura e virando o seu corpo de frente para mim.
Aquilo não estava certo. Eu precisava me afastar imediatamente. Era um erro acontecendo, principalmente em um momento como aquele. Se fosse em qualquer outro dia, eu não pensaria duas vezes, mas naquele dia, especificamente, estava tudo estranho, incerto e anormal.
— Me pare. — Pedi num sussurro rouco, minha respiração pesada. Deslizei a mão pela perna dela até alcançar os pés, retirando seus sapatos com calma, como se isso adiasse o inevitável. — , me pare, por favor.
Passei as mãos sob seus joelhos e a puxei para o meu colo. A saia apertada limitava seus movimentos, mas suas coxas apertando minha cintura pareciam um convite impossível de ignorar. afastou os lábios dos meus, sem desviar o olhar, e seus dedos encontraram o nó da minha gravata, desfazendo-o com precisão.
- Me pare você, Ant.
Mas eu não podia. Não queria. Permaneci imóvel, deixando que ela conduzisse. Quando puxei sua saia para cima, senti seu corpo pressionar ainda mais contra o meu e soltei o ar com um som quase desesperado.
— Ainda dá tempo de fugir... — Murmurei, a voz carregada de um último traço de lucidez.
— Mas eu não quero fugir.
Soltei um gemido fraco quando senti seus mamilos duros contra minha camisa, os quadris buscando os meus com uma urgência que me desarmava por completo. Eu já sabia: não iria parar enquanto não estivesse dentro dela. E ela queria o mesmo.
— Espera... Aqui não. — Disse, lançando um olhar rápido para a porta.
— Vai ser rápido. — Prometi, já a colocando contra o sofá com certa pressa.
— Isso é loucura... — Falou, mas seus dedos já estavam abrindo os botões da minha camisa.
Sem motivo algum, nós tínhamos pressa. Com rapidez e vontade, minha camisa foi para o chão junto a saia de . As respirações ofegantes se misturaram enquanto nos beijávamos de forma voraz. O jeito como ela movia o quadril em cima de mim era satisfatório, mas seria melhor se estivéssemos sem as camadas de roupas nos cobrindo.
Nem o som das trovoadas do lado de fora do edifício tirou nossa atenção. Eu sentia meus lábios inchados, meu corpo ardia e até minhas pernas estavam bambas, mesmo que eu estivesse sentado.
Se antes era quem parecia tomada pela pressa, a dinâmica mudou no instante em que senti suas mãos deixarem meus ombros e irem direto para o cós da minha calça. A urgência agora vinha de nós dois. Era palpável e quase desesperada. Desci os beijos pelo seu pescoço, absorvendo o cheiro adocicado da sua pele, e fui até a borda da calcinha preta que cobria sua intimidade. Levantei os olhos em direção ao rosto dela, procurando por qualquer sinal de hesitação. Mas o que encontrei foi a confirmação silenciosa que eu precisava: um leve aceno com a cabeça e o quadril erguido para me ajudar a tirar a peça por completo.
Sorri, satisfeito. Era real. Estávamos ali, juntos, conscientes do que aconteceria a seguir.
Levei a mão até sua intimidade exposta, roçando levemente com os dedos e encontrei exatamente o que esperava: Tão pronta quanto eu. E, sinceramente, se esperássemos mais um segundo sequer, eu não conseguiria aguentar. Logo, eu estava dentro de , estocando em seu interior com uma urgência crua, quase juvenil.
Era como reviver a sensação de adolescência mal resolvida, o tipo de desejo que nasce quando a melhor amiga da sua irmã passa por você sem sequer notar sua existência… e, mesmo assim, algo dentro de você queima.
Agora, porém, ela estava ali. Em meus braços. Sob meus toques.
Agarrei seus quadris com força, sentindo meus dedos afundados na carne macia. Sua respiração estava quente e pesada contra seu pescoço enquanto ela gemia baixinho e apertava meu corpo com as mãos, sem decidir onde tocar. O som estalado dos quadris se chocando um contra o outro deixava a atmosfera na sala exorbitante e ardente.
Era a melhor segunda-feira chuvosa da minha vida.
não se importava em ficar por cima, sentando-se em meu membro de maneira graciosa e altamente satisfatória de assistir. Eu acariciava sua cintura enquanto assistia os seios fartos dela se moverem quase para fora da camiseta. Ela apoiava as mãos no sofá atras de mim, rebolando em um ritmo delirante.
Rapidamente (e vergonhosamente), não demorou para que eu sentisse que meu ápice estava próximo e foi ainda mais rápido quando sussurrou em meu ouvido que estava “quase lá”.
Senti os lábios dela ferozmente em meu pescoço quando voltei a deitá-la no sofá. Não diminui a velocidade em que já estava. Assisti jogar a cabeça para trás e gemer deliciosamente. Saí de dentro dela quando percebi que estava próximo de ejacular. Iria me afastar e lidar com aquilo sozinho, mas foi mais rápida e envolveu meu membro com uma mão, massageando de maneira rápida e deliciosa, e logo, me desfiz em suas mãos.
Após limpar a mão na própria saia, levou os dedos aos longos cabelos negros e, com a calma de quem tentava reorganizar a própria lucidez, prendeu-os em um coque frouxo. O silêncio que se seguiu foi denso, entrecortado apenas pela nossa respiração ainda descompassada.
Quando nossos olhares se cruzaram de novo, ambos soltamos uma risada abafada, nervosa, descrente, quase desesperada.
— O que diabos a gente acabou de fazer? — Murmurei, levando a mão ao cabelo e penteando-o para trás, como se isso pudesse me trazer algum controle da situação. Uma mistura sufocante de felicidade, culpa e pânico percorreu meu peito, tudo ao mesmo tempo, tudo de uma vez só.
Meu Deus. Eu tinha acabado de transar com .
E por mais que uma parte de mim gritasse que aquilo tinha sido incrível... tudo o que eu conseguia pensar era no tamanho do problema que isso traria. Um grande, grande problema.
— Ժ —
Quando cheguei em casa, já passava da meia-noite. Estranhei ao ver as luzes da sala ainda acesas. Normalmente, àquela hora, a casa já estaria mergulhada no silêncio. Tirei o paletó e o joguei por cima da cadeira. Estava prestes a largar as chaves na mesa quando minha mão parou no ar. No sofá, Nina estava deitada, com alguns papéis espalhados sobre o peito e ressonando suavemente.
Olhei para o relógio e avaliei a situação. Deveria deixá-la ali, em paz no próprio cansaço, ou acordá-la para dividir a loucura que eu acabara de cometer naquela noite?
— Nina? — Murmurei, tocando de leve seu ombro. — Você tem um quarto, sabia?
— Nossa, eu apaguei! — Exclamou, ainda sonolenta, esfregando o rosto com as duas mãos. — Tenho muita coisa para estudar, mas esse sono está me vencendo... — Resmungou, parecendo exausta. — Acho que vou precisar da sua ajuda com um relatório...
Quando decidimos seguir a mesma profissão, nunca imaginamos que o Direito consumiria tanto da gente. As conversas que antes giravam em torno de sonhos, viagens e planos de futuro agora se resumiam a prazos, recursos e audiências. Um amontoado de termos jurídicos substituindo o que um dia foi intimidade de irmãos.
Enquanto ela falava, comecei a mexer nas correspondências espalhadas pela mesa, separando o que iria para o lixo do que ainda merecia atenção. Ela comentava algo sobre jurisprudência e análise técnica, mas minha atenção foi capturada por um envelope destacado com um “AVISO” em letras vermelhas. Meu coração bateu mais forte. Sem pensar muito, escondi o envelope no meio dos outros papéis, fechei tudo em um maço só e os enfiei na mochila.
— Deixa em cima da mesa e eu dou uma olhada para você. — Murmurei, solícito, tentando manter a voz firme. — Eu vou pro meu quarto, preciso de um banho. Vai descansar, Nina.
Passei a mão pelos cabelos castanhos enrolados dela com carinho, num gesto automático e protetor. Depois, segui pelo corredor em silêncio, sentindo o peso da noite inteira acumulando nos ombros. Assim que entrei no quarto, tranquei a porta com cuidado e me recostei nela por um segundo, inspirando fundo.
A primeira coisa que fiz foi abrir a mochila. Vasculhei rapidamente até encontrar o envelope marrom. Minhas mãos tremiam um pouco quando o retirei, como se o papel fosse mais pesado do que realmente era. Sentei-me na beira da cama e o abri com cuidado, já esperando o pior.
A carta era objetiva. Fria. Quase cruel.
“Este é o penúltimo aviso referente ao atraso do pagamento do aluguel do imóvel. Em caso de inadimplência persistente, os serão notificados judicialmente. Favor regularizar a situação com urgência.”
Meus olhos percorreram as linhas mais de uma vez, como se uma releitura pudesse suavizar a gravidade da mensagem. Mas o significado continuava o mesmo: estávamos por um fio. Um único aviso nos separava de uma ação judicial. E eu não tinha a menor ideia de como resolver aquilo.
Um misto de preguiça e cansaço ameaçou me derrubar, mas eu sabia que tinha que concluir alguns trabalhos ainda naquela noite. O plano era mergulhar no computador até a madrugada, mas antes disso, optei por um banho relaxante para tentar recuperar um pouco da energia e clareza que eu sabia que precisaria.
Joguei os papéis na cama e olhei novamente para o espelho. O reflexo me encarava e a sensação de que eu não tinha mais controle sobre nada, nem sobre mim mesmo, era insuportável.
Enquanto tirava a camisa, algo no espelho chamou minha atenção. Um grande ponto avermelhado sobressaía na minha clavícula, visível mesmo sob a luz fraca do quarto. Me aproximei do espelho e, ao inclinar o pescoço, vi que não era apenas um. tinha me deixado com vários chupões. Respirei fundo e soltei uma risada baixa, ainda incrédulo com o que havia acontecido horas atrás.
Aquilo era um lembrete físico do quão longe eu tinha ido e de quão errado tudo parecia agora.
Além de esconder da Nina a real situação da nossa vida financeira, agora eu tinha um novo segredo: transar com a melhor amiga da minha irmã. Que belo irmão, . Um verdadeiro exemplo. E, para piorar tudo, ainda tinha o acordo com Martinez. O maldito acordo que me prendeu nesse jogo sujo e me fez cruzar limites que eu nunca imaginei que teria coragem de ultrapassar. Ele me ameaçou, claro. Disse que, se eu não cumprisse o que foi combinado, as consequências seriam terríveis. Ele sabia onde mexer, sabia como me pressionar.
Era por isso que eu fazia tudo aquilo. Por Nina. Pela mãe. Pelo apartamento minúsculo que era tudo o que tínhamos. Mas no silêncio do banheiro, com o cheiro do perfume caro da ainda grudado na minha pele, uma verdade doía mais que todas as ameaças: Eu já não sabia mais se estava salvando minha família... ou apenas afundando todos nós juntos.
Mas, como se isso não fosse suficiente para me fazer perder o sono, havia outro detalhe ainda mais absurdo naquela equação caótica: era prima da Kiara. Sim, a Kiara. Minha ex. A mulher com quem tive um dos relacionamentos mais intensos, e que, apesar de todos os nossos desencontros, ainda considerava a melhor namorada que já tive.
Passei a mão pelos cabelos, tentando organizar os pensamentos, mas só piorei a bagunça mental.
Se Kiara descobrisse o que aconteceu, ela provavelmente me riscaria da vida dela de vez. E não que eu estivesse nutrindo alguma esperança de reconciliação, mas também não gostava da ideia de ser odiado por alguém que já me conheceu tão bem. E, sinceramente, talvez eu merecesse o desprezo dela agora.
Minha relação com Kiara era, no mínimo, intensa. Ao longo da minha vida, tive várias namoradas, mas, estranhamente, sempre que alguém toca no assunto de relacionamentos amorosos, ela é a primeira a surgir na minha mente.
Kiara foi memorável. Foi um furacão que surgiu em minha vida em uma noite de sexta-feira e essa comparação nunca me pareceu tão apropriada.
Kiara era como uma noite de sexta-feira, cheia de promessas e possibilidades, trazendo consigo a excitação do inesperado. Desde o primeiro instante, estar com Kiara era como mergulhar em um turbilhão de emoções. O frio na barriga que sentia ao seu lado era inconfundível. Ela me proporcionava frio na barriga, ansiedade, coração acelerado, da melhor forma possível. E também da pior. Gostávamos de festas, bebidas alcoólicas, de ir ao cinema nos sábados, jantar comida italiana nas quartas-feiras e transar ao ar livre.
A perdida — ela sequer usava o sobrenome tamanho horror a ser relacionada com a família poderosa — começou a negar o cinema nos sábados, recusou pasta italiana, ia a festas sozinha, voltava bêbada e sem muita paciência.
Eu amava Kiara, amava seu espírito livre, sua maneira única de ver o mundo e frequentemente me via construindo uma família ao seu lado. A ideia de um futuro juntos era reconfortante. No entanto, havia um paradoxo em nosso relacionamento que só fui notar quando estávamos próximos do nosso fim.
A vida que eu sonhava para nós era, para ela, uma prisão. Ela queria aventuras, surpresas, e, na busca por um relacionamento mais sereno, percebi que não conseguia satisfazer esse desejo dela. O que eu via como estabilidade e segurança, para ela, parecia ser uma forma de estagnação.
Essa diferença fundamental entre nós começou a criar um abismo que, por mais que eu tentasse preencher com carinho e dedicação, parecia apenas aumentar com o tempo.
Nada era simples com Kiara, mas na época, não parecia complicado. Entretanto, depois de muito tempo refletindo, tentando buscar uma falha própria em meu relacionamento, percebi coisas que nunca tinha percebido. Uma delas era a quantidade de álcool que consumíamos juntos. Não que isso fosse, por si só, um problema, mas frequentemente nos víamos apagando no sofá antes mesmo de o dia terminar, mergulhando em uma névoa de bebidas que parecia mascarar as conversas e momentos mais significativos entre nós.
Às vezes, eu tinha a impressão de que estávamos sempre buscando validação em aventuras cotidianas, como se a emoção momentânea de uma festa ou a companhia de amigos fossem suficientes para preencher um vazio que não conseguíamos reconhecer.
Não demorou muito para que começássemos a conversar sobre um possível tempo separados. Desde então, nunca mais voltamos a ser um casal.
Eu compreendia que essas dificuldades fazem parte da vida e que relações amorosas não garantem a permanência. No nosso caso, percebia que talvez não fôssemos tão saudáveis ou felizes quanto pensávamos. Eu não gostava de sentir falta de Kiara, eu tinha amor-próprio o suficiente para fingir não querer estar com uma pessoa que não queria estar comigo. Mas esses sentimentos são difíceis de controlar e de evitar.
Tudo só piorava quando chegava o sábado de noite e eu queria ir ao cinema. Mas sozinho não tinha graça.
Após um banho mais demorado que eu havia planejado, voltei para a mesa bagunçada e, antes de começar a finalizar todo o trabalho que levei para terminar em casa, peguei a carta de aviso em cima da escrivaninha novamente. Suspirei, frustrado, e me joguei na cama, sentindo vontade de gritar contra o travesseiro.
A carta, mais uma entre tantas que recebi, acabou seguindo o mesmo destino das anteriores: eu a empurrei para baixo da cama, onde ela se misturava com o resto das promessas não cumpridas e das decisões erradas.
Todos os dias eu me sentia o maior burro de todos os tempos por ter deixado a situação chegar nesse ponto. Era um pensamento que não me abandonava, ecoando em minha mente como um mantra de autocrítica.
Eu sabia que precisava fazer algo, entretanto, a cada dia que passava, esse "algo" se tornava mais difícil. Aquelas cartas de aviso, os olhares desconfiados da Nina, a pressão de Martínez, as consequências de uma mentira em cima da outra... tudo parecia um peso insuportável. Mas, no fundo, eu também sabia que não poderia continuar empurrando tudo para debaixo da cama, assim como eu fazia com a carta.
Suspirei mais uma vez, virando de lado e afundando o rosto no travesseiro. O som da minha respiração pesada parecia se misturar com os pensamentos turbulentos, criando um emaranhado de frustrações e inseguranças.
Como cheguei até aqui? Onde foi que tudo começou a desmoronar? Eu já não tinha respostas para nada. E talvez essa fosse a parte mais assustadora de tudo: não saber o que fazer e não saber mais quem eu estava tentando enganar.
Ser filhos de mãe solteira nos ensinou a amarrar os sapatos antes de aprender a soletrar "abandono". Nina e eu sempre fomos responsáveis e maduros. Entretanto, tivemos um contratempo impiedoso e cruel em nossas vidas: Aquela mancha roxa no braço da mamãe que não era hematoma.
Leucemia.
A palavra soava como um veredito mesmo antes do diagnóstico oficial. E quando ela partiu, nos deixou um legado amargo: O apartamento minúsculo cheio de seu cheiro ainda preso nos sofás e as dívidas que se multiplicavam como ervas daninhas.
Após o grande baque, nós sofremos de forma intensa, já que ambos éramos bastante apegados à nossa mãe. Porém, foi Nina quem desabou completamente após o ocorrido. Minha irmã transformou-se num fantasma que arrastava seus lençóis pelo corredor. Durante um ano, eu deixava pratos de comida na porta do quarto dela e os recolhia intocados no dia seguinte. Até que numa quinta-feira comum, Nina decidiu que queria estudar novamente, queria fazer faculdade de Direito, assim como eu.
Foi uma surpresa e tanto. Num dia qualquer, em meio à rotina silenciosa e sem esperança, Nina simplesmente saiu do quarto depois de um ano inteiro de reclusão. Eu não tinha mais expectativas quanto à sua melhora, mas ali estava ela, diante de mim, dizendo que queria fazer algo da vida.
Naquela noite, abri o laptop e revisei nossas contas pela centésima vez. Foi quando percebi que meu objetivo não era mais quitar hipotecas ou organizar dívidas. Meu propósito agora era garantir que minha irmã tivesse a chance de recomeçar, de transformar a dor que a paralisou em algo que desse sentido à nossa tragédia.
Os números não mentiam: ou eu pagava a faculdade dela, ou salvávamos o apartamento. Não dava para ambos.
Foi então que vi — realmente vi — a conta secreta da WDM Corp no extrato. Aquele fundo de reserva que ninguém mexia. 287.604,32 dormindo lá, enquanto minha irmã definhava.
Foi ali, entre planilhas e boletos, que nasceu minha maior loucura.
Tá, e minha maior burrice também.
Nina agora era graduanda em Direito, uma das melhores da turma, prestes a se formar com louvor. Mas para que ela chegasse até ali, eu precisei agir como um político corrupto: fiz desvios de verba. Primeiro pequenos. Depois, maiores. Sempre com a mesma mentira que contava a mim mesmo: era temporário. Eu ia resolver tudo.
Achei que ninguém jamais descobriria. Que aquele momento desesperado passaria despercebido como tantos outros. Mas Davi Martinez sabia. O desgraçado tinha tudo.
Planilhas com movimentações suspeitas, e-mails trocados entre mim e o contador com pedidos de alteração. Datas incoerentes, registros manipulados, relatórios originais. Até gravações de ligações com o setor financeiro. Toda a trilha da minha destruição estava reunida, compactada naquele pen-drive.
Assim, tudo mudou, mas não como eu esperava. Martinez não queria justiça. Não estava interessado em me denunciar. Pelo contrário. Eu era útil demais para isso. Uma peça menor que havia escorregado, perfeita para ser manipulada.
Enquanto eu desviava quantias modestas para tentar manter minha família de pé, ele fazia o mesmo e em escalas muito maiores, há anos. Com a frieza de quem já sabia como apagar rastros.
No fim, meu erro foi a desculpa ideal. Tornei-me refém. E ele, dono de cada prova contra mim, deixou claro que eu não devia apenas dinheiro. Devia silêncio. Obediência. Lealdade. Esse foi o verdadeiro início do nosso acordo.
Eu sabia que estava jogando sujo. Mentir para Nina sobre a real situação financeira era uma afronta direta ao que nossa mãe sempre acreditou sobre família e honestidade. Mas o peso de cuidar dela era mais forte do que qualquer remorso.
E, no fundo, eu não podia negar: o olhar de Nina ao falar sobre sua carreira ainda era uma das poucas coisas que me traziam alguma luz. Ela se tornara a mulher que minha mãe sonhou: era determinada, forte, inteligente, capaz de caminhar com as próprias pernas. E eu, como irmão, faria qualquer coisa para garantir que ela chegasse lá. Mesmo que isso significasse sacrificar o que restava de nós. Mesmo que, aos poucos, eu estivesse destruindo o futuro que tentei proteger.
O que parecia uma solução temporária logo se revelou um caminho repleto de armadilhas.
Uma pasta fina passou por baixo da porta. Levantei-me da cama, peguei o material e logo reconheci o título impresso na primeira página: "A Ética na Advocacia Moderna".
Ironias do destino.
Naquele instante, uma sensação desconfortável se instalou no peito. Eu me sentia um péssimo companheiro para Nina. Mentir para a minha irmã era, sem dúvida, uma das partes mais cruéis da minha rotina. Todas as manhãs seguiam o mesmo ritual agonizante, como se eu estivesse preso a um ciclo de culpa do qual não conseguia escapar.
Nina sempre surgia animada, tagarelando sobre um artigo interessante, um caso jurídico inusitado ou sobre uma aula que mal podia esperar para assistir. E então vinha a parte mais difícil: mentir.
Ela perguntava sobre as contas com aquele tom de preocupação suave e eu respondia com a tranquilidade de quem já se acostumou a enganar: “Está tudo sob controle. O apartamento? Quitado mês que vem. Não, não venda seus livros, guarda pro estágio."
A cada vez que desviava a conversa ou inventava alguma desculpa para evitar o assunto das nossas finanças, porque eu conhecia minha irmã. Sabia que, se descobrisse a verdade, largaria a faculdade sem pensar duas vezes. Se jogaria no primeiro subemprego que aparecesse, qualquer coisa para tentar nos tirar da lama.
Essa ideia me deixava em pânico. Eu não permitiria. A educação dela era minha prioridade absoluta. Nina era minha prioridade.
Apesar de ser dois anos mais velha do que eu, sempre senti que cabia a mim protegê-la. Esse instinto só se intensificou depois da morte da nossa mãe. Crescemos vendo aquela mulher forte enfrentar cada obstáculo que a vida lhe impunha e isso me moldou de uma forma que nunca mais pude desfazer. Eu não tinha mais família. Não conhecia meu pai. Tudo que me restava era Nina e aquele apartamento velho que agora parecia desmoronar sobre nós.
Foi nesse impulso desesperado de manter minha irmã estável, sã, segura e, acima de tudo, feliz, que acabei fazendo algo do qual não me orgulhava.
Aceitei a proposta maldita de Davi Martinez.
E, por mais inconsciente que tenha sido, por mais que eu tenha tentado me convencer de que estava apenas ganhando tempo, a verdade é que o plano começou a funcionar já naquela mesma noite.
Capítulo 3 – Ananya & Anthony
Entediada, deixei meu olhar vagar pelo céu azul-tóxico do verão que se estendia atrás do vidro blindado que revestiam a sala de reuniões no prédio da empresa . Lutando contra o tédio que me consumia lentamente, respirei furtivamente enquanto assistia o desenrolar dos fatos que ocorriam na reunião daquele dia, ciente de que Ethan estaria fazendo uma merda sem tamanho se eu não estivesse ao seu lado.
Quando olhei no relógio em meu pulso, vi que já estava dez minutos atrasada e se eu não saísse daquela sala logo, me atrasaria para todos os compromissos do dia. Eu odiava atrasos, principalmente os meus.
– Ethan. – Sussurrei, inclinando-me até seu ouvido. – Posso ir embora?
– Você está pedindo autorização? – Ele me olhou com escárnio.
Corri os olhos pelo rosto dele rapidamente. Eu odiava admitir, mas Ethan era bonito.
– Não. Estou avisando que não vou limpar sua próxima bagunça. – Emiti, incisiva. Ele rolou os olhos, nem um pouco ofendido com a insinuação de que ele era um péssimo profissional. Ambos sabíamos que ele não era.
– Vaza, princesa.
Saí antes que meu salto 12cm afundasse no pescoço dele.
Informei ao meu estagiário impecável que estaria fora pelo resto do dia. Sem mais delongas, entrei no carro e saí da garagem um pouco acima do limite de velocidade, focada em atravessar a cidade o mais rápido possível. Tudo aquilo por um único motivo: manter intacta minha reputação de boa moça.
Eu sabia que tinha os meus defeitos – podia ser mimada, teimosa, exigente e, dependendo do dia, absurdamente inflexível –, mas desde que entendi que era inútil consumir qualquer coisa que não contribuísse para meu crescimento pessoal, venho tentando agir de acordo com o que se espera de alguém sensata. E, acima de tudo, sempre fui a favor de preservar boas relações.
No intuito de manter o espírito da “boa-vizinhança” e amizade com a família Buppha, me vi saindo no meio do expediente do trabalho e indo até a mansão da família onde seria realizado um brunch em comemoração ao trigésimo aniversário de Andreas.
O detalhe que tornava a situação um pouco mais complicada? Andreas era o meu ex-namorado.
Eu não via problema algum em ir à festa. Na verdade, estava ansiosa pelo Pad Thai que a mãe dele preparava como ninguém. Nosso término havia sido pacífico, quase burocrático, um acordo mútuo entre adultos civilizados. Foi consensual. Dois beijos na bochecha e um "te desejo o melhor".
Mas, ainda assim, havia algo de desconfortável na ideia de estar ali, cercada pela família que já foi quase minha. Por mais que tentasse manter a racionalidade, sabia que bastava um tropeço emocional para que aquela tarde cordial se transformasse num campo minado.
E como se a situação já não fosse complexa o suficiente, ela ganhou contornos ainda mais surreais quando desci do carro e vi Andreas à porta de um táxi, ajudando alguém a sair. E ali estava ela: Nina. Com um vestido branco de renda e sapatos de salto baixo, parecendo uma pintura fora de lugar naquele cenário.
Eu não fazia ideia do que ela estava fazendo ali.
– ? – Ouvi a voz de Andreas, franzindo a testa assim que me aproximei. Nina, ao lado dele, empalideceu na mesma medida em que corava. – O que você…?
– Seus pais ligaram. Avisei que eu viria. – Respondi, tentando soar despreocupada, embora meus olhos estivessem grudados em Nina. Ela me olhava como quem foi pega em flagrante, o tipo de expressão que alguém tem quando sabe que a explicação não vai ser suficiente. – O que você está fazendo aqui, Nina? Veio para o brunch?
Eu sabia que eles se conheciam. Claro que sabia. Mas não o bastante para justificar a presença dela ali, no aniversário dele.
– E-eu… – Ela começou, a voz trêmula. Os lábios finos se comprimiram, e a forma como evitava o meu olhar já dizia mais do que qualquer explicação. Ao lado dela, Andreas parecia igualmente desconfortável, o tipo de desconforto que antecede um desastre.
– Então, … – Ele tentou começar, mas a frase morreu no ar.
Foi aí que eu vi. O movimento rápido, quase instintivo, dele pegando a mão dela. Os dedos se entrelaçando, como se aquilo fosse natural. Como se aquilo existisse há muito tempo.
Demorei meio segundo para entender. Outro para acreditar.
– Você só pode estar de sacanagem. – Murmurei, mais para mim do que para eles, sentindo o estômago afundar.
Em que universo minha melhor amiga estava envolvida com o meu ex e eu era a última a saber?
A raiva subiu, queimando sob a pele. Não era por ele. Ele podia muito bem seguir com a vida dele. Mas a Nina… ela devia ter me contado. Era o mínimo. O básico do contrato não escrito entre melhores amigas: contar sobre relacionamentos, pedir conselhos, dividir as dúvidas, as inseguranças. Mesmo que fosse com um desconhecido, quanto mais com o meu ex.
– Vocês estão juntos? – Perguntei, só para confirmar que não estava tendo uma alucinação. – Tipo… juntos juntos?
– A gente… ér… – Nina balbuciou, visivelmente perdida.
– Nina, por que você não me contou? – Falei mais baixo, sentindo a irritação crescendo.
– Eu não sei! Eu fiquei morrendo de vergonha, ! – Cobriu o rosto com as mãos. – Eu nem sei o que estou fazendo aqui! – Completou, fuzilando Andreas com o olhar.
– É meu aniversário, Nina. Eu queria que você estivesse aqui – Ele rebateu, e eu precisei me segurar para não revirar os olhos.
– Combinamos de ir devagar. – explicou Nina, olhando para ele antes de voltar o rosto para mim. – Estamos nos conhecendo.
Olhei de um para o outro, sentindo o peso daquela frase se instalar no peito. Ainda assim, ao encarar Nina, vi a culpa estampada no rosto dela – o nervosismo, o arrependimento – e isso me desarmou.
– Mas vocês já se conheciam. – Ressaltei, cruzando os braços e ajeitando a bolsa no ombro oposto, tentando recuperar um mínimo de controle.
– Sim, mas… ah, , me perdoa! – Ela soltou, a voz embargando. Se aproximou rápido, segurando minhas mãos. – Eu tentei contar, juro. Fiquei nervosa com a sua reação, fui adiando… e agora…
Ela não terminou a frase, e nem precisava. Eu conhecia aquele olhar, era o mesmo de quando, aos quinze anos, ela quebrou o vaso preferido da mãe e passou três dias inventando histórias antes de confessar.
Senti a raiva se dissolver devagar, feito açúcar no café quente.
– Nina, eu não estou brava. De verdade. – E não estava mesmo. Nem podia. Não depois da semana retrasada, quando cometi meus próprios pecados libidinosos com ninguém menos que o irmão dela. Suspirei, tentando suavizar o tom. – É só que… eu merecia saber. – Falei, com um meio sorriso cansado. – Não assim, de surpresa, no meio de um brunch de família.
– Sim, a gente entende. – Andreas assentiu, apertando a mão de Nina num gesto reconfortante. – Apesar de que toda essa situação poderia ter sido evitada... se eu soubesse que você viria.
Ah, claro. Andreas nunca perdia a chance de suavizar a própria culpa. Era bem típico dele. Um dos pequenos hábitos que, ao longo do tempo, me fizeram perder o encanto.
– Eu não estou brava. – Repeti, firme. – E não me importo, de verdade. Só queria não ter descoberto isso segundos antes de passar por aquela porta. – Apontei para o portão branco, todo decorado, que levava à entrada da mansão. – Acho melhor eu ir embora.
– Não, quem devia ir embora sou eu. Você foi convidada. – Nina apressou-se em dizer, aflita.
– Não tem motivo para nenhuma das duas irem. – Andreas se meteu, tentando soar conciliador. – , você é amiga da família... e minha amiga também. E Nina, você é minha... enfim, a gente consegue dar um jeito.
A parte do "dar um jeito" foi até bonitinha... se não fosse completamente falsa.
Spoiler: eles não deram um jeito.
Assim que pisamos no jardim amplo, todo cheio de relva e fontes, os pais de Andreas praticamente correram até mim, sorridentes, me abraçando com entusiasmo. E, pelo brilho nos olhos deles, dava para ver que esperavam que eu e o filho tivéssemos voltado a ser um casal.
"Má notícia para você, Sr. Buppha. Essa reconciliação está tão distante da realidade quanto seu filho está da decência... considerando que ele anda comendo minha melhor amiga." Mas é claro que guardei esse pensamento só para mim.
– , que alegria ver você! – A mãe de Andreas me puxou para um abraço caloroso. – Ficamos tão felizes que você veio!
– Eu não perderia a chance de comer seu Pad Thai por nada nesse mundo, Sra. Buppha. – Brinquei, forçando um sorriso amarelo.
Seguiu-se um silêncio constrangedor. Desses que gritam mais alto que qualquer palavra. Só então Andreas pareceu acordar do próprio torpor e, com um sorriso sem graça, apresentou Nina.
Os pais dele, como sempre, foram impecáveis. Gentis, educados, porém, o mesmo não podia ser dito do resto dos convidados.
Cada vez que Andreas tentava apresentar Nina a alguém, a cena se repetia: cumprimentos breves, olhares avaliativos… e, em seguida, a pessoa se virava para mim, como se o centro de gravidade da conversa estivesse em outro lugar. Nina, por sua vez, ia se encolhendo um pouco mais a cada tentativa frustrada, o sorriso se tornando um disfarce cada vez mais frágil.
Suspirei quando notei o olhar entristecido dela. Uma das tias de Andreas falava animadamente comigo, gesticulando com taça em punho, completamente alheia ao desconforto que pairava no ar.
A verdade é que eu nunca me considerei assim tão interessante. A família Buppha comprou a mansão ao lado da propriedade dos quando eu tinha apenas dez anos. Foi ali que conheci Andreas. Sempre fui tímida, mas por frequentar as festas deles há tanto tempo – muito antes de imaginar qualquer romance com Andreas – acabei me tornando uma presença constante. Familiar.
Lembro das reuniões cheias de risadas, pratos exóticos e histórias trocadas com naturalidade. Com o tempo, mesmo sem perceber, fui me sentindo parte daquela família. As tias eram calorosas, quase maternas. E, por anos, isso me confortava. Mas naquela noite, a mesma empolgação que antes me aquecia agora trazia uma sensação estranha.
As memórias da infância se misturavam com a confusão atual e o carinho que sentia pela família se enroscava com um incômodo que crescia cada vez mais. A festa, embora bonita e vibrante, já não era um lugar confortável para mim.
Enquanto a mulher alta ria alto de alguma anedota que eu sequer ouvi direito, minha mente já estava longe dali. Porque eu sabia exatamente o que Nina estava sentindo.
Eu sempre estive naquele lugar, sorrindo por educação, tentando parecer confortável. É um tipo de humilhação sutil, que não grita, mas corrói aos poucos. Olhei para ela mais uma vez. Nina mexia distraidamente no guardanapo, o olhar perdido entre as taças e os risos que não a incluíam. E eu percebi que, por mais que tivesse motivos para estar magoada com ela, nada justificava deixar que passasse por aquilo sozinha.
Fui até a mesa principal, repleta de pratos tailandeses irresistíveis, e comecei a provar alguns petiscos enquanto observava, quase às escondidas, o movimento ao redor. A cena se repetia como um disco arranhado: Andreas apresentava Nina, o grupo sorria educadamente e, assim que eles viravam as costas, começavam os cochichos. Discretos, mas audíveis o suficiente.
Suspirei, balançando a cabeça com desaprovação e fiz um sinal discreto para que Nina viesse até mim. Ela não hesitou.
– Vamos sentar ali? – Sugeri, apontando para uma mesa mais afastada do agito.
– Isso é insuportável! – Andreas explodiu, aproximando-se com a testa franzida. – Juro, é como se fosse a primeira vez que trago alguém aqui. De repente, ninguém lembra das boas maneiras. – Calou-se abrupto ao avistar uma das tias se aproximando. – Oi, tia Papul!
– Andreas, meu querido! – Respondeu ela, com a serenidade de quem ignora climões. – Estão chamando vocês na estufa para as fotos. – E, como se a situação fosse a mais normal do mundo, fitou-me diretamente. – , está pronta?
Minhas sobrancelhas se arquearam. Virei-me lentamente para Andreas, buscando em seu rosto um sinal de que ele também via o absurdo daquilo.
Era um apagão coletivo de memória, uma encenação social tão absurda que beirava o delírio.
– Só um minuto, tia. – Andreas fez uma cortesia vazia de conteúdo, segurou-lhe o braço e afastou-se com ela, esboçando um sorriso de diplomacia ensaiada.
Levantei-me em um movimento seco, empurrei a cadeira e alisei os vincos da saia midi.
– Vou ao banheiro. Resolvam isso.
– Como assim? – Nina perguntou, completamente perdida.
– Não sei, Nina. – Sussurrei, com a lâmina da acidez na voz. – Beijem-se, deem as mãos, anunciem que estão namorando... Façam alguma coisa. Porque se mais uma pessoa vier me cumprimentar como a "namorada" do Andreas, eu vou embora.
Sem esperar qualquer resposta, girei nos calcanhares e saí do jardim com passos firmes, meus saltos ecoando de forma brusca contra o caminho de pedra. Fui em direção ao banheiro social torcendo para não encontrar mais nenhum parente inconveniente no caminho (o que, naquela festa, era como pedir silêncio numa assembleia de condomínio).
O banheiro era tão sofisticado que mais parecia uma ala de exposição do Louvre do que um cômodo funcional. Móveis otomanos estrategicamente posicionados, velas aromáticas com nomes impronunciáveis e uma pia que devia ter sido desenhada por algum artista minimalista tailandês. Sinceramente, quem senta num banco estofado no banheiro de uma festa? Isso não me dava margem nem para fingir que estava odiando o lugar.
Lavei as mãos rapidamente e deixei a água escorrer pela nuca, numa tentativa meio desesperada de aliviar a tensão que se enroscava no meu pescoço. Me sentei em um dos bancos e saquei o celular da bolsa, mais por esperança do que por hábito.
Abri as mensagens, chequei ligações. E, claro, nada. Nem uma notificação, nem um emoji dado, nem uma indireta enigmática, isto é, nada com o nome que eu secretamente esperava ver.
.
Desde aquela noite de luxúria impulsiva e questionável lucidez, eu esperava por algum tipo de contato. Não precisava ser nada romântico. Eu teria aceitado até um "E aí, tudo certo com sua lombar depois daquele malabarismo técnico?". Mas ele não mandou nada. Nem um emoji.
Eu imaginava que depois de tudo, ele fosse me mandar uma mensagem constrangida, do tipo “desculpa, foi um erro”, ou um convite para jantar, como quem diz “vamos fingir que temos maturidade para lidar com isso”. Mas nada. O silêncio dele era ensurdecedor. E, pior, irritantemente educado.
O mais frustrante é que eu nunca tinha olhado para ele desse jeito, nunca. Por anos, era apenas o irmão da Nina. Advogado workaholic. Dono de um olhar que parecia sempre analisar as pessoas como se fosse apresentar um parecer jurídico depois. Um cara respeitável demais para qualquer fantasia.
E eu mantive esse pensamento até duas semanas atrás, quando ele me arrastou para o sofá do meu escritório e me fez repensar toda a minha vida sexual. Me pegou de jeito. Literalmente. No sofá do meu escritório. No sofá onde eu costumava revisar contratos e tomar cafés que já esfriaram. Aquilo foi... inesperado. E, honestamente, espetacular.
Uma fantasia que eu sequer sabia que morava dentro de mim até ser realizada com uma precisão que beirava o poético. Ou pornográfico. Dependendo do ângulo.
E foi por isso que ele deixou de ser o “irmãozinho da Nina” e virou . O homem que me fez perder o fôlego. O motivo pelo qual eu passei a encarar meu sofá como se ele escondesse segredos. Depois de dois anos com Andreas sem nem arranhar a superfície do que deveria ser prazer – e isso sendo gentil –, posso afirmar com a segurança de quem viu a luz no fim do túnel: eu gozei. A ponto de pensar naquele sofá com uma devoção quase religiosa.
Mas ele não ligou. Não mandou mensagem. Não apareceu. Nada. E o mais estranho era isso: sempre foi o tipo de cara que namora. Um homem disponível, emocionalmente acessível, interessado em conexões reais. E eu, bem… sempre me considerei o completo oposto.
Na noite passada, enquanto eu malhava de maneira obstinada (uma tentativa fútil de acabar com as calorias de desespero), um pensamento me pegou desprevenida. , o romântico incurável, o homem de relacionamentos sérios e compromissos firmados com flores e cafés da manhã... sumiu depois de me comer como se o mundo fosse acabar. Justo ele.
Se era esse cara acessível, o tipo de sujeito pronto para encontros românticos (eu o encontrei em um encontro às cegas, pelo amor de Deus!), namoros e até relacionamentos sérios, então por que diabos ele não me ligou? Eu não teria recusado um convite para um jantar, muito menos agora que, ao descobrir que Nina estava com o meu ex, eu passei a ter um crédito emocional enorme.
Talvez eu fosse só a transa impulsiva no fim do expediente. A melhor amiga da irmã. A distração rápida. O tipo de mulher que se esquece logo depois de uma noite mal dormida e alguns arranhões no sofá.
Na primeira semana, não me importei. Apenas revivia os momentos de lascívia que compartilhamos, e não vou mentir, me sentia quase bem com isso. Mas na segunda semana... bom, na segunda semana, a história mudou. Eu comecei a me questionar demais.
Será que eu transei cedo demais? Ele não havia gostado? Se havia gostado, por que não me procurou? O que eu fiz de errado? Eu não era interessante o suficiente para algo além do sexo? Ou pior, será que fui ruim no sexo?
Eu me estressei comigo mesma. Estava me questionando demais por um cara que não tinha sequer demonstrado o menor interesse genuíno por mim. ? Se questionando por um cara? Não, isso não era para ser assim. Não seria assim. Eu me recusei a ser essa pessoa.
Olhei o relógio: cinco minutos trancada no banheiro. Se ficasse mais tempo, iriam pensar que eu estava usando o banheiro por outros motivos. Respirei fundo e decidi voltar. Mas talvez devesse ter ficado.
Assim que pisei na grama artificial do jardim, todos os olhares se voltaram para mim, expressões de pena, como se eu fosse uma pobre alma abandonada no altar. Não sabia o que Andreas e Nina tinham feito, mas, pelo jeito dos olhares, eu tinha virado o espetáculo da noite: a ex-namorada coitada.
E, claro, os primos de Andreas – e outros parentes que eu jurava nunca ter visto – começaram a se aproximar, prontos para o interrogatório social de praxe. Perguntas invasivas, comentários passivo-agressivos, sorrisos falsos. Cada palavra me fazia perder mais a paciência.
E se para mim já era desconfortável, nem queria imaginar o que Nina estava sentindo ser o alvo direto de toda aquela hostilidade velada devia ser insuportável.
– Para mim, já deu. – Murmurei, sem nem olhar para ela. Eu não tinha energia para fingir civilidade.
– O que houve? – Nina perguntou, preocupada. Mas eu nem ouvi.
Fui até a mesa de centro, onde repousava uma abundância de petiscos e inutilidades de decoração, e peguei duas caixinhas de vidro vazias. Sem cerimônia. Enchi ambas de comida, como se aquele gesto pequeno fosse uma vingança simbólica. Depois apenas fiz um gesto vago para Nina, pedindo que me ligasse depois, e saí dali como quem foge de um incêndio.
Senti os olhares queimando minhas costas enquanto caminhava até a saída.
Na minha cabeça, todos eles diziam o que eu já estava pensando sobre mim mesma: idiota. Substituível. Ridícula.
Mas talvez o problema não fosse Andreas, nem Nina, nem a família de intrusos. Talvez fosse um certo advogado de olhos verdes que, mesmo depois de tantas promessas doces e palavras bonitas, ainda não tinha se dignado a me ligar.
Entrei no carro sem olhar para trás. Afundar no trabalho parecia a única maneira de manter o controle ou fingir que ainda tinha algum. Horas depois, depois de um longo desvio proposital pelo escritório da , cheguei em casa exausta, com o corpo carregando o peso de um dia inteiro de frustração.
Fui direto para a academia no quintal; meu refúgio. Lá, como sempre, descarreguei tudo o que vinha me consumindo. Não que eu fosse uma fanática por academia, eu só precisava de algo que ocupasse a mente, que aliviasse o peso. Um jeito de não explodir. De continuar sendo… suportável.
Eu estava saindo do banho e já planejava ir para o escritório, quando meu celular tocou. Era uma ligação de Nina. Imediatamente, passei o dedo pela tela e atendi, sem pensar duas vezes. Se tinha uma pessoa na face da Terra com quem eu precisava conversar naquele momento, essa pessoa era Nina.
– Oi, ? – Ela falou do outro lado da linha, com uma voz que já indicava que algo não estava certo.
– Desembucha, Nina. – Fui direta, sem rodeios. – Como aconteceu? Como isso aconteceu?
– Ah, amiga! Você quer mesmo saber? Não vai ser estranho? – Ela hesitou, mas não me dei ao luxo de esperar. Coloquei o celular no modo alto-falante enquanto me vestia com um confortável conjunto de moletom. – Eu estou me sentindo tão mal, você nem faz ideia… – Nina soltou uma risada nervosa, daquelas que soam como um pedido de desculpa disfarçado.
Me sentei na cama, cruzei as pernas e comecei a trançar o cabelo com os dedos, tentando não demonstrar o quanto já estava tensa.
– Vamos, Nina. – Cortei o suspense, impaciente. Pausei a trança e encarei meu próprio reflexo no espelho, aquele olhar de quem já esperava o pior e só queria confirmar logo. – Estranho, para mim, é você não querer contar. Aconteceu enquanto a gente ainda estava junto?
– Não! Claro que não! – Ela respondeu com veemência. – Eu jamais faria isso com alguém, muito menos com você, . Tá bom, vai… – Ela suspirou. E eu quase pude ver sua expressão do outro lado da linha: olhos fechados, testa franzida, lábio pressionado. A Nina culpada era quase uma caricatura dela mesma. – A gente se encontrou por acaso num Starbucks. Juro. Totalmente sem querer. Conversamos… Falamos de você, claro. Ele reclamou do jeito como você terminou. Acho que ficou ofendido.
– Se ofendeu por eu ter sido sincera?
– Você disse que estava entediada, .
– E eu estava, ué.
– Mas essas coisas a gente não fala. Principalmente num término! – Nina protestou. – Mas enfim… aquele dia foi diferente, sabe?
Lá vinha ela com a voz sonhadora. Suspirei internamente. Nina sempre teve essa aura romântica e poética que colidia diretamente com a minha lógica prática e um tanto cínica. Não é que eu não acreditasse no amor, eu só acreditava menos em suas versões com trilha sonora e efeitos especiais.
– E aí você viu passarinhos amarelos e as baratas do bueiro começaram a cantar? – Zombei, com gosto.
– Deixa de ser debochada! – Ela gargalhou e eu acabei sorrindo também. – Nos reencontramos de novo numa rua próxima e... era para ser só um esbarrão. Mas acabamos ficando horas conversando. Ele pediu meu número. O resto é história.
– Eu preciso dar meu parecer? Porque eu não quero. – Fui honesta, sem floreios.
Não estava pronta para virar conselheira sentimental naquele enredo da minha melhor amiga com meu ex-namorado. Principalmente porque ele incluía o meu nome nos créditos iniciais.
– Eu só quero que fique claro que eu nunca começaria algo mais sério sem falar com você antes. – Disse, com a voz mais baixa. – A gente só saiu alguns dias, mas… Ah, , eu gosto dele. Sempre o achei ótimo, mas agora estou enxergando de um jeito diferente. Às vezes, até esqueço que ele foi seu namorado. Ele é tão diferente do jeito que você descrevia. Faz sentido?
– Claro, ladki. – Respondi, com a voz mais suave. – Eu e você somos diferentes. O que não é bom para mim não quer dizer que não é para você também.
E isso era verdade. Mas ainda assim, uma pontinha lá no fundo me dizia que talvez eu não estivesse tão ok quanto fingia.
– Tive muito medo da situação se tornar mais do que complicada para a nossa amizade, achei que você fosse me odiar para sempre.
Suspirei, pensativa. Nunca fui do tipo que colecionava amigos. Os poucos que eu tinha eram os da época da faculdade, os obrigatórios da família e, fora da curva, Nina. Ela era a exceção. A minha exceção. Minha melhor amiga desde a adolescência, dessas que você olha e pensa: colocaria minha mão no fogo por ela. E, honestamente? Colocaria mesmo.
Eu conhecia Nina o suficiente para saber que, se tivesse cedido, foi depois de lutar contra esse sentimento até onde conseguiu. Como se tivesse escutado meu pensamento, ela disse: – Eu juro que tentei fugir disso, mas você sabe que eu nunca fui muito boa em esconder minhas vontades. – A voz saiu sincera, meio derrotada.
– E nem deveria, Nina. – Fui direta, porque não queria que ela se desculpasse por algo que, no fundo, sabia que não tinha sido feito por mal. – Não precisa se justificar. Você sabe que eu jamais te culparia por algo assim. Sei que você nunca seria maldosa comigo.
E era verdade. Mas também era verdade que era fácil dizer isso quando se tratava de Andreas. Ele já não despertava mais nada em mim. Nem raiva, nem saudade, nem aquele incômodo que a gente sente quando ouve o nome de alguém que já nos partiu em mil pedaços. Era indiferente. E ser indiferente tornava tudo simples.
Talvez, se fosse com alguém que ainda significasse alguma coisa, a conversa fosse outra. Eu provavelmente não estaria sendo tão madura, tão compreensiva, tão "boazinha".
– O que você acha que eu devo fazer?
– Como assim?
– Devo insistir nessa loucura? Ou é demais pensar que isso pode virar... sei lá, uma história de amor?
Ri baixinho, com ternura. Nina e suas fantasias de amor épico. A gente se equilibrava justamente por isso: ela via o romance, eu via o contrato. Ela enxergava o que podia florescer, eu só via o que podia dar errado.
– Nina, eu não sou a melhor pessoa para dar esse tipo de conselho... – Comecei, tentando ser delicada. – Mas acho que te conheço o suficiente para saber que, se você não estivesse completamente na dele, não se arriscaria. Não sou eu quem tem que dizer o que você tem que fazer. Você já tem de mim o que realmente importa.
– E o que é?
– Minha bênção silenciosa e um silêncio ainda mais comprometido. – Sorri de canto. – Mas precisamos estabelecer alguns limites, certo? Por exemplo: eu não vou fingir que esse relacionamento não existe, mas saiba que também não vou ser imparcial sobre absolutamente nada que envolva Andreas. Eu sou a última pessoa no mundo capaz de opinar com isenção.
– Concordo. Separação Igreja-Estado. Mas, se porventura, eu precisar de uma forcinha...
– Irei conceder porque sou uma total idiota por você, Nina. – Bufei, fingindo irritação.
– Ah, , que sorte a minha ter você na minha vida! – Ela disse com uma doçura tão espontânea que fez meu peito amolecer. Gargalhou baixinho logo em seguida, aquele som leve que me fez sorrir sozinha.
Por um instante, me deu vontade de contar a ela sobre . De deixar escapar, de dividir a bagunça que eu mesma estava tentando organizar em silêncio. Quase consegui.
– Nina...? – arrisquei.
– Sim?
– Ér... o que você acha de jantar aqui amanhã? – Fiz uma careta automaticamente, sabendo o que aquilo significava.
Não só tinha engolido a verdade que queria contar, como também tinha me enrolado no mesmo fio que agora prendia Nina: o da omissão. E ainda por cima me comprometi com um jantar que não fazia parte de plano nenhum.
A hipocrisia às vezes tem gosto de vinho barato e biryani improvisado.
– Ժ –
Pior do que trabalhar no sábado era fazê-lo com TPM. Percebi que havia atingido o limite quando até o som das minhas próprias unhas batendo no teclado começou a me irritar. Fechei os olhos, respirei fundo e prendi o cabelo num coque alto, numa tentativa de conter o calor que parecia vir de dentro para fora.
"É TPM ou menopausa?", pensei, exasperada.
Levantei da cadeira, deixando o e-mail inacabado a piscar na tela. Caminhei até a janela e abri as cortinas de uma vez, permitindo que a luz do sol invadisse a sala e me atingisse em cheio. Imediatamente, senti algo dentro de mim se acalmar.
Aquela claridade me lembrou que, em algumas semanas, estaria na ilha que mais amo, comemorando meu aniversário no hotel dos meus sonhos, cercada apenas pelas pessoas que escolhi ter por perto. Era só uma questão de tempo.
– ? – A voz de Ethan, meu colega de trabalho e arqui-inimigo não-oficial, ecoou do outro lado da porta após três toques apressados.
– Ethan, é por consideração, amizade e pelo mínimo de sanidade que me resta, que eu te peço: saia por essa porta e não volte hoje. – Levei os dedos às têmporas, de olhos fechados, tentando manter a calma zen que o sol recém-trazido havia me dado.
– Eu só vim devolver algumas planilhas corrigidas. – Ele entrou com uma pilha de papéis nas mãos, todo formal.
– Você é o cara. – Meu humor melhorou instantaneamente. Planilhas corrigidas eram meu equivalente adulto de sorvete grátis.
– Você está bêbada?
– Quem me dera. – Revirei os olhos. – Vai sair para almoçar agora?
– Se você não for precisar mais de mim.
Dei uma olhada rápida pela mesa. Nenhuma crise de última hora, nenhum incêndio para apagar. Um milagre corporativo.
– Depende... você se importaria de me fazer uma massagem nos pés? – Perguntei com a maior seriedade que consegui fingir. Mas, honestamente? Se ele aceitasse, eu consideraria entregar a diretoria nas mãos dele.
– É por consideração e amizade que lhe aviso: isso é assédio moral. – Respondeu teatralmente.
– Saia da minha sala. – Apontei o dedo para a porta, fingindo irritação. Ou talvez nem estivesse fingindo.
E lá foi ele, deixando um rastro de bom humor e planilhas prontas para trás.
Voltei a me sentar na cadeira estofada e tirei meus saltos, apoiando os pés na mesa, sem me importar de estar vestindo uma saia que, apesar de comprida, estava mostrando demais as minhas pernas erguidas. Peguei meu celular e fiquei procrastinando nas redes até ser interrompida por uma ligação de Nina.
– Me dê boas notícias, por favor. – Implorei, jogando a cabeça para trás na cadeira e encarando o teto como se dali fosse brotar alguma solução divina. Aquela sala cercada por paredes de vidro me fazia sentir num aquário.
E eu, definitivamente, era o peixe palhaço.
– Alguém está irritada. – Nina comentou com a voz doce demais para o meu humor. – Você devia parar de trabalhar aos sábados.
– Alguém está de TPM, isso sim. – Informei, seca.
– Argh, você fica insuportável de TPM.
– Ligou para isso, Nina? Que felicidade falar com você.
– Não, sua chata. É que eu estou de “home office” hoje e...
– Hoje é sábado, é claro que você está em casa. – A interrompi, afiada.
– ! – Repreendeu com aquele tom típico de irmã mais velha, mesmo sendo mais nova. – Acabei fazendo um pouquinho mais de almoço do que deveria...
– Chego em quinze minutos. – Disparei antes mesmo dela terminar, provocando uma gargalhada animada do outro lado da linha.
Era isso. Bastava um prato de comida e Nina para o mundo parecer um lugar menos exaustivo.
Coloquei meu casaco, dei um jeito em meus cabelos, coloquei meus óculos escuros e fui imediatamente a caminho da casa dos . Antes de seguir, pedi encarecidamente aos meus colegas de escritório que não fizessem nenhuma merda sem resolução enquanto eu e Ethan estivéssemos fora. O cara me irritava, mas não dava para negar que o homem era o único que conseguia manter aquele lugar em ordem junto a mim.
Em poucos minutos, estacionei em frente à casa da Nina, genuinamente feliz por vê-la e ainda mais feliz por estar prestes a receber um almoço caseiro e gratuito.
Nina era uma cozinheira de mão cheia. Sua mãe, Anamelia, até tentou nos ensinar algumas receitas na adolescência, mas, como era de se esperar, só a Nina realmente absorveu alguma coisa. Eu, no máximo, sabia esquentar uma lasanha congelada sem causar um pequeno incêndio.
Conheci Anamelia três anos antes do diagnóstico tardio do câncer. Ela era do tipo que fazia piada com tudo e mantinha os filhos por perto como se fossem extensão do próprio coração. Nunca esqueci o jeito gentil com que me tratava.
Assistir Nina e perderem a única família que tinham, aos dezenove e dezoito anos, foi uma das experiências mais dolorosas que já testemunhei.
Mais difícil ainda foi ver Nina afundar em uma tristeza densa, quase palpável. Uma melancolia que não pedia licença, não tinha hora para ir embora. Eu ainda estava na faculdade e, sempre que podia, pegava um ônibus só para passar o fim de semana deitada ao lado dela na cama ou convencê-la, com jeitinho, a tomar um banho.
Essas memórias sempre apareciam quando eu voltava àquela casa. Mas, naquele dia, elas vieram com mais leveza. Talvez por vê-la bem, por saber que a vida, mesmo com seus golpes, às vezes oferecia uma trégua.
A depressão havia lhe roubado mais do que alguns anos. Levou o brilho da juventude, os planos para a faculdade, os pequenos sonhos que Nina havia guardado com tanto cuidado. Mas, agora, vê-la enfrentando tudo de frente, construindo uma nova rotina, reinventando a própria história… me deixava orgulhosa. Era como ver o sol voltando a nascer em um lugar que por muito tempo ficou encoberto.
Eu me sentia sortuda por tê-la. Talvez Nina fosse minha única amiga de verdade, mas, honestamente, era a única que eu precisava. Sabia que ela sentia o mesmo. Nunca nos cobramos perfeição, apenas presença. E, no fim das contas, acho que isso era o que sustentava tudo: a ausência de julgamentos e a abundância de suporte.
– Você acabou de salvar minha vida. – Disse assim que ela abriu a porta, segurando meu estômago como se aquilo fosse literal.
– Você me fez um jantar incrível na semana passada, era o mínimo que eu podia fazer. – Nina sorriu, e antes que eu dissesse qualquer coisa, encostei um beijo em sua testa, como quem agradece sem precisar falar. Segui direto para a mesa já posta. – Então, temos espaguete à matriciana e vinho branco… sirva-se à vontade. – Anunciou, com um tom gentil que parecia música aos meus ouvidos esfomeados.
– Agora sim, minha fé na humanidade foi restaurada. – Falei, puxando a cadeira com um entusiasmo que a fez rir.
– Exagerada. – Nina murmurou, mas o sorriso não deixava os lábios dela.
E, por alguns instantes, ali naquela cozinha cheia de aromas e memórias boas, tudo parecia em paz.
– Ah, Nina, eu amo tanto você. – Eu não fingi modos e esqueci as lições de etiqueta que Anjali me ensinou e me joguei na mesa, agarrando pratos e talheres enquanto caia em cima da comida igual uma maluca.
– Céus, ! Quanto tempo você não come? – Nina riu, servindo-se uma taça generosa de vinho tinto que refletia a luz da cozinha como rubi líquido.
Enfiei uma garfada enorme de espaguete na boca, os sabores de alho e manjericão explodindo na minha língua como um pecado capital.
– Não me julgue. TPM. – Mastiguei com devoção. – Isso aqui... – Outra garfada, quase religiosa. – Eu juro que não te peço em casamento agora mesmo só porque dou valor ao sexo hétero.
– Que bom saber disso. – A voz grave atrás de mim fez cada célula do meu corpo congelar.
.
Engoli com dificuldade, junto com a vontade imediata de desaparecer. Meu corpo inteiro entrou em modo de alerta. Meu coração acelerou, minha pele arrepiou. Só aquela voz já era suficiente para me desestabilizar por completo.
– . – Seus lábios curvaram-se naquele meio-sorriso que eu odiava. – É sempre um prazer vê-la.
Era a primeira vez que eu o via após aquele dia. E o cara pisca para mim, como se não fosse nada. Como se não tivesse beijado a minha boca desesperadamente semanas atrás. Como se não tivesse se enfiado em mim em cima do sofá da minha sala.
– Ah, também está em casa. – Nina anunciou, alheia ao terremoto que seu irmão acabara de causar no meu sistema nervoso.
– Ant. – Cumprimentei, pegando o copo de vinho da mão dela com a desculpa de engolir a comida, quando, na verdade, era só uma tentativa desesperada de me recompor. Sim, eu estava na casa dele, mas quantas vezes isso já aconteceu sem que eu sequer visse a sombra dele? – O prazer é sempre todo meu. – Retruquei, em um tom levemente provocador, mas evitei olhar diretamente para ele.
– Ei! Limites, por favor. – Nina lançou um olhar reprovador, fazendo careta.
Eu e nos entreolhamos, um sorriso cúmplice e contido nos lábios. Aquela troca silenciosa dizia tudo: tínhamos um segredo. Um bem sujo.
– Vou voltar para o quarto. Estou trabalhando. – Fez um carinho rápido na cabeça da irmã e me lançando um leve aceno, desapareceu pelo corredor. E eu fiquei ali, estática, fingindo normalidade.
e Nina tinham apenas dois de diferença, mas podiam passar como irmãos gêmeos tranquilamente. O tom da cor de cabelo deles era exatamente o mesmo, um castanho claro que muitos tentavam chegar através de pintura, mas só conseguiam manchas tingidas. Eles tinham o mesmo formato de rosto meio quadrado, o dele sendo mais evidente por conta do maxilar forte. Talvez a única coisa que os diferenciava eram os olhos.
Os olhos de Nina eram castanhos e profundos. Os olhos de eram verdes e límpidos. Uma porra de um pesadelo.
– Ok, logo estarei de saída. – Informou e ele apenas assentiu e entrou em seu quarto.
Voltei a comer normalmente assim que fechou a porta, forçando-me a esquecer completamente da presença dele ali, já que ele não pareceu ter ficado tão abalado com minha presença como eu fiquei com a dele.
– Vai para onde? – Perguntei, curiosa.
– Andreas me chamou para sair hoje. – Ela respondeu, com um leve rubor no rosto. – Cara, isso ainda é muito estranho.
– Não pense muito. – Aconselhei, sem tirar os olhos do prato. – Só fica estranho se você pensar demais.
Eu estava tão focada na comida que mal percebi o quanto estava com fome até me ver quase afogada naquele prato de macarrão. Estava prestes a me servir de novo, a fome tinha se apoderado de mim rapidamente.
– É, você tem razão. Aquele dia no aniversário... foi bem ruim. – Ela relembrou, a voz carregada de uma melancolia que não passava despercebida.
– Já faz semanas, Nina. – Respondi, sem muita paciência para o drama.
– Eu sei, mas aquele dia foi bem claro para mim. – Ela fez uma pausa, antes de olhar para mim com um olhar sério, quase desconfortável. – Por isso, chamei você aqui. Eu podia ter te ligado, mas talvez você queira me matar e queria te dar a chance de fazer isso pessoalmente. – Eu larguei o talher na hora e cruzei os braços, com a testa franzida. Será que aquele almoço estava realmente predestinado a ser sobre isso e não era só um simples convite? Nina, como se soubesse exatamente o que eu estava pensando, apressou-se a explicar: – Não foi planejado. Eu realmente exagerei na comida e como já estava querendo conversar com você…
– O que rolou, Nina? – Interrompi, impaciente.
– Eu e Andreas conversamos e ele me contou que vai estar no seu aniversário. – Ela observou minha reação, provavelmente esperando algum tipo de choque, então eu assenti lentamente, mas sem entender aonde ela queria chegar.
– E você tem um problema com isso? Eu meio que não tenho escolha, Nina. Os pais dele são amigos dos meus, eles também estarão lá. Seria estranho ele não ser convidado. – Tentei ser racional. Eu também achava estranho tê-lo lá, mas não conseguia impor essa decisão aos meus pais. Era uma luta perdida, os Buppha estariam lá, com ou sem minha aprovação. – Mas eu posso tentar desconvidá-los.
– Não, , claro que não! Eu jamais pediria isso. Pelo contrário, eu acho que… eu não irei.
Eu fiquei em silêncio, pasma. Esperei que ela começasse a rir e dissesse que era brincadeira, mas, para minha surpresa, ela apenas abaixou a cabeça, triste. O ar ao redor ficou pesado. E, então, eu comecei a rir, incrédula.
– Fora de cogitação. – Afirmei, de forma firme, tentando esconder o desconforto que começava a crescer em mim.
– ... – Ela tentou argumentar.
– Fora de cogitação, Nina. – Repeti, a voz cheia de certeza.
– Você lembra o quanto foi bizarro no aniversário do Andreas? Imagina como vai ser no seu, que estaremos em uma ilha, e não só com a família dele, mas com a sua também! , será terrível! – Lastimou, passando a mão no rosto. – Eu não quero que fique um clima horrível no seu aniversário. Você planeja esse final de semana o ano inteiro, é injusto.
– Exatamente, é injusto mesmo! Eu planejo o ano inteiro e você acha que pode não ir ao meu aniversário? – Exclamei, indignada. – Você foi em todos os anos, Nina! Não tem a menor graça sem você.
– Eu sei, amiga. – Nina soltou um suspiro pesado, como se a culpa a estivesse consumindo. – Tenho pensado nisso todos os dias. Eu já devia ter conversado com você sobre isso, mas não sabia como. Sou uma péssima amiga! – Ela lamentou, apoiando a cabeça nas mãos.
– Não, você não é. – Tentei tranquilizá-la, mas, na verdade, estava sentindo uma vontade de arrancar os cabelos dela. – Mas você será, se não for ao meu aniversário.
– Ah, ! – Exclamou, deixando escapar um gemido de frustração.
– Estou falando sério. Se você não for, eu não vou. – Levantei, carregando minhas louças sujas e indo em direção à cozinha, com raiva.
– Não enlouqueça, , é sua festa.
– Você sabe bem que eu estou falando sério. – Respondi, sem hesitar.
Comecei a tirar os anéis, um a um, colocando-os com cuidado sobre o balcão de mármore. Em seguida, deslizei as pulseiras pelos punhos, sentindo o metal frio arranhar de leve a pele quente. A pia já estava cheia de pratos empilhados, talheres mergulhados na espuma e um cheiro suave de detergente de lavanda que tomava o ar. Suspirei.
Aquilo definitivamente não era o meu habitat natural.
Nina, do outro lado da cozinha, me observava com aquele olhar divertido que sempre reservava para os meus dramas domésticos.
– Vamos, madame. A água não morde. – Provocou, entregando-me a esponja.
Revirei os olhos, mas peguei o objeto, sentindo a textura áspera contra os dedos. O riso dela encheu a cozinha, leve e familiar, o tipo de som que me fazia esquecer por alguns instantes o peso do resto do mundo.
Foi com Nina que aprendi a fazer essas pequenas coisas: lavar pratos, estender roupas, preparar café sem queimar a língua no processo. Coisas simples, mas que, de algum jeito, me faziam sentir... normal.
Em casa, sempre havia alguém para cuidar de tudo e eu, envolta nesse conforto herdado, nunca precisei pensar em como as coisas realmente funcionavam. Nina achava isso um absurdo. “Vantagens de ser herdeira”, eu costumava brincar. Ela só me lançava aquele olhar que misturava carinho e reprovação antes de voltar a esfregar os copos, como se dissesse: você ainda vai me agradecer por isso.
– Tem algum outro motivo? – Perguntei, sentindo a tensão no ar.
Nina levantou os olhos, parecendo sair de um transe. – Hm? – Ela murmurou, confusa.
– Tem outro motivo pelo qual você não quer ir? – Insisti, observando-a atentamente.
Ela soltou uma longa respiração antes de finalmente responder.
– A verdade é que eu não sei se quero passar por isso de novo. Eu mesma já me julgo o suficiente por estar saindo com seu ex. Imagina ser julgada novamente pela sua família… E, sem ofensas, , sua família é a porra de uma seita. – Ela me fez rir com sua observação, mas logo meu sorriso desapareceu, preocupada.
– Nina, você nunca perdeu nenhum aniversário meu. – Fiz um biquinho, uma expressão de falsa melancolia. – A situação não é tão séria assim. Além disso, se você e Andreas estão mesmo tentando ficar juntos, vamos precisar enfrentar isso de qualquer jeito.
– Eu sei. – Ela suspirou, reconhecendo. – Eu só queria não ter que escutar os comentários das pessoas. Às vezes, nem são maldosos, mas são aqueles comentários que me deixam péssima.
– Se houvesse um jeito de evitar isso... – Murmurei, tentando juntar os pedaços da minha frustração em algo que fizesse sentido.
– Acho que as pessoas só não comentariam se você também estivesse com alguém.
– Não entendi.
– Quando alguém começa um relacionamento novo, sempre rola aquela fase de fofoca, julgamento, sabe? Não é que os comentários parariam de vez, mas se você tivesse alguém ao seu lado, a pressão diminuiria. As pessoas não iam ficar tão obcecadas no fato de eu estar com o seu ex. Seria, sei lá, mais... normal. Eu sei que isso soa como uma ideia meio idiota, mas... – Nina observou, com um sorriso meio triste, como se tentasse aliviar o peso da conversa. – Mas não é como se você estivesse saindo com alguém.
Mas então, uma ideia atravessou minha mente, como um relâmpago, e antes que eu pudesse filtrar, a exclamei: – Quem disse que não estou?
Não. Eu não estava. Era mentira. Uma mentira saída direto do calor do momento, empurrada pelo ego ferido e pelo orgulho em recuperação intensiva. Eu não estava vendo ninguém. Mas a ideia de inventar um romance repentino parecia, por algum motivo, estrategicamente promissora.
Na pior das hipóteses, eu poderia dizer que o tal cara me deu um bolo e ficou por isso mesmo. O que não seria tão difícil de acreditar, considerando meu histórico desastroso. Mas aí Nina já estaria na ilha, envolvida na festa, tirando fotos com sombrinhas coloridas e coquetéis de guarda-chuvinha. E voltar atrás seria deselegante.
– E está? – Nina arregalou os olhos, mais chocada do que quando descobriu que eu não sabia usar a função “centrifugar” da máquina de lavar.
– Bom... tem um cara que eu estou vendo...
Não, não tinha um cara. Nenhum sequer. Os caras que eu mais via na semana eram meu pai e Ethan. E o cara que eu realmente queria ver não tinha ligado no dia seguinte.
– E por que você não me contou? – Quis saber.
– Talvez não seja tão sério. – Não era sério, pois não existia. – E se eu o convidasse para ir ao aniversário, você se sentiria mais confortável?
Nina se calou por um instante, seus olhos refletindo uma mistura de surpresa e consideração. Ela parecia estar processando tudo, ponderando as opções. A ideia de eu estar com alguém realmente a fez pensar. Eu sabia que ela estava se sentindo desconfortável com a situação e talvez fosse a única maneira de ajudá-la a superar isso.
– Anh, acho que sim. – Ela mordeu o lábio, claramente ainda insegura, mas aliviada pela possibilidade. – Poderia... me fazer sentir um pouco menos estranha, eu acho. Não resolveria tudo, mas talvez diminuísse os comentários.
Suspirei, fitando Nina com uma mistura de exasperação e compreensão. Era estranho, mas eu entendia.
– Então, está decidido. – Declarei, erguendo as mãos como quem sela um pacto. – Eu apareço com o meu cara, você chega de mãos dadas com o Andreas, e todo mundo finge que vive num conto de fadas. Com direito a fofocas, sorrisos falsos e espumante quente. – Fiz uma reverência exagerada, encerrando a fala como se fosse o fim de um espetáculo teatral.
Nina revirou os olhos e pulou do balcão, o vestido balançando levemente enquanto ela caminhava até mim.
– Você é impossível. – Murmurou, me puxando pelo braço em direção ao quarto. Segui, rindo baixo, até ela parar em frente ao espelho e começar a retocar o batom. A expressão dela mudou de divertida para preocupada. – Você tem certeza disso? Eu sei o quanto você odeia meter os pés pelas mãos. Quer mesmo levar esse cara? Não é cedo paraapresentar à sua família? São exatamente essas decisões que te fazem surtar, !
– Nina, você vive dizendo que eu devia me arriscar mais quando o assunto é amor, relacionamentos e essas outras bobagens que você acha românticas. – Deitei na cama, cruzando os braços e fazendo uma careta enquanto ela tentava ajeitar o delineador.
– Sim, , mas dentro dos seus limites. Dentro da sua zona de segurança emocional, entende?
– Arriscar, por definição, é sair da zona de segurança. Se não for para dar uma leve pirada no processo, nem vale a pena.
– Eu só não quero que você se machuque. Já basta eu estar causando essa confusão toda…
– Nina, você não está causando nada. Eu só quero que você esteja lá, comigo.
– E esse cara? Você acha que ele vai topar? Ele é legal? Como você vai explicar isso pros seus pais? Ai, … – Ela gesticulava tanto que quase derrubou o frasco de perfume.
– Fica tranquila, amiga. Vai dar tudo certo. Confia em mim. – Garanti, mesmo sabendo que aquilo era mentira.
É claro que não ia dar certo. Mas eu também não pretendia esticar a farsa além do necessário. Meu “namorado” terminaria comigo um dia antes da festa e pronto. Nina nunca mais ouviria falar dele, meus pais fingiriam que entenderam e todos seguiríamos em frente.
Conversamos por mais alguns minutos, rindo de hipóteses absurdas sobre o encontro, até o celular dela vibrar sobre a cômoda. A tela iluminou o nome de Andreas.
– Ele chegou. – Disse Nina, com um suspiro que misturava nervosismo e empolgação. – A gente conversa depois? Eu só preciso ter certeza de que você está mesmo bem com isso.
– Claro. Eu digo o mesmo. E avise para Andreas que não há problema algum em vocês irem juntos para a Ilha. – Nina assentiu e esticou a mão em minha direção, pronta para se despedir, mas eu neguei com um aceno rápido da cabeça. – Eu vou ficar. – Murmurei, tentando soar casual, como se não fosse nada demais.
– Como assim? – Nina parou no meio do corredor, franzindo o cenho, como se eu tivesse acabado de falar em outro idioma.
– Eu vou… – Fiz um gesto vago com o queixo em direção ao quarto de , evitando encará-la por tempo demais.
A reação dela foi instantânea e digna de um Oscar. Os olhos se arregalaram, a boca se abriu num “o” silencioso e eu quase vi as sinapses se chocando dentro da cabeça dela, criando novas e dramáticas teorias. Se eu não estivesse com o coração acelerado, teria rido.
– ? – Ela perguntou, num tom entre a incredulidade e o medo de estar certa.
Assenti. Tecnicamente, o gesto só queria dizer “sim, é com ele que eu quero falar”. Mas Nina, sendo Nina, fez conexões muito mais explosivas.
– O cara com quem você está saindo é… o ?
Pisquei. Uma vez. Duas. Meu olhar alternava entre o rosto chocado dela e a porta do quarto dele. Eu ia negar. De verdade. Estava a um segundo de fazer isso. Mas, antes que a palavra saísse, algo clicou.
A ideia.
Surgiu de repente, atrevida, audaciosa, como uma faísca que cai num barril de pólvora.
fingindo ser meu namorado.
Só por um fim de semana. Só até tudo se acalmar.
Meu cérebro disparou num turbilhão de planos e possíveis desastres e logo a linha entre genialidade e idiotice ficou perigosamente borrada.
– E-eu… – Balbuciei, tentando acompanhar meus próprios pensamentos enquanto sentia a ideia tomar forma.
Nina me observava com o mesmo olhar de quem acabou de testemunhar um plot twist da própria vida. E, sinceramente, eu entendia. Eu também não sabia o que diabos estava fazendo.
Enquanto eu buscava palavras, ela pareceu processar toda a informação de uma vez. Vi seus olhos se estreitarem, o maxilar travar e então ela explodiu.
– Que merda é ess… – Resmungou, jogando a bolsa no chão e marchando até o quarto. Bateu à porta com força, sem parar de me encarar, como se eu tivesse acabado de pousar de uma nave espacial. – Eu não sei se estou entendendo.
– Eu disse que estava saindo com um cara. – Dei de ombros, fingindo inocência.
– E esqueceu de mencionar que esse cara era o meu irmão?!.
– Sim…? – Murmurei, sem um pingo de convicção. Naquele instante já não tinha certeza do que estava dizendo, fazendo ou até sendo. Nina deu um giro brusco, decidida a ir até a porta, mas puxei o braço dela antes que alcançasse a maçaneta.
– Não! Espera! Deixe me falar com ele primeiro. Ele… não queria apressar as coisas. Você sabe como ele é: introspectivo, fechado… – Tateei na memória qualquer detalhe que pudesse dar verossimilhança àquela desculpa improvisada.
Ela parou, me observando como se eu fosse uma lunática temporária.
– , você está falando sério? – Disse, incrédula. – Puta merda. Eu vou matar ele! – Estremeceu, puxando-se para frente; eu segurei seu braço com força.
– Shhh, Nina! Por favor! – Supliquei, quase ajoelhando, segurando-a pelo pulso. – Me deixa falar com ele primeiro. Não posso ter você batendo na porta dele antes de eu explicar. Por favor…
Ela me encarou, olhos faiscando entre fúria e preocupação.
– Como você teve coragem? – Perguntou, ainda sem entender.
– Porque o seu irmão é um gato, você sempre disse isso. – Forcei um riso curto.
– O Andreas me espera. – Disse ela, respirando fundo e olhando para a bolsa. – Eu vou, mas, , a gente precisa conversar depois. Você precisa me explicar tudo: quando, como… meu Deus, você e o ?
– Eu sei. Eu também não acredito. – Resolvi sorrir, mesmo que o sorriso fosse de plástico. – Vai dar certo.
Nina bufou, pegou a bolsa e apontou para a porta como quem marca um destino inevitável.
– Isso é ridículo. Absurdo. Um delírio completo. – Resmungou, saindo, ainda balançando a cabeça como quem tenta se livrar de um pesadelo mal escrito.
Ela fechou a porta atrás de si com passos apressados. Fiquei ali, sozinha no meio do quarto, com o coração batendo alto e a sensação clara de que tinha acabado de embarcar numa loucura da qual talvez não houvesse volta.
– Que porra eu acabei de fazer? – Murmurei, esfregando o rosto com as mãos, borrando a maquiagem sem dó.
A ideia, no papel, até tinha algum charme. O problema era a execução e, obviamente, o elenco. Se eu não conseguisse convencer o a encenar justamente no fim de semana do meu aniversário, eu estava perdida. Fugir já não era opção: Nina certamente iria direto ao quarto dele assim que saísse; eu precisava me adiantar.
Então, numa dessas fagulhas que nascem do desespero, uma possibilidade se acendeu no meio do caos mental. Já havíamos fingido ser um casal antes; não éramos íntimos, é verdade, mas a convivência havia sido civilizada o suficiente para tornar plausível uma encenação.
Bastaria dizer que éramos apenas amigos e omitir, com classe, qualquer história embaraçosa sobre o sofá do meu escritório.
Podia funcionar. Contanto que eu engolisse a verdade inconveniente: ele não estava interessado em mim. Nem de leve. E, estranhamente, isso tornava a ideia menos desesperada e, de certo modo, mais estratégica. Tê-lo no meu aniversário seria uma desculpa perfeita para ficar por perto sem parecer uma histérica, uma chance disfarçada de fazê-lo me ver de verdade.
Claro que o plano era patético – um castelo de cartas levantado sobre “e se” e “vai que…” – e bastava um único sopro errado para tudo desabar.
Eu precisava de duas coisas: fingir confiança como se fosse verdade e tirar do casulo por quarenta e oito horas.
Dois dias. Um retiro entre desconhecidos. Uma ilha. Um lugar onde ele não tivesse como escapar. Só isso. Simples na teoria, suicida na prática. Mas, naquele instante, parecia a única jogada sensata.
Ah, droga.
Passei a mão na blusa, tentando alisar qualquer ruga que eu sabia que não existia e comecei a caminhar até o quarto dele. O som do meu salto no chão ecoava como um lembrete da tensão crescente dentro de mim. Quando cheguei na porta de madeira, bati levemente, o som abafado demais, quase como se eu quisesse disfarçar minha ansiedade.
“Pode entrar”.
Respirei fundo, sentindo a garganta seca. era tranquilo, educado, previsível. Não havia motivo para o meu coração martelar assim. Mas esta era a primeira vez que eu ficaria sozinha com ele de novo. E não no meu escritório, sob minha regras. E sim no território dele. Entre suas coisas, seu cheiro, seu espaço.
Onde eu não tinha controle algum.
– Oi, Ant. – Ele estava debruçado sobre a mesa, rodeado por papéis espalhados, com a expressão cansada no rosto. Usava um moletom confortável e óculos de grau, tão à vontade que quase me deu vontade de abraçá-lo.
– ? – Ele levantou a cabeça, claramente surpreso me vendo ali. Apertei as mãos nervosamente, sentindo um calor subir pelo peito. Vê-lo assim, tão perto, me trouxe uma onda de lembranças que eu preferia evitar. – O que foi? Quer ajuda com a Matriciana? – Ele retirou os óculos, ainda com um sorriso descontraído. Eu, sem saber o que fazer com as mãos, tirei os óculos escuros da cabeça e comecei a mexer neles de forma ansiosa.
– Eu vim falar com você. – Mordi os lábios, tentando controlar os nervos. Ele franziu a testa, desconfiado, e se levantou, mas não deu um passo na minha direção.
– Aconteceu alguma coisa? – Sua voz estava séria, o olhar atento.
– Não, mas… ér… na verdade… – As palavras saíam emboladas. Ok, , foco. Respira. Você é uma executiva, tem que se portar como tal. Não gagueje. Ele é um advogado. – , eu fiz uma merda.
– Você matou alguém? – piscou, um sorriso torto começando a se formar nos lábios. Sua expressão misturava incredulidade e diversão e eu não sabia se ficava aliviada ou mais nervosa.
– Não, mas talvez você mate… – Murmurei, baixinho, olhando para os lados, como se esperasse que alguém ouvisse. – Então… aconteceram algumas coisas e eu… – Travei. Novamente. Eu estava ali, diante dele, prestes a confessar um erro ridículo, e minha mente parecia completamente paralisada. me olhou, a paciência visível nos olhos e isso me deu coragem para continuar. – Ok, vou ser direta. Falei para a Nina que nós estamos juntos e que você vai para o meu aniversário no final do mês, na ilha.
– Você fez o quê?! – Os olhos dele se arregalaram de surpresa, a expressão passando por uma mistura de descrença, confusão e preocupação. Ele não parecia saber se ria ou se ficava sério e isso me deixou ainda mais desconfortável.
– Eu disse para Nina que estamos juntos e que você vai pro meu aniversário na ilha. – Soltei de uma vez, a vergonha apertando meu peito feito um nó. Evitei encará-lo, meus olhos baixaram para as mãos enquanto começava a roer uma unha sem pensar, um gesto automático para disfarçar o tremor na voz.
Deixei de fora a parte essencial: aquilo tinha nascido de um impulso cego, não de um plano racional. E escondi a verdade mais importante: no fundo, havia uma ponta de intenção em me aproximar dele.
Por ora, parecia mais sensato manter qualquer jogo de sedução, consciente ou não, completamente fora do roteiro.
– Eu entendi, não sou idiota. – Ele resmungou, passando a mão pelo rosto. – Por que você fez isso?
Eu me vi ali, tendo que explicar para um advogado, uma mente analítica e afiada, que aquela decisão estúpida saiu de um momento de confusão, um impulso que eu ainda não entendia muito bem. Respirei fundo, me recompus e decidi ser sincera, o que mais eu poderia fazer?
– Nina e Andreas estão juntos. – Comecei a falar, mas fui imediatamente interrompida por ele.
– Seu ex-namorado? – Ele perguntou, os olhos estreitos, como se estivesse tentando decifrar o que eu estava dizendo. Eu assenti com a cabeça, confirmando. – É, vocês são… modernas. – Ele disse, com um tom irônico.
– Não é nada disso. O que importa é que ela não queria ir ao meu aniversário porque Andreas vai estar lá, e somos um ex-casal, vai ser estranho para ela… – Expliquei, começando a me sentir mais aflita à medida que ia soltando as palavras. – Então eu disse que não tinha problema algum, pois já estava até com outra pessoa. E ela deu a ideia de que eu levasse essa pessoa, assim ninguém ia ligar se ela estivesse com meu ex-namorado. O problema é que…
– Deixa eu adivinhar, não existe essa pessoa. – Ele respondeu, entediado, sem sequer mudar a expressão.
– Bom, não existia. Mas, teve uma noite no Baston, algumas semanas atrás, eu meio que comecei a namorar um cara aí… – Falei, tentando dar um tom descontraído, lançando um sorriso amarelo em sua direção. me encarou minuciosa e silenciosamente por uns três segundos antes de dizer um sonoro “não” e virar as costas, voltando a sentar na cadeira. – Ah, , por favor!
– Está maluca, ? Isso vai dar maior confusão. – Me aproximei dele quase correndo. Com a movimentação, meus óculos caiu e, antes de apanhá-lo no chão, apertei as unhas no ombro dele. – Ai! Você me beliscou?! – Perguntou sem acreditar que eu simplesmente tinha apertado a carne do seu braço entre minhas unhas.
– Você me deve isso! – Falei, já completamente alterada. Eu podia jurar que até bati o pé no chão, como fazia quando tinha cinco anos de idade.
– Pelo quê? – Ele me olhou, ainda incrédulo.
– Aquele dia no Baston! – Eu disse, quase sem saber se estava falando sério.
A verdade é que eu inventei essa desculpa impulsivamente só para não dizer que ele me devia mesmo era por não ter ligado ou mandando mensagens depois de transar comigo.
– Você fingiu ser minha namorada por uma hora em um restaurante e agora quer que eu passe quatro dias em uma ilha fingindo namorar com você e ainda quer que eu esconda isso da minha irmã? A conta não bate, ! – respondeu, com a voz baixa e irritada, claramente não gostando de onde a conversa estava indo.
– O tio Martinez vai estar lá! Se eu aparecer com outro cara, você vai sair como idiota e eu como vagabunda! – Tentei novamente, lançando uma última cartada, esperando que ele se sensibilizasse com a situação.
– Eu não ligo. Não vou parar minha vida para me enfiar numa confusão de adolescentes com você. – A expressão dele endureceu, os olhos brilhando com uma raiva contida. – Você é inacreditável. Você inventa uma mentira para a sua amiga e agora espera que eu salve você dessa situação que você mesma criou?! – Ele balbuciou, quase indignado.
Esbravejei, furiosa, enquanto pegava os óculos que eu mesma havia chutado para debaixo da cama. No entanto, ao me abaixar, fui surpreendida. Não havia nada perdido por lá. Nenhuma meia velha, nenhum objeto esquecido. Normalmente, homens não são tão organizados, mas, aparentemente, era uma exceção.
Debaixo da cama, em vez da bagunça comum, havia uma pilha de papéis cuidadosamente empilhados. Minha curiosidade superou a irritação, e, sem pensar muito, puxei os papéis para mais perto.
Foi quando o sangue gelou em minhas veias. Eram cartas. Cartas de aviso de pagamento, daquelas que só chegam quando a situação começa a apertar. Eu conhecia bem esses papéis. Uma delas estava aberta, e bastou uma rápida olhada no cabeçalho para confirmar: cartas de despejo.
Meu coração apertou e a irritação deu lugar a um misto de incredulidade e preocupação.
“Não faz sentido. Esse apartamento é deles, não é alugado”, pensei, franzindo a testa. Fiquei um momento imóvel, ainda ajoelhada no chão, antes de me levantar e voltar minha atenção para ele.
– O que você…? – Perguntou, virando-se.
Ergui o envelope pardo e observei a palidez se espalhar pelo seu rosto, seus olhos arregalando em um misto de surpresa e apreensão. A reação dele não deixou dúvidas de que ele sabia exatamente o que significava o conteúdo da carta.
– Me dá isso. – Ele pediu, a voz tensa, quase ríspida.
– O que é isso, Ant? – Perguntei, a preocupação crescente.
– Não é nada, não é da sua conta, devolve! – Ele retrucou, tentando manter a calma, mas com um toque claro de raiva.
– A Nina sabe disso? – Perguntei, sem conseguir esconder o receio na minha voz.
– Não, e você não vai contar. Me dá isso, ! – Tentou puxar as cartas de minha mão, mas fui rápida o suficiente para desviar. Não seria fácil me livrar disso de vez, mas queria ganhar tempo para organizar a ideia que estava se formando na minha mente. – Você não devia ter mexido nas minhas coisas! Eu juro por Deus, , se a Nina souber disso por você…
– Eu não vou falar nada, calma. – Tentei acalmá-lo, mas o lado impulsivo dentro de mim falou mais alto. – Mas acho que posso ajudar.
Ele piscou algumas vezes, tentando processar minhas palavras. Então, soltou uma risada curta e sarcástica, balançando a cabeça como se aquilo fosse uma piada de mau gosto.
– Vocês, ricos, são engraçados. Acham que podem tudo. – Ele disse, quase com desprezo.
– É porque, normalmente, nós podemos. – Respondi, com um tom de obviedade, sem perder a confiança.
– Eu não preciso de caridade, . – Ele afirmou, puxando as cartas de minha mão com firmeza.
– E quem disse que é caridade? – Retruquei, decidida a virar o jogo. – Pense nisso como uma oportunidade de emprego.
Foi aí que comecei a usar minhas melhores habilidades de negociação.
– Espera, é isso mesmo que eu estou pensando? Você está me oferecendo dinheiro para…? – parecia perplexo, claramente não esperando essa proposta e, provavelmente, não acreditando muito no que eu estava sugerindo. Seus olhos estavam semicerrados, analisando-me com desconfiança.
– Viajar comigo no final de semana e, talvez, fingir que estamos saindo. Não precisa ser nada muito sério, só o suficiente para convencer a Nina de que estamos juntos. – Abaixei a voz, tentando tornar a proposta mais palatável. – E, quem sabe, a gente resolve isso.
– Se isso é um emprego, isso me torna o quê? Um prostituto? – Debochou, de braços cruzados.
– Não, eu não estou pagando para fazer sexo com você. Estou pagando seu aluguel para que você finja que estou fazendo sexo com você.
– Ah, além de caridade, eu nem vou ficar com a parte boa? – Pareceu meio indignado e ergui uma sobrancelha, surpresa com o tom que ele usava.
– Não estou entendendo, . Você quer o papel de prostituto ou não? Além disso, se fosse o caso, você já teria recebido o pagamento. – Murmurei, abaixando a cabeça, me arrependendo do que disse assim que terminei a frase. – Antes que você pergunte, isso não tem nada a ver com... o que aconteceu.
Achei necessário deixar isso claro. Para ele e para mim mesma.
Ant balançou a cabeça, claramente impressionado com a minha proposta audaciosa e então passou a mão pelo cabelo bagunçado. Ele soltou um longo suspiro antes de olhar para mim, resignação e aborrecimento refletida em sua expressão.
– , sobre aquele dia… – Começou a falar, dando um passo em direção a mim, coçando a cabeça.
“Ah, meu Deus, ele vai me dar um fora. Um pé na bunda antes mesmo de termos algo”, pensei. Eu nunca tinha levado um fora antes, nunca fui rejeitada, sequer tive encontros o suficiente para ter sido rejeitada.
– Eu não quero falar sobre isso, Ant. – Respondi rapidamente, negando com a cabeça e dando um passo para trás. No fundo, eu queria falar, mas senti que precisava me proteger da humilhação que seria ser dispensada por enquanto pedia um favor a ele. – Olha só, eu quero a Nina no meu aniversário e faço quase qualquer coisa para isso, até mesmo entrar em um relacionamento falso com você.
Assisti esperançosa desviar o olhar, parecendo pensativo. Ele ficou quieto por alguns momentos, considerando minha proposta e pesando as opções em sua mente. Ele parecia estar contemplando seriamente, apesar do absurdo de toda a situação.
– , você está maluca.
Ele fixou os olhos nos meus como se procurasse vestígios de sanidade. Meu sorriso se alargou. Eu já tinha ganhado essa batalha antes mesmo dela começar.
– Do que você precisa? – Minha voz soou mais firme do que eu esperava, embora os dedos tremessem levemente ao segurar o envelope.
fez aquela pausa calculista que eu já conhecia bem, os olhos escuros avaliando cada possível reação minha antes de responder. Quando finalmente falou, foi com a calma de quem negocia um contrato de negócios: – Não é óbvio? Dinheiro.
O ar entre nós pareceu ficar mais pesado.
– Quanto? – Minha voz baixou meio tom, a brincadeira dando lugar à negociação séria.
– Trinta mil.
– Trinta mil?! – O envelope quase escapou dos meus dedos quando puxei de volta, abrindo-o com movimentos bruscos. Os números no papel confirmavam minha suspeita, cada parcela era consideravelmente menor que isso. – Eu vou pagar quantas parcelas disso, ?
Ele inclinou a cabeça, quase divertido com minha reação.
– Cinco. Uma para cada dia que eu passarei preso naquela ilha paradisíaca sua. – Abri a boca para reclamar, mas ele ergueu um dedo para me silenciar. – Vamos ver... Cinco dias convivendo com seus amigos ricos que me olham como se eu fosse o garçom, numa ilha onde não posso fugir, fingindo que não vejo como você me observa quando acha que não estou olhando... – Seus olhos escuros brilharam. – Acho que estou sendo generoso.
Engoli seco. É, ele tinha um ponto.
– Vinte. – Contrapropus, surpresa com minha própria ousadia.
– , isso não é leilão.
Baixei os olhos para o envelope novamente, os números dançando diante de mim enquanto fazia os cálculos. Trinta mil. O preço da minha dignidade ou da minha obsessão. O valor que pagaria para ter como enfeite em minha festa de aniversário.
– Você é um aproveitador. – Cuspi as palavras enquanto cruzava os braços com força, sentindo o tecido do meu vestido amassar sob meus dedos.
– Não, sou empreendedor. – Deu de ombros. Me observou atentamente antes de perguntar. – E se eu disser que não?
– Como eu já falei seu nome para Nina, só precisarei dizer que nós terminamos e não precisamos mais ter contato algum.
– E quanto às cartas?
Ah, era isso. Ele estava com medo de que eu falasse sobre a dívida.
– Eu não tenho nada a ver com isso. – Dei de ombros, simplesmente. – Estou oferecendo dinheiro como troca, não como suborno. E se sequer pensou nessa possibilidade, só o mostra o quanto você não me conhece.
– Calma, juíza! Eu não disse isso. – Eu vi em sua expressão que ele estava esperando uma tentativa de extorsão da minha parte. Isso me entristecia, provava o quão pouco ele me conhecia e o quanto ele não tinha interesse em descobrir mais sobre mim. – Como é ter tudo que quer, ?
– Às vezes, é um pouco cansativo. – Respondi, sarcástica.
– Eu preciso pensar. – Ele olhou para baixo, encarando as cartas em suas mãos.
– Ok, você tem meu número. – Alfinetei. Não consegui me conter. Ele ergueu o olhar, provavelmente notando o tom ácido em minha voz e, provavelmente, não entendeu nada. – Mas saiba que quando Nina chegar, ela vai interrogá-lo de maneira furtiva e, provavelmente, violenta. Ela não aceitou muito bem.
– Como assim?
– Eu falei que estava saindo com você e ela surtou.
Nina sempre reclamava quando eu fazia comentários sacanas relacionados ao seu irmão, mas eu nunca pensei que fosse sério.
– Essa história está vindo cheia de contras e apenas um pró. – Resmungou, novamente. Peguei o óculos que ainda estava no chão. – Vai acabar sobrando para mim, eu já consigo sentir.
– Ant, eu não lhe pediria se não fosse importante. – Afirmei, com firmeza. – Eu preciso ir, ainda tenho que voltar para o trabalho. Você… – Hesitei quando notei que me encarava atentamente. – Pensa com carinho, por favor. – Dei um sorrisinho, virando a cabeça, tentando ser a mais meiga possível. – É só um final de semana, você só tem que estar lá, nem vai precisar fazer muita coisa. Comida, bebida e hospedagem de graça, uma ilha paradisíaca… Fala sério, , é um ótimo trato.
– Como eu disse, vou pensar. – Ele informou, um tanto pensativo. – A gente conversa na segunda.
– Segunda?
– Sim, eu não trabalho aos domingos. – Emitiu, engraçadinho. – O capitalismo faz a gente se meter em cada uma… – Murmurou e virou de costas, voltando a pegar sua caneta e papéis, acenando como um claro sinal de que não me queria mais ali.
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Eu nunca fui bom em fingir ser o mocinho. Essa pose de homem íntegro, acima de qualquer erro, nunca colou para mim. Mas naquele mês… eu ultrapassei a linha. Virei exatamente o tipo de pessoa que eu jurava não ser: mentiroso, dissimulado, covarde quando mais importava.
Sentia vergonha desse lado, mas também me recusava a deixar que ele me engolisse por completo. No fim, eu sempre encontrava uma justificativa – um propósito racional, uma causa maior – que tornava cada decisão moralmente aceitável. Pelo menos na minha cabeça.
Mesmo assim, admitir que havia algo de frio, quase cirúrgico, nas minhas escolhas recentes… me dava um incômodo que eu não sabia nomear.
Depois do almoço preparado pela Nina, subi para o quarto e me forcei a focar no trabalho. Tinha uma réplica à contestação para terminar antes de segunda. Era um caso importante, o tipo que podia consolidar meu nome dentro do escritório. Fazia pouco tempo que eu tinha saído do andar dos estagiários – aquele formigueiro de despachos, carimbos e cafeína – e conquistado uma mesa no setor de gestão estratégica.
Três andares acima, outro mundo. E eu sabia que não tinha chegado lá apenas por mérito. Meu estômago embrulhava sempre que lembrava disso.
A verdade era simples e nojenta: eu devia minha promoção a um relacionamento falso.
Não sei em que momento aceitei aquele acordo. Talvez tenha achado que seria fácil. Talvez tenha me convencido de que não era tão errado assim, de que, se o resultado final fosse justo, os meios se justificariam.
O plano parecia infalível na minha cabeça. Primeiro, eu ganharia a confiança da . Contaria parte da verdade, o suficiente para parecer sincero. Depois, quando o terreno estivesse seguro, eu criaria alguma história para Davi. Algo convincente, algo que me permitisse sair do plano sem levantar suspeitas. E, se tudo desse errado – se as provas viessem à tona e o jogo acabasse – eu ainda tinha uma última carta: assumir o golpe, mas inverter a narrativa.
Dizer que tudo fazia parte de uma armadilha maior para expor outro crime contra os . Afinal, quem se sacrifica pela família sempre ganha perdão.
Eu tinha pensado em tudo. Cada detalhe, cada escape.
Até vê-la naquela noite.
E, de repente, o plano inteiro deixou de fazer sentido.
A situação saiu do meu controle rápido demais e, quando me dei conta, eu estava preso entre as pernas torneadas de . E eu não me arrependia disso, só lamentava o timing terrivelmente errado.
Depois daquela noite, encenei com perfeição a farsa de um relacionamento ideal com a sobrinha do chefe. E foi engraçado – e um tanto revoltante – perceber como os olhares mudaram para mim. Era como se eu tivesse subido num pedestal invisível. Os comentários sobre minha "promoção relâmpago" pipocavam pelos corredores, sempre acompanhados de sorrisos enviesados e insinuações não ditas.
Para eles, eu não era um profissional competente. Era só alguém que pegou o atalho certo. E isso me embaraçava mais do que eu queria admitir. Mas esse embaraço – e qualquer sombra de tristeza que ousasse me perseguir – sumiu no exato instante em que o novo salário caiu na minha conta.
Ainda assim, fora do escritório, eu me sentia um tolo. Um imbecil. Um canalha.
Toda vez que surgia nos meus pensamentos, o arrependimento vinha como um soco. Eu não transei com ela por interesse. Não fiz aquilo para tirar vantagem. Pelo contrário. Durante aquele tempo juntos, eu esqueci completamente o plano sujo de Martinez. Mesmo assim, o fato de ter ido tão longe, sabendo que havia concordado com aquela loucura, me corroía por dentro.
Pensei inúmeras vezes em ligar para . Porém, qualquer aproximação minha não seria apenas minha. E isso me consumia, uma inquietação que me apertava o peito, como se estivesse tentando me lembrar de que minhas intenções já vinham manchadas.
Talvez por isso eu estivesse me dedicando tanto ao caso que me foi designado. Meu desempenho precisava ser impecável. Irrefutável. Eu precisava mostrar que minha presença ali valia mais do que qualquer barganha. Que minha carreira podia, sim, ser construída por mérito. No fundo, minha estratégia era clara: construir uma reputação sólida o suficiente para me sustentar quando o inevitável acontecesse.
Porque, no momento em que eu dissesse a Martinez que não podia cumprir o que ele me pediu… tudo iria desmoronar. E eu sabia bem: ele não era o tipo de homem que aceitava fracassos.
Tirei os óculos, esfregando o rosto, sentindo que meus pensamentos novamente iriam até a culpada por toda aquela confusão.
Nada disso teria acontecido se não tivesse inventado um namoro para Davi naquele dia do Baston.
De vez em quando, eu tentava sentir raiva dela por isso e até repensava sobre a ideia de influenciá-la errado. Porém, eu sentia o cheiro de jasmim e o barulho da chuva daquela noite vindo da minha mente criativa e dinâmica e desistia de tudo de novo. Peguei o celular em cima da mesa e repeti o mesmo ato que fizera das últimas vezes. Procurei o nome de na lista de contatos, mas não consegui ligar.
Suspirei, jogando o celular na mesa e voltando a olhar para a tela do computador, mas uma voz arrancou minha atenção completamente para fora de meu próprio quarto.
– Você acabou de salvar minha vida. – Escutei, longe.
Era a voz de .
Instintivamente, corri para trás da porta, tentando captar cada sílaba, desejando a confirmação de que era ela de verdade. Não era possível que, depois de pensar tanto nela, a indiana tivesse se materializado ali, no meio da minha rotina. Percebi que não conseguia ouvir mais nada, então decidi caminhar até a cozinha, fingindo buscar um copo de água.
– Céus, ! Quanto tempo você não come? – Nina comentou, rindo ao observar a amiga devorar a comida sem cerimônia.
– Não me julgue. TPM… Isso aqui… – gesticulava, ainda mastigando. – Nina, juro que não te peço em casamento agora porque dou muito valor ao sexo hétero.
– Umm, que bom saber disso. – Murmurei, e depois acrescentei, tentando soar casual: – , é sempre um prazer vê-la.
Arregalei os olhos, consciente de que tinha reagido sem pensar. Era inacreditável como meu corpo parecia fora do meu controle.
Ver com os cabelos presos em um rabo de cavalo, vestindo mangas compridas que não davam espaço para imaginação, era completamente diferente de tê-la visto descabelada, corada, satisfeita. Balancei a cabeça, tentando afastar as imagens que insistiam em invadir minha mente, e me aproximei da geladeira.
– Ah, também está em casa. – Nina comentou, apontando para mim.
Pobrezinha, ela não fazia ideia do que se passava.
– Ant… o prazer é todo meu. – O tom provocante de me atingiu de repente. Congelei atrás da porta da geladeira, engolindo em seco, incapaz de reagir de outra forma.
– Ei… limites, por favor.
Fechei a geladeira e busquei o olhar de . Ela mantinha um sorriso contido nos lábios, que eu não consegui decifrar por completo. Neguei levemente com a cabeça, tentando não sorrir, e acenei para avisar que iria ao quarto. O caminho até lá pareceu interminável. Queria voltar, me sentar à mesa e conversar com ela, mas para Nina, não tínhamos esse tipo de intimidade. E, entre nós, de fato, ainda não tínhamos.
Na hora seguinte, tentei muito me concentrar nos papéis em minha frente. Porém, acabei fazendo algo que prometi a mim mesmo que nunca faria. Mandei mensagem para Victor, meu colega de trabalho.
E se eu falar para Martinez que eu e terminamos?
Em alguns minutos, Victor respondeu:
Você vai ser demitido.
Victor era o único do meu andar que falava comigo. Tudo bem, nossas conversas vinham recheadas de insultos e provocações, mas ainda assim, almoçávamos juntos quase todos os dias. Num fim de semana, depois de uma semana especialmente infernal no trabalho, acabamos atravessando a rua para tomar uma cerveja naquele bar simples e modesto em frente ao prédio.
Fiquei surpreso pois não imagina que um cara como Victor frequentava um bar tão simples e modesto, mas no fundo, – bem no fundo –, Victor era mais do que um cara que se importava com roupas caras e de marca. Ele também gostava de cinema, de trabalhar e de cerveja quente.
Naquela noite, depois de muita cerveja e umas doses generosas de uísque, nós discutimos. Victor me acusou de ser complacente com todos os privilégios que vinha recebendo por causa da minha "namorada". E eu, com raiva de mim mesmo, não consegui fazer outra coisa além de concordar. Foi aí que contei sobre o acordo que Martinez propôs. Victor achou aquilo sensacional.
A verdade é que eu precisava desabafar. Não podia contar nada a ninguém, já que as pessoas mais próximas estavam diretamente envolvidas. Victor apareceu na hora certa, no lugar certo – ou errado, dependendo do ponto de vista – e escutou meus lamentos com uma empolgação quase perversa.
Obviamente, omiti a parte mais delicada: o fato de não ser minha namorada, mas sim, uma amiga da minha irmã.
“Isso é maldade, você sabe que fazer isso com sua própria namorada é loucura. Mas cara, se você conseguir... Genial, você vai ser um gênio!” exclamou, surpreso com a situação desagradável em que eu estava preso.
Consegui me concentrar no trabalho por alguns minutos até ser interrompido por batidas tímidas na porta. Levantei a cabeça, surpreso. estava ali.
– ? O que foi? Quer ajuda com a Matriciana?
– Eu vim falar com você. – Desci o olhar para os lábios que ela mordia excessivamente.
– Aconteceu alguma coisa?
– Não, ér… na verdade, e-eu… – estava gaguejando, algo que era completamente fora de seu personagem. não gaguejava, ela falava graciosamente. – , eu fiz merda.
Eu também, . Eu também.
– Você matou alguém? – Brinquei para esconder o quanto estava envergonhado.
não fazia ideia da missão indecorosa que o tio havia me imposto. Ainda assim, eu me sentia envergonhado por estar ali, de frente para ela.
E então havia aquela noite.
Por mais que eu tentasse enterrar a lembrança, ela voltava com força, insistente, como uma ferida aberta que se recusava a cicatrizar. Era impossível não pensar na ordem dos acontecimentos: a proposta de Martinez veio primeiro. E, logo depois, veio ela.
Mesmo sabendo que não tinha absolutamente nada a ver com os planos sujos do meu chefe, eu não conseguia evitar a sensação de que, de alguma forma, eu havia me aproveitado dela. Essa ideia me corroía por dentro. Me fazia sentir menor. Sujo.
Ela permaneceu em silêncio por um instante, como se ponderasse as próprias palavras. Então respirou fundo.
– Não, mas talvez você mate… Então… aconteceram algumas coisas e eu… - Assenti devagar, sinalizando para que ela continuasse. Sinceramente? Nada do que ela dissesse poderia ser pior do que o que eu estava escondendo. – Ok, vou ser direta. Falei para a Nina que nós estamos juntos… – Ela parou por um segundo, esperando minha reação. – E que você vai para o meu aniversário no final do mês, na ilha.
– Você fez o quê?!
– Falei para a Nina que nós estamos juntos e que você vai para o meu aniversário na ilha.
– Eu entendi, não sou idiota. Mas… por que você fez isso? – Passei a mão pela nuca, tentando processar aquela informação sem parecer tão confuso quanto estava.
soltou um suspiro curto, como se também estivesse tentando entender as próprias motivações.
Começou explicando que Nina estava namorando seu ex-namorado. Aquilo me pegou de surpresa. Era a primeira vez que eu ouvia falar que minha irmã estava em um relacionamento e, pelo visto, com alguém do passado de . Eu teria que conversar com ela sobre isso depois, com calma.
continuou, dizendo que Nina havia mencionado que não queria ir à festa de aniversário dela naquele ano. Segundo ela, ficaria sem graça de aparecer ao lado do ex da amiga. A situação toda soava como um daqueles enredos complicados de novela, mas, pela expressão de , aquilo era real e desconfortável para as duas.
A famosa festa de . Todo ano, eu ouvia falar dela, porém, apesar de tantos comentários, eu nunca havia sido convidado oficialmente. Sabia que, se quisesse, provavelmente conseguiria entrar. Mas não era do tipo que aparecia sem convite direto da anfitriã. Ainda mais sendo ela.
E mais do que uma festa, eu sabia o que aquilo significava para minha irmã. Nina contava os dias para essa viagem. Amava aquele final de semana na ilha da herdeira . Era o evento que ela mais aguardava no ano.
– Então eu disse que não tinha problema algum, pois já estava até com outra pessoa. E ela deu a ideia de que eu levasse essa pessoa, assim ninguém ia ligar se ela estivesse com meu ex-namorado. O problema é que…– mordeu o lábio, e sua voz saiu mais baixa. – O problema é que…
– Deixa eu adivinhar, não existe essa pessoa.
– Bom, não existia. Mas, teve uma noite no Baston, a algumas semanas atrás, eu meio que comecei a namorar com um cara aí… – Minha expressão se transformou da confusão inicial para um entendimento gelado. não estava apenas sugerindo que mantivéssemos a farsa, ela queria ampliá-la, arrastando minha irmã, meus amigos e toda a família para dentro do teatro. Era um risco inaceitável. Não precisei pensar muito para dizer ‘não’. – Ah, , por favor!
A voz dela tinha aquele misto de súplica e manipulação que eu conhecia bem. Ignorei.
– Está maluca, ? Isso vai dar a maior confusão. – Minhas palavras saíram cortantes, sem espaço para negociação. Eu não precisava de mais um enrosco com ela. Já estava metido até o pescoço tentando me desvencilhar de um acordo sujo e perigoso que, de alguma forma, também a envolvia. Antes que eu pudesse dar outro passo, ela avançou até mim, impaciente, e apertou meu braço com as unhas afiadas. – Ai! Você me beliscou?!
– Você me deve isso!
– Pelo quê?!
– Aquele dia no Baston!
– Você fingiu ser minha namorada por uma hora em um restaurante e por conta disso quer que passe quatro dias em uma ilha fingindo namorar com você e ainda por cima quer que eu esconda isso da minha irmã? A conta não bate, !
– O tio Martinez vai estar lá! Se eu aparecer com outro cara, você vai sair como idiota e eu como vagabunda!
Fiquei em silêncio por um segundo. Por fora, mantive a carranca de indignado. Por dentro, comecei a considerar a proposta.
Na verdade, aquilo podia funcionar. Aquela poderia ser minha oportunidade de matar dois coelhos com uma cajadada só. Estar na festa com me daria a chance perfeita para tentar convencê-la, com calma, de que o plano do Martinez era absurdo. E se ela, com o bom senso que eu sabia que tinha, recusasse colaborar, eu poderia voltar para o Martinez e dizer que, pelo menos, tentei. Tentei mesmo. E ele teria visto com os próprios olhos.
Além disso, aquilo me permitiria observar tudo de perto, manter segura e, com alguma sorte, encontrar uma brecha para desarmar toda a farsa.
Mas eu precisava pensar. Pensar de verdade, sem o olhar afiado dela me atravessando e sem a pressão daquela conversa.
Enquanto me perdia nessa linha de raciocínio, não percebi o movimento ágil de . Quando levantei os olhos, ela já estava no canto do quarto, segurando uma das cartas de despejo que eu escondia embaixo da cama.
Meu estômago afundou. Vi seus olhos percorrerem o conteúdo da carta e, logo depois, me encararem.
– A Nina sabe disso?
– Não. E você não vai contar. Me dá isso, ! – Tentei tomar a carta da mão dela, mas ela foi mais rápida, desviando com facilidade. Eu poderia ter insistido, forçado a situação, mas não queria machucá-la. Além do mais, ela já tinha lido. O estrago estava feito.
– Você não devia ter mexido nas minhas coisas! Juro por Deus, , se a Nina souber disso por você… – A ameaça saiu entre dentes, tentando esconder o nervosismo que me corroía por dentro.
– Eu não vou falar nada, calma. Mas acho que posso ajudar. – Ela me olhou com aquela expressão que misturava compaixão e desafio.
Por um segundo, não entendi. Mas então caiu a ficha.
não era parente de sangue do Martinez, mas com certeza havia sido moldada pela mesma escola. Fria, prática e acostumada a resolver problemas com o que nunca lhe faltou: dinheiro.
– Vocês, ricos, são engraçados. Acham que podem tudo.
– É porque, na maioria das vezes, podemos mesmo. – Retrucou, com um sorriso debochado.
– Eu não preciso de caridade, .
– E quem disse que é caridade? Pense nisso como... uma oportunidade de emprego.
– Espera. É isso mesmo que eu estou entendendo? Você está me oferecendo dinheiro para...
Fiquei estático por um segundo. Aquilo era inacreditável. estava mesmo tentando me comprar? Me subornar? E o pior: a proposta fazia sentido. Era tentadora. Mas também era um tapa na cara.
– Viajar comigo no final de semana e, talvez, fingir que estamos saindo. Não precisa ser nada muito sério, só o suficiente para convencer a Nina de que estamos juntos. – Explicou, como se falasse de uma tarefa simples, como regar plantas ou alimentar um gato.
– Se isso é um emprego, isso me torna o quê? Um prostituto?
– Não, eu não estou pagando para fazer sexo com você. Estou pagando seu aluguel para que você finja que estou fazendo sexo com você.
– Ah, além de caridade, eu nem vou ficar com a parte boa?
– Não estou entendendo, . Você quer o papel de prostituto ou não? Além disso, se fosse o caso, você já teria recebido o pagamento. Antes que você pergunte, isso não tem nada a ver com... o que aconteceu.
– , sobre aquele dia... – Comecei, sem saber exatamente aonde queria chegar.
Eu não queria pedir desculpas. Não me arrependia. Mas me culpava. Pela situação. Pelo contexto. Por ter deixado tudo acontecer daquele jeito. E odiava não saber se, em algum nível, eu havia me aproveitado dela.
– Eu não quero falar sobre isso, Ant. – Cortou, firme. – Olha só, eu quero a Nina no meu aniversário e faço quase qualquer coisa para isso, até mesmo entrar em um relacionamento falso com você. – Deu de ombros como se aquilo fosse a coisa mais racional do mundo.
– , você está maluca... – Murmurei, negando com a cabeça. Mas, no fundo, já estava curioso.
– Do que você precisa?
– Não é óbvio? Dinheiro.
– Quanto?
Parei. Tentei fazer as contas de cabeça, lembrar o valor exato da dívida, mas meu cérebro estava em pane, dividido entre a proposta absurda e o olhar firme de .
– Trinta mil.
– Trinta mil?! – exclamou, sua voz carregada de surpresa. A reação dela foi quase como um soco no estômago. Eu estava começando a me sentir como um idiota por ter entrado nessa negociação. Mas a verdade era que ela mesma tinha lançado a oferta. Eu não podia dar para trás agora, mas ainda assim, um mal-estar se formou no fundo da minha garganta. – Eu vou pagar quantas parcelas disso, ? – Ela perguntou com a calma que sempre a acompanhava, uma calma quase irritante diante da situação.
Notei que, ao contrário de Davi – a quem eu estava conseguindo enrolar há semanas com respostas evasivas e justificativas bem ensaiadas –, era inteligente, perspicaz e tinha um raciocínio rápido que não dava margem para erros ou para aquelas pequenas brechas nas quais eu normalmente me apoiava para manipular uma conversa.
– Cinco. Uma para cada dia que eu passar naquela ilha com você. – Minha voz saiu mais seca do que eu queria. Fui direto, sem enrolação. Contava os dias com os dedos. – Cinco dias convivendo com seus amigos ricos que me olham como se eu fosse o garçom, numa ilha onde não posso fugir, fingindo que não vejo como você me observa quando acha que não estou olhando... Acho que estou sendo generoso. – Arrematei, tentando brincar com a situação, mas eu sabia que estava sendo sincero em parte.
Ela me olhou com aquela expressão indecifrável e fez um pequeno movimento com a cabeça, quase como se estivesse processando as palavras. Por um segundo, achei que ela fosse retrucar com algo mais ácido, mas ela respondeu com a mesma calma de sempre.
– Vinte. – Disse, com um sorriso torto no rosto.
– , isso não é leilão. – A resposta saiu de mim mais impaciente do que eu queria. A sensação de estar sendo negociado como uma mercadoria me incomodava e eu não conseguia disfarçar a irritação.
– Você é um aproveitador. – Ela não teve medo de me apontar, com uma leve risada nos lábios, como se estivesse se divertindo com a situação.
– Não, sou um empreendedor. – Tentei manter a postura, me convencendo de que o que estava fazendo não era tão vil quanto ela achava. Afinal, era um acordo mútuo, certo? Eu só estava tentando encontrar uma oportunidade, mesmo que fosse em um cenário completamente sujo. Aproveitador? Parasita? Picareta? Não. Eu estava sendo um empreendedor visionário, que procurava uma saída em meio ao caos. – E se eu disser não? – Perguntei, mais por testar o terreno do que por real desejo de recusar. Queria ver até onde ela iria para me convencer.
– Como eu já falei seu nome para Nina, só precisarei dizer que nós terminamos e não precisamos mais ter contato algum.
– E quanto às cartas? – Levantei uma sobrancelha, sentindo que a conversa estava indo para um ponto que eu não esperava. Mostrei os papéis, aqueles documentos que me assombravam, e tentei analisar o olhar dela.
– Eu não tenho nada a ver com isso. – Ela deu de ombros, como se o problema das cartas fosse completamente irrelevante. – Estou oferecendo dinheiro como troca, não como suborno. E se sequer pensou nessa possibilidade, só o mostra o quanto você não me conhece. – As palavras dela eram duras, mas não houve raiva nelas. Era mais como um confronto de realidades.
– Calma, juíza! Eu não disse isso. – Levantei os braços em defesa, mas, por dentro, eu sabia que ela estava certa. Eu realmente pensei que ela estivesse tentando me subornar de alguma forma. Respirei fundo e me senti ridículo. Não só estava caindo nas artimanhas de alguém rico pela segunda vez no ano, como agora eu estava começando a entender que minha visão sobre pessoas como era mais errada do que eu imaginava. – Como é ter tudo o que quer, ? – Perguntei sem pensar, tentando entender o que estava acontecendo ali, o que ela realmente queria.
Ela deu uma risada curta, uma risada cheia de sarcasmo, e seu sorriso parecia misturar tanto a empatia quanto o desgosto.
– Às vezes, é um pouco cansativo. – Ela respondeu com sinceridade, mas havia uma camada de amargor em suas palavras que eu não esperava.
– Eu preciso pensar. – Fui sincero.
Eu não tinha como tomar uma decisão ali, não sem examinar as opções. Mas, no fundo, eu já sabia a resposta. Eu estava mais perto de ceder do que eu gostaria de admitir.
– Ok, você tem meu número. Mas saiba que quando Nina chegar, ela vai interrogá-lo de maneira furtiva e, provavelmente, violenta. Ela não aceitou muito bem.
– Como assim?
– Eu falei que estava saindo com você e ela surtou.
– Essa história está vindo cheia de contras e apenas um pró. – Assisti se abaixar para pegar os óculos no chão e desviei o olhar rapidamente quando notei que estava olhando fixamente para as pernas expostas dela. – Vai acabar sobrando para mim, eu já consigo sentir.
– Ant, eu não lhe pediria se não fosse importante. – Afirma com convicção. – Eu preciso ir, ainda tenho que voltar para o trabalho. Você... Pensa com carinho, por favor. É só um final de semana, você só tem que estar lá, nem vai precisar fazer muita coisa. Comida, bebida e hospedagem de graça, uma ilha paradisíaca… Fala sério, , é um ótimo trato.
Era um ótimo trato, sim. Mas eu também tinha um outro trato em andamento e envolvia diretamente e a família . Aceitar aquilo seria atestado de mal cartismo desprezível, mas droga, eu precisava de dinheiro. Desesperadamente.
– Como eu disse, vou pensar. – Informei, sério. – A gente conversa na segunda.
– Segunda?
– Sim, eu não trabalho aos domingos. O capitalismo faz a gente se meter em cada uma… – Murmurei meus pensamentos em alto e bom som.
Virei de costas, voltando para a cadeira e acenei. Quando voltei a olhar, já não estava no mesmo ambiente que eu. Encarei a porta fechada por alguns minutos antes de tirar os óculos do rosto com força e jogar sobre a mesa. Passei a mão pela face, angustiado.
Eu sentia que tinha sido encurralado por todos os lados e estava cedendo a todos eles. Além de me sentir como uma marionete nas mãos de gente com mais dinheiro que eu, também sentia que estava sendo forçado a direção e ações indignas. Entretanto, no fundo, eu sabia que não podia culpar ao mundo e me deixar de fora disso.
No fundo, eu sabia que essa não era uma batalha só contra , ou contra Martinez. Era contra mim mesmo. E eu estava perdendo.
Meus olhos se encheram de lágrimas, e eu tentei disfarçar, mas não consegui. A memória da minha mãe, sempre tão firme, falando que nenhuma pessoa era fraca se seu caráter fosse forte, me atingiu com a força de um soco no estômago.
Eu devia ser um péssimo exemplo disso. Porque, no momento, me sentia completamente fraco.
– Ժ –
Na segunda-feira, tudo o que eu queria era me jogar na cama e esquecer o trabalho, os processos, a tela do computador, até o celular. Queria apenas me afundar no travesseiro e acordar no dia seguinte fingindo que a rotina não existia. Mas, como sempre, havia a tal da responsabilidade: era meu dia de preparar o jantar.
As pastas empilhadas sobre a mesa me encaravam, exigindo atenção, mas ignorá-las seria fácil. O mesmo não podia ser dito sobre o jantar da Nina. Isso, definitivamente, não podia ser deixado de lado.
Antes que começasse a me afundar nas próprias lamentações, fui direto para o banho. Quando saí, vesti uma bermuda de algodão e um moletom preto. O cansaço ainda pesava nos ombros e uma pontada incômoda na cabeça anunciava a chegada de uma enxaqueca. Em vez de procurar um remédio, decidi que uma garrafa de cerveja gelada seria um analgésico mais convincente.
Nina costumava chegar mais tarde nas segundas e quintas, por causa das atividades extracurriculares, e esses dias automaticamente se tornavam meus turnos oficiais na cozinha.
Ao abrir a geladeira, encontrei um resto de espaguete sem molho guardado em um recipiente transparente, e, naquele instante, algo dentro de mim se lembrou de . Eu havia prometido que falaria com ela, que resolveria as coisas entre nós, mas a exaustão me consumia, tornando o simples ato de agir praticamente impossível. Queria não pensar nela, não queria lidar com a bagunça que minha vida havia se tornado.
O dia no escritório foi o ápice. Algum idiota comentou que o chefe tiraria folga para viajar para o aniversário da sobrinha que as engrenagens começaram a girar. Não demorou muito para que todos ligassem os pontos.
As piadinhas começaram tímidas, mas ganharam força ao longo do dia, até que parecia que cada mesa ao meu redor tinha alguém rindo às minhas custas. "Então, já arrumou a mala para as férias com o chefe?" ou "Vai aproveitar para pedir um aumento durante a festa de aniversário, hein?" Essas eram as mais leves. A cada comentário, meu sangue fervia mais.
À medida que o dia avançava, percebi que as piadas não eram apenas sobre o suposto favoritismo por parte do chefe. Era como se todo mundo acreditasse que minha vida pessoal e profissional eram uma grande barganha, que eu estava jogando algum tipo de jogo. Isso me irritava mais do que deveria, talvez porque, no fundo, eu sabia que não era totalmente mentira.
O que Martinez estava fazendo comigo, o que ele me forçava a fazer, não era mais um jogo.
Ele sabia muito bem o que tinha nas mãos (provas de fraude, documentos capazes de destruir qualquer chance que eu tivesse de seguir com minha vida do jeito que a conhecia). O que ele queria, no fundo, era que eu me envolvesse nisso. Se eu não jogasse o jogo dele, ele usaria aquelas provas e as consequências disso me perseguiam constantemente.
Eu até tentei ignorar, acreditei que, de alguma forma, aquilo tudo ia se resolver sozinho, que ele ia esquecer, mas sabia que isso não ia acontecer. Eu não podia continuar vivendo na corda bamba, tentando convencer todo mundo de que tudo ia se ajeitar sem que eu fizesse nada.
Então, tomei uma decisão. Eu ia fazer o que Martinez queria. Com o favor a , eu limparia a minha parte, conseguiria quitar a dívida da casa e garantiria que ela ficasse sem mais cobranças.
Não pensei nas consequências naquele momento. Não podia. Eu já estava fundo demais nessa lama e, se tentasse sair, acabaria afundando ainda mais. Então, sim, aceitei.
Peguei o celular no bolso, objetivando mandar mensagem para , mas fiquei surpreso em encontrar uma mensagem de texto dela.
Estou chegando.
Passei a mão pelos cabelos úmidos, respirando fundo. Ela estava vindo. Fui até o banheiro, retirei os óculos de grau, coloquei as lentes e fui terminar de preparar o jantar.
estava ali, buscando uma confirmação. Uma confirmação que, na verdade, eu já tinha. Mas, mesmo assim, ainda me sentia inquieto. Olhei ao redor do apartamento, como se buscasse algo que me garantisse que eu estava fazendo a escolha certa. Mas, no fundo, sabia que não havia mais volta.
descobrir a minha situação financeira era um pesadelo. Mas não tinha muitas opções. O apartamento de 122m² que minha mãe comprou com tanto esforço e suor de trabalho, um lugar onde moramos a vida inteira, sempre teve um valor sentimental muito maior que o material. A ideia de perdê-lo por pura teimosia e erro seria um golpe doloroso demais para mim e, principalmente, para Nina.
E … com ela, seria o dinheiro mais fácil que eu já teria na vida.
Abri a porta da sacada, uma pequena área que reformamos juntos. A brisa fria da noite entrou no apartamento, como uma tentativa de trazer um pouco de frescor ao ar carregado de preocupação. Olhei para o cenário ao redor mais uma vez, suspirei e procurei, de algum jeito, algum sinal de que estava fazendo a coisa certa.
Nunca desejei tanto que o fantasma de mamãe aparecesse ali.
Alguns minutos depois, o interfone tocou. O porteiro informou que uma certa estava aguardando. Deveria ser um porteiro novo, já que fazia anos que não era parada na portaria. Respondi rapidamente que ela poderia ser liberada e, após deixar a porta aberta, corri de volta para a cozinha, apressando-me a mexer nas panelas.
– Caramba, que cheiro bom! – A ouvi exclamar assim que entrou, anunciando sua chegada. Mas os sons de seus saltos batendo contra o piso de madeira já haviam chegado até meus ouvidos antes mesmo de ela aparecer em meu campo de visão.
– O mesmo espaguete, mas não sou tão caprichoso quanto Nina. O molho é só de muçarela. – Comentei, sem tirar os olhos das panelas.
– Ou seja, é macarrão com queijo. – Ela respondeu, o tom provocador em sua voz. Eu a olhei, fingindo indiferença, e ela sorriu de lado, com aquele sorriso travesso que só ela sabia dar. A brisa ficou mais forte de repente, e virou-se, olhando para a sacada. Seu sorriso se expandiu. – Ah, eu amo esse lugar. – Ela correu animada em direção à sacada integrada à cozinha e se jogou no sofá de dois lugares.
Não consegui evitar o sorriso. Era uma reação involuntária. O jeito como ela se movia, como sempre, com tanta confiança e graça, me fazia sorrir, mesmo quando eu tentava manter o foco. Como sempre, ela estava de saia. O conjunto de saia plissada e blazer cor-de-rosa era tão típico de , tão perfeito para ela, que parecia até engraçado. Ela parecia saída diretamente de Clueless, como se fosse uma personagem criada para a tela.
Droga, era tão bonita que tornava as coisas ainda mais complicadas para mim. Como eu poderia me sentir realmente arrependido pela noite no escritório?
– Você mora em uma mansão, . O que minha sacada de dois metros tem de tão diferente? – Zombei, enquanto me concentrava em preparar o molho.
– É confortável. – Deu de ombros e olhou para o lado de fora, como se estivesse assistindo a coisa mais interessante do mundo. – Além disso, eu gosto de como a vista daqui dá para outras casas. Do meu quarto, eu só vejo escuridão e alguns prédios distantes.
– É claro que não há nada em volta, você mora em um condomínio do tamanho de um parque nacional. – Recordei, sarcástico.
– Como você sabe? Nunca foi lá. – Desdenhou.
– Eu já dei carona para Nina até sua casa algumas vezes, obrigada por notar. Quer beber alguma coisa? – Ofereci e ela disse que queria apenas água.
– Cadê a Nina? – Olhou em volta, buscando sinais da presença de minha irmã.
– Ela costuma chegar tarde nas segundas.
– E o que falaremos quando ela chegar? – Perguntou, olhando-me ansiosa. – Ant, vamos lá! – Pediu, impaciente.
Eu quase conseguia ouvir a voz de Davi Martinez em meu ouvido, no dia em que ofereceu o acordo.
“Não estou dizendo que será fácil, mas que valerá a pena”.
Suspirei dolorosa e profundamente.
– Quando você menos esperar eu vou estar sentado na sala de jantar com o Sr. , usando dhoti e comendo curry.
Ela deu um gritinho empolgado, correu até mim de um jeito engraçado por conta dos saltos e pulou em meus ombros, abraçando-me fortemente. Tentei me esquivar, mas não consegui conter a ação de meu próprio corpo e minhas mãos foram instintivamente para sua cintura, mas assim que senti um pedaço da pele dela em meus dedos, me afastei rapidamente.
Eu definitivamente não queria – e nem devia – testar meus limites quando se tratava de . Já tinha sido difícil o suficiente não ir atrás dela no dia seguinte àquela noite. Passei o dia inteiro tentando me convencer de que manter distância era a decisão certa.
– Ah, não sei por que estou tão feliz de gastar trinta mil por você. – Ela comentou, se afastando, cruzando os braços em uma falsa pose de indignação. – Espera aí, desde quando você sabe o que é dhoti?
– Eu fiz meu dever de casa. – Respondi, tentando conter o sorriso. Ela riu e voltou ao sofá da sacada. – Se isso é um trabalho como qualquer outro, é bom que eu esteja qualificado.
Para mim, era exatamente isso. Um trabalho. Como qualquer outro que já aceitei na vida. E em todos eles, eu gostava de me sentir preparado, saber onde estava pisando.
– Muito obrigada, Ant, de verdade. Eu sei que parece uma besteira, mas isso é importante para mim.
Fiquei em silêncio por um instante, mas a pergunta que não consegui fazer no sábado finalmente escapou.
– Por que você está fazendo isso? – Murmurei, mantendo os olhos nas panelas por mais tempo do que o necessário. – Você precisa tanto assim da Nina?
Reduzi o fogo do fogão até quase apagar a chama e fui até a sacada.
– A questão não é precisar dela. Eu conseguiria levá-la de qualquer forma. Ela é sensível o suficiente para não me deixar sozinha no meu aniversário. – falou com um tom mais calmo, como se já tivesse refletido sobre aquilo antes. – Mas se ela não estiver confortável o suficiente para curtir a festa, então não vale a pena. A Nina ama a ilha Sundar. E eu amo a Nina. Então, se para deixá-la bem e confortável eu preciso de você lá... então que seja.
No fundo, nós dois sabíamos que minha decisão de aceitar tudo aquilo também girava em torno da mesma pessoa: Nina. Ela era o ponto de conexão. O elo. O que nos empurrava para esse acordo esquisito, mas necessário.
– Seria realmente o fim do mundo ela não ir ao seu aniversário? – Perguntei, sem conseguir evitar.
Ela desviou o olhar, como se precisasse pensar na resposta. Ou talvez só quisesse escolher bem as palavras.
tinha um rosto delicado, mas marcante, provavelmente por causa das origens indianas que carregava com tanto orgulho. Era bonita como qualquer atriz de cinema. Naquele dia em especial, seus cabelos pretos caíam soltos em camadas suaves ao redor do rosto e era visível que ela não usava maquiagem alguma. Eu conseguia ver as manchinhas e sardas espalhadas ao redor do nariz. Seus cílios longos piscaram algumas vezes antes de ela se virar para mim.
– Nina é minha única amiga de verdade, Ant. – Sua honestidade que me pegou de surpresa. – Pode ser egoísmo, pode ser mimado da minha parte... mas eu preciso dela. – Deu de ombros, como se aquilo fosse óbvio. – E, além disso, ela ama os meus aniversários. Ver ela ficar de fora ou não aproveitar por conta de comentários idiotas dos outros seria injusto demais.
Assenti em silêncio, mas, ao contrário do que esperava, senti mais frustração do que alívio.
O jeito como era capaz de se doar por Nina me deixava admirado e, de certo modo, mais disposto a aceitar seu pedido. Mas também tornava tudo aquilo mais difícil de digerir. Ela não tinha segundas intenções, não estava usando ninguém. Diferente de Davi... e, no fundo, diferente de mim também.
Porque eu sabia o que estava em jogo. Ir àquele aniversário significava concluir minha missão. Significava dar o último passo do acordo com Martinez. E no fim das contas, quem sairia ganhando com tudo isso era eu. Só eu.
só queria passar o aniversário ao lado da melhor amiga. Eu queria dinheiro.
– Ela não me falou nada. – Comentei, tentando não soar magoado. – Desde que você saiu daqui no sábado, a Nina não tocou no assunto comigo. Não disse uma palavra.
– Jura? Comigo, ela fez um milhão de perguntas. – respondeu, pensativa.
– Que tipo de perguntas?
A verdade era que, desde que Nina voltou para casa naquele sábado, ela não demonstrou raiva. Mas também não disse uma palavra sobre o que tinha ouvido. Ela simplesmente... se calou. E esse silêncio estava me consumindo.
– O básico. Como começou, por que começou, onde começou...
– E o que você disse?
– A verdade. – Franzi o cenho, imediatamente tenso. A "verdade" dela incluía a nossa... reunião particular? Será que ela contou tudo? – Eu disse que nos encontramos no Baston, jantamos juntos, blá blá blá... – Fez um gesto com as mãos, como se o resto fosse irrelevante. Mas continuou me deixando na dúvida. – Posso te fazer uma pergunta? Como isso aconteceu? As dívidas, todo esse aperto... você sempre foi tão organizado.
Soltei uma risada fraca, sem graça, e me recostei na lateral da porta da sacada, cruzando os braços.
– A vida aconteceu. – Comecei, dando de ombros. – Eu hipotequei a casa para conseguir um empréstimo e acabei não conseguindo pagar as parcelas corretamente. Não consegui o dinheiro no tempo certo e o banco acabou acumulando. – Expliquei, suspirando baixo e envergonhado.
– Posso perguntar o porquê do empréstimo?
Hesitei em responder, preocupado com a simplicidade que conseguia fazer perguntas difíceis sem pesar o clima. E ainda mais preocupado com a facilidade que parecia ter em conseguir coisas de mim.
Pensei novamente, avaliando as consequências de contar a verdade para sobre a Universidade. Mas, pensando bem, ela queria tanto o bem de Nina quanto eu. Não haveria problema. Além disso, eu vinha tentando manter uma postura de honestidade com ela (pelo menos, tanto quanto a situação me permitia) e, convenhamos, isso ainda rendia um bônus: melhorava a minha imagem diante dela. Se eu fosse aberto, talvez ela deixasse de me ver como alguém desesperado por dinheiro por motivos banais.
– Eu pago a Universidade onde a Nina estuda e você sabe bem o quanto aquelas mensalidades são absurdas. Foi por isso que aceitei me colocar nessa confusão toda com vocês. Quer dizer, com você. – Fiz uma breve pausa, respirando fundo antes de continuar. – Quando minha mãe morreu, eu assumi tudo: o apartamento, a faculdade da Nina, as contas, o dia a dia. Tentei de verdade. Fiz horas extras, peguei trabalhos paralelos, vendi o que podia… mas nada era suficiente. Se eu não der um jeito de pagar a dívida com o banco, Nina vai descobrir que o dinheiro da casa está indo para a faculdade, e ela largaria tudo. Eu não posso permitir isso.
ficou me olhando por um tempo, abrindo e fechando a boca como se estivesse tentando encontrar as palavras certas. Depois suspirou, estalou a língua e, sem aviso, me deu um soco no ombro, forte o bastante para me fazer recuar um passo.
– Ai! Por que fez isso? – Reclamei, esfregando o local atingido.
– Porque achei que você fosse dizer que estava endividado por causa de jogo e farra, que saco!
A expressão ultrajada dela me arrancou um riso genuíno, o primeiro do dia. E, por um instante, o peso nas minhas costas pareceu um pouco mais leve.
– Eu sou idiota, mas nem tanto. – Retruquei, ainda rindo, tentando massagear o ombro. – E, por favor, me dá um pouco de crédito. Jogo e farra? Eu mal saio de casa.
– Isso é o que todos dizem. – Ela rebateu, o cenho franzido, mas os lábios ameaçando um sorriso. – E ainda vem com esse discurso de mártir… “Ah, fiz tudo pela minha irmãzinha”.
– É a verdade. – Respondi, mais calmo. – Eu só não queria que ela tivesse que carregar o peso da minha burrice.
Por um momento, o silêncio entre nós se tornou quase palpável. me observava como se estivesse avaliando cada palavra, cada gesto e talvez estivesse mesmo. Seus olhos perderam a ironia habitual e, por um instante breve, pareceram mais gentis, quase compreensivos.
– Você é um idiota... decente. – Disse ela, por fim, num tom baixo, sem a mesma acidez. – Um idiota decente.
Sem pensar muito, desviei o olhar, tentando esconder meu embaraço. Levantei-me e fui direto para a cozinha, na esperança de encontrar algum refúgio entre panelas e pratos. Mas ela veio atrás. Surgiu na porta poucos segundos depois, encostada no batente, observando em silêncio.
– Quer ajuda? – Ofereceu, com a voz mais suave.
– Não precisa. – Balancei a cabeça.
Ela não insistiu. Ficou ali, quieta, mas presente. A cozinha, que já era pequena por si só, parecia ainda mais apertada com ela por perto. E, ao mesmo tempo, estranhamente mais aconchegante.
– Posso jantar aqui? – Perguntou, quase tímida. Ergui os olhos em direção a ela.
– Achei que você já tivesse se convidado. – Disse, com um sorriso de canto. – Vou esperar a Nina para jantar, mas se quiser comer antes, fica à vontade.
– Hmm... posso esperar também? – Sorri, dessa vez mais abertamente. Havia algo encantador na maneira como ela pedia permissão para coisas tão simples.
– Você parece cansada. – Comentei, notando as olheiras e o semblante exausto dela. Me aproximei novamente e sentei ao seu lado no sofá novamente.
– Muito trabalho.
Meus olhos baixaram até seus pés. As tiras finas das sandálias pareciam pressionar demais a pele, que estava visivelmente inchada.
– Caramba, seus pés estão inchados. – Observei, sem pensar.
– Usei os saltos errados hoje.
– Saltos errados causam isso? – Perguntei, genuinamente surpreso.
– Eu tenho retenção de líquido, . Obrigada por trazer isso à tona!
Ela olhou para os próprios pés e, em seguida, para mim. O olhar mudou – de ofendida para irônica – e um sorriso preguiçoso surgiu em seus lábios. Então, com um simples movimento dos olhos, apontou para os pés como quem não dizia nada, mas queria tudo.
Revirei os olhos, soltando um suspiro exagerado, já entendendo perfeitamente o recado.
– Você está achando mesmo que vou massagear seus pés?
– Você que comentou que eles estão inchados... achei que fosse um comentário construtivo. – Retrucou, inocente, mas o brilho travesso nos olhos dela entregava tudo.
Puxei os seus pés para cima de minhas próprias pernas de maneira pouco delicada, mas ela não se importou, comemorou, batendo palminhas e se aconchegando no sofá.
– Massagens eu cobro à parte – Informei, tentando manter o tom leve enquanto começava a apertar seus pés com certo cuidado.
– Eu pago sem problema nenhum. – respondeu ela, com um sorriso preguiçoso e provocativo, como se soubesse exatamente o efeito que aquelas palavras teriam em mim.
Eu não sabia fazer massagem, então apenas fiquei deslizando de forma hesitante pelo calcanhar e mexendo nos dedos pequenos e gordinhos que mal cabiam na sandália. Ainda assim, a reação dela foi… inesperada. reclinou o corpo no sofá e soltou um suspiro baixo, entrelaçado com um som quase imperceptível de alívio que me fez travar a mandíbula.
Ela fechou os olhos por um instante e, quando voltei a pressionar um ponto na lateral do pé, soltou um som abafado, quase um gemido. Um arrepio subiu pela minha espinha e eu fiquei completamente desconcertado.
– Anh… você trabalha com o quê, afinal? – Pigarreei, puxando assunto no desespero de fugir dos pensamentos pouco apropriados que começavam a se formar na minha cabeça.
– Eu sou contadora, Ant. Obrigada por se importar com isso só agora, depois de sei lá, uns quinze anos? – Disse, sarcástica, mas com um sorriso no canto da boca que não deixava espaço para ofensa.
Revirei os olhos, meio envergonhado. Não era como se eu tivesse obrigação de saber. Ela nunca foi exatamente acessível. A verdade é que aquela era provavelmente a primeira vez que trocávamos mais do que três frases seguidas. sempre orbitou ao redor da minha vida por causa da Nina, mas sem nunca realmente fazer parte dela.
– Achei que você fosse formada em Economia.
– E sou. Mas a empresa precisa mais de uma contadora do que de uma economista
Só de ouvir "empresa da família", uma pontada incômoda me atravessou. E aí estava o motivo exato pelo qual eu nunca me aproximei. O velho ranço com herdeiros acomodados, o tal do caminho pavimentado sem esforço. Aquilo sempre me deu nos nervos.
– Deve ser conveniente. – Soltei, num tom que não consegui disfarçar completamente.
– Conveniente?
– Trabalhar na empresa da família. Aposto que nunca teve que mandar currículo ou suar numa entrevista maldosa.
– Ah, claro. Porque trabalhar com a família é sempre um mar de rosas, né? Todo mundo se ama, se respeita, ninguém tenta te sabotar... – Fiquei quieto. Ela tinha um ponto. – Posso ser privilegiada, mas sou bem competente, viu?
– Não foi isso que eu disse – Tentei argumentar, mesmo sabendo que talvez tivesse sido exatamente o que insinuei.
– Tudo bem. Se eu fosse você, provavelmente pensaria o mesmo. Ainda mais conhecendo o meio como a gente conhece. – deu uma risadinha, como se já tivesse escutado aquela mesma ladainha mais de uma vez. – Ninguém sobrevive no mercado financeiro sendo medíocre, . Nem mesmo quem tem o sobrenome certo. Você sabe quantos incompetentes de berço de ouro ocupam cargos que não merecem? A diferença é que, quando uma mulher chega lá, todo mundo corre para achar um motivo que não seja competência.
Eu engoli em seco. Não sabia o que responder, e, por um momento, fiquei perdido nas palavras dela. Eu a olhava, mas o que ela disse reverberava em minha cabeça de uma maneira que eu não queria admitir. Ela estava certa.
Porque, no fundo, eu sabia que aquela cobrança tinha mais a ver comigo do que com ela. O quanto eu tinha lutado para chegar aonde estava, o quanto ainda lutava, e o quanto me incomodava ver pessoas menos preparadas subindo mais rápido, com mais facilidade. Era uma raiva silenciosa que eu carregava, como se o mundo estivesse sempre dando oportunidades para os outros, enquanto eu tinha que lutar a cada passo.
– Ah, eu faço ideia sim, você pode ter certeza. – Minha voz saiu baixa, mas carregada de sinceridade.
Meritocracia? Eu já não acreditava nessa falácia há muito tempo. A verdade era que quem não tinha as conexões certas estava sempre um passo atrás, não importa o quanto se esforçasse.
– Seu chefe é um desses caras, não é? – Abri a boca, mas antes que eu pudesse responder, ela continuou. – Ah, acho que nunca perguntei: o que você falou para ele depois daquele problema com a sua promoção?
Aquela pergunta caiu sobre mim como um peso.
– Nada. – Minha voz saiu quase num sussurro.
– Como assim? Você só... aceitou? – O tom de estava mais suave agora.
– Eu tentei recusar, mas ele meio que me forçou a aceitar. – Passei a mão pelos cabelos, tentando dar alguma explicação que fizesse sentido. – Ele me colocou para resolver problemas acima do meu nível, então, no final, eu não tive muita escolha.
– Então, para o tio Davi, nós ainda somos um casal? – arqueou as sobrancelhas, com uma leve provocação nos olhos.
Eu hesitei, o que já era um sinal claro de que estava me deixando levar pela conversa mais do que deveria. Mas, ao mesmo tempo, ela estava me fazendo pensar, questionar as coisas que eu estava apenas empurrando para baixo. Eu só não sabia até que ponto isso me afetava.
Não respondi imediatamente. Em vez disso, dei um aceno silencioso com a cabeça, o suficiente para que ela soubesse que, sim, ainda estava nesse jogo.
ficou em silêncio por um momento, observando-me com atenção. Eu podia ver que ela estava refletindo sobre tudo o que eu acabara de dizer e percebi que ela realmente queria entender.
– Isso faz você ser uma pessoa ruim? – Perguntou, com uma sinceridade que me desconcertou completamente.
Não era provocação. Era pior: Genuína curiosidade. Como se ela tivesse vasculhado minhas noites insones e encontrado a dúvida que me corroía.
– Eu me faço essa pergunta todos os dias. – Respondi finalmente, com uma voz rouca, como se as palavras tivessem sido arrancadas de mim. Eu sentia a pressão subindo pela garganta, como se fosse impossível respirar. – E, às vezes, eu não tenho resposta.
O silêncio que se seguiu foi espesso, mas não hostil. apenas me observou, como se estivesse tentando decifrar algo que eu mesmo não conseguia entender. A troca de olhares entre nós foi interrompida quando escutamos o barulho das chaves sendo jogada em alguma superfície e olhamos para trás, encontrando Nina nos encarando de forma perplexa.
O cômodo ficou em silêncio por um instante enquanto e eu nos encaramos, nossos olhares rapidamente se voltando para Nina. Ela entrava na sala carregando uma bolsa em um braço, livros no outro, e uma expressão que dizia "não sei o que está acontecendo, mas definitivamente não estou preparada para isso."
– Oi, amiga! – cumprimentou com um sorriso grande e animado, como se estivéssemos em uma reunião de amigas e não em uma cena extremamente desconfortável.
– Oi, irmã. – Segui o exemplo, tentando esconder a leve ansiedade, fazendo o possível para parecer natural.
Nina nos olhou de um jeito que só ela conseguiria, com aquele olhar de quem descobriu que o mundo realmente pode ser mais estranho do que ela imaginava.
– É, eu não vou me acostumar com isso. – Ela falou com um suspiro, se aproximando com uma expressão de quem estava prestes a presenciar o apocalipse.
– Estamos esperando você para jantar.
O olhar de Nina foi direto para os pés de , onde minhas mãos ainda descansavam como se fosse algo perfeitamente normal. Eu precisei me conter para não rir. De todas as namoradas que já havia apresentado para Nina, provavelmente era a mais inesperada.
– Está com fome? Eu fiz espaguete com molho de muçarela. – Perguntei. afastou as pernas de mim e se levantou do sofá, indo até Nina. Ela esticou os braços, recebendo um abraço meio apreensiva.
– É só macarrão com queijo. – Eu não pude evitar um sorriso divertido apareceu no meu rosto quando ouvi o deboche de .
Nina sentou-se à mesa com um suspiro, e foi atrás, se acomodando ao meu lado. Enquanto eu servia o prato para a duas, Nina não parava de nos olhar, tentando compreender a estranheza daquela situação.
– É estranho ver vocês dois juntos, é um casal que eu nunca imaginei que fosse acontecer. – Nina disse, enquanto começava a mexer com a comida como se fosse a coisa mais interessante do mundo.
– Tipo, você e Andreas? – perguntou, com uma provocação leve no tom.
Nina levantou a cabeça de forma rápida, fuzilando com o olhar.
– Não me ataque para se defender, . Você está pegando o meu irmão!
– Engraçado, porque ele não parece estar reclamando. – arqueou uma sobrancelha, o canto da boca curvando num sorriso debochado.
Nina arregalou os olhos, como se tivesse acabado de ouvir a coisa mais indevida do mundo, e puxou o prato da minha mão com tanta força que quase o derrubou.
– Chega! – Resmungou. Eu e trocamos um olhar rápido, o tipo de olhar que dizia nós dois sabíamos que ela ia reagir assim. – Vamos só jantar, por favor – Nina continuou, tentando se concentrar na comida. – Não quero imaginar nada que envolva vocês dois.
E, claro, foi impossível conter o riso. Assim que ela deu a primeira garfada, soltou uma risadinha e eu a acompanhei, porque a cena toda parecia saída de uma comédia doméstica. Nina bufou, e nós rimos ainda mais.
Durante o jantar, contamos novamente a história inventada sobre o início da relação, o que não passou de uma verdade mal contada. Falamos, principalmente, sobre as coincidências dos encontros as cegas e o encontro no Restaurante Baston.
Nina parecia prestes a iniciar uma nova rodada de perguntas. Eu já podia ver o brilho investigativo surgindo em seus olhos, mas , com aquela destreza irritante e irresistível de sempre, foi mais rápida.
– Não foi mais ou menos assim com o Andreas também? – Perguntou, apoiando o cotovelo na mesa e exibindo um sorriso que era pura malícia.
O nome bastou para silenciar o ambiente. Nina piscou algumas vezes, avaliando se valia a pena entrar nessa discussão e, pelo jeito, concluiu que definitivamente não. Fingiu um sorrisinho e mudou de assunto.
Entre risos contidos, olhares desviados e comentários inocentes que escondiam muito mais do que diziam, o clima começou a se desfazer um pouco. O ar ainda estava carregado, mas havia uma trégua silenciosa ali, como se, de alguma forma, todos tivéssemos decidido dar uma folga uns aos outros.
Após o jantar, finalmente, eu me retirei para o meu quarto, ansioso para descansar e descarregar todo o estresse acumulado. Não demorou muito, no entanto, até Nina invadir minha paz, como se estivesse de plantão esperando o momento certo.
– A coisa mais estranha do meu ano foi chegar em casa e encontrar você e de casalzinho no sofá. – Ela comentou, sem cerimônia, entrando no quarto e interrompendo meus pensamentos.
– Eu ia dormir, Nina. – Apontei para o cobertor que já estava sobre mim, como se isso fosse um argumento convincente para ela me deixar em paz.
– Parece que você foi enlaçado para valer, não é? – Nina cutucou meu ombro, com aquele olhar curioso e cínico. Eu levantei o olhar e a encontrei apoiada no queixo, me observando atentamente, como se eu fosse a peça central de um documentário sobre mistérios da vida.
– O que posso fazer? Como resistir a ? – Soltei a frase com um tom irônico, como se a situação fosse mais simples do que parecia. Mas no fundo, eu sabia que aquela era uma pergunta verídica e pertinente.
Era difícil dizer não àquela mulher.
– É estranho como eu nunca pensei em você e juntos, mas agora, depois de ver vocês dois, não consigo mais imaginá-los separados. – Nina comentou, com um sorriso meio intrigado. "Minha pobre irmã, mal sabe que está falando sobre um casal inexistente", pensei, tentando manter a calma. – Você está nessa de verdade, Ant?
A pergunta veio carregada de curiosidade e a sensação de estar em um canto apertado aumentou.
Eu simplesmente odiava mentir, e mentir para Nina era ainda pior. Ela conhecia meu comportamento, sabia quando eu estava escondendo algo, e naquele momento, o peso da mentira me sufocava.
– Acho que sim, Nina. – Refleti por um instante, tentando organizar as palavras. – Não sei muito bem o que estou fazendo, estou apenas seguindo o fluxo. é mais diferente do que eu pensei. Ela é... legal.
Era a verdade, pelo menos em parte. O pouco que tinha conhecido de me fez perceber que ela não era exatamente a pessoa que eu imaginava. Mais do que isso, ela me surpreendeu de uma maneira que eu ainda não conseguia processar completamente.
– Ant, por que você não me contou? – A voz dela soou triste, quase como se estivesse ferida. – Nunca escondemos nada um do outro, e de repente, você começa a sair com minha melhor amiga e acha que está tudo bem não me contar?
Eu me senti como um idiota e o arrependimento bateu forte. Me sentei, pegando sua mão, meu coração apertado pela culpa de tê-la deixado triste.
– Eu sei, Nina. Me desculpa, de verdade. – Respirei fundo, tentando ser o mais sincero possível. – Mas, essa história toda com a foi uma surpresa para mim. Eu não esperava, nem eu sei como tudo aconteceu. E, na real, eu nem sabia como te contar. Foi tudo muito rápido.
Havia mais que eu queria dizer, mais que eu estava tentando esconder. Mas eu sabia que, naquele momento, a única coisa que eu poderia fazer era tentar suavizar a situação e manter a paz. Eu me sentia como um malabarista, equilibrando as mentiras e os fatos enquanto tentava não deixar tudo cair.
– Então, afinal, vocês estão sérios sobre isso? – Nina perguntou, a curiosidade cintilando nos olhos. Era impossível não notar. E, claro, ela tinha toda a razão.
Eu também ficaria intrigado se estivesse no lugar dela. Eu e , que mal trocávamos palavras, de repente estávamos… namorando.
Desde o meu último relacionamento – com Kiara – eu não havia me entregado a nada sério. Seis meses se passaram desde então. Talvez o maior intervalo da minha vida sem alguém ao meu lado. E, ainda assim, não sentia medo. Nunca senti.
Nunca tive receio de me apaixonar. Gosto, desejo e amor sempre pareceram naturais para mim, quase instintivos. Minha mãe costumava brincar, dizendo que eu era um “fã do amor”. Ela não estava totalmente errada. Apesar da aparência controlada, séria e ponderada que eu exibia na maior parte do tempo, havia um lado meu que se rendia facilmente aos sentimentos, que florescia sem esforço, que se deixava levar.
E isso não me incomodava. Nunca se tratou de dependência emocional; nunca fui do tipo que reprime desejos ou emoções. Eu acreditava que amar valia a pena. Não apenas pelo prazer ou pela companhia, mas porque havia algo essencial, quase vital, em se permitir sentir profundamente.
– Eu não sei, Nina. A gente vai tentar. – Escolhi minhas palavras com cuidado, mas sabia que, no fundo, não eram inteiramente verdadeiras.
– Bom… – Ela se levantou, soltando um suspiro que parecia carregar o peso daquela conversa. – Não sei como estão as coisas entre vocês, mas vou te dizer o mesmo que me disse quando contei sobre o Andreas: não vou escolher lados. Você é meu irmão, mas ela é minha melhor amiga. – As palavras saíram calmas, ponderadas, e por um instante me peguei observando cada gesto, cada pausa calculada. Senti um alívio silencioso – Nina não tentava me empurrar para nenhum lado, nem me julgar. – Só… não se matem, tá?
– É difícil de acreditar, mas a gente até se entende. –
Com , apesar de tudo, havia uma estranha sintonia que resistia ao caos. Algo que, contra todas as expectativas, simplesmente funcionava.
– Notei isso hoje, mas ainda me soa estranho. – Ela admitiu e a incredulidade em seus olhos era quase tangível. – Então… você vai mesmo para a ilha? Para o aniversário?
– Vou, sim. Por livre e espontânea pressão. – Um sorriso me escapou, breve e involuntário.
– Anos tentando te convencer a ir a um aniversário dela, sem sucesso. E agora… olha você, indo como… tipo, primeira-dama? – Nina soltou uma risada.
Aquela gargalhada me atingiu em cheio. Era a risada de nossa mãe, viva e leve, ecoando no presente como um fantasma familiar.
Eu sabia que estava longe de estar satisfeito com o rumo da minha vida, mas aquele sorriso... aquele sorriso bastava. Se mantê-lo ali significava continuar errando o caminho, que fosse. Eu seguiria assim mesmo. Sem calcular demais, sem olhar para trás.
CONTINUA...
N/A: Pois é, olha eu aqui de novo! 😅 Tô chegando com a minha segunda longfic, um projetinho que tá comigo desde 28 de dezembro de 2022. Só agora criei coragem de postar, mas já tá quase 80% pronta. Toda vez que abro o arquivo acabo mudando uma coisinha ou outra, mas no fim das contas a essência tá firme e forte
EC tá vivíssima nos meus arquivos faz tempo e eu amo taaanto escrever, sempre que quero esquecer do mundo real, é para ela que eu corro
Espero muito que vocês curtam e que me acompanhem mais essa vez! ✨

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